ESPECIALIZAÇÃO EM DIREITO PÚBLICO
LEANDRO DAMASCENO E SILVA
CRIME ORGANIZADO NO BRASIL:
PROBLEMÁTICA NA REALIDADE JURÍDICA BRASILEIRA
FORTALEZA
2014
LEANDRO DAMASCENO E SILVA
CRIME ORGANIZADO NO BRASIL:
PROBLEMÁTICA NA REALIDADE JURÍDICA BRASILEIRA
Monografia apresentada ao Curso de
Especialização em Direito Público da
Escola Superior da Magistratura do
Estado do Ceará como requisito
parcial para a obtenção do título de
especialista.
Orientadora: Profª. Esp. Maria de
Fátima Neves da Silva
FORTALEZA
2014
S586c
Silva, Leandro Damasceno e
Crime organizado no Brasil: problemática na realidade jurídica
brasileira / Leandro Damasceno e Silva. – 2014.
60 f. ; 30cm.
Monografia (Especialização em Direito Público) – Escola Superior
da Magistratura do Estado do Ceará, Fortaleza, 2014.
Orientação: Profª. Esp. Maria de Fátima Neves da Silva.
1. Crime Organizado. 2. Organizações Criminosas. 3. Lei
12.850/13. I. Silva, Maria de Fátima Neves da (orient.). II. Escola
Superior da Magistratura do Estado do Ceará – Especialização em
Direito Público. III. Título.
CDDi: 341.551410981
À minha avó, Maria Gomes, pelo seu
amor incondicional e imenso carinho
em todas as horas.
Ao meu avô José Jocilé, por seu
exemplo de seriedade e hombridade
que me ensinou o caminho do bem.
À minha mãe, Mariana, por seu
esforço na minha educação e na de
meu irmão, sempre demonstrando
durante toda a minha vida, plena
confiança e apoio.
Ao meu pai, Leonardo da Silva, de
quem guardo lembranças agradáveis
desde a tenra idade.
Ao meu irmão Leonardo Éber, por sua
grande generosidade e amor fraternal.
AGRADECIMENTOS
A Deus, Supremo Criador do céu, da terra, dos mares e de tudo que neles há,
pela Sua graça e infinita bondade.
A minha orientadora Professora Fátima Neves, por sua imensa solicitude e
preciosas dicas no auxílio de minha pesquisa, bem como por sua gentileza na
orientação da monografia.
Ao Mestre Edson Landim, pelo ensino não só de lições de Ética e Filosofia,
mas, sobretudo, ensino do amor ao Direito e ao próximo, tendo acreditado no
potencial de um curioso aluno de filosofia, que cursava o ensino médio.
Aos amigos e companheiros de trabalho Franklim Fernandes, Priscilla Ingrid e
Marta Silva, pelo inestimável encorajamento e principalmente por tornarem
mais agradável as vicissitudes do cotidiano.
Aos meus amigos e amigas de jornada na Especialização em Direito Público da
Escola Superior da Magistratura do Estado do Ceará.
É a conhecida estrada que tira
centenas de milhares de crianças e
adolescentes brasileiros do rumo que
se espera deles. Que afasta essas
crianças daquilo que prevê o próprio
Código da Infância no Brasil, um dos
melhores no mundo e que não
funciona. Sem qualquer tipo de
solidariedade, roubando para se vestir
e se alimentar, esses meninos
escorregam pela maldita rampa da
desatenção. Nos sinais de trânsito,
são vistos como um inimigo
ameaçador. Até que se transformam
mesmo em inimigos. Dormem pelas
praças. Aprendem cedo e rápido.
Formam grupos em que meninas de
onze
anos
já
são
amantes
experientes. Aos treze são mães de
outros brasileiros destinados a
escorregar pela mesma rampa.
Carlos Amorim
RESUMO
Esta monografia objetivou a análise do fenômeno do crime organizado no
mundo, e em particular, no Brasil. Para tanto, procedeu-se a uma investigação
acerca do surgimento e desenvolvimento das principais organizações
criminosas mundiais e suas características e modos de atuação, arrolando e
diferenciando os diversos meios de associação para cometimento de ilícitos:
bando, quadrilha e organizações criminosas. Em seguida, tratamos da
abordagem dada pelo ordenamento jurídico brasileiro a esta matéria,
notadamente da Lei nº 12.850/13, que disciplina meios operacionais de
combate às ações praticadas por organizações criminosas, passando ao
estudo do histórico das duas maiores organizações criminosas brasileiras: o
Comando Vermelho e o Primeiro Comando da Capital.
Palavras-chave: Crime Organizado. Organizações Criminosas. Lei 12.850/13.
ABSTRACT
This study aimed to analyze of the phenomenon of organized crime in the
world, and particularly in Brazil. For that, we proceeded to an investigation of
the emergence and development of major criminal organizations worldwide and
their characteristics and modes of action, listing and differentiating between the
various modes of association to commit crimes: gang, gangs and criminal
organizations. Then treat the approach taken by the Brazilian legal system in
this field, notably Law nº 12.850/13, which regulates the operational resources
to combat the actions perpetrated by criminal organizations, through the study
of the history of the two major criminal organizations in Brazil: the Red
Command and the First Capital Command.
Keywords: Organized Crime. Criminal Organizations. Law 12.850/13.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................... 9
1 BREVE HISTÓRICO DO CRIME ORGANIZADO ............................... 11
1.1 A Máfia Siciliana ................................................................................ 13
1.2 As gangues de Nova York ................................................................. 16
1.3 La Cosa Nostra .................................................................................. 17
2 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DAS ORGANIZAÇÕES
CRIMINOSAS .......................................................................................... 19
3 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E AS
ORGANIZAÇÕES CRIMINOSAS ........................................................... 25
3.1 Inovações trazidas pela nova Lei de Combate ao Crime
Organizado (Lei nº 12.850/13)................................................................. 35
3.2 As principais organizações criminosas brasileiras ............................ 46
3.2.1 Comando Vermelho ........................................................................ 49
3.2.2 Primeiro Comando da Capital ........................................................ 52
3.2.3 Primeiro Comando do Maranhão e Bonde dos 40 Ladrão............. 54
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................... 56
REFERÊNCIAS ....................................................................................... 59
INTRODUÇÃO
A pertinência do tema estudado é ressaltada com o crescimento
desordenado da criminalidade organizada e sua chegada em novos Estados da
Federação, como o Maranhão. Nesta pesquisa, trataremos sobre o crime organizado
no Brasil procurando mostrar as visões doutrinárias e diferenças conceituais entre
quadrilha, bando, facções criminosas e crime organizado propriamente dito. Para
tanto, emerge a importância desta pesquisa com a promulgação da Lei nº 12.850, de
2 de agosto de 2013, trazendo inovações ao combate ao crime organizado, visto que
sequer tínhamos, no ordenamento jurídico brasileiro, notadamente na revogada Lei
nº 9.034/95, uma definição do que seria crime organizado.
Ademais, procuraremos discorrer e apresentar pontos de vista sobre a
existência do crime organizado em nosso país e buscaremos analisar o
posicionamento de alguns doutrinadores no tocante a essa temática.
Com efeito, as facções criminosas que existem hoje no Brasil podem ser
chamadas de crime organizado, com base em critérios legais e doutrinários
atualmente vigentes?
Analisaremos a história e o surgimento do crime organizado, suas
características e modos de atuação, a tipificação legal de ações praticadas por
organizações criminosas sob a égide da revogada Lei nº 9.034/95 e os avanços
obtidos com a entrada em vigor da nova lei de combate ao crime organizado, a
saber, Lei nº 12.850/13, bem como sua contribuição ao combate deste tipo de crime,
além de apresentar conceitos doutrinários acerca da temática crime organizado e
investigar se as organizações criminosas que existem no Brasil enquadram-se nesta
modalidade criminosa.
Em relação aos aspectos metodológicos, as hipóteses são investigadas
através de pesquisa bibliográfica, a partir da investigação livre e exploratória sobre a
temática. Cumpre-nos, então, verificar a pertinência do tema abordado e observar as
nuances deste fenômeno denominado crime organizado, considerando a sua
repercussão social no Brasil e no mundo.
No primeiro capítulo, faremos um breve histórico do crime organizado e
de seu surgimento, de acordo com as teses mais aceitas pela doutrina, tendo em
10
vista se tratar de assunto não pacificado. Em seguida, de maneira sucinta
abordaremos aspectos históricos das gangues de Nova York, da Máfia Siciliana e de
seu braço americano, a La Cosa Nostra, bem como das vidas de dois grandes
“mafiosos”: Arnold Rothstein e Al Capone.
O segundo capítulo é destinado ao estudo das principais características
das organizações criminosas, seus meios de manifestação, atuação e estrutura
interna, bem como a ratio essendi das associações.
O terceiro capítulo, por sua vez, é dedicado ao tratamento legislativo da
matéria no ordenamento jurídico brasileiro, bem como a análise das principais
organizações criminosas em atuação no Brasil: o Comando Vermelho e o Primeiro
Comando da Capital, abrangendo também a florescente criminalidade organizada no
Estado do Maranhão, representada pelo Primeiro Comando do Maranhão e o Bonde
dos 40.
1 BREVE HISTÓRICO DO CRIME ORGANIZADO
Podemos dizer que o predecessor do crime organizado, nos moldes como
é conhecido atualmente, foi o banditismo social, resultante da transição da
sociedade feudal - com a produção de riquezas eminentemente no campo, nos
feudos - para a sociedade capitalista centrada na produção de bens e riquezas na
zona urbana com a ainda incipiente revolução industrial. A migração dos
trabalhadores para as cidades, caracterizadora do êxodo rural e o enorme
crescimento demográfico destas, formando uma mão de obra reserva para as
indústrias da época, contribuíram para o surgimento desta empreitada criminosa.
Eric J. Hobsbawn apud Rodolfo Tigre Maia (1997, p. 6) explica que:
O ponto básico a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais,
encarados como criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas que continuam
a fazer parte da sociedade camponesa, e são considerados por sua gente
como heróis, como campeões, vingadores, paladinos da Justiça, talvez até
como líderes da libertação e, sempre, como homens a serem admirados,
ajudados e sustentados.
Foi justamente de um grupo camponês da Sicília que surgiu a máfia, por
volta do século XVIII, na região de Palermo, resultado do longo período de
exploração social imputado pelos senhores feudais com a rigidez dos estamentos
sociais, tornando praticamente impossível a ascensão social, agregada à ausência
de reforma agrária e o absenteísmo do Estado, dentre vários outros fatores.
Relatórios policiais da época faziam menção a estes agrupamentos como “uma rede
de quadrilhas de extorsão politicamente protegidas (...) como grupos de criminosos
que aterrorizam a comunidade local, vivendo de extorsões e outros ganhos ilegais, e
controlam o acesso ao emprego e mercados comunais” (MAIA, 1997, p. 7). A
diferença elementar existente entre a máfia e o banditismo social é que aquela não
visa a qualquer tipo de reforma ou melhoria social e política, e sim, única e
exclusivamente o lucro ilícito advindo de suas atividades criminosas.
Porém, existem várias divergências doutrinárias (MAIA, 1997; FERRO,
2009) quanto ao real nascedouro do crime organizado. Muitos enxergam seu
surgimento na societas sceleris, que eram grupos de criminosos, conhecidos como
bandoleiros, reunidos para a prática de vários ilícitos, dentre estes os saques, furtos
12
e destruição por onde passavam (respeitadas as proporções, os bandoleiros
guardam certa semelhança com os cangaceiros, personagens lendários e históricos
bastante conhecidos em nosso Nordeste).
A expressão societas sceleris é bem abrangente e abarca também as
associações secretas com fins políticos, notadamente a idealização e o
planejamento de sedições, conjurações, conspirações, causando, por conseguinte,
muitas preocupações aos governantes da época (especialmente na Idade Média) e
recebendo por isto, quando capturados, severas reprimendas.
Notável corrente doutrinária defende a tese de que a pirataria pode ser
considerada um esboço do crime organizado, que surgiu como tentativa da
Inglaterra, em meados do século XVII de obstaculizar o progresso espanhol na
conquista e efetiva colonização da América do Norte. Tal empreitada criminosa
alcançou seu apogeu em 1720 e conheceu a derrocada na década seguinte, com a
captura e morte de vários capitães, os líderes do movimento.
A razão de apontar a pirataria como um primitivo e incipiente crime
organizado é a presença de traços característicos comuns entre ambos, tais como, a
violência, a busca e a seleção dos membros de seu quadro, o cunho não ideológico,
a perpetuação, a existência de organização hierárquica, a corrupção e a demanda
do público pelas suas mercadorias e pelo seu comércio, público este que fazia as
vezes de receptadores e era composto frequentemente por mercadores e pelas
comunidades costeiras que, de certa forma, fomentavam e estimulavam a atividade
pirata.
Sua extinção se deu quando os governantes adotaram medidas drásticas,
revelando a identidade de pessoas que comercializavam com os piratas e acabando
a venda de imunidades e prerrogativas aos tais. Dessa forma, a procura pelos
artigos piratas foi decrescendo gradativamente e o comércio realizado, que outrora
adquirira feições de sistema integrado de práticas mercantis internacionais
desapareceu.
13
1.1 A Máfia Siciliana
Walter Maierovitch (1995, p. 98), descortina três hipóteses mais aceitas
pelos estudiosos acerca do surgimento da Máfia Siciliana:
Para alguns, a Máfia nasceu como secreta associação no Regno delle due
Sicilie (Reino das Duas Sicílias).
Tinha objetivo político, ou seja, oposição ao rei espanhol Francisco II, da
casa de Bourbon. Apoiava os soldados de Giuseppe Garibaldi, o grande
herói da unificação da Itália.
Garibaldi combateu o exército fiel ao rei Francisco II. Venceu a batalha e,
em Teano, em 12 de outubro de 1861, entregou o reino conquistado para
Vitório Emanuel II, da casa de Savóia e rei da Sardegna. Unificou-se a Itália.
Para outros pesquisadores, a Máfia existia bem antes do Risorgimento
(1820 a 1861 e 1870, data da supressão do poder temporal da Igreja).
Nasceu à sombra do feudalismo, como força mantenedora da ordem no
campo. Com o tempo, especialmente depois da segunda guerra mundial, a
Máfia começou a sentir a concorrência do movimento sindical e passou a
assassinar sindicalistas. Transferiu-se então, para as florescentes cidades,
disseminando intimidação e estabelecendo poder paralelo.
Origem remota seria a seita denominada Beati Paoli, que tinha como
emblema uma cruz de fundo e sobre ela duas espadas cruzadas.
Pesquisadores desse tema asseveram que a Máfia Siciliana teve ao longo
de sua existência algumas fases de evolução e, segundo a classificação de Umberto
Santino apud Ferro (2009), são basicamente quatro:
1ª fase: Incubação, abrangendo desde o século XVI até o início do século
XIX; pode-se apontar a existência de fenômenos pré-mafiosos e não uma máfia
propriamente dita;
2ª fase: Surgimento de uma máfia agrária, continuadora do sistema
econômico-social alicerçado no campo e que se manteve dominante até a década
de cinquenta do século passado, onde o mafioso exercia o papel de representante
da economia agrária, apesar de ser um parasita deste sistema nas relações entre os
proprietários de terras e os camponeses. Na realidade, a máfia esteve interposta no
meio desta luta de classes que culminou com a derrocada do movimento camponês
e o esvaziamento dos campos (o que nós conhecemos por êxodo rural), bem como
a concentração desta mão de obra nos setores produtivos em nível local, nacional e
europeu;
3ª fase: Fase urbana empresarial (até a década de 1960), com a
consequente urbanização e formação de grandes cidades (metrópoles) ocorre o
14
aumento dos mafiosos do tipo empresário, sobretudo no ramo das construções;
4ª fase: A partir da década de setenta, surge a máfia financeira,
mesclando práticas ilegais ao tráfico internacional, principalmente de drogas e
armas, acumulando vultosas quantias de capital e solidificando suas bases de forma
nunca antes vista, com o depósito destas divisas em instituições bancárias, que
como se sabe, via de regra são acobertadas pelo sigilo bancário e não bastasse isso
ainda surgem os paraísos fiscais, uma verdadeira “mão na roda” para a prática de
lavagem de dinheiro. Os mafiosos costumam utilizar parte deste capital em suas
atividades “lícitas” (FERRO, 2009).
Para Umberto Santino apud Ana Luiza Almeida Ferro (2009, p.79) eis as
características desta última fase:
a) A financeirização da economia, isto é, a centralidade hegemônica do
“complexo financeiro industrial”;
b) A importância e as articulações da acumulação ilegal;
c) A simbiose entre capitais legais e ilegais assegurada pela opacidade do
sistema financeiro;
d) A homologação no meio das grandes criminalidades organizadas
presentes na cena planetária, que, todavia mantendo aspectos específicos
da sua cultura nacional e local, desenvolvem as mesmas atividades e se
encontram a enfrentar os mesmos problemas (jurídicos, econômicos,
sociopolíticos) e se adaptam sempre mais à forma “holding”, em
consonância com as estruturas financeiro empresariais das grandes
corporations.
Cumpre ressaltar um dado que favoreceu deveras a subsistência da máfia
no ínterim entre a prevalência do capitalismo agrário e da formação do Estado
nacional italiano, no século XIX: a manutenção do modelo político clientelista em
nível local, regional e nacional, que lhe propiciou uma aproximação das elites
políticas e até mesmo uma espécie de proteção por parte destas (sob o manto da
impunidade) e, por conseguinte, facilitou a contínua busca pelo domínio do poder
através de meios ilegais e violentos.
Segundo a citada autora, um grande percalço enfrentado pela Máfia
Siciliana, no decorrer de sua história, foi a dura repressão sofrida pelo regime
fascista de Benito Mussolini, que não admitia de forma alguma a concorrência de
outro poder fora da sua esfera de alcance, onde pudesse controlá-lo.
O ditador italiano adotou uma série de medidas para alcançar seu intento,
dentre elas a abolição das eleições em 1925, o que extinguiu temporariamente as
relações da máfia com o governo, dificultando a mantença da impunidade para seus
15
membros e a nomeação de um policial de carreira (linha dura, diga-se de passagem)
para a prefeitura da Lombardia. Seu nome era Cesare Mori e durante sua gestão a
máfia foi sistematicamente perseguida com a prisão, tortura e morte de muitos
mafiosos e até políticos da esquerda tachados de mafiosos. Em 1928, Mori afirmou
que a máfia havia sido destruída. O tempo veio comprovar que era um ledo engano.
A máfia, em sua roupagem americana, firmou uma espécie de
cooperação com o governo dos Estados Unidos, notadamente na figura do Serviço
de Inteligência Naval, comandado à época pelo Coronel Charles Poletti, visando ao
desembarque seguro das tropas aliadas no território siciliano. Em troca, obteve a
liberação de Lucky Luciano e a atuação de Vito Genovese como embaixador
informal.
Para FERRO (2009), com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota
do regime fascista pelos aliados, os EUA entregaram graciosamente os cargos
públicos nas mãos dos mafiosos até a realização das eleições em 1946. Não havia
ocasião melhor para a volta ao poder, pois os líderes despontaram como vítimas da
perseguição sanguinolenta de Cesare Mori e posaram na condição de antifascistas,
além de recuperarem o prestígio e o respeito local de que desfrutavam.
Como já mencionado anteriormente, os membros da máfia eram
provenientes de uma classe econômica intermediária situada entre os nobres,
proprietários de terra e os camponeses em um ambiente de estagnação dos rígidos
estamentos sociais, fator este amplamente aproveitado para sua escalada à gestão
do poder.
Sobre a auto imagem dos membros da máfia, disserta LUPO (2001, p.
27):
Portanto, é sobretudo a Máfia que descreve a si mesma como costume e
comportamento, como expressão da sociedade tradicional. Todo mafioso
eminente insiste em apresentar-se sob as vestes do mediador e do
pacificador de controvérsias, de tutor da virtude das meninas; pelo menos
uma vez na sua carreira, ele ostenta uma “justiça” rápida e exemplar contra
ladrões violentos, estupradores, raptores de crianças.
O ingresso da máfia no cenário político iniciou-se na Sicília e
posteriormente propagou-se pela Itália. Em meados do século XIX, a extensão do
sufrágio eleitoral e o estabelecimento de cargos eletivos locais constituíram
elementos favorecedores do clientelismo e especialmente da criminalidade
16
organizada, que detinha o poder local e fez uma espécie de aliança com os políticos
de nível nacional, pois estes precisavam do auxílio e apoio dos mafiosos para
conseguirem expressiva votação nestas localidades e, assim serem eleitos
deputados.
Ao longo do tempo, essas relações foram sendo aceitas como normais e
corriqueiras, de forma que a organização começou a influenciar a escolha de
políticos, magistrados e policiais. A máfia também estendeu suas atividades através
da participação nas licitações públicas, e, algumas vezes, conseguindo até mesmo
controles de natureza monopolista (FERRO, 2009).
1.2 As gangues de Nova York
Outro exemplo prodigioso de crime organizado foram as gangues de
Nova York surgidas no bairro de Five Points, em Manhattan. Naquela época, os
nova-iorquinos viviam em situação de pobreza extrema, os empregos eram
escassos e não se tinha perspectiva alguma, além da citada comunidade ser rude e
violenta.
Tal conjuntura favoreceu enormemente a prática criminosa nas ruas – até
mesmo como uma das poucas alternativas visando à obtenção de renda – e eram
encaradas como um meio de sobrevivência, motivo pelo qual contavam com a
simpatia da comunidade.
As primeiras gangues não possuíam uma liderança ou estrutura física,
mas no decorrer do tempo acabaram sendo substituídas por grupos bem mais
organizados e que mesclavam e dissimulavam suas práticas ilícitas com práticas
igualmente lícitas (pequenas mercearias que comercializavam legumes e gêneros
alimentícios e casa clandestina de bebidas, no mesmo estabelecimento em recinto
recuado, por exemplo).
No princípio do século XX, Nova York estava praticamente dividida em
dois territórios: de um lado os Five Pointers, liderados por Paolo Antonini Vaccarelli,
apodado de Paul Kelly e que comandava a criminalidade numa área que ia da
Broadway até o Bowery, e de outro os Eastmans, liderados por Monk Eastman (daí
17
o surgimento do nome da gangue), que comandava a criminalidade do Bowery ao
East River (FERRO, 2009).
Nesse período, as gangues tiveram um processo de sofisticação e
conheceram o
manto protetor
da política, bem como acompanharam o
desenvolvimento considerável de suas atividades.
1.3 La Cosa Nostra
Conforme pensamento de Ana Luiza de Almeida Ferro (2009), em 1920, a
Máfia Siciliana dominava completamente a vida política e econômica dessa região e
possuía “tentáculos” em várias cidades dos Estados Unidos da América, como Nova
York e Chicago (que posteriormente ficou conhecida como La Cosa Nostra). O
ingresso da máfia nesse país se deu através da expressiva imigração de italianos e
entre estes, membros de organizações criminosas (principalmente da Máfia e da
Camorra). O primeiro crime expressivo cometido pela Máfia Americana foi o
assassinato do Capitão de Polícia Hennessey, ocorrido em Nova Orleans, em 1890.
Entre as atividades ilícitas cometidas pela organização estão a exploração de jogos
de azar e da prostituição, venda ilegal de bebidas, proteção e tráfico de drogas,
contrabando, dentre outras.
A Lei Seca Americana (vigente entre 1920 e 1933) favoreceu a expansão
do crime organizado nos Estados Unidos, pois os mafiosos souberam aproveitar
como ninguém o comércio clandestino de bebidas alcoólicas, que foram banidas
através de um esforço conjunto da Sociedade Americana de Temperança, dos
Proibicionistas, sob a organização da União Feminina da Temperança Cristã, da
Liga Anti-Bar da América, do Partido Nacional da Proibição e das igrejas
protestantes evangélicas, numa “força-tarefa” visando a aprovação de uma emenda
constitucional, até que lograram êxito nessa empreitada, surgindo assim a Décima
Oitava Emenda à Constituição americana.
Em seu início de vigência, a Lei foi esporadicamente executada e sofreu
forte oposição pública. Os mafiosos logo dominaram a produção, a comercialização
e o contrabando de bebidas alcoólicas através de meios ilícitos (as casas
clandestinas de bebidas). Estima-se que, somente na cidade de Chicago, em
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qualquer tempo entre 1920 e 1933, funcionariam 10.000 casas clandestinas de
comercialização de bebidas.
Por outro lado, os opositores da lei alegavam a sua ineficácia, pois tolhia
a liberdade de escolha pessoal e a total proibição do consumo de bebidas alcoólicas
só estimulava o desrespeito generalizado da lei e o rápido crescimento dos grupos
criminosos que exploravam ilegalmente este comércio.
De fato, enquanto o movimento proibicionista (pró-temperança) murchava,
a campanha pela revogação de Décima Oitava Emenda ganhava força e expressão
e logrou êxito em seu objetivo em 1933, através da aprovação da Vigésima Primeira
Emenda. Era o fim da “lei seca”. Não obstante, o crime organizado passou a
explorar outros meios ilegais para obtenção de capitais como a agiotagem, o jogo, a
prostituição e o tráfico de drogas.
2 AS PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DAS ORGANIZAÇÕES
CRIMINOSAS
Na doutrina, existem vários modelos sobre a formação e como se constitui
e estrutura o crime organizado e as organizações criminosas, os quais nos permitem
analisar acuradamente muitos aspectos relevantes deste tipo de crime, como a
natureza das relações intersubjetivas de seus membros, suas atividades, o modo de
organização e estruturação dessas associações, dentre outros.
Estruturalmente, a máfia apresenta organização vertical, mais conhecida
como forma piramidal em que as decisões e o controle do poder estão no topo, nas
mãos do capo/patrino e vão sendo executadas até chegar na base desta pirâmide.
Existe também o modelo horizontal – que parece ser uma tendência no crime
organizado da atualidade – no qual as ações são decididas através de uma estrutura
horizontal, malgrado haja hierarquia.
O crime organizado também pode ser agrupado conforme o maior ou
menor grau de burocracia existente ou a maior ou menor rigidez estrutural da
organização.
FERRO (2009, p. 276), traduz o pensamento do professor e fundador da
Associação para o Estudo do Crime Organizado, Howard Abadinsk, que nos dá uma
lúcida ilustração sobre o assunto:
Todas as vezes que uma entidade – clube, negócio, grupo do crime –
continua a se expandir, em algum ponto ela terá de adotar o estilo
burocrático de organização. Por exemplo, uma mercearia familiar, do tipo
‘mamãe e papai’, não necessita ter qualquer dos atributos de uma
burocracia. Os proprietários e trabalhadores são aparentados e a estrutura
é informal e baseada no parentesco. Se o negócio se expande – os
proprietários estabelecem muitas mercearias – uma hierarquia formal se
torna necessária, como também pessoas especializadas e uma divisão de
trabalho; haverá extensivas regras escritas e regulamentos e diretrizes
serão via hierarquia. Assim o modelo de organização adotado por uma
entidade – legítima ou criminosa – dependerá do escopo de suas operações
e da experiência organizacional de seus líderes.
O recrutamento dos membros da Máfia Siciliana é feito com base em
critérios bastante seletivos, como a origem dos meios mafiosos de seus candidatos,
que precisam necessariamente demonstrar que são verdadeiros experts nos tipos
de crimes praticados e possuem extrema fidelidade à organização, de maneira que
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não é aceita a filiação de pessoas que não inspiram confiança, como filhos de
policiais ou magistrados. Também é avaliado o lado moral de suas vidas, não sendo
aceitas pessoas divorciadas, filhos bastardos e homossexuais. O ritual de iniciação é
bastante solene não sendo feito em pessoas de tenra idade, pois a qualidade de
membro da Máfia Siciliana é vitalícia, por toda a vida. A maioria desses traços
característicos também está presente no braço americano da máfia.
Com o endurecimento do Estado italiano no combate a máfia – o que
ocasionou o significativo aumento do número de pessoas que colaboravam com a
Justiça – houve, por conseguinte, a adoção de critérios mais rigorosos no
recrutamento e seleção de novos membros, o que ocasionou a formação de famílias
menores, porém muito mais coesas e com maior valorização da preservação de
segredos pertencentes à organização criminosa.
Os traços de homogeneidade, centralização e a organização estrutural da
Máfia Siciliana evitam a ocorrência de atritos internos e possibilitam aos poucos que
ocorrem, chegar ao bom termo através da composição, sendo minorado o uso de
violência na resolução dos conflitos internos. Para o desempenho de tal desiderato
existem até órgãos específicos nestas organizações criminosas, como os conselhos
que atuam em nível provincial e interprovincial.
Rodolfo Maia (1997, p.15-16) é de opinião que o braço americano da
Máfia Siciliana, a La Cosa Nostra, esboça atualmente uma tendência para a
horizontalização e feição empresarial de suas atividades:
A própria LCN modernamente abandonou parcialmente sua estrutura
tradicional, através de um processo de transição, umbilicalmente vinculado
a associação referida (organização criminosa + corporação), que recebeu o
saboroso nome de “McDonald’s-ization of the Mafia”, para enfatizar a
superação da tradicional forma verticalizada de organização e adoção de
um formato, similar à concessão de franquias, em o que predomina é o uso
da mística e do temor infundidos no imaginário social pelo passado desta
organização e no qual “um pequeno número de pessoas exerce uma grande
parcela de influência e acumulam consideráveis quantidades de ganhos
com mínimo esforço”. Com efeito, ao analisar dezenas de definições de
crime organizado, explicitados em livros e relatórios governamentais de um
período de 15 anos, em busca de elementos comuns, um estudioso norteamericano encontrou um relativo consenso no reconhecimento de que é
indispensável à sua caracterização a presença de uma organização estável
operando racionalmente para obter lucros através de atividades ilícitas.
Dado interessante e digno de figurar nesse trabalho foi o primeiro caso de
delação premiada na máfia, ocorrido em 1963, quando Joseph Valachi depôs frente
21
à Subcomissão Permanente sobre Investigações, do Senado americano, fato este
motivado pelo temor do precitado mafioso estar marcado para morrer pelo mando de
Vito Genovese, poderoso chefe da La Cosa Nostra. Aliás, foi o próprio Valachi quem
primeiro empregou esta expressão para definir o liame existente entre membros
italianos e americanos do crime organizado. Este depoimento foi o pontapé inicial
para a descoberta de alguns segredos da Máfia, pois revelou uma boa bagagem de
conhecimentos de um criminoso da precitada organização com mais de trinta anos
de experiência.
Durante cinco dias, Valachi afirmou ter participado em mais de trinta e três
assassinatos e também coordenado várias atividades do crime organizado em Nova
York; de certa forma explicou a estruturação de cada família criminosa e o elo de
ligação existente entre elas (uma espécie de conselho nacional denominado
“Suprema Corte do Crime Organizado”), e também minuciou a hierarquia e o modus
operandi, bem como a divisão das famílias em território americano, além de apontar
289 indivíduos como membros da Máfia.
Houve críticas ao presente depoimento, asseverando que foi fruto
exclusivo de sentimento de vingança, que Valachi era um mero subordinado de base
do crime organizado e, portanto, não teria subsídios para prestar um depoimento
com tantos detalhes, pois estes estariam fora da sua esfera de atribuições. Ademais,
o depoimento prestado por Valachi estava eivado de contradições e não era objetivo
em muitos pontos. Tais críticas, contudo, não tiveram o condão de desacreditá-lo e o
fato é que as declarações de Valachi figuraram como cerne de um capítulo no
relatório final da Comissão Presidencial sobre a Execução da Lei e a Distribuição da
Justiça, que versava sobre o crime organizado.
A organização criminosa pode ser traduzida como o modo, o meio de
expressão do crime organizado. Eis aí a principal diferença entre as duas
terminologias, pois um (organização criminosa) é o suporte de viabilização para a
prática do outro (crime organizado). As atividades integrantes deste, os ilícitos
penais perpetrados, apenas obtêm características diferenciadas através do tipo de
associação criminosa que os fomenta, que os estimula, desenvolve e põe em prática
por intermédio de seus membros. Esses ilícitos, em tese, poderiam ser cometidos
por qualquer quadrilha ou bando, tipificando desta forma o ilícito previsto no artigo
228, do Código Penal Brasileiro, mas por configurarem atividade típica de
organização criminosa, adquirem a roupagem de crime organizado. A compreensão
22
das características e a elaboração de um conceito fidedigno desse tipo de crime
terão que obrigatoriamente enfeixar, abarcar estes dois elementos, partindo-se da
análise do conceito de organização criminosa para se chegar a uma real definição
do que é crime organizado, resultado da atividade organizada. Entrementes, o crime
organizado não se confunde com os ilícitos praticados por membros da associação
criminosa, apesar de ser um elemento básico na busca de sua conceituação.
Conforme o pensamento de Gary Potter e Larry Gaines apud FERRO
(2009, p. 335-336) existem três “verdades” básicas, porém habitualmente ignoradas,
sobre o crime organizado:
1- Há muito pouca diferença entre as pessoas que a sociedade designa
como respeitáveis e acatadores da lei e as pessoas que a sociedade
castiga como desordeiros e assassinos.
2- O mundo das finanças empresariais e do capital corporativo é tão
criminogênico quanto e provavelmente mais criminogênico que qualquer
bairro extremamente pobre.
3- As distinções deduzidas entre negócios, política e crime organizado são
na melhor das hipóteses, artificiais e, na realidade, irrelevantes. Em vez de
serem disfunções, o crime corporativo, o crime de colarinho branco, o crime
organizado e a corrupção política são os esteios da vida político-econômica
americana.
As principais características do crime organizado, embora tomadas
isoladamente não o configurem, e sim quando analisadas em seu conjunto são o
cunho não-ideológico, a presença de organização hierárquica, a perpetuidade, ou
seja, o animus de permanecer associado no decorrer do tempo, o efetivo uso ou
ameaça de uso da força, forte limitação à admissão de membros, obtenção de lucro
por intermédio de atividades empresariais ilegais, fornecimento de bens e prestação
de serviços ilegais, porém cobiçados pela população, “manejo” da corrupção como
forma de amordaçar autoridades públicas e políticos, busca do monopólio e
exclusivo controle nas atividades em que participa, especialização e divisão do
trabalho no seu modus operandi, elaboração de regramentos de conduta (os códigos
de silêncio) e o planejamento visando a consecução de metas de longo prazo.
A doutrina esmiúça cada uma dessas características. O caráter não
ideológico significa que as associações não estão ligadas a qualquer corrente
política ou ideologia, seja ela de direita, esquerda, centro, liberal, radical ou
moderada. Eis o motivo porque o terrorismo internacional não figura, tampouco se
confunde com o crime organizado.
23
A presença de hierarquia é bastante clara e patente no seio das
organizações: as decisões e os rumos deliberados por chefes e a execução
realizada pelos participantes em diferentes níveis de posição hierárquica.
A continuidade, outro traço importantíssimo das organizações nos revela
que estas não se subsumem na vida de qualquer de seus membros, pois quando um
chefe é preso ou morto, imediatamente é substituído por outro, não havendo, desta
maneira, solução de continuidade em suas atividades.
O emprego da força ou ameaça de força mostra que as organizações
criminosas, muitas vezes utilizam força (nos homicídios, torturas, incêndios, dentre
outros) não somente aos seus membros, mas também aos que estão em dívida
(financeira ou moral) com a organização.
A restrição ao ingresso de novos membros significa que as associações
criminosas permitem a entrada de pessoas com traços característicos comuns
(critérios étnicos, raciais, criminais, de parentesco).
A ratio essendi das organizações criminosas é a busca do maior lucro
possível com suas atividades, tanto de empreitadas ilegais, como é o caso da
exploração do jogo e da prostituição, como de atividades empresariais lícitas, para
posterior lavagem de capitais.
O fornecimento de bens e serviços ilegais, porém desejados por uma
ampla parcela da sociedade pode ser verificado nos exemplos acima citados, quais
sejam: a exploração da prostituição e do jogo de azar, além da venda de drogas e
armas, do tráfico de pessoas e muitas outras atividades ilícitas, sempre visando o
lucro.
A corrupção de autoridades públicas é outro traço marcante da atuação
das organizações, quer seja no Poder Judiciário, Ministério Público e Polícia,
evitando assim as investigações, ações penais e procedência de condenação ou no
Poder Executivo, utilizando verbas ilícitas no “patrocínio” de campanhas eleitorais,
corrompendo políticos e dirigentes sindicais com o fito de favorecer suas atividades
empresariais aparentemente lícitas.
A objetivação do monopólio nas atividades em que participam é de certa
forma decorrência da busca desenfreada de auferir lucro em seus negócios.
A especialização dos serviços e divisão do trabalho está intimamente
ligada à hierarquia e esta também tem como decorrência a presença de códigos de
conduta rigidamente estabelecidos, em que qualquer violação das regras, ordens da
24
liderança ou rituais de iniciação são punidas com a expulsão ou até mesmo a morte.
É a verdadeira lei do silêncio.
Regra geral, as atividades inerentes ao crime organizado são complexas.
Por conseguinte, demandam um planejamento de metas de longo prazo, bastante
coordenado, metódico e sistemático.
3 O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E AS ORGANIZAÇÕES
CRIMINOSAS
Antes de procedermos à análise comparativa das Leis nº 9.034/95 e
12.850/13, a saber, nova lei sobre o Crime Organizado, que regulamenta os meios
de persecução penal a esta prática criminosa, temos que fazer um pequeno resumo
do tratamento do tema em nosso ordenamento jurídico pátrio.
Até o advento da Lei nº 12.694/12, nossa lei não trazia qualquer
referência ou descrição mais detalhada e minuciosa do que seria crime organizado.
Não havia nenhum tipo penal específico ou dedicado exclusivamente à organização
criminosa. Antes da vigência da precitada Lei, o Código Penal Brasileiro elencava,
em seu artigo 288, o regramento genérico (e podia-se até considerar vago) do bando
ou quadrilha, que incidia tanto nas associações ilícitas em geral, quanto nas
organizações criminosas, por ausência de lei incriminadora especial.
A ampla aplicabilidade dessa norma penal se dava não pelo fato de ser
única, mas sim pelo fato de ser genérica, referindo-se ao cometimento de
determinados tipos de crimes.
Apenas a guisa de exemplos breves, temos o artigo 8º, da Lei dos Crimes
Hediondos (Lei nº 8.072/90) na qual é feita uma alusão ao artigo 288, do Código
Penal Brasileiro – CPB, elevando a pena que vai de 1 a 3 anos no tipo do CPB, para
de 3 a 6 anos quando a quadrilha ou bando tiver por objetivo o cometimento de
crimes hediondos ou equiparados a hediondos, que são a prática da tortura, o tráfico
ilícito de entorpecentes e drogas afins e o terrorismo.
Temos também o artigo 35, caput, da Lei nº 11.343/06, equivalente ao
artigo 14, da revogada Lei nº 6.368/76, na qual vemos a tipificação de uma quadrilha
especializada para a prática do tráfico e a produção lato sensu de drogas. Esta
quadrilha é menos numerosa que a do artigo 288 (basta apenas a presença de duas
pessoas) e não necessita da reiteração para restar comprovada sua caracterização.
No parágrafo único do mesmo artigo é prevista uma segunda espécie associativa,
desta feita, com o fim precípuo da prática do financiamento ou custeio das atividades
do tráfico.
26
Da mesma forma encontramos previsão no parágrafo 4º, do artigo 1º, da
Lei nº 9.613/98 de uma causa de aumento de pena de um a dois terços para os
delitos de “lavagem” ou ocultação de bens, direitos e valores, desde que tenha sido
cometido por intermédio de organização criminosa e com a exigência da
habitualidade em sua prática para a configuração.
Segundo Damásio de Jesus (1996, p. 393) associação pode ser definida
como “a união de pessoas, de forma estável e permanente, para a consecução de
um objetivo comum”.
A associação está presente no artigo 288, que é o último dispositivo do
Título IX (”Dos crimes contra a paz pública”), da Parte Especial do CPB:
Associarem-se mais de três pessoas, em quadrilha ou bando, para o fim de
cometer crimes:
Pena-reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos
Parágrafo único. A pena aplica-se em dobro, se a quadrilha ou bando é
armado.
O objeto jurídico do crime, conforme preceituado no título, é a paz pública.
Também é crime formal, de perigo abstrato, pois não necessita da ocorrência de
resultado naturalístico para restar configurado, em função da presunção de risco à
paz pública quando várias pessoas se reúnem, se associam em quadrilha ou bando
com o fito de perpetrarem crimes.
A associação de que trata a norma penal é a ilícita, para o cometimento
de crimes, pois a associação para fins lícitos é protegida e estimulada por nossa
Carta Magna no inciso XVII, do artigo 5º, que lhe assegura plena liberdade.
É crime comum, pois qualquer pessoa poderá cometê-lo, desde que
associadas em número mínimo de quatro agentes. Desta forma, se caracteriza sua
plurissubjetividade. Subsiste o tipo penal mesmo que um dos agentes seja
inimputável, menor de idade, ou não venha a ser identificado, desde que seja certa e
inequívoca sua participação. O sujeito passivo desta infração é a coletividade.
O núcleo do tipo é associar-se no sentido de agrupar-se, aglutinar-se. É a
união em conjunção de esforços e comunhão de interesses de mais de três
elementos, contendo intrinsecamente a noção de estabilidade e permanência. A
finalidade associativa do bando ou quadrilha é o cometimento de crimes, excluídos
da lista as contravenções penais (que são os crimes-anões) e os fatos imorais ou
amorais que não são previstos em lei, em obediência ao princípio da reserva legal.
27
Também somente incluem-se nestes crimes os dolosos, excluindo-se os culposos e
até mesmo os preterdolosos.
Segundo corrente doutrinária dominante é possível a finalidade de
cometimento de um crime continuado – aquele cujo cometimento se dá pelas
condições singulares de tempo, lugar, maneira de execução e outros semelhantes –
por parte da quadrilha ou bando do artigo 288, do CPB. Não há necessariamente
que existir um liame entre os membros da associação e nem tampouco a figura de
um líder da mesma para sua tipificação.
Grande parte da doutrina entende que quadrilha e bando são expressões
sinônimas, mas é bom registrar opiniões em contrário como a de que a quadrilha
possui um maior nível de organização e estruturação ao passo que o bando é mais
desorganizado e suas ações possuem um menor nível de coordenação. Bem
interessante é a posição de Mirabete (2003, p. 201) entre os divergentes, para quem
a quadrilha “é a associação para cometer crimes nas cidades”, enquanto o bando
“opera no interior do país, sem organização interna e com chefe eventual”.
O elemento subjetivo do delito é a vontade livre e consciente dos agentes
de se associar com estabilidade ou permanência, objetivando a prática de crimes. É
o dolo específico, sendo o fato culposo atípico.
A consumação ocorre com a efetiva associação de quatro ou mais
pessoas para o cometimento dos delitos, mesmo que estes não venham, de fato, a
serem cometidos. É crime permanente (aquele cuja execução protrai-se no tempo),
de maneira que a prisão em flagrante é possível e viável em qualquer oportunidade.
O abandono do bando ou quadrilha por parte de um integrante não retira sua
responsabilidade penal, haja vista que se consumou instantaneamente no momento
de seu ingresso no grupo; todavia faz cessar a permanência do delito.
A tentativa, nesse tipo penal, não é admissível, em virtude de ser crime
unissubsistente, ou seja, aquele que se perfaz em um único ato e não admite o
fracionamento de seu iter criminis.
A ação penal é pública incondicionada, desta feita, a titularidade é do
Ministério Público.
O maior imbróglio jurídico e doutrinário desse tipo penal, no entanto,
reside no parágrafo único, que nos apresenta uma circunstância qualificadora, qual
seja: a aplicação da pena em dobro, se a quadrilha ou bando é armado. Que esta
28
arma pode ser própria ou imprópria não há dúvida. Mas quantos integrantes
precisam estar armados para que se configure a citada qualificadora?
O saudoso Nelson Hungria afirma que apenas um agente armado já
configuraria a qualificadora em tela, opinião corroborada, embora de maneira
esquiva, por Celso Delmanto (1998, p. 488); Bento de Faria, por sua vez, entende
que a maioria necessita portar arma; Heleno Fragoso e Mirabete com entendimento
de certa forma mais cauteloso afirmam que a caracterização da qualificadora ocorre
quando, em função do número de agentes que se encontram armados ou da
natureza da arma empregada seja maior o perigo e o medo gerados por aqueles.
(Ana Luiza de Almeida Ferro, 2009)
Arrematando a questão, leciona Costa Júnior (2010, p. 810): “A expressão
normativa bando armado é equívoca. Tanto poderá referir-se à totalidade do bando
como a parte dele. Seria preferível que fosse empregada a palavra armas, no plural,
como no Anteprojeto Hungria e no CP Italiano”.
O crime de quadrilha ou bando é também crime autônomo, pois sua
existência e tipicidade são independentes dos ilícitos que a associação venha a
cometer, sendo perfeitamente possível a cumulação.
Nossa jurisprudência tende a acolher o posicionamento de Nelson
Hungria, pois já se posicionou o Pretório Excelso:
CRIME DE QUADRILHA ARMADA (CP, ART. 288, PARÁGRAFO ÚNICO). A utilização de arma por qualquer membro da quadrilha constitui elemento
evidenciador da maior periculosidade do bando, expondo todos os que o
integram à causa especial de aumento de pena prevista no art. 288,
parágrafo único, do Código Penal. Para efeito de configuração do delito de
quadrilha armada, basta que um só de seus integrantes esteja a portar
armas [...] (Cf. Hc 72.992, STF, 1ª Turma, unânime, Rel. Min. Celso de
Mello).
Outro avanço proveniente da citada Lei foi a substituição do vocábulo
“crime” (constante no texto original), pela palavra “ilícitos”, com mais largo espectro
de abrangência, abarcando não só crimes, mas também as contravenções penais.
No artigo 2º, a Lei abre a possibilidade de, em qualquer fase da
persecução criminal serem utilizados os procedimentos da:
1 – ação controlada, que consiste no retardamento da ação policial
(também daí a sua denominação de “flagrante retardado”), desde que mantenha sob
estrita e ininterrupta vigilância os investigados, objetivando a lavratura do flagrante
29
no momento mais oportuno, conveniente e eficaz para a formação dos elementos de
provas e fornecimento de informações mais robustas a fim de facilitar a futura
instrução processual penal;
2 – o acesso a dados, documentos e informações fiscais, bancárias,
financeiras e eleitorais. Pelo modo como está redigido o inciso dá a entender que o
delegado de polícia poderia ao seu alvitre proceder a colheita destes dados, sendo
despicienda a prévia autorização judicial, haja vista que a lei não faz menção a ela.
Em arguta colocação, Gomes (1997, p. 121) pondera sobre o assunto:
A lei não estabeleceu explicitamente a prévia autorização judicial para o
acesso a tais dados, documentos e informações. Dá a entender que a
autoridade policial poderia, sponte sua, colher tais informações ou
documentos. Na verdade, assim não devemos interpretar tal dispositivo
(particularmente no que diz respeito aos dados fiscais, bancários e
financeiro). Nem sequer o Ministério Público, em princípio, está autorizado a
tanto.
3 – a captação e a interceptação ambiental de sinais eletromagnéticos,
óticos ou acústicos e o seu registro e análise, mediante circunstanciada autorização
judicial. Por interceptação ambiental entende-se a gravação do diálogo entre duas
ou mais pessoas por um terceiro não participante, mas que esteja no mesmo
ambiente. A captação ambiental se dá quando um dos interlocutores do diálogo
grava a conversa sem o conhecimento do outro, sendo também denominada de
gravação clandestina.
Vale ressaltar que a captação e a interceptação ambiental devem ser
precedidas de autorização judicial circunstanciada em que são explicitados os
fatores ensejadores da diligência, bem como os limites desta.
Na fase investigativa a autoridade policial poderá pleitear o procedimento
através de representação. Já na fase processual somente o Ministério Público
poderá requerer a medida ou o juiz poderá concedê-la de ofício, após a análise das
circunstâncias e do andamento das investigações.
4 – a infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de
investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante
circunstanciada autorização judicial. A redação do presente inciso guarda certa
semelhança com o inciso I do mesmo artigo da referida lei em sua redação original,
que também previa a infiltração de agentes da polícia especializada em quadrilhas
ou bandos, mas acabou sendo vetado.
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A infiltração é um método investigativo que aloca o agente policial no seio
da organização criminosa com o fito de obter maior eficácia na reunião de provas e
descobrimento do modus operandi da mesma, sem que a real identidade ou
atividade do infiltrado seja conhecida.
Intrincada querela jurídica reside na indagação se o agente policial
infiltrado poderá ou não cometer crimes, já que se torna praticamente impossível
integrar uma organização criminosa e não cometer crimes. A questão torna-se mais
complicada ainda em face da inexistência de excludente de ilicitude expressa no
texto legal, o que alguns doutrinadores tentam impor a fórceps.
Por outro lado seria gerada uma grande contradição se o Estado no
exercício efetivo de combate ao crime organizado outorgasse uma “licença” para
que seus agentes pudessem cometer crimes diretamente, ou no mínimo incorressem
em condescendência criminosa no ato de ingresso dentro da organização criminosa.
No artigo 3º, a Lei nº 9.034/95 assegura aos indiciados sigilo sobre seus
dados anteriormente violados, estabelecendo que a diligência será realizada
pessoalmente pelo juiz, sendo adotado o mais rigoroso segredo de justiça.
A publicidade dos atos judiciais é garantida em nossa Constituição
Federal (artigo 93, IX), mas há situações em que ocorre uma colisão entre este
princípio e o da preservação da intimidade e do interesse social, também
constitucionalmente garantido (artigo 5º, LX). A solução para esse impasse não está
no embate, mas na ponderação de valores e tem como resultado da operação a
observância de outros importantíssimos princípios: o da razoabilidade e o da
proporcionalidade, entendidos esses, in casu, com a adoção do mais rigoroso sigilo
tão-somente quando a natureza do ato praticado assim o exigir.
O referido artigo foi alvo de inúmeras e acerbadas críticas, pois prevê
medidas drásticas processualmente falando, tais como a realização pessoal da
diligência pelo juiz (caput), criando a figura do juiz inquisidor, ou seja, aquele que
conduz as investigações e muitas vezes assume uma postura parcial; a conservação
do auto de diligência fora do processo, em lugar seguro, sem a intervenção de
cartório ou servidor (§3º), e em caso de recurso, o auto de diligência ser fechado,
lacrado e endereçado em separado ao juízo competente para revisão e lá não
deverá haver intervenção das secretarias e gabinetes (§5º).
De maneira clara, nesse dispositivo são olvidados quando não feridos
vários princípios processuais. Como a imparcialidade, a inércia da jurisdição, a
31
ampla defesa e o contraditório, a fundamentação das decisões e a publicidade. Por
outro lado, para justificação da quebra desta série de princípios, estão a preservação
da segurança e do Estado Democrático de Direito, em prol da coletividade.
É importante ressaltar que por maioria de votos, o Supremo Tribunal
Federal – STF julgou procedente em parte, em 12 de fevereiro de 2004, a Ação
Direta de Inconstitucionalidade nº 1.570-2/DF, proposta pelo Procurador Geral da
República e que teve como relator o Ministro Maurício Corrêa, declarando a
inconstitucionalidade do artigo 3º, no que se refere aos dados fiscais eleitorais:
Ementa
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI Nº 9.034/95. LEI
COMPLEMENTAR
Nº
105/01.
SUPERVENIENTE.
HIERARQUIA
SUPERIOR. REVOGAÇÃO IMPLÍCITA. AÇÃO PREJUDICADA, EM
PARTE. “JUIZ DE INSTRUÇÃO”. REALIZAÇÃO DE DILIGÊNCIAS
PESSOALMENTE.
COMPETÊNCIA
PARA
INVESTIGAR.
INOBSERVÂNCIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. IMPARCIALIDADE
DO MAGISTRADO. OFENSA. FUNÇÕES DE INVESTIGAR E INQUIRIR.
MITIGAÇÃO DAS ATRIBUIÇÕES DO MINISTÉRIO PÚBLICO E DAS
POLÍCIAS FEDERAL E CIVIL.
1.
Lei nº 9034/95. Superveniência da Lei Complementar nº 105/01.
Revogação da disciplina contida na legislação antecedente em relação aos
sigilos bancário e financeiro na apuração das ações praticadas por
organizações criminosas. Ação prejudicada, quanto aos procedimentos que
incidem sobre o acesso a dados, documentos e informações bancárias e
financeiras.
2. Busca e apreensão de documentos relacionados ao pedido de quebra
de sigilo realizadas pessoalmente pelo magistrado. Comprometimento do
princípio da imparcialidade e conseqüente violação ao devido processo
legal.
3.
Funções de investigador e inquisidor. Atribuições conferidas ao
Ministério Público e às Polícias Federal e Civil (CF, artigo 129, I e VIII e § 2º;
e 144, § 1º, I e IV, e § 4º). A realização de inquérito é função que a
Constituição reserva à polícia. Precedentes. Ação julgada procedente, em
parte.
A lei prevê, em seu artigo 4º, a estruturação de setores e equipes de
policiais especializados no combate a ação praticada por organizações criminosas
pelos órgãos da Polícia Judiciária. É bastante salutar a criação de divisões
especializadas na investigação e combate a esta modalidade criminosa, dotando-as
de recursos humanos, materiais e treinamento de qualidade, para que possam
desempenhar suas funções a contento.
Uma observação que não poderia passar despercebida é a de que no
recrutamento dos agentes integrantes destas equipes deveria ser feita minuciosa
investigação de sua conduta, de modo a aferir a idoneidade e honestidade desta
32
pessoa, pois como já vimos, uma das principais características do crime organizado
é o seu enorme poder de corrupção dos agentes públicos.
A qualificação e o treinamento dos participantes destes setores e equipes
é muito importante, tendo-se em vista que os crimes praticados por organizações
criminosas são complexos e de difícil investigação, pois envolvem o uso de
sofisticada tecnologia e atuação no sistema financeiro, como os crimes econômicos
e de lavagem de capitais, além da miscigenação de atividades lícitas com outras
tantas ilegais, o que causa embaraço e cria grandes obstáculos à atividade policial.
Tais consequências são minoradas com a periódica realização de cursos, palestras,
seminários e intercâmbios entre as polícias judiciárias e instituições afins.
Preceitua a lei, em seu artigo 5º, que a identificação criminal de pessoas
envolvidas com a ação praticada por organizações criminosas será realizada
independentemente da identificação civil. Tal medida visava uma maior eficiência na
identificação dos indiciados suspeitos da prática de crime organizado; contudo este
tipo abriu brecha ao cometimento de numerosas arbitrariedades no ato de “tocar
piano”, como se fala na gíria policialesca.
Diante dos diversos questionamentos surgidos pela prática deste ato que
muitos consideravam vexatório o Supremo Tribunal Federal editou a Súmula 568: “A
identificação criminal não constitui constrangimento ilegal, ainda que o indiciado já
tenha sido identificado civilmente”.
Essa súmula foi superada pelo inciso LVIII, do artigo 5º, da Constituição
Federal que garante que o civilmente identificado não será submetido à identificação
criminal, salvo nas hipóteses previstas em lei. Esta é justamente a Lei nº 10.054 de 7
de dezembro de 2000, que veio disciplinar a matéria de identificação criminal.
Parte da doutrina afirma que o artigo 5º, da Lei nº 9.034/95 foi derrogado
pela Lei nº 10.054/00, por ser lei especial que disciplina a matéria.
No artigo 6º, a lei traz a figura da delação premiada ao dispor: nos crimes
praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços,
quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações
penais e sua autoria.
Trata-se de uma causa especial de diminuição de pena no intuito de
auxiliar e colaborar com as investigações e o descobrimento da prática deste tipo de
crime.
33
Na letra da lei encontramos duas condições para a concessão deste
benefício; a primeira é a de que a colaboração deverá levar ao esclarecimento das
infrações e sua autoria, ou seja, a colaboração deverá ser voluntária e eficaz.
Para ser voluntária a confissão
ou colaboração não deve vir
acompanhada de violência física e/ou psicológica e também de ameaças. Na análise
do instituto da delação premiada não é levado em consideração o animus do agente
ao prestar a efetiva ‘ajuda’ ao trabalho de investigação. Tampouco é necessário que
o agente confesse a autoria de ilícitos, sendo até mesmo admissível a delação da
atividade de outras organizações criminosas.
Faz-se necessário que a colaboração traga indícios robustos de autoria e
materialidade dos crimes, bem como deverá esclarecer o iter criminis percorrido, a
fim de possibilitar o desmantelamento da organização.
A comprovação da veracidade das informações colhidas é feita durante a
fase de instrução probatória e a análise da concessão e do quantum do benefício é
feita pelo magistrado de forma fundamentada, quando da prolação da sentença.
Algumas críticas ao instituto não poderiam passar em branco, como a
criação de um efetivo programa de proteção a testemunhas, estimulando-se desta
maneira a prática da delação, já que o benefício concedendo a redução da pena
sem a garantia da sobrevida do agraciado torna-se tal qual um saco cheio de vento,
isto é, desprovido de conteúdo. Outro ponto a ser observado é a verificação das
informações prestadas pelo delator e o estabelecimento de severas sanções aos
que prestarem informações falsas, evitando-se assim a incriminação de inocentes, o
que gera um abalo e traz descrédito à imagem do Poder Judiciário e sentimento de
ineficiência do trabalho investigativo da Polícia no imaginário popular.
Quando se fala em máfia, geralmente, logo nos lembramos das
organizações criminosas italianas, com nível de organização e sofisticação das
atividades altíssimos, enorme subordinação hierárquica ao seu líder e também poder
de intimidação para com as pessoas, sejam seus membros ou não.
Consultando o verbete “máfia” em um dicionário da língua portuguesa
Aurélio (2004, p. 528) obtivemos dois significados: o primeiro de que é uma
“organização criminosa predominantemente italiana”, e o segundo afirma ser um
“grupo de pessoas que agem desonestamente”.
Atualmente o termo máfia tornou-se um descritivo generalista do crime
organizado nos meios de comunicação de massa e até mesmo nos compêndios de
34
doutrina jurídica, designando qualquer tipo de organização criminosa em uma clara
extensão de seu significado.
Por sua vez, Ana Luiza Almeida Ferro (2009, p.267), traduzindo alguns
dispositivos do Código Penal Italiano, dispostos no capítulo “Dos Delitos Contra a
Ordem Pública”, esclarecem a acepção “máfia”:
Qualquer pessoa que faz parte de uma associação do tipo mafioso formada
por três ou mais pessoas é punida com reclusão de sete a doze anos.
Aqueles que promovem, dirigem ou organizam a associação são punidos
apenas em razão disso, com reclusão de nove a quatorze anos. A
associação é de tipo mafioso quando aqueles que dela fazem parte se
valem da força de intimidação do vínculo associativo e da condição de
sujeição e de silêncio solidário que dela deriva para cometer delitos, para
adquirir direta ou indiretamente a gestão ou, de qualquer modo, o controle
de atividades econômicas, de concessões, de autorizações, empreitadas e
serviços públicos, ou para realizar proveitos ou vantagens injustas para si
ou para outrem, ou bem para o fim de impedir ou obstaculizar o livre
exercício do voto ou de obter votos para si ou para outros em ocasião de
consultas eleitorais. [...] As disposições do presente artigo se aplicam
também à camorra e às outras associações, seja como forem denominadas
localmente, mesmo estrangeiras, que, valendo-se da força intimidadora do
vínculo associativo, perseguem escopos correspondentes àqueles das
associações do tipo mafioso.
Como se infere da leitura do artigo, o legislador italiano tomou a máfia
(Siciliana) como modelo estrutural de associação criminosa e a partir dela estende a
aplicabilidade do tipo para outras associações (Camorra e outras associações
estrangeiras). Elenca também algumas breves características fundamentais das
organizações criminosas; a força intimidadora do vínculo associativo através da
condição de sujeição do silêncio solidário daí surgido e a finalidade especial do
cometimento de delitos, obtenção de vantagens econômicas, geralmente em
prejuízo da Administração Pública, bem como a interveniência fraudulenta no
processo eleitoral.
A expansão do significado do termo máfia deu-se após as autoridades e
os estudiosos constatarem que o crime organizado tinha fincado na Itália suas raízes
e consolidado suas atividades em nível nacional e até mesmo internacional, pois
durante um período considerável de tempo a atuação desta era restrita à região
siciliana e não tinha “concorrentes diretos”.
A adoção do termo máfia irrestritamente para designar todo e qualquer
tipo de crime organizado pode trazer alguns prejuízos para o estudo e compreensão
do tema, como a dificuldade da formulação de um conceito mais específico, que
35
aborde as peculiaridades de cada organização e possibilite, desta forma, a adoção
de institutos penais mais eficazes no combate e repressão deste tipo de crime.
3.1 Inovações trazidas pela nova Lei de Combate ao Crime Organizado (Lei nº
12.850/13)
A primeira vez em que tivemos uma definição legal do que seria
organização criminosa no nosso ordenamento jurídico foi com o advento da Lei nº
12.694/12, que preceituava em seu art. 2º:
Para os efeitos desta Lei, considera-se organização criminosa a associação,
de 3 (três) ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e caracterizada pela
divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou
indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de
crimes cuja pena máxima seja igual ou superior a 4 (quatro) anos ou que
sejam de caráter transnacional.
Contudo, tal definição sofreu algumas alterações com a promulgação da
nova lei sobre o crime organizado (Lei nº 12.850/13), que no bojo do § 1º, do seu
artigo 1º, assim estatui:
Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais
pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas,
ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente,
vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais
cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de
caráter transnacional.
De início, percebemos que o novel diploma legal ampliou o número
mínimo de integrantes de 3 (três) para 4 (quatro) para a constituição de organização
criminosa, bem como aumentou significativamente o campo de incidência da lei
(antes era a prática de crimes cujas penas máximas fossem iguais ou superiores a 4
anos ou de caráter transnacional; atualmente é a prática de infrações penais,
abrangendo, assim, as contravenções).
Digno de nota é também a possibilidade de aplicação (prevista no art. 1º,
§ 2º) da Lei nº 12.850/13 a outros atos ilícitos que, embora não cometidos através de
estrutura organizada, requerem a mesma tutela jurídica por causar danos
36
semelhantes aos praticados por organizações criminosas, a merecer eficaz
combate, com a adoção de mecanismos mais efetivos previstos na retromencionada
lei (v.g., ação controlada e infiltração de agentes).
Tal previsão busca tutelar especialmente as infrações penais de caráter
transnacional que causam grandes lesões a bens jurídicos importantes, muito
embora não sejam cometidos por organizações criminosas propriamente ditas.
Outra “falha” do antigo diploma de combate ao crime organizado que foi
corrigida na nova lei foi a previsão da figura da organização criminosa como crime
autônomo, no art. 2º:
Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta
pessoa, organização criminosa:
Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos, e multa, sem prejuízo das
penas correspondentes às demais infrações praticadas.
Com relação ao tipo, por ser norma penal incriminadora, resta óbvio que
não há retroatividade para os fatos praticados antes de sua vigência. O citado crime
pode ser classificado como comum, pois pode ser praticado por qualquer pessoa,
plurissubjetivo, pois é necessário o concurso de 4 (quatro) ou mais pessoas e de
condutas paralelas (auxílio mútuo). O bem jurídico tutelado é a paz pública.
Há que se esclarecer o cômputo de agentes inimputáveis e/ou não
identificados na organização criminosa. Todavia, o agente infiltrado não pode ser
computado, por lhe faltar o animus de associar-se à organização, requisito este
essencial para o cometimento do crime anteriormente descrito.
Necessário é, para se configurar o crime de organização criminosa, que a
reunião dos agentes integrantes aconteça antes do planejamento dos crimes a
serem cometidos, pois se há primeiro a deliberação acerca dos delitos, ocorrerá
somente o concurso de agentes.
O crime precitado é punido a título de dolo, indispensável que é para sua
consumação o animus associativo combinado com a finalidade específica de obter,
direta e indiretamente, vantagem de qualquer natureza (não precisa ser
exclusivamente econômica), através do cometimento de infrações penais cujas
penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos ou de caráter transnacional,
como prevê a lei.
37
Indispensável também, para a consumação do delito, é a estrutura
ordenada e a presença da divisão de tarefas a indicar organização na execução dos
delitos. Como é crime permanente, a consumação se protrai no tempo enquanto não
cessada a permanência, ou seja, o estado de flagrância perdura enquanto
permanecer a organização criminosa.
Como se trata de delito autônomo, a tipificação do crime independe da
prática de qualquer outro delito pela organização, o que vindo a ocorrer, gerará om
concurso material e o consequente cúmulo das penas, como já previsto
expressamente.
O § 1º, do art. 2º, pune nas mesmas penas do caput (reclusão de 3 a 8
anos e multa) quem obstaculiza a investigação de infração penal que envolva a
organização criminosa. O bem jurídico tutelado, conforme se pode depreender, é a
administração da justiça. A partir daí, podemos concluir que o sujeito passivo da
infração penal é o Estado.
Este crime é classificado como comum, pois pode ser cometido por
qualquer pessoa (desde que não tenha integrado a organização criminosa) e
monossubjetivo, pois não há necessidade de concurso de agentes para a sua
consumação.
Uma observação a ser feira no tipo penal é que o legislador previu apenas
o cometimento de embaraço ou obstrução na faze de investigação e não mencionou
a obstrução de processo judicial, a fase principal da persecução penal.
Trata-se de crime de execução livre, pois não requer forma específica e
em sendo cometido na investigação de ilícitos praticados por organizações
criminosas, fica afastada a aplicação do tipo penal de coação no curso do processo
(art. 344 do CPB), com punição mais branda, em face do princípio da especialidade.
O tipo penal em comento possui dois núcleos: impedir ou embaraçar. O
impedimento se configura com a efetiva obstrução da investigação ou processo
criminal. Já o núcleo embaraçar se consuma com a ação ou inação potencialmente
causadora de empecilho. A tentativa é admissível em ambos os casos.
O líder da organização criminosa é punido mais severamente, mesmo que
não pratique quaisquer atos de execução, conforme previsão do § 3º, do art. 2º, do
novel diploma legal.
38
No parágrafo 4º do artigo estudado, são enumeradas as causas de
aumento de pena, na proporção de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), nas seguintes
hipóteses:
I - da participação de criança ou adolescente, entendida criança como
aquela que possui até 12 (doze) anos incompletos e adolescente aquele que possui
até 18 anos incompletos, como previsto no art. 2º do Estatuto da Criança e do
Adolescente.
II – o concurso de funcionário público (conforme definido no art. 327 do
CPB) e que a organização se utilize desta condição para a prática de infração penal,
requisitos estes cumulativos e não alternativos.
III – quando o proveito da infração penal destina-se, no todo ou em parte
ao exterior.
IV – se a organização criminosa mantém contato com outras
organizações criminosas independentes, é o caso da formação do “network do
crime”.
V – a transnacionalidade da organização criminosa é causa de aumento
de pena prevista no inciso V. Todavia, tal inciso não terá aplicabilidade, em virtude
desta circunstância ser elementar do crime e a agravação da pena, nesta hipótese
configurar claramente bis in idem.
O parágrafo 5º do artigo em comento, prevê o afastamento cautelar do
funcionário público integrante de organização criminosa. Os requisitos para a
adoção da medida são os típicos das cautelares, a saber, fumaça do bom direito e
perigo na demora. Importante frisar a necessidade (e não somente a simples
conveniência), desta medida à investigação ou instrução do processo.
No § 6º está presente efeito extrapenal da condenação transita em
julgado de funcionário público, que é a perda do cargo, função emprego ou mandato
eletivo e a consequente inabilitação para o exercício destes nos oito anos
subsequentes ao cumprimento da pena.
Acertou o legislador quando previu o prazo da interdição, pois em nosso
direito constitucional são vedadas as penas de caráter perpétuo (art. 5º, XLVI, da
CRFB/88). Claro está que decorrido o prazo previsto (8 anos), poderá o agente
assumir novamente cargo, emprego, função ou mandato eletivo; porém jamais será
reintegrado ao status quo ante.
39
O parágrafo 7º trata do procedimento investigativo na existência de
indícios de participação de policial nos crimes cometidos por organizações
criminosas, a prever a instauração de inquérito policial pela Corregedoria e
comunicação ao MP, com a designação de membro para acompanhar todo o feito.
Tal previsão visa afastar o corporativismo, visto que as Corregedorias de
Polícia, em muitos Estados da Federação, são órgãos independentes. A participação
do Ministério Público nas investigações visa assegurar a lisura e também é uma das
formas de exercício do controle externo da polícia, atribuição institucional do MP.
Há que se ressaltar a não ocorrência de impedimento do Promotor de
Justiça ou Procurador da República que participou das investigações oficiar na ação
penal, da mesma forma que o Promotor/Procurador que participou das investigações
na Corregedoria não estará impedido.
O capítulo II da nova lei sobre o crime organizado trata da investigação e
dos meios de prova, tendo ocorrido algumas alterações em relação a lei anterior (Lei
nº 9.034/95). A primeira foi a retirada da possibilidade de interpretação de sinais
eletromagnéticos, ópticos ou acústicos na nova lei; a segunda foi a retirada da
circunstanciada autorização judicial para a realização da diligência neste diploma
penal.
A provável causa para a retirada da exigência de prévia autorização
judicial é também a retirada da interceptação, pois nesta modalidade nenhum dos
envolvidos tem conhecimento da violação da intimidade, ao passo que na captação
um dos envolvidos tem conhecimento do que está sendo realizado, não existindo no
último caso a clandestinidade da diligência.
A nova lei prevê, no inciso VI, do art. 3º o afastamento dos sigilos
financeiro, bancário e fiscal, nos termos da legislação específica; a legislação
específica aqui mencionada é a Lei Complementar nº 105/2001 (tutela o sigilo
bancário) e o Código Tributário Nacional (tutela os sigilos fiscal e financeiro). Em
ambas as leis, a quebra somente é admitida mediante determinação judicial ou de
Comissão Parlamentar de Inquérito (no caso de sigilo bancário).
Outro ponto da nova lei que merece destaque é a supressão das
diligências feitas pessoalmente pelo juiz com o objetivo de acessar documentos,
informações e dados financeiros, fiscais e eleitorais, prevista no art. 3º da Lei nº
9.034/95. Desde a promulgação desta lei, o tipo em comento sofria duras críticas
acerca da sua patente inconstitucionalidade, pois feria flagrantemente princípios
40
basilares do nosso ordenamento jurídico, tais como: princípio da separação dos
poderes, da inércia da jurisdição, da imparcialidade do juiz, dentre outros.
No art. 4º, da Lei nº 12.850/13, temos o instituto da delação premiada
que, embora tivesse previsão no art. 6º da lei revogada, agora foi detalhado e
delimitado. Sobre as inovações no instituto, lecionam SANCHES e BATISTA (2013,
p. 35):
A lei em exame altera sensivelmente esse panorama, cuidando da forma e
do conteúdo da colaboração premiada, prevendo regras claras para sua
adoção, indicando a legitimidade para formulação do pedido, enfim,
permitindo, de um lado, maior eficácia na apuração e combate à
criminalidade organizada, sem que, de outra parte, se arranhem direitos e
garantias ao delator.
É notório o progresso do legislador no trato da delação premiada em sede
da nova lei; a começar pela dosimetria do benefício, que poderá resultar no perdão
judicial, redução de até 2/3 na pena privativa de liberdade ou sua substituição por
pena restritiva de direitos.
Contudo, para a concessão da benesse, a colaboração com a
investigação e com o processo criminal deverá ser efetiva e voluntária e de citada
colaboração deverá advir um ou mais resultados, dentre os cinco elencados nos
incisos do artigo, a saber, identificação dos demais coautores e partícipes e das
infrações penais (inciso I); revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas
da organização criminosa (inciso II); prevenção de infrações penais decorrentes das
atividades da organização criminosa (inciso III); recuperação total ou parcial de
produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa
(inciso IV) e finalmente a localização de eventual vítima com a sua integridade física
preservada (inciso V).
Os legitimados para o pedido de perdão judicial são mencionados no § 2º,
do art. 4º, da nova lei, que são o delegado de Polícia, na fase do inquérito e o
membro do Ministério Público (Promotor de Justiça/Procurador da República), a
qualquer tempo, até mesmo depois do trânsito em julgado da sentença.
No parágrafo 3º do artigo em análise, vemos a previsão da suspensão do
prazo de oferecimento da denúncia ou do processo por até 6 (seis) meses,
prorrogáveis por igual período, com a respectiva suspensão do prazo prescricional.
O nítido intuito do legislador, ao prever tal suspensão, foi permitir ao juiz averiguar
41
se a colaboração do agente mostra-se eficaz e apta a merecer o benefício legal,
com a consecução de um ou mais resultados dentre os elencados anteriormente.
Constatamos na nova lei, mais precisamente no § 4º, do art. 3º, a
interessante possibilidade do membro do Ministério Público deixar de oferecer a
denúncia se o colaborador não for o líder da organização criminosa ou for o primeiro
a prestar efetiva colaboração. Depreende-se do tipo um abrandamento ao princípio
da obrigatoriedade, previsto no art. 24 do Código de Processo Penal e orientador
das ações penais públicas.
A previsão expressa de que o juiz não participará das negociações
realizadas entre as partes para a formalização do acordo de colaboração (§ 6º, do
art. 3º) foi um acerto do legislador ao preservar o sistema acusatório em que se
pauta nosso processo penal e a manutenção da imparcialidade do julgador.
No parágrafo 12 do artigo em comento, vemos a previsão da oitiva em
juízo do colaborador que foi beneficiado com o perdão judicial ou não foi
denunciado. Acerbada crítica da doutrina a esta possibilidade afirma que o agente
não pode ocupar ao mesmo tempo a posição processual de réu e testemunha,
admitindo a oitiva apenas para aqueles que não foram denunciados, pois neste caso
não há que se falar em processo.
O parágrafo 14 reforça a condição de testemunha do colaborador, ao
afirmar que nos depoimentos prestados, este renunciará ao direito ao silêncio e
estará sujeito ao compromisso legal de dizer a verdade. Tal previsão parece macular
o direito a não-autoincriminação e ao silêncio, previstos em nosso ordenamento
jurídico, pois ninguém poderá ser obrigado a produzir prova contra si.
A proibição da prolação de édito condenatório com base exclusivamente
nas declarações do agente colaborador está prevista no parágrafo 16 do artigo em
análise; desta maneira, a cautela e o confronto com outras provas no curso da
instrução processual são reforçadas, o que garantirá uma fundamentação mais
robusta da sentença.
Os direitos do colaborador estão elencados no art. 5º do novel diploma
legal e constituem garantias asseguradas ao mesmo, no intuito da obtenção de
sucesso e preservação do participante, necessários ao bom andamento da instrução
processual.
São enumerados nos seis incisos do citado artigo o direito do colaborador
de usufruir das medidas de proteção previstas na legislação específica, que é a lei
42
de proteção a testemunha, a saber, lei 9.807/99 (inciso I); ter o nome, imagem,
qualificação e demais informações pessoais preservados (inciso II); ser conduzido,
em juízo, separadamente dos demais coautores e partícipes (inciso III); participar
das audiências sem contato visual com os outros acusados (inciso IV); não ter sua
identidade revelada pelos meios de comunicação, nem ser fotografado ou filmado,
sem sua prévia autorização por escrito (inciso V) e cumprir pena em estabelecimento
penal diverso dos demais corréus ou condenados (inciso VI).
Ainda a delinear a colaboração premiada, o art. 6º traz os requisitos do
termo de acordo, que sempre será escrito e conterá o relato da colaboração, ou
seja, o detalhamento do que fora obtido e o resultado advindo da ação do
colaborador; também conterá as condições da proposta do representante do MP ou
do delegado de polícia, o que o colaborador receberá em troca de sua colaboração,
a declaração expressa do colaborador e de seu defensor de que aceitam os termos
do acordo, além das assinaturas dos participantes, que são o representante do
Ministério Público ou o delegado de polícia, o colaborador e seu defensor.
Finalmente, o acordo também conterá, caso necessário, a especificação
das medidas de proteção ao colaborador e à sua família, requisito este essencial
para o sucesso do acordo nos casos em que houver fundado receio de retaliação ao
colaborador por parte de integrantes (corréus), ou da própria organização como um
todo.
A garantia do sigilo na apreciação e homologação do termo de acordo
pelo juízo está prevista no artigo 7º da lei em apreço, pormenorizando a distribuição
do pedido, que conterá apenas informações que não possam identificar o
colaborador e o seu objeto. Importante ainda salientar a previsão do prazo de 48
(quarenta e oito) horas para que o juiz decida sobre o pedido, constante do § 1º.
Evidentemente, trata-se de prazo impróprio.
O sigilo no acordo de colaboração é reforçado no § 2º do dispositivo, ao
restringir o acesso aos participantes do mesmo, que são o delegado de polícia, o
membro do Ministério Público, e logicamente, o juiz que irá apreciar e porventura
homologar.
O acesso da defesa aos elementos de prova é restrito ao interesse do
representado e exige prévia autorização judicial, não alcançando as diligências em
andamento, visto que a publicização poderá comprometer o resultado das mesmas.
43
A restrição de acesso ao patrono do colaborador não configura abuso ou
ilegalidade, a um, porque o princípio da vicissitude das diligências assegura a
discricionariedade da autoridade policial (análise da conveniência e oportunidade) na
condução das diligências investigativas. A dois, tal previsão está de conformidade
com o enunciado da súmula 14 do Supremo Tribunal Federal, a qual preceitua:
É direito do defensor, no interesse do representado, ter acesso amplo aos
elementos de prova que, já documentado em procedimento investigatório
realizado por órgão com competência de polícia judiciária, digam respeito
ao exercício do direito de defesa.
No § 3º é delimitado o período de sigilo, que cessa com o oferecimento da
denúncia, posto que com o início da ação penal, o acordo de colaboração passa a
compor o acervo probatório, perdendo desta maneira seu caráter de sigiloso.
Entretanto, o dispositivo busca conciliar o término do sigilo com as medidas de
proteção ao colaborador, previstas no artigo 5º da lei.
A ação controlada é outro exemplo de instituto que foi melhor
regulamentado na nova lei de combate ao crime organizado, que pormenorizou a
diligência, detalhando seus limites e expressamente prevendo a supervisão judicial
no andamento dos trabalhos, assegurando também o acesso, a qualquer tempo, do
juiz, do membro do Ministério Público e do delegado de polícia aos autos, o que
possibilita maior efetividade e resultados mais satisfatórios e eficazes ao instituto em
comento.
No artigo 2º, II, da revogada lei de combate ao crime organizado (lei nº
9.034/95), a ação controlada já encontrava previsão, embora de forma um pouco
lacunosa, pois o tema era tratado em único artigo e pairavam dúvidas acerca do
instituto, v.g. a possibilidade de controle judicial no andamento das diligências.
Outra inovação trazida pela lei ao instituto da ação controlada foi a
extensão da mesma às intervenções administrativas, como por exemplo, aos
agentes da receita federal, secretarias das fazendas estaduais, membros das
corregedorias de polícia, dentre outros.
O retardamento da intervenção policial terá que ser previamente
comunicado ao juiz competente, conforme previsto no § 1º, do art. 7º, do novel
diploma legal. O julgador ainda poderá estabelecer os limites da diligência e também
comunicará ao Ministério Público. Ressalte-se que o dispositivo menciona apenas a
44
comunicação, o que não se confunde com autorização judicial, pois o dinamismo e
rapidez extremamente necessárias ao sucesso das diligências não se coadunam
com tal exigência.
O art. 9º traz a exigência de cooperação das autoridades dos respectivos
países que sejam rota de fuga do investigado, quando a ação controlada envolver
transposição de fronteiras, tendo por objetivo minorar os riscos de fuga e
perecimento do objeto, instrumento ou proveito do crime. Eis uma previsão essencial
para o instituto da ação controlada, haja vista as atividades das organizações
criminosas, não raras vezes, possuírem caráter transnacional e até mesmo
ramificações no exterior. Pensar de modo diferente seria ferir a soberania dos países
envolvidos, a permitir a realização de diligências clandestinas em solo estrangeiro.
Assim como a ação controlada, a infiltração de agentes sofreu profunda
reformulação na nova lei de combate ao crime organizado com a regulamentação de
pontos que eram bastante lacunosos na antiga lei (legitimidade para o pedido, p.ex.),
bem como o estabelecimento de medidas garantidoras de proteção ao agente
infiltrado.
Sobre o precitado instituto, importante observar que a Convenção de
Palermo, em seu artigo 20.1 já o previa, posto que de forma genérica:
Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o
permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em
conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as
medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas
e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de
investigação, como a vigilância eletrônica ou outras formas de vigilância e
as operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu
território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada.
Modificação importante foi a restrição da infiltração apenas a agentes de
polícia, enquanto que na antiga lei eram mencionados agentes de polícia ou de
inteligência. Excluem-se assim a participação de membros do Ministério Público ou
de Comissões Parlamentares de Inquérito (apenas à guisa de exemplo) nas
diligências na modalidade infiltrada.
Agentes de polícia são aqueles mencionados no artigo 144 da
Constituição da República Federativa do Brasil, a saber, no âmbito federal, os
membros das Polícias Federal, Rodoviária Federal e Ferroviária Federal; no âmbito
estadual, os membros das Polícias Civil e Militar e Corpo de Bombeiros.
45
A exegese acertada do artigo nos leva a acreditar que apenas os
membros dos órgãos com atribuições eminentemente investigativas (Polícia Civil e
Federal) são aptos a funcionarem como agentes infiltrados.
Frise-se que a infiltração de agentes não poderá ser decretada de ofício
pelo juiz, como corolário do previsto no § 1º, do art. 10 da nova lei.
O parágrafo 2º do artigo em comento exige a presença de indícios de
infração penal e a impossibilidade da prova ser produzida por outros meios. Acerca
de tais requisitos, o claro magistério de SANCHES e BATISTA (2013, p.101):
Conclui-se, com isso, que “indícios de autoria” são dispensáveis, tanto que
o art. 11 da lei, ao relacionar os requisitos do pedido de infiltração, deixa
claro que a indicação de nomes ou apelidos dos membros de organização
criminosa devem ser apontados “quando possível”. E nem poderia ser
diferente. A complexidade dos crimes perpetrados em organização, não
raramente a envolver pessoas residentes em estados e até mesmo em
países diversos, tornaria impossível o deferimento da medida caso se
exigisse a indicação de seus autores. Basta, pois, a demonstração de
indícios da prática criminosa prevista no art. 1º da lei em análise, assim
considerados a probabilidade razoável, a fumaça do bom direito, que
deverão ser analisados caso a caso, segundo o prudente arbítrio do juiz,
sem uma regra preconcebida que os definam.
O prazo da infiltração é previsto no § 3º, do art. 10, a saber, 6 (seis)
meses, podendo ocorrer renovações, desde que comprovada a necessidade de
dilação do prazo. Tal necessidade pode ser justificada, por exemplo, em face da
descoberta iminente de novos integrantes, de ramificações da organização
criminosa em outros Estados da Federação e até mesmo no exterior, enfim, de uma
colheita de provas mais robusta objetivando favorecer o desmantelamento da
organização e, consequentemente, facilitar a instrução processual.
O § 5º do artigo em análise, traz importante previsão, estabelecendo que
o delegado de polícia poderá determinar e o membro do Ministério Público poderá
requisitar, a qualquer tempo, aos agentes infiltrados, o relatório do andamento das
diligências. O legislador previu, neste parágrafo, essencial mecanismo de controle
das atividades desenvolvidas.
Cumpre salientar que o mencionado relatório será obrigatoriamente
apresentado no final das diligências de infiltração, ou a qualquer tempo, na hipótese
do parágrafo em estudo.
O art. 11 da nova lei de combate ao crime organizado detalha os
requisitos que deverão constar no requerimento ou representação de infiltração,
46
colmatando a lacuna outrora existente na lei nº 9.034/95. Atualmente, há de ser
demonstrada a necessidade da medida, o alcance das tarefas dos agentes e, se
possível, os nomes ou apelidos de quem será investigado e o local da diligência.
MENDRONI (2009, p.111), em comentários sobre a antiga lei (lei nº
9.034/95), procurou dissertar sobre os requisitos úteis do pedido de infiltração que
não eram previstos naquele diploma legal:
O mandado judicial pode conter, extensivamente, autorização expressa
para que o agente, sendo favoráveis as condições e sem risco pessoal,
apreenda documentos de qualquer natureza, desde papéis a arquivos
magnéticos; e, dispondo de equipamentos correspondentes, realize
filmagens, fotografias e escutas, ambientais e telefônicas. São meios de
prova dos quais a Polícia não pode prescindir e nada os impede, ao
contrário, tudo favorece, sejam realizadas pelo agente mediante expressa e
prévia autorização judicial. Seria, a contrario senso, absolutamente inviável
a necessidade de que o agente tivesse que buscar autorização judicial para
cada situação vivida na infiltração, não só pelo evidente risco de periculum
in mora, mas também pela absoluta impossibilidade fática. São também
providências que se encaixam com o princípio da proporcionalidade, pois se
o agente pode estar infiltrado no meio dos criminosos, não há razão para
que não possa, via de extensão e em compatibilidade com a sua função
demonstração cabal da situação criminosa vivenciada.
Tal autonomia, como leciona o autor, deve ser garantida ao agente
infiltrado, possibilitando, desta maneira, uma melhor coleta de provas a garantir o
sucesso da infiltração. A necessidade de se pedir autorização judicial para cada ato
a ser praticado não se coaduna com o dinamismo e agilidade que esta diligência
requer.
A doutrina aponta a possibilidade do agente infiltrado servir como
testemunha, pois não há impeditivo legal e - pelo contrário - o artigo 202 do Código
de Processo Penal dispõe que “toda pessoa poderá ser testemunha”. Portanto, fica
ao critério do juízo, por seus próprios parâmetros jurídicos e analíticos, a valoração
de cada depoimento prestado.
3.2 As principais organizações criminosas brasileiras
Uma enorme dificuldade no estudo das organizações criminosas
brasileiras é a escassez de produção literária e científica sobre a matéria, de forma
47
que a grande maioria do material existente é proveniente da imprensa
(documentários, reportagens de jornalismo investigativo e entrevistas). Por
conseguinte, na elaboração destes não foram utilizadas técnicas científicas,
empíricas, e sim jornalísticas, muitas vezes “carregadas” de impressões pessoais
nos elementos produzidos.
Os fatores acima expostos geram certo tipo de obstáculo no processo de
identificação, classificação e estudo das peculiaridades das organizações criminosas
em comento.
Seria ingenuidade imaginar que encontraremos nas organizações
criminosas genuinamente brasileiras os mesmos característicos e modo de atuação
e estruturação das italianas e americanas, pois estes elementos são, em grande
parte, puro reflexo do contexto socioeconômico e cultural da localidade em que as
associações se originam; e este contexto nunca foi e nunca será igual no Brasil, na
Itália e nos Estados Unidos da América.
Neste trabalho procuraremos estudar de forma sintética e concisa as duas
grandes organizações criminosas brasileiras: o Comando Vermelho (CV), do Rio de
Janeiro e o Primeiro Comando da Capital (PCC), de São Paulo, bem como as
facções criminosas recentemente surgidas no Estado do Maranhão. É claro e
evidente que não são as únicas existentes, mas sem dúvida são as mais conhecidas
e de maior atuação hodiernamente.
O Comando Vermelho surgiu em meados da década de setenta,
resultante do contato travado entre presos políticos e comuns na penitenciária da
Ilha Grande, no Rio de Janeiro. No decorrer do tempo, e como facções dissidentes
oriundas do Comando Vermelho (CV), surgiram o Terceiro Comando (TC), na
década de oitenta e a Amigos dos Amigos (ADA), na década de noventa, década
esta que foi um período marcado pelo grandioso fortalecimento e consolidação das
atividades dessas associações e também pela ocorrência de conflitos sangrentos
entre elas.
Sobre estas duas últimas organizações, discorre o jornalista AMORIM
(2010, p. 30-31) em obra considerada por muitos críticos a mais completa sobre o
fenômeno do crime organizado no Brasil:
Hoje, estranhamente, existe no Rio uma organização criminosa chamada
Amigos dos Amigos (ADA), formada por ex-militares das tropas especiais do
exército e dos fuzileiros navais (o governo reconhece 12 casos), policiais,
48
ex-policiais expulsos das corporações e traficantes. É o braço direito – e
armado – do Terceiro Comando, arquiinimigo do Comando Vermelho desde
os tempos da Ilha Grande. A ADA foi construída pelo traficante Celso Luiz
Rodrigues, o Celsinho da Vila Vintém. O Terceiro Comando foi reorganizado
por Ernaldo Pinto de Medeiros, o Uê. Condenado a 277 anos de cadeia,
pena que ele cumpriu até ser assassinado na rebelião de 11 de setembro
de 2002. Chegou a ser o responsável pelos contatos internacionais do
grupo, especialmente com os exportadores de cocaína da Colômbia. Dizem
até que foi o tesoureiro da organização. Uê se tornou “alemão”, o
designativo dos inimigos do CV. O Terceiro Comando – ou 3C – chegou a
conquistar, aliado à ADA, parte significativa do tráfico de drogas no Rio.
O negócio mais rentável e explorado atualmente pelas precitadas
organizações é o tráfico ilícito de entorpecentes, seguido do contrabando de armas
de fogo (armamento pesado em grande parte).
A rivalidade que impera entre os membros das organizações também é
muito grande e acirrada, sendo uma medida usual quando da detenção de alguns
elementos rivais a colocação em alas penitenciárias específicas e separadas, do
contrário, certamente surgiriam brigas e mortes.
Outro fato importante e que passa muitas vezes despercebido, é a
superestimação do Comando Vermelho como legítimo representante tupiniquim da
criminalidade organizada e a enorme promoção pessoal de seu atual chefe, o temido
e poderoso Luís Fernando da Costa conhecido como Fernandinho Beira-Mar. Se for
verdade que esta associação é a maior e mais antiga em atuação no Brasil, não é
menos verdade que existem outras (a exemplo do Primeiro Comando da Capital)
não menos nocivas e perigosas, tendo inclusive alcançado a proeza de assassinar
um magistrado no Estado de São Paulo.
A imprensa desempenha um papel fundamental na construção do mito no
Brasil e na ampla divulgação dessas atividades criminosas, muitas vezes de forma
sensacionalista e sediciosa, porém não podemos generalizar essa informação, visto
que existem nomes sérios e comprometidos com a verdade na investigação
jornalística e análise de dados e documentos referentes ao crime organizado em
nosso país.
49
3.2.1 Comando Vermelho
A gênese do Comando Vermelho se dá no Instituto Penal Cândido
Mendes (Ilha Grande) numa espécie de “simbiose” entre os presos políticos do
regime militar e os presos comuns (assaltantes, estupradores, homicidas, dentre
outros). Estes passaram a admirar aqueles por sua união (conta-se que todo auxílio
externo de familiares dos presos políticos era reunido e repartido entre todos, numa
espécie de comunismo primitivo), sua organização, disciplina e capacidade de
mobilização, utilizada para conseguir melhorias significativas nas condições de vida
carcerária.
Acerca do ambiente onde surgiu o Comando Vermelho, escreve seu
fundador LIMA (2001, p. 43):
Desarticular a personalidade do preso é o primeiro — e, talvez, o mais
importante — papel do sistema. Espancados, compulsoriamente banhados,
assustados enumerados, estávamos prontos. Fomos então conhecer o
refeitório — sujo, lodoso, infecto — a caminho do espera, uma cela coletiva
no terceiro andar do presídio, onde cada um aguarda para ser distribuído
pelas alas e galerias, quase todas coletivas. O ambiente era paranóico,
dominado por desconfiança e medo, não apenas da violência dos guardas,
mas também da ação das quadrilhas formadas por presos para roubar,
estuprar e matar seus companheiros.
Entre as organizações que formavam a massa de encarcerados políticos
estavam o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), a Aliança Libertadora
Nacional (ALN), de Luiz Carlos Prestes e Carlos Marighela, a Vanguarda Popular
Revolucionária (VPR), do ex-capitão Carlos Lamarca e a Vanguarda Armada
Revolucionária Palmares (VAR-Palmares).
O Comando Vermelho foi formado inicialmente por oito presos com o
objetivo de resistir as enormes dificuldades encontradas no Presídio da Ilha Grande
onde eram frequentes os roubos, assassinatos e estupros cometidos pelas falanges
que impunham o terror nesta penitenciária. O maior desafio deste grupo era o da
sobrevivência, o permanecer vivo no meio das cobras. Seus membros originários
eram obstinados e movidos por uma fé cega, a saber:
William da Silva Lima, vulgo Professor, condenado por formação de
quadrilha e assaltos a banco; Carlos Alberto Mesquita, conhecido também como
50
Professor e condenado de igual modo por assaltos a bancos; Paulo Nunes Filho,
chamado de Flávio ou Careca e condenado por assalto a banco; Paulo César
Chaves, vulgo PC Branco, condenado por assalto a mão armada e homicídio; José
Jorge Saldanha, o Zé do Bigode, condenado por assalto a banco; Eucanan de
Azevedo, vulgo Canã, condenado por roubo; Iassy de Castro, o Iacy, condenado por
roubo seguido de morte (latrocínio) e Apolinário de Souza, vulgo Nanai, condenado
por assalto a banco. Entre eles, uma curiosa coincidência: todos eram presos
comuns condenados pela Auditoria Militar com base no artigo 27, da Lei de
Segurança Nacional (com exceção de Eucanan de Azevedo).
Entre as “preciosas” lições da guerrilha urbana aprendidas com afinco e
dedicação pelo que seria hoje o Comando Vermelho estão o meticuloso
planejamento de suas ações, o hábito de tomar de assalto clínicas médicas
particulares para o socorro de emergência dos feridos em confronto ao invés de
levá-los aos hospitais públicos, onde, via de regra há vigilância de alguns policiais ou
guardas
municipais
e
as
chances
de
serem
capturados
aumentam
consideravelmente. O uso de carros roubados recentemente na fuga de assaltos,
que não constam ainda nos registros policiais e também a utilização não do
automóvel mais potente, mas sim do mais discreto e que consegue passar
despercebido no trânsito das cidades.
A prática do roubo em vários bancos vizinhos também foi uma dessas
lições e apresenta grandes “vantagens” como o lucro maior do que o assalto
individual e o mesmo risco deste, bastando para tanto o aumento dos homens e de
armas empregadas na operação. A aplicação do produto do roubo a fim de
auferirem dividendos visando a expansão das atividades (atualmente o bandido
investe na compra de droga, armas e imóveis), a compra de casas nas proximidades
dos pontos de venda de droga (conhecidas como “aparelhos”), imóveis com
fachadas discretíssimas, que servem como depósito das mercadorias ilicitamente
comercializadas ou como refúgio, esconderijo para os criminosos procurados.
A respeito do emprego destas lições pelos “pupilos” do Comando
Vermelho anota AMORIM (2010, p. 90-91):
[...] mas o crime organizado foi muito além do que a luta armada
revolucionária tinha conseguido nos anos 70, tanto em matéria de infraestrutura quanto na disciplina e organização internas. O bandido comum
conseguiu romper o isolamento social que atormentava os grupos
guerrilheiros, desenvolvendo laços de confiança com a população carente.
51
Os militantes viviam clandestinos e sem qualquer ajuda, a não ser a fé que
os movia. Os homens que servem ao crime organizado contam com a
colaboração – ou pelo menos o silêncio – que os protege.
No decorrer do tempo, os ideais desta organização que outrora eram a
sobrevivência dos membros, a extinção dos abusos e o aumento da união entre eles
vão se modificando, com a fuga de algumas pessoas da Ilha Grande para assaltar
bancos e angariar fundos visando financiar a fuga do maior número possível de
associados, formando uma espécie de “caixinha” no intuito de fomentar esse
objetivo.
A comunicação com o meio exterior também cresce, através de recados
levados e trazidos por advogados e familiares dos presos, que recebe o nome de
“correio” (com a disseminação do telefone celular no interior dos presídios esta
prática tornou-se muito mais fácil, rápida e eficiente).
O início da simbiose entre o Comando Vermelho e o tráfico de
entorpecentes se dá com a solicitação de auxílio financeiro para a “caixinha” da
organização em troca de bom tratamento ofertado aos traficantes que porventura
ingressassem no sistema penitenciário.
Um grande erro cometido pelas autoridades de segurança pública do
estado do Rio de Janeiro foi transferir os vários membros desta organização para
diversos presídios com o objetivo de enfraquecê-la. Todavia, tal medida fortaleceu e
ampliou a influência do Comando Vermelho nas penitenciárias, com a formação
espontânea de vários tentáculos.
Nos meados de 1984, a organização firmou uma espécie de acordo com
os cartéis colombianos produtores de cocaína que forneceram a droga e o Comando
Vermelho passou a operar na distribuição e venda no Rio de Janeiro. Nessa época o
tráfico no Estado era feito por pequenas quadrilhas independentes, que foram
persuadidas a associarem-se ao esquema e as relutantes, simplesmente foram
destruídas.
O atual líder do CV Fernando Luiz da Costa, ou simplesmente
Fernandinho Beira-Mar, chegou ao ápice da organização em 11 de setembro de
2002, quando comandou uma rebelião no Presídio de Bangu Um e por ordem sua
foram mortos o antigo líder do CV, Ernaldo Pinto de Medeiros, o “Uê” e mais três
pessoas. É um traficante de drogas altamente perigoso e, atualmente, o Poder
52
Judiciário dos Estados Unidos demonstra grande interesse em julgá-lo sob a égide
das leis americanas.
3.2.2 Primeiro Comando da Capital
O Primeiro Comando da Capital (PCC) surgiu em 1993, no interior dos
presídios paulistas, mais precisamente na Casa de Custódia de Taubaté, de um
pequeno grupo de oito pessoas (o mesmo número de integrantes do grupo inicial
formador do Comando Vermelho), a saber:
José Márcio Felício, vulgo Geléia; César Augusto Roriz, vulgo Cesinha;
Misael Aparecido da Silva, vulgo Baianão; Wander Eduardo, apelidado Cara Gorda;
Ademar dos Santos, vulgo Dafé; José Epifânio, alcunha Zé do Cachorro; Antônio
Carlos do Nascimento, vulgo Bicho Feio e Isaías Moreira do Nascimento, conhecido
como Esquisito.
Esse grupo foi transferido da capital para o presídio em Taubaté e
formava um time de futebol, o Comando da Capital. Após um jogo contra os
detentos locais (o time dos “Caipiras”) eles resolveram formar um “partido” que fosse
porta-voz da massa carcerária e lutasse pela melhoria da qualidade no sistema
penitenciário e fiel aplicação da Lei de Execuções Penais em prol dos direitos
fundamentais dos presos.
Saliente-se que deste grupo inicial dos oito fundadores do PCC, sete já
morreram assassinados dentro da cadeia, e o único que continua ainda vivo, José
Márcio Felício, o Geléia, está jurado de morte, sob a acusação de ter traído a
organização.
A designação Primeiro Comando da Capital foi uma contribuição de
Cesinha, aproveitando o nome do time de futebol que os deu renome e prestígio
dentro da Casa de Custódia de Taubaté. Em pouco tempo, o grupo redigiu um
estatuto contendo dezesseis itens, tornando-se de observância obrigatória aos
membros da facção em sua totalidade.
O PCC viveu clandestino até o ano de 1995; na ocasião foi veiculada uma
reportagem na emissora de TV Bandeirantes, alertando as autoridades de
segurança pública do Estado de São Paulo sobre sua existência e periculosidade,
53
fato este ignorado até o ano de 2001, quando foi deflagrada uma enorme rebelião
simultânea em trinta presídios. A partir daí não dava mais para ser negada sua
existência. A respeito dessa rebelião escreve AMORIM (2010, p. 385):
É meio-dia de domingo. A data é 18 de fevereiro de 2001. Vai entrar para a
história como a maior revolta de presos de que se tem notícias no país.
Durante a noite de sábado e a madrugada de domingo, os líderes do
Primeiro Comando da Capital (PCC), espalhados por presídios em quase
todo o estado de São Paulo, decretam a revolta. A principal arma dos
revoltosos é o telefone celular, introduzido nas celas com a conivência dos
guardas. Os líderes do motim dispõem de facas artesanais, os estoques, e
também de pistolas e revólveres. (Há quem diga que havia bombas
improvisadas no interior dos pavilhões.) Eles passam horas falando nos
pequenos aparelhos telefônicos. Não foram detectados. Mas foram
atendidos pela metade de todos os 60 mil encarcerados. A ordem,
transmitida pelos celulares, bilhetes cifrados e conversas reservadas entre
os detentos, é muito simples: quando as visitas estiverem dentro dos muros,
no domingo, dia quase sagrado de receber os familiares, as crianças,
amigos, começa o levante. Esta foi uma das raras vezes em que “o dia da
família” foi desrespeitado pelos detentos. Em todo o país, conquistar o
direito de visita particular foi resultado de mais de uma década de lutas. De
repente, “a grande conquista” foi deixada de lado em troca de um motim
com milhares de reféns.
Ao final da hecatombe, um saldo de dezesseis mortos, todos de facções
rivais, e a clara demonstração pública de que quem comanda a situação nos
presídios paulistas é o PCC.
As principais atividades criminosas desenvolvidas pelo “partido do crime”
são o tráfico de drogas – exercendo controle sobre a maioria dos pontos de venda
no Estado de São Paulo – os sequestros, os roubos de cargas e o assalto a bancos,
além dos assassinatos ordenados na maioria das vezes dentro e executados fora do
cárcere.
Desde 2003, a organização é liderada por Marcos Willian Herbas
Camacho, conhecido como Marcola e Júlio César Guedes de Moraes, alcunhado
Julinho Carambola, que expulsaram seus antigos líderes Geléia e Cesinha, sendo
este último assassinado na cadeia em 13 de agosto de 2006.
54
3.2.3 Primeiro Comando do Maranhão e Bonde dos 40 Ladrão
Recentemente, percebemos o vertiginoso crescimento de duas facções
criminosas no Estado do Maranhão: o Primeiro Comando do Maranhão e o Bonde
dos 40 (Bonde dos 40 Ladrão). Entre as atividades criminosas praticadas, a principal
é o tráfico de drogas (especialmente a venda do crack) e o controle das favelas, que
são os pontos de venda da droga e que geram sangrentas disputas entre as duas
facções.
O Primeiro Comando do Maranhão (PCM), claramente inspirado na
organização criminosa paulista Primeiro Comando da Capital (PCC), foi formado por
integrantes do interior do Estado do Maranhão, região conhecida como Baixada
Maranhense, quando foram transferidos para presídios de segurança máxima
federais e lá tiveram contato com membros da citada organização criminosa de São
Paulo, em meados de 2008. Ao retornarem ao Estado de origem, in casu, o
Maranhão, trouxeram a ideia de organizar uma ramificação do PCC nesta
localidade.
O PCM ganhou destaque após o envio de cartas com ameaças de morte
a autoridades
da área de segurança pública do Estado do Maranhão,
correspondência esta que gerou grande repercussão após sua divulgação através
dos meios de comunicação de massa.
A facção criminosa rival do Primeiro Comando do Maranhão é o Bonde
dos 40 Ladrão, liderado por Allan Kardec Dias Costa, conhecido como “Kardec” e
Giheliton de Jesus Santos Silva, vulgo “Gil”. Esta facção criminosa se destaca pelas
ações brutais cometidas dentro e fora dos presídios, tais como as decapitações de
integrantes da facção rival e ataques incendiários a ônibus e prédios públicos
(especialmente delegacias de polícia).
As rebeliões no Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, são
constantes e a violência durante estes eventos é praticada com um caráter de
normalidade pelos integrantes das facções. Abordando o assunto, reportagem da
Revista Veja, de 06 de fevereiro de 2014:
55
Relembre o caso – A crise no sistema penitenciário maranhense chocou o
país no final do ano passado pelas cenas de selvageria, com execuções por
esquartejamento, decapitação e enforcamento. Desde janeiro de 2013, o
número de mortos chega a 65. Este ano, cinco detentos foram mortos no
sistema penitenciário do Maranhão.
Para tentar conter a guerra de criminosos, o governo estadual enviou
homens da Polícia Militar e recebeu o apoio da Força Nacional para reforçar
a segurança e vistoriar as celas. A presença da PM em Pedrinhas irritou
líderes das facções criminosas, que deram ordem para bandidos atacarem
ônibus e delegacias nas ruas de São Luís. Uma criança de 6 anos morreu
queimada após um ônibus ser incendiado. O Ministério Público Estadual
denunciou sete pessoas pela morte da menina.
Notícias dão conta de que após os ataques a ônibus no início de janeiro
de 2014, especialmente o que resultou na morte da criança Ana Clara Sousa, de 6
anos de idade, fato este causador de repercussão nacional e clamor social, houve
um enfraquecimento na facção criminosa, que culminou na prisão de seus dois
líderes, Allan Kardec Dias Costa, o “Kardec” e Giheliton de Jesus Santos Silva, o
“Gil”, no Município de Santa Maria, Estado do Pará, ocorrida no dia 09 de janeiro de
2014. Ambos eram foragidos do Complexo Penitenciário de Pedrinhas, na capital
maranhense.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Na vigência da revogada Lei nº 9.034/95, definir o crime organizado não
era tarefa das mais fáceis, levando-se em conta que existiam grandes divergências
legais, doutrinárias e jurisprudenciais em relação a essa temática. Todavia, haviam
traços característicos comuns na atuação das organizações criminosas que
possibilitavam extrair um conceito não exauriente do que seria crime organizado.
As organizações possuem caráter de estabilidade e duração, não são
singulares, ou seja, são constituídas plurissubjetivamente. Utilizam tecnologia
avançada – muitas vezes mais sofisticada que a utilizada pelo Estado – tem
finalidade lucrativa, estruturam-se em hierarquia e lançam mão de poder intimidador
através de violência ou extorsão, não raras vezes estando infiltradas no Poder
Público.
Tomando como base estes dados, podíamos inferir em conceito sucinto
que o crime organizado é tipo especial de crime praticado por um grupo de agentes
inseridos numa organização complexa e permanente que objetiva auferir o maior
lucro possível com as práticas criminosas e empregar este lucro na expansão de
suas atividades e corrupção de agentes estatais.
Algumas coincidências permeiam a formação do Primeiro Comando da
Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV). O lema adotado é comum aos dois
grupos: paz, justiça e liberdade. Ambos surgiram com o objetivo de defender os
interesses dos encarcerados e lutar contra as injustiças cometidas por trás dos
muros das penitenciárias, nascendo daí uma espécie de fé cega, um sentimento de
solidariedade mútua que os unia e impelia na luta contra o inimigo abusador, quer
presos rivais, quer agentes públicos. Infelizmente, nos dois casos, o meio utilizado
para reivindicar seus direitos foi o cometimento de outros crimes.
Uma peculiaridade da nossa criminalidade organizada é que ela foi, em
sua totalidade, gerada dentro do sistema penitenciário, através de pequenos grupos
de encarcerados, portanto, qualquer solução que se proponha a minorar e combater
a atuação das organizações criminosas no Brasil enfrentará essa problemática
existente em nossas cadeias e presídios.
57
No início, os inimigos dos grupos eram internos, circunscritos aos muros
dos locais de privação de liberdade, porém com o aumento das atividades e do
número de associados, o sistema penitenciário tornou-se pequeno demais para
conter essa estrutura crescente em escala assustadora, que expandiu sua atuação e
seus inimigos além dos muros.
No decorrer do tempo, os envolvidos perceberam que essa prática traz
numerosos dividendos (segundo Kofi Annan, ex-secretário-geral da ONU, o tráfico
de drogas gera um lucro líquido que cresce cerca de quarenta a cinquenta por cento
ao ano), então envidaram esforços para implantar uma estrutura organizada que
conseguisse dominar este mercado e estabelecer contato com fornecedores
internacionais.
Essa incumbência foi desempenhada de uma forma tão metódica e
sistemática a ponto de transformar o Brasil em rota obrigatória do tráfico de
entorpecentes e dar-nos o título de segundo maior mercado consumidor do mundo,
perdendo apenas para os Estados Unidos da América.
A repetição dos mesmos erros cometidos outrora na administração do
sistema penitenciário brasileiro, possibilitou o crescimento da criminalidade
organizada no Maranhão. As causas apontadas para a proliferação são bem
semelhantes às que permitiram a formação do Comando Vermelho, no final da
década de 70 e do Primeiro Comando da Capital, em meados da década de 90,
quais sejam: a mesclagem indevida de presos, resultado de falhas na triagem dos
mesmos, feita sem levar em consideração aspectos sociais, criminológicos e a
origem de cada um.
Só é possível a explicação desse fato pela existência e atuação do crime
organizado em nosso país, haja vista que no Brasil não existem plantações de coca,
que é a matéria-prima para duas das drogas ilícitas mais consumidas atualmente,
que são o crack e a cocaína (SENAD, 2013).
A Lei nº 9.034/95 padecia de problemas, a nosso ver, de impropriedade,
sendo um diploma legislativo que era muito mais voltado ao aspecto processual e
procedimental do que ao aspecto material no que pertine ao crime organizado, a
começar pelo título da Lei que prescrevia: “dispõe sobre a utilização de meios
operacionais para a prevenção e repressão de ações praticadas por organizações
criminosas”.
58
Contudo, o âmbito de incidência legal (organizações criminosas) e o
objeto (ações praticadas por organizações criminosas, trocando em miúdos: crime
organizado) não foram definidos, cabendo à doutrina e jurisprudência o desempenho
deste mister, que diga-se de passagem, foi exercido de forma árdua e corajosa.
Sabemos que a precitada lei foi bastante influenciada pelo ordenamento
jurídico italiano, por ser vanguardista no combate, prevenção e repressão ao crime
organizado. A despeito das inconstitucionalidades apontadas na Lei, tomemos como
exemplo a figura do juiz inquisidor, previsto em seu artigo 3º, tal medida é salutar,
desde que o ordenamento permita.
Na Itália, isto seria perfeitamente plausível, haja vista que as carreiras da
Magistratura e do Ministério Público são unificadas, entretanto no Brasil não se
afigurava razoável o Estado-Juiz imparcial conduzir as investigações, em função de
uma série de princípios processuais, alguns deles previstos na Constituição Federal,
como o da presunção de inocência e o da separação dos Poderes.
A revogada lei de combate ao crime organizado não se mostrou eficaz,
muito menos justa, porém foi o primeiro passo brasileiro na tentativa do
enfrentamento legal desta modalidade criminosa.
Contudo, ocorreram significativos avanços nesta temática, a iniciar com a
promulgação da Lei nº 12.694/12, que finalmente trouxe em seu bojo a definição
legal de crime organizado. O aprimoramento da técnica legislativa foi ainda maior
com a elaboração da Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, que revogou o diploma
legal anterior (Lei nº 9.034/95) e supriu diversas lacunas existentes na antiga lei.
No novel diploma legal, percebemos que a organização criminosa passou
a ser crime autônomo, diligências policiais (infiltração de agentes, v.g.), tiveram seus
limites e requisitos delineados e o acordo de colaboração premiada foi devidamente
regulamentado. O curto espaço temporal de vigência da citada lei (apenas 6 meses
até a presente data) não nos permitiu fazer uma análise jurisprudencial sobre a
matéria, mas, em tese, o aperfeiçoamento dos institutos permitem o progresso no
combate à criminalidade organizada.
59
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na cadeia começou porque a polícia impediu a entrada de alimentos durante as
visitas após encontrar celulares nas celas. São Paulo: Abril. Matéria veiculada em
06/02/2014.
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