PARA ALÉM DO UNIVERSALISMO DA METRÓPOLE E DO REGIONALISMO DA
COLÔNIA: O DIREITO HUMANITÁRIO FORMA LINHAS ABISSAIS?
Fernanda Otero Costa
Gabriel Rezende de Souza Pinto
Palavras-chave: Direito Humanitário – Linhas Abissais – Universalismo – Regionalismo.
Resumo
O artigo propõe uma análise das Teorias das Linhas Abissais de Boaventura de
Sousa Santos, tendo como objeto a conformação atual do Direito Humanitário Internacional.
Com
efeito,
intenciona-se
discutir
as
fronteiras
entre
regulação/emancipação
e
apropriação/violência que são gestadas no discurso legitimador desse ramo do direito
internacional, como é o caso do status de combatente ilegal. Pretende-se demonstrar, assim, a
ineficácia dos usos de argumentos ligados ao Direito Natural que compõem um quadro
equivocado de universalismo e regionalismo.
Introdução: Delineamento da Teoria das Linhas Abissais
Boaventura de Sousa Santos, em seu artigo “Para além do Pensamento Abissal:
Das linhas globais a uma ecologia de saberes”1 ensina que o pensamento moderno é um
pensamento formado por linhas abissais. As linhas abissais produzem distinções visíveis e
invisíveis no campo da Ciência e do Direito, que dividem a realidade social em dois universos
distintos: o lado de cá e o lado de lá da linha. A conseqüência desta divisão é que o lado de lá,

Fernanda Otero Costa e Gabriel Rezende de Souza Pinto são bacharelandos em Direito pela Universidade
Federal de Minas Gerais.
1
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de
saberes. . In: Critical Review of Social Sciences, 78, October 2007: 3-46
ou seja, o outro lado da linha, torna-se inconcebível como realidade para o lado de cá da linha,
sendo tomado como irrelevante e incompreensível na medida em que permanece externo,
alheio ao conceito de “outro”e, conseqüentemente, inexistente.
Para Boaventura, o pensamento moderno abissal reproduz de certa maneira a
antiga realidade colonial, uma vez que na colônia estava presente tudo o que não podia ser
pensado em termos de verdadeiro ou falso, de legalidade ou ilegalidade. Desta forma, os
conhecimentos populares e nativos das colônias, por exemplo, por se encontrarem além dos
conhecimentos científicos, filosóficos ou religiosos da metrópole desapareciam como
conhecimentos existentes e válidos, podendo ser considerados, no máximo, como objeto ou
matéria-prima de possíveis investigações científicas. Percebe-se que havia e há até hoje uma
linha visível que separa os conhecimentos científicos dos filosóficos e religiosos do lado de cá
da linha e que esta linha visível se fundamenta na invisibilidade da linha abissal que separa
aqueles dos conhecimentos existentes do lado de lá, na zona colonial. O caráter abissal é
conseqüência da eliminação de qualquer tipo de realidade existente do outro lado da linha.
A Teoria das Linhas Abissais de Boaventura de Sousa Santos é o complemento
necessário às reflexões realizadas por ele na Crítica da Razão Indolente. Ali o professor
sustenta que a modernidade fora erguida sobre dois pilares, a emancipação e a regulação.
Através destas duas grandes promessas modernas é que se desenvolveram política, econômica
e socialmente nossas sociedades – incluindo aí instituições como o Direito e as artes. Seu
argumento é o de que, num dado momento, estes pilares gêmeos passaram a concorrer entre
si, o que fez com que o pilar da regulação superasse o pilar da emancipação tomando seu
lugar. A conseqüência que se obtém é a que, com efeito, nenhuma dessas duas grandes
promessas pôde se realizar por completo: observou-se que não houve emancipação e, da
mesma forma, tampouco regulação satisfatória2. O complemento desta teoria precisou ser
feito mais tarde. A teoria das linhas abissais é mais abrangente e concebe que, a competição
paradigmática entre os pilares da modernidade só ocorre de fato naquilo que ele chamou de o
lado de cá da linha. Do lado de lá, já citado por nós, há um outro paradigma em vigor, que é o
da apropriação/violência. Lá não são nem pensadas as promessas da modernidade; se
assemelhando às relações levadas a cabo nas antigas colônias. As pessoas são sempre
2
Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência São Paulo:
Cortez, 2001.
pensadas como objetos, jamais como sujeitos; não há conhecimento válido, não há critérios de
legalidade. Isto é apropriação/violência.
Tal fato não se dá apenas no plano epistemológico, mas do mesmo modo no
âmbito do Direito. O sistema jurídico é formado, do lado de cá da linha, pelo código binário
legalidade/ilegalidade. E, ao mesmo tempo em que o Direito transforma fatos do mundo da
vida em fatos jurídicos, também constrói linhas abissais na medida em que ignora diversas
existências que se tornam invisíveis, ininteligíveis e intraduzíveis por não pertencerem ao
código legal, tampouco ao ilegal. Assim, o legal e o ilegal, postos pelo Estado ou pelo Direito
Internacional, são, segundo Boaventura, as duas formas relevantes de existência perante a lei.
Percebe-se que esta dicotomia deixa de fora uma vasta gama de realidades que
não podem ser pensadas de acordo com o código legal/ilegal por não o possuírem como
fundamento, como, por exemplo, o território sem lei, o território fora da lei, o território do alegal ou mesmo do legal ou ilegal de acordo com direitos não- oficialmente reconhecidos3.
Todas estas realidades encontram-se do lado de lá da linha e a guerra, em qualquer uma de
suas manifestações, pode ser compreendida como integrante deste locus.
A guerra, para o lado de cá da linha, era vista como um conjunto de práticas
reguladas não por regras e princípios jurídicos, mas sim por normas morais, não traduzíveis
segundo o critério de legalidade/ilegalidade. Era, ainda segundo Boaventura, o terreno
propício para a lógica da apropriação/violência em contraposição à lógica da
regulação/emancipação, presente no lado de cá da linha.
Com as sucessivas guerras ocorridas nos últimos séculos, continuamos a vivenciar
uma série de atrocidades cometidas em nome de algum bem maior. Sob o suposto respaldo do
bem, suspendeu-se a ordem jurídica vigente e, conseqüentemente, os direitos individuais
outrora conquistados. Com este pano de fundo histórico, fez-se necessária a construção de um
conjunto de normas internacionais a serem aplicadas em conflitos armados, que limitasse os
seus métodos e visasse dar proteção às pessoas e aos bens por eles afetados.
Assim, surge o Direito Humanitário Internacional, como um ramo do Direito
Internacional Público, por meio de diversos tratados aos quais os Estados voluntariamente
aderem, comprometendo-se a respeitá-los, e também pelo chamado direito costumeiro
internacional, ou seja, pela prática reiterada de diversas condutas consideradas válidas e
3
SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do Pensamento Abissal: Das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In: Critical Review of Social Sciences, 78, October 2007: 3-46 p. 4
aceitas como obrigatórias pelos Estados. Em 1949 foram redigidas as quatro Convenções de
Genebra que protegem, respectivamente, os feridos e os doentes das Forças Armadas em
campanha, os feridos, os doentes e os náufragos das Forças Armadas no mar, os prisioneiros
de guerra e a população civil. No entanto, em 1977, sentiu-se uma necessidade maior de
fortalecer o incipiente Direito Humanitário, mais especificamente as vítimas das guerras
decorrentes da dominação colonial, ocupação estrangeira e conflitos internos. Desta forma,
foram redigidos dois Protocolos adicionais às Convenções de Genebra. O primeiro reforça a
proteção das vítimas de conflitos armados internacionais e amplia a definição dos mesmos às
guerras de libertação nacional e o segundo reforça a proteção das pessoas afetadas por
conflitos armados internos, completando assim o Artigo 3 comum às quatro Convenções de
Genebra.
O Direito Humanitário Internacional continua evoluindo, de maneira a regular
ainda mais os conflitos armados e proteger as pessoas e os bens por eles afetados. Insta
ressaltar que diversos outros tratados foram adotados, como a Convenção de Haia de 1954,
que protege o patrimônio cultural em tempos de guerra, a Convenção da ONU de 1980 sobre
a limitação do uso de determinadas armas, a Convenção das Armas Químicas de 1993 e o
Tratado de Ottawa sobre as minas antipessoais.
Percebe-se que toda esta regulamentação da guerra e dos conflitos armados é uma
tentativa de posicioná-los do lado de cá da linha, de concebê-los de uma maneira inteligível
que deve deixar de ser pensada simplesmente a partir do paradigma da apropriação/violência,
passando a ser vivenciado sob os pilares gêmeos da regulação/emancipação. É claramente um
movimento de expansão das linhas abissais e, exatamente por isso, é que nos interessa
observar as características do Direito Humanitário que o permitem ser assim concebido.
Uma certa incursão no direito humanitário
Do que fora por nós sustentado nos tópicos anteriores fica claro que estamos
absolutamente convencidos que, a fim de se superar os limites estabelecidos pelas modernas
linhas abissais, é imprescindível uma nova forma de se encarar o direito, de vivê-lo e,
principalmente, de pensá-lo. Se Boaventura de Sousa Santos está a defender uma nova
epistemologia como passo primordial para qualquer movimento de resistência à conformação
atual das linhas abissais, acreditamos que também um novo pensar deve estar subjacente à
Ciência do Direito e à vivência dos direitos.
Dessarte, há que se percorrer as práticas jurídico-políticas contemporâneas em
busca de caminhos, vestígios, passagens que possam nos fornecer elementos para esta difícil
empreitada que se avizinha: re-pensar o direito e as relações entre Estados e indivíduos por ele
mediadas. É deste modo que o Direito Humanitário Internacional surge como uma das mais
atraentes experiências, carregando em si um conjunto curioso de potencialidades
emancipatórias.
Ao longo da segunda parte deste artigo pretendemos realizar um estudo mais
específico dos elementos que nos fazem crer que o Direito Humanitário Internacional
apresenta características contundentes das exigências contemporâneas de uma nova
epistemologia do Direito. Para tanto, será necessário precisar o atual estágio em que se
encontra este ramo do Direito Internacional Público, demonstrando que em seu interior, por
mais paradoxal que isto possa parecer, encontram-se algumas das mais visíveis linhas abissais
de nosso tempo. Como conseqüência, notar-se-á que o Direito Humanitário está a todo
momento - seja no plano acadêmico em que debatem seus doutrinadores, seja na política que
lhe serve de pano de fundo, ou mesmo na realidade em que ele se desenvolve – envolvido em
fortes discussões compostas pelo binômio universalismo-regionalismo, as quais por vezes
assumem o liame formal de dialéticas, cisões ou tensões e, por não raras as vezes, têm o termo
regionalismo substituído por relativismo.
O objetivo aqui expresso é o de sustentar que o próprio Direito Humanitário porta
em seu interior as ferramentas necessárias para romper com esta estrutura epistemológica
produtora de lógicas tão perversas. O desafio que ele passa a nos impor é o de desnovelar tais
possibilidades, o que só poderá ser feito a partir de um amplo esforço coletivo e solidário de
todos os agentes, estatais ou não-estatais, com ele envolvidos.
O Direito Humanitário e suas Linhas Abissais
Em resposta à questão formulada no título deste trabalho, a resposta é afirmativa.
Sim, o Direito Humanitário forma linhas abissais. Algumas delas, inclusive, são das mais
evidentes, como dissemos anteriormente. Entretanto, dizer que o Direito Humanitário,
enquanto instituição, é responsável por delinear linhas que separam um lado que se
desenvolve sob o paradigma regulação/emancipação e outro, gerado sempre como
invisibilidade, sob o paradigma apropriação/violência, não quer dizer que ele está fadado a ser
desta forma. Não significa, portanto, que assim sempre será, ou que é impossível desenhá-lo
de maneira outra.
Para que possamos, de fato, demonstrar as imensas potencialidades deste ramo do
Direito Internacional Público e, ademais, para sustentar uma redução das linhas abissais que
atualmente ele conforma, é imprescindível que nós a conheçamos muito bem. Sem saber onde
estão estas linhas divisórias jamais conseguiremos extirpá-las.
Neste artigo nos preocupamos com apenas uma delas - a que de fato é a mais
preocupante -: o uso reiterado e progressivo da categoria “combatente ilegal” para justificar,
em verdade, práticas de total suspensão de direitos e garantias individuais4 na chamada
Guerra Contra o Terror empreendida pelos EUA. Fato é que, neste momento, diversos são os
países que aderem ao movimento de endurecimento das legislações nacionais a fim de coibir
o terrorismo internacional; todos estes na esteira de duas das mais discutidas resoluções do
Conselho de Segurança da ONU, as resoluções de número 1566 e 1373.
A guerra contra o terrorismo toma contornos bastante incertos. Não nos interessa,
por ora, discuti-la aqui, mas simplesmente notar como vem sendo feito o uso da categoria do
combatente ilegal a fim de subverter garantias e direitos individuais concedidos pelas
constituições nacionais e, principalmente, para voltar contra si a lógica protetiva do Direito
Humanitário.
O terrorista, segundo sustenta Boaventura de Sousa Santos, se encontra do lado de
lá da linha. E ali não devem vigir o binômio licitude-ilicitude, porquanto não se tratar de um
locus jurídico, mas tão só um espaço vazio de juridicidade próximo às teorias do estado de
natureza. Da forma como passa a ser encarado o selo terrorista, a supressão total de seus
direitos parece andar lado a lado com sua caracterização do lado de dentro da linha. Do lado
de cá, o terrorista assume duas características fundamentais. Em primeiro lugar, ele é a
personificação do mau. O maniqueísmo interessado utilizado para tanto nos faz crer que o
terrorista anseia à destruição completa dos valores consagrados por nossa sociedade,
incluindo democracia e liberdade. Com efeito, se ele se posiciona ao largo desta sociedade
que ele pretende exterminar, por certo não merece aceder aos benefícios que somente ela pode
proporcionar. Para aquele que quer nos destruir somente cabe a destruição. O outro lado da
moeda é bastante conveniente para aqueles que assumem o papel de defesa da sociedade: ora,
4
Cf. SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de
saberes. In: Critical Review of Social Sciences, 78, October 2007: 3-46.
se necessário é que nos defendamos, o preço a ser pago é a redução de parte de nossas
liberdades individuais. Tal assertiva resta bastante evidente, por exemplo, em declarações de
Donald Rumsfeld:
“Anything that comes up in the United States tends to be looked at as
a law enforcement matter, ‘. . . decide whether or not he’s guilty or
innocent and give him due process.’ Of course if . . . you’ve got the
risk of terrorists . . . killing thousands or tens of thousands of people,
you’re not terribly interested in whether or not the person is
potentially a subject for law enforcement” 5
Se esta é a face abissal em que o terrorista tem sido enclausurado, do lado de cá da
linha ela parece, apesar de tudo, encontrar alguma resistência. Não é tão simples assim retirar
o conteúdo das mais diversas legislações nacionais e internacionais. É desta forma que os
grandes mestres do pensamento jurídico abissal passam a desempenhar o papel de justificação
da mitigação de direitos dos indivíduos. Neste sentido é que se fala do uso abusivo da
categoria jurídica combatente ilegal. O combatente ilegal é, via de regra, um conceito retirado
do Direito Humanitário (ou Direito da Guerra). Desde o início do século XX, em especial a
partir do Estatuto de Haia de 1907, a doutrina do Direito Humanitário vem tratando deste
termo a despeito do fato de que, nem mesmo após as Convenções de Genebra de 1949 e os
Protocolos Adicionais de 1977, esta terminologia é utilizada em tratados. Em verdade, tanto a
idéia de combatente, como a de prisioneiro de guerra e de civil estão plenamente delimitadas
pelo Direito Humanitário. Onde se localiza, com efeito, a noção de combatente ilegal?
Knut Dörman define de maneira bem clara:
“(...)
o
termo
combatente/beligerante
ilegal/desprivilegiado
é
entendido como hábil a descrever todos os indivíduos que se engajam
diretamente nas hostilidades sem estar autorizados a tanto e que, desta
5
RUMSFELD, Donald. Apud: KANSTROOM, Daniel. “Unlawful Combatants” in the United States: Drawing
the Fine Line Between Law and War. Disponível em: http://www. abanet.org/irr/hr/winter03/unlawful.html.
forma, não podem ser classificados como prisioneiros de guerra sob o
poder do inimigo” (tradução livre) 6.
Apesar das possíveis divergências doutrinárias, a definição dada a esta locução
por Dörman é bastante próxima daquilo que comumente tem se acordado a este respeito.
Denota-se que a categoria combatente ilegal porta uma característica singular, i.e., refere-se a
um sujeito ativo em determinada hostilidade sem possuir poderes para tanto, o que acarreta
como conseqüência sua impossibilidade de se beneficiar dos privilégios e benefícios - que
aqui preferiríamos tratar como direitos – dos prisioneiros de guerra. Tão e somente isto.
Juridicamente isto significa que o combatente ilegítimo não perfaz os requisitos
necessários para ser concebido como beligerante e, eventualmente, prisioneiro de guerra
impostos pelo Art. 4º da Terceira Convenção de Genebra, o que resulta no fato de o mesmo
não se encontrar no escopo de aplicação de suas normas. Por outro lado, como argumenta
Dörman, tal constatação deve se seguir de uma outra, qual seja a de que, claramente, uma vez
excluído do status de prisioneiro de guerra este indivíduo será protegido pela Quarta
Convenção de Genebra.
O Art. 4 da Quarta Convenção, lido em conjunto com diversos outros
dispositivos, não pode gerar dúvidas a este respeito, uma vez que é abrangente na definição
ratione personae de sua aplicabilidade. O texto em inglês da convenção pode ser lido da
seguinte forma: “Persons protected by the Convention are those who, at a given moment and
in any manner whatsoever, find themselves, in case of a conflict or occupation, in the hands of
a Party to the conflict or Occupying Power of which they are not nationals.” Observa-se que o
texto se refere a qualquer pessoas que esteja sob o poder de uma outra parte do conflito. Tal
definição ampla pode ser muito bem avalisada pelo Art. 5º da mesma convenção e pelo Art.
45 (3) do Protocolo Adicional I. Dessarte, o único critério a ser preenchido para que se
aplique a Quarta Convenção de Genebra, partindo-se da não aplicação da Terceira
Convenção, é simplesmente aquele de nacionalidade. Ainda que se argumente que a Quarta
6
DÖRMAN, Knut. The legal situation of unlawful/unprivileged combatants. In: International Review of the Red
Cross. March 2003, Vol. 85, No 849 (45-75), p. 47. O texto original se apresenta como se segue: “the term
‘unlawful/unprivileged combatant/belligerent’ is understood as describing all persons taking a direct part in
hostilities without being entitled to do so and who therefore cannot be classified as prisoners of war on falling
into the power of the enemy”
Convenção possui diferentes graus de proteção, é inegável que para sua aplicação não
interessa a formo, o modus com que este beligerante ilegítimo ingressou no conflito e por
quais meios se viu sob o jugo de uma potência em guerra7.
O fato é que o pensamento abissal e seus juristas parecem não chegar jamais a
estas conclusões. Por vezes sustentam suas afirmações em hermenêuticas restritivas de textos
cujo intento abrangente é sua maior característica. Em algumas ocasiões são usados casos
paradigmáticos para a defesa de pontos de vista; é o que ocorre, por exemplo, com o famoso e
muitas vezes citado ex parte Quirin, no qual a Suprema Corte Norte-Americana sustentou que
certos beligerantes inimigos, aqueles considerados combatentes ilegais, não estariam
protegidos por qualquer tipo de garantia constitucional, de modo que poderiam ser
interrogados e punidos por tribunais militares. Diz muito o fato de que tal caso
recorrentemente seja utilizado para justificar práticas abissais de total supressão de Direitos
quando, a toda evidência, está-se a tratar de julgado anterior às Convenções de Genebra em
geral e a Quarta Convenção em particular.
É certo que devemos nos fazer as mesmas perguntas que se faz o professor Daniel
Kranstroom8: afinal de contas, deve mesmo se esperar que os indivíduos capturados nesta
Guerra Contra o Terror, atestados como beligerantes ilegítimos, tenham suprimidos todos
seus direitos, tais como direito a um advogado, a visitas familiares, devido processo legal,
entre outros? Será mesmo que nosso sistema de Direitos é tão frágil?
Observa-se, portanto, que o terrorista passa realmente a ser uma das grandes
linhas abissais de nosso tempo, e tal categoria, encontra-se pretensamente defendida no
interior do Direito Humanitário sob a rubrica combatente ilegal. A total ausência de direitos
em que são encarcerados tais indivíduos é absolutamente paradoxal com as promessas de
regulação e emancipação da modernidade ocidental. Tal constatação parece corroborar a
hipótese de Boaventura de Sousa Santos de que este pilar gêmeo da vida moderna no ocidente
está ainda restrito a uma parcela da população. Esta parte outra que não tem condições de
ascender ao status gozado deste lado da linha continua a ser tratada com base no paradigma
da apropriação/violência, à revelia de todo o propalado progresso alcançado por nosso
complexo civilizacional.
7
Id., Ibid., p. 59-60.
8
KANSTROOM, Daniel. “Unlawful Combatants” in the United States: Drawing the Fine Line Between Law
and War. Disponível em: http://www. abanet.org/irr/hr/winter03/unlawful.html.
O Direito Humanitário e o Choque Entre o Universalismo e o Regionalismo
O tratamento dispensado ao terrorista que ocorre por parte do pensamento abissal
no seio do Direito Humanitário Internacional é apenas um dos exemplos. Outros poderiam ter
sido citados em seu lugar, mas, seguramente, não com a mesma importância ou relevância
para as reflexões que se seguem. O ponto que buscamos sublinhar é este: o Direito
Humanitário possui suas linhas abissais.
Esta constatação pode ser analisada por diversos ângulos. Poder-se-ia, talvez,
buscar as causas desta cisão forte que ocorre em seu interior e, ainda, lutar contra ela. Mas as
análises típicas baseadas em relações lógicas de causa e conseqüência podem trazer
dificuldades. Quando os verdadeiros limites não estão tão bem delineados perante os olhos
das diversas esferas públicas é necessário um esforço coletivo mais amplo para que
obtenhamos soluções prudentes. No entanto, pretendemos propor aqui uma possibilidade de
reconstrução de caminhos, um trânsito por entre passagens. Para tanto, só mesmo uma
filosofia não-linear da história poderá nos auxiliar.
O recurso a uma filosofia da história de caráter não-linear faz sentido aqui porque
pretendemos romper com algumas das comuns interpretações e teorizações do Direito
Humanitário que buscaram lê-lo como um sopro máximo de evolução de nossas sociedades.
Aparentemente inofensiva, tal afirmação, como buscaremos defender, carrega uma série de
conseqüências que vêm a contribuir para o aprofundamento da fronteira entre o lado de cá e o
lado de lá. É preciso reconstruir as bases do Direito Humanitário, mas isso obrigatoriamente
deverá significar aprofundar seus pressupostos.
Antes de avançarmos tais idéias, devemos atentar para o título desta secção: há ali
referência aos termos universalismo e regionalismo. Acreditamos que há uma conexão íntima
entre as linhas abissais do Direito Humanitário - entre elas o sulco tectônico do terrorismo e o
status de combatente ilegal – e o modo como foram produzidos os argumentos responsáveis
por sua legitimação.
Segue-se que, em verdade, foram usadas em demasia proposições muito próximas
da idéia de um direito natural a fim de criar sobre o Direito Humanitário uma aura de
universalidade. O próprio nome dado a este ramo do Direito Internacional Público revela esta
preocupação. Pretendeu-se associar o Direito Humanitário à idéia mesma de humanidade, de
modo que este seria a expressão fiel de imperativos naturais desta humanidade.
Isto fica bastante claro em diversos artigos e livros publicados por aquele que
talvez seja o grande baluarte do Direito Humanitário e da atuação da Cruz Vermelha
Internacional: Jean Pictet. Pictet deixa transparecer esta sua convicção em diversos
momentos. Para ele a definição do Direito Humanitário como ramo do Direito Internacional
Público deveria vir acompanhada da noção de que aquele era um conjunto de regras que visa
à proteção da pessoa humana em casos de guerra, fundando-se precipuamente na idéia de
humanidade9. Havia, em sua opinião, uma noção de universalismo que o era subjacente e que
não poderia ser olvidada. Esta idéia lhe era tão cara que seu desenvolvimento em sua obra
aparece como um pano de fundo irrenunciável: o universalismo é a razão de ser de todo o
Direito Internacional, amparando uma enorme esperança depositada pelos povos do mundo no
internacionalismo. Nisto ele conseguiu ver no Direito Humanitário uma vocação enorme a
realizar todos estes ideais porque ele residia num quid compartilhado por todos os seres
humanos, nos mais diversos complexos civilizacionais. O ideário humanitário estaria neste
presente neste conjunto de identidades compartilhadas.
O grande problema é que esta retórica não convence mais as pessoas. A
modernidade ocidental conheceu um intenso processo de dessacralização do mundo, de
racionalização social10. Com efeito, não mais se pode conceber uma ordem de valores que
compõe um direito posicionado acima daquele direito positivo como dado da realidade. Não
há mais um direito natural hierarquicamente superior de onde, a partir de sua concordância, o
direito positivo possa retirar sua legitimidade. Ainda que se acredite numa ordem maior do
que a mera concretude de nosso sistema de direitos, há que se convir que ela não pode mais se
pretender singular, mas sempre e somente numa pluralidade. Ordens de valores, portanto.
Assim, torna-se bastante problemática a tentativa de fundar o Direito Humanitário
sob bases outras, naturais ou metafísicas que se engajem num processo de produção de
universalidades. Tal universalidade, por seu artificialismo patente, não se mostra hábil a
sustentar a legitimidade de um conjunto de normas que se pretenda aplicável a toda
9
PICTET, Jean. Le droit humanitaire: definition. In : Les dimensions internationales du droit humanitaire.
Pedone/ Institut Henry Dunant/ Unesco, Genève, p. 13.
10
Sobre este processo, Cf. HABERMAS, Jürgen. Teoría de la acción comunicativa. V.2. Trad.: Manuel Jiménez
Redondo. Madrid. Taurus, 1988.
diversidade da humanidade. Tudo vem a indicar que o fundamento de legitimidade do Direito
Humanitário – bem como o de qualquer ordem normativa de caráter jurídico – só poderá ser
buscado em seu próprio interior, no interior das relações que o compõe: o Direito Humanitário
está fadado a legitimar a si mesmo.
O modo como outros grandes pensadores procuram compor esse universalismo
não é muito diferente daquele de Jean Pictet. Louis Lafrance, em sua dissertação de mestrado
citada como contribuição no livro que hoje representa a bíblia sagrada do Direito Humanitário
Internacional, How Does Law Protect in War, a secção entre práticas regionais e práticas
universais fica ainda mais clara. O problema que Lafrance se põe é o de que o Direito
Humanitário, assim como os Direitos Humanos, é colocado a prova no que diz respeito a sua
relação com valores universais. Assim, ele parte de duas constatações: a primeira é a de que,
de fato, o Direito Humanitário é composto, em grande parte, por contribuições advindas de
uma tradição tipicamente ocidental-européia. Em segundo plano, Lafrance acredita ser
demonstrável que grandes tradições não-ocidentais apresentam obstáculos reais ao Direito
Humanitário, ao menos no plano de sua legitimidade. No entanto, o autor assume que valores
como respeito à dignidade humana, o direito à vida e a proibição ao escravagismo são as
bases deste ramo do direito e apresentam, sim, um caráter universal, mesmo que não sejam
aplicados universalmente. Para ele, é um dado inegável que as culturas não-ocidentais estão
sujeitas ao contato com a modernidade e a hibridização é inevitável. Portanto, sua crítica a um
certo relativismo é dirigida ao fato de que reconhecer as diferenças não significa aceitá-las,
pois isso seria perder a grande faculdade moderna que é o julgamento crítico:
“Este é um rito de passagem necessário da natureza à cultura. Em
verdade, muitas linhas que não podem ser ultrapassadas são
exatamente o que nos faz humanos. O Direito Humanitário
Internacional representa exatamente os limites que os combatentes
jamais devem ultrapassar a fim de ao sacrificar sua humanidade e cair
num estado de natureza.
O conjunto do Direito Humanitário Internacional é universal? As
fundações deste direito certamente o são, posto que derivadas do
Direito Natural. (...). Se atribuídas à razão, à harmonia universal ou à
origem divina da humanidade, trata-se da natureza humana. O Direito
Humanitário Internacional possui uma dimensão universal ao
simbolizar valores comuns"11. (tradução livre).
Entendemos ser este tipo de posicionamento que, amalgamado com relações nãoparitárias de poder, acaba por gerar profundas linhas abissais. Ora, Lafrance pretende estar
descobrindo um denominador comum, mas o que faz é, em verdade, proclamar a modernidade
ocidental como último passo num processo civilizatório. Aí não haverá denominador comum,
mas somente uniformização, padronização e, principalmente, violência cognitiva. Posto desta
forma, sempre nos indagaremos porque as civilizações não-ocidentais não compactuam com
um certo conjunto de normas que entendemos ser universais. A resposta será sempre a
mesma: porque elas são atrasadas. Chama-se o diferente de passado e, como conseqüência
lógica, proclama a si mesmo como futuro inevitável. O outro passa a ser, portanto, sempre um
objeto a ser moldado com a finalidade de que consiga, enfim, ascender à nossa modernidade.
Caso se recuse a tanto se deve passar a gerá-lo enquanto inexistência, violentando-o,
suprimindo qualquer possibilidade de encará-lo também como sujeito ativo de processos de
conhecimento. Nada mais é do que a formação de linhas abissais.
Fundar o Direito Humanitário num pretenso universalismo que se baseie na
natureza do homem não produzirá um comprometimento amplo dos atores globais, ainda mais
quando este universalismo é, na realidade, uma universalização da modernidade ocidental e o
preço a ser pago por ela é a extirpação das diversidades. Quando se defende que é um dado
natural do homem a tendência ao humanitarismo, afirmando-o enquanto legado da
modernidade, sustenta-se que é preciso ser moderno para cumprir suas normas.
11
LAFRANCE, Louis. Apud: SASSÒLI, Marco; BOUVIER, Antoine. How does Law protect in war? Cases,
Documents, and Teaching Materials on Contemporary Practice in International Humanitarian Law. International
Committee of the Red Cross, Geneva, 1999, p. 87. Reproduzo aqui o texto em sua versão original: “This is a
necessary rite of passage from nature to culture. In fact, many lines that may not be crossed are precisely what
makes us human. International humanitarian law represents precisely the limits that combatants must never
exceed if they are not to sacrifice their humanity and revert to a state of raw nature. Is the whole of international
humanitarian law universal? The foundations of that law certainly are, since they derive from nature law.(…)
Whether attributed to reason, universal harmony or the divine origin of mankind , sound assertions are made
about human nature. International humanitarian law therefore attains a universal dimension by symbolizing
human values”.
Este movimento está fadado ao fracasso; está fadado a produzir linhas abissais tão
profundas como aquelas observadas no período colonial, deixando ao relento do paradigma da
apropriação/violência uma quantidade enorme de seres humanos. O dado perverso desta
distinção abissal é que aqueles que são postos do lado de lá da linha não parecem possuir boas
possibilidades de conseguir atravessar a fronteira para o lado da linha em que vige o
paradigma da regulação/emancipação; onde vige – como nos interessa – um sistema de
direitos que seja levado a sério. E assim, permanecerá o universalismo sendo concebido como
o universalismo da metrópole e o regionalismo como o regionalismo da colônia.
Novos caminhos no interior do Direito Humanitário
No tópico anterior procuramos demonstrar de que forma estão ligadas as linhas
abissais produzidas no interior do Direito Humanitário e as tentativas de legitimá-lo com base
em argumentos de direito natural. Tentamos sustentar ainda como a naturalização dos direitos
e a recorrência a uma ordem que exorbita a do direito positivo para conferir-lhe legitimidade
instaura sempre uma cisão entre universalismo e regionalismo que é a grande base de
sustentação da fronteira que separa o lado de cá e o lado de lá no Direito Humanitário.
Falávamos anteriormente da necessidade de uma nova filosofia da história para
dar início a uma nova apropriação dos ideais que compõe o Direito Humanitário. Se as
posições majoritárias das doutrinas do Direito Humanitário parecem alheias a qualquer estudo
sobre filosofia da história, tal fato se dá apenas superficialmente. A verdade é que há todo um
arcabouço teórico que pode ser lido por entre as defesas apaixonadas de Jean Pictet e outros
tantos. A idéia primordial é a de que a história pode ser lida linearmente; um caminho singular
que liga o passado a nosso presente e que não poderia ter ocorrido de outra forma. Os
defensores destas idéias acreditam piamente na idéia de progresso e é ela que anima todas
suas ações, todos seus estudos. A busca incessante pelo progresso funciona como uma viseira
eqüina que direciona seus olhares para pontos únicos inalteráveis. Tudo passa a funcionar sob
a lógica do progresso, inclusive o Direito Humanitário.
O que pretendemos doravante é enxergar o Direito Humanitário não como uma
rua de mão única
12
, mas uma mônada em que tanto o futuro quanto o passado são
possibilidades abertas a construções e re-construções. Deste modo, defendemos que a
legitimidade do Direito Humanitário não se baseie numa concepção linear da história que o
tome como necessidade lógica de um esforço civilizacional ocidental. Nossa proposta,
acompanhando Boaventura de Sousa Santos, é mais sutil e mais precária: intentamos pensar o
Direito Humanitário como uma aposta13.
A aposta que discorreremos adiante se baseia no fato de o Direito Humanitário
Internacional apresentar, desde o seu nascedouro ou, ao menos, desde o início de seu
movimento de codificação, características que o inserem num quadro epistemológico de
oposição à modernidade hegemônica. O Direito Humanitário apresenta elementos para um
novo Direito pensado a partir de uma nova epistemologia.
Sublinharemos alguns destes elementos e tentaremos precisar quais são suas
relações com uma reviravolta epistemológica.
O primeiro grande elemento é que o Direito Humanitário parte de sua douta
ignorância14. Isto porque ele sabe muito bem de seus limites: pensa-se a guerra como algo
ruim que merece ser, através de um esforço coletivo, extirpado. Contudo, sabe-se que uma
alteração tal no mundo não pode ser feita em tão curto espaço de tempo e, enquanto isso,
milhões de pessoas são afetadas por conflitos armados e merecem ter um conjunto de normas
que melhore suas situações, dando-lhes um pouco mais de dignidade15. Esta é uma premissa
epistemológica bastante importante segundo Boaventura de Sousa Santos. Diz respeito ao
conhecimento dos limites e possibilidades de uma determinada instituição; o Direito
Humanitário propicia, em um nível elevado, a possibilidade de que ele possui limites
identificáveis. As conseqüências disto são que, em primeiro lugar, ao conhecer seus limites, o
Direito Humanitário pode se concentrar mais na solução de problemas concretos. Isto quer
dizer que, em seu interior há uma dimensão pragmática que sempre o ligará à resolução de
12
Cf. BENJAMIN, Walter. Rua de mão única Obras escolhidas V.2 Trad.: Rubens Rodrigues Torres Filho e
José Martins Barbosa. Editora Brasiliense, São Paulo, 2000.
13
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista Crítica
de Ciências Sociais, 80, Março 2008: 11-43.
14
Id. Ibid.
15
Sobre este tema ver PICTET, Jean. La formation du droit humanitarie internaional. Revue International de la
Croix-Rouge. 2002, Vol. 84, Nº. 846, p. 342.
problemas concretos que ocorrem na realidade. Nas palavras de Boaventura, o Direito
Humanitário seria não-ortopédico. Conhecedor de seus limites e da realidade a que se atem, a
guerra e suas conseqüências excessivas para a vida das pessoas, podemos pensar na segunda
conseqüência: por se saber limitado, o Direito Humanitário é obrigado a se confrontar com
sua impossibilidade de, sozinho, resolver todas as mazelas do mundo. Com efeito, ele é
forçado a respeitar, conviver e se coordenar com outros ramos do Direito e, assim
defendemos, outros saberes.
Do que foi dito se retira o segundo grande elemento. A despeito da filosofia da
história que os doutrinadores tentam apor sobre o conjunto de regras do Direito Humanitário,
ele apresenta uma forma outra de conceber a história. O Direito Humanitário é uma utopia.
Com isto não pretendemos uma idéia ingênua de utopia como um futuro inalcançável ou coisa
parecida. Aqui nossa utopia é uma utopia à Walter Benjamin; acreditamos que na obra desta
autor marginal da modernidade ocidental se encontra um conceito de utopia muito útil às
realidades abissais com que nos confrontamos. Walter Benjamin, especialmente em suas teses
sobre o conceito de história, explora uma concepção não-linear do tempo em que o presente
assume um papel fundamental. Aqueles que vivem o futuro devem se apropriar de suas
histórias não com vistas a atingir um futuro projetado sob a idéia de progresso; sua intenção é
outra, i.e., ao invés de resguardarmos um futuro do progresso, precisamos re-construir nosso
passado a partir das promessas feitas e não cumpridas. É o que ele determina sob a metáfora
de escovar a história a contra pêlos16. Precisamos reescrever nossa história não com base em
seu devir inevitável que se construiu enquanto presente, mas devemos observar cada
possibilidade que não se revelou, cada passagem que, por alguma razão, não foi explorada.
Para Benjamin, este é o papel do historiador. Para nós, este também deve ser o papel de todo
aquele que acredita e trabalha com o Direito Humanitário, pois esta é a concepção que nele se
inscreve. Dizemos isto porque assim interpretamos o ideário humanitário que nos liga, por
exemplo, a Henry Dunant. Há um desejo de transformar o mundo começando pelo hoje,
começando por revelar no presente um passado que não se abriu, mas que poderia ter sido
aberto. É por isso que, a despeito de não concordar com a guerra, o Direito Humanitário e
seus defensores acreditam ser necessário regulá-la. É preciso atuar no hoje e no agora, nesta
utopia imediatista que tem por fim a redenção do ontem perdido. Benjamin, em seus recursos
16
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Obras escolhidas V. 3. Editora Brasiliense, 2000. p.
222 et seq.
de linguagem baseados em estudos da cultura judaica, diz que precisamos redimir o passado
e, para tanto, nosso compromisso não é com as gerações vindouras, mas com os nossos
mortos, os mortos que lutaram, que construíram, mas que não foram capazes de ver as
promessas da modernidade sendo cumpridas. Pensamos que foi este também o ideal de Henry
Dunant, o homem responsável pelo impulso inicial do movimento de codificação do Direito
Humanitário. O compromisso de Dunant, se bem analisarmos, era com os milhares de seres
humanos mortos na horripilante batalha de Solferino presenciada por ele. Era com eles que
Dunant firmou seu compromisso de atuação no presente, de alteração do mesmo com base
naquele passado visto por ele: o passado daquilo que deveria ter sido e não foi.
O Direito Humanitário, portanto, é um saber que se sabe precário, que se sabe
limitado, que deve se saber plural e respeitoso, que deve respeito a uma reconstrução do
passado e a uma utopia do presente. Um compromisso simples e sempre precário com a
dignidade das pessoas e com a promoção, na dificílima situação dos conflitos armados, de
uma vida um pouco mais decente às pessoas.
Estas características não podem ser perdidas de vista se estamos buscando uma
outra forma de legitimar o Direito Humanitário, para que ele rompa em definitivo com as
linhas abissais geradas pela cisão entre universalismo e regionalismo.
Conclusão: para além do universalismo da metrópole e do regionalismo da colônia no
interior do Direito Humanitário – Notas programáticas
Para que possamos romper com as linhas abissais formadas pelo Direito
Humanitário a partir da sua legitimação através de critérios de universalidade é preciso
expurgar este tipo de linguagem. A legitimidade do Direito Humanitário deve ser alcançada
no interior de sua própria realidade e para além de cânones universais.
Mas como isto é possível? A resposta não é e jamais será simples. Para alcançá-la
será necessário muito mais do que simplesmente um artigo como este, é necessário um
esforço comum e contínuo que envolva uma imensa gama de reciprocidade de saberes. É
necessário que todos nós nos engajemos num projeto de ruptura com os quadros abissais
observáveis na atualidade e passemos a conceber um novo modelo de interação entre saberes
e culturas ao redor do direito. Boaventura de Sousa Santos chama isto de Ecologia de
Saberes17.
Nosso interesse aqui é mais limitado. Diz respeito somente a necessidade de
composição de um novo plexo de legitimidade para o Direito Humanitário. Acompanhando
Boaventura de Sousa Santos em sua interpretação de Blaise Pascal, entendemos que o Direito
Humanitário deve ser doravante entendido como uma aposta. A aposta, como demonstra o
autor, é uma confiança precária altamente pragmática. Em seu exemplo, ele diz que não se
pode convencer alguém que Deus existe; contudo, pode-se convencê-lo que, em apostando em
sua existência, há a possibilidade de que sua vida 18 seja mais digna e mais decente.
É este o sentido que pretendemos dar ao Direito Humanitário. Pensamos ser
impossível conceber, de fato, uma forma de convencer todos os afetados por conflitos
armados que exista uma ordem natural das coisas que impila a humanidade em direção a um
Direito Humanitário que assuma uma determinada conformação. Contudo, é possível que,
havendo reciprocidade de saberes, acompanhada de reciprocidade de poderes, seja possível
uma epistemologia de tradução intercultural em que os participantes possam se entender como
apostadores: no nosso caso, a grande aposta seria num Direito Humanitário. Sua legitimidade,
com efeito, não adviria de nenhum Direito Natural necessário em face do progresso ocidental,
mas do simples fato de que as diversas culturas encontraram formas de estabelecer
verdadeiras comunicações, souberam os limites de seus saberes e puderam apostar que com o
Direito Humanitário é possível, em conjunto, horizontalmente, tornar a vida muito mais
decente do que hoje ela é. Para além das linhas abissais. Para além das linguagens universais
metropolitanas. Para junto de uma utopia do hoje.
17
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Filosofia à venda, a douta ignorância e a aposta de Pascal. Revista Crítica
de Ciências Sociais, 80, Março 2008: 11-43.
18
Id. ibid. p.33.
Referências bibliográficas
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