Por uma sociedade de corte nos terreiros de
Belém
Taissa Tavernard de Luca
Resumo:
O presente artigo tem por objetivo apresentar o panteão da religião
de matriz africana mais antiga de Belém do Pará: a mina. Trata-se
de uma matriz religiosa advinda da costa ocidental da África, mais
especificamente do antigo Daomé (atual Benim). No Brasil o
Tambor de Mina é cultuado principalmente no eixo nordestenorte, mais especificamente nos estados do Maranhão e Pará. Esta
religião se caracteriza por possuir um panteão híbrido composto
por divindades africanas - como os orixás yorubanos e os voduns
jejes -, nobres europeus e entidades mestiças. Nos limites desse
trabalho pretendo analisar como esse panteão se organiza de forma
hierárquica aos moldes de uma “sociedade de corte” (Elias, 1993)
principalmente pela presença de uma categoria de entidades
denominadas, senhores de toalha ou nobres gentis nagô. São reis ou
aristocratas europeus que possuem ligação com o processo de
cristianização da Europa, expansão marítima e colonização do
Brasil. Neste sentido, etnografei o ritual em homenagem a Dom
José Rei Floriano realizado no centenário Terreiro Dois Irmãos
para entender construção mítica e a lógica interna do processo de
divinização da corte portuguesa.
Palavras-Chave: Tambor de Mina; Religião Afro-Brasileira; Sociedade de Corte;
Senhores de Toalha; Nobres Gentis Nagôs.
Revista Estudos Amazônicos • vol. XI, nº 2 (2014), pp. 156-189
Abstract:
This article aims to present the pantheon of the oldest African
matrix religion in Belém of Pará: Mina. It is a religious matrix came
from the western coast of Africa, more specifically from ancient
Daome (nowadays called Benim). In Brazil the Tambor de Mina is
mainly worshiped on the north-northeast axis, more specifically in
Maranhão and Pará states. This region is characterized by having a
hybrid pantheon composed of African deities – like the
Yoruban orixás and Jeje voduns -, European nobles and mixed
entities. On the limits of this paper, I analyze how this pantheon is
organized in a hierarchical form in the mold of a “society of court”
(Elias, 1993), especially by the presence of a category of entities
called lords of the towel or noble gentile Nagôs. They are European
kings or aristocrats who have connection with the process of
Christianization of Europe, overseas expansion and colonization
of Brazil. So I will research a ritual in honor of Dom Jose Rei
Floriano performed in the centenary “Terreiro [Mina’s temple] Dois
Irmãos” to understand the mythical construction and the internal
logic of the deification process of the Portuguese court.
Keywords:
Tambor de Mina; Afro-Brazilian Religion; Society of Court; Lords of
the Towel; Noble Gentile Nagôs.
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Introdução
Não se pode escrever sobre as religiões de matriz africana no Pará sem
mencionar a forma de culto tradicional que adentrou neste território em
momento histórico específico: a mina. Trata-se da religião afro-brasileira
precursora que chegou a Belém em meados do século XIX trazida pelos
escravos vindos do Daomé (República Popular do Benim) para os Estados
do Maranhão e Pará. O termo mina faz referência ao maior empório de
escravos sob domínio português: o Forte São Jorge de El’ Mina, situado
na Costa do Ouro, atual Gana, que exportava mão de obra negra para
diversas partes do Brasil.1
No Estado do Maranhão estes negros fundaram duas casas mater: a
Casa das Minas – de tradição Jeje – e a Casa de Nagô – com influência da
tradição Nagô, em meados do século XIX. Além destes dois centros de
culto, considerados pela bibliografia específica como pioneiros posso citar
também outros terreiros, de fundação um pouco mais tardia, que tiveram
importância fundamental em se tratando desta matriz religiosa. Refiro-me
aos terreiros da Turquia – fundado por mãe Anastácia – e o do Egito –
criado por Massinokô-Alapong. Outro grande centro exportador de
tradição é a cidade de Codó, situada no Sudoeste do Estado do Maranhão,
cuja ênfase era dada ao culto dos encantados.2
Foi do Maranhão que os mineiros3 migraram para Belém, em duas
etapas: a primeira composta pelos religiosos maranhenses atraídos pela
economia gomífera – aqui denominados de mineiros de primeira migração
– e a segunda constituída por paraenses que foram para o Maranhão
buscar iniciação durante as décadas de 70 e 80 do século XX – os mineiros
de segunda migração.4 Esses dois fluxos migratórios acabaram por
modificar o campo religioso paraense inserindo uma nova forma crença e
consolidando o tambor de mina5 em Belém do Pará. Diversos terreiros
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foram abertos na periferia do centro urbano ou nos municípios adjacentes
a capital. O ritual praticado por eles não possui um modelo padrão. Sofre
variações no que tange a vestimentas, sequência litúrgica, processo
iniciático e instrumentos musicais utilizados.
Se existe um elemento comum a todas as casas,6 posso dizer que é a
presença das mesmas categorias de entidades. O panteão cultuado é
construído a partir de um imaginário comum perpassado por um elemento
chave que é a mestiçagem.7 Assim sendo, o panteão da mina se divide em
duas macro categorias que são as divindades e os encantados. As
divindades são tanto os orixás8 quanto os voduns9 que, ou representam as
forças da natureza, ou são ancestrais negros. São eles as entidades máximas
no que tange a hierarquia do panteão, comumente referidos pela
expressão: os brancos. Essas entidades pertencem às categorias de
“senhores”, descrita por Leacock no livro Spirits of the Deep.10
Os encantados são personagens não africanos11 que pertencem a
diversas nacionalidades, são europeus, turcos, índios, brasileiros, etc. Sua
característica maior é a não morte. 12 A maioria dos encantados é descrita
como seres (pessoas, bichos) que tiveram vida, mas que não
experimentaram a experiência da morte. Saíram desse mundo de forma
fantástica13 e passaram a habitar as encantarias que se localizam em lugares
geográficos específicos, como matas, rios, praias, formações rochosas.
Essa categoria pode ainda ser subdividida em encantados que se
aproximam dos voduns e encantados caboclos.14 Os primeiros são
chamados nobres gentis nagôs ou senhores de toalha. Correspondem à
nobreza europeia de países católicos. Os mais comuns são os nobres
portugueses que, de alguma forma, tiveram relação com o processo de
Expansão Marítima e colonização do “Brasil”. Geralmente são apenas
equiparados aos voduns e orixás e por vezes classificados desta forma.
Todos os nobres gentis nagôs são descritos como brancos e formam, junto
com os voduns e orixás o patamar mais alto da hierarquia mineira.
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Organizados em famílias, eles tematizam, cada um ao seu modo, valores
como o cristianismo, lusitanismo, absolutismo, poder centralizado.
Os caboclos são entidades mestiças de várias nacionalidades. “São
encantados, não são espíritos de índios mortos”, nem tampouco são todos
índios.15 Existem várias famílias de caboclos como os turcos, 16
bandeirantes,17 codoenses,18 os juremeiro,19 e os surrupiras.20 Os caboclos
possuem status bem inferior do que os encantados descritos acima.21 É
necessário destacar que os caboclos são personagens ambíguos que podem
se apresentar de diversas formas. Os caboclos turcos ou bandeirantes, por
exemplo, podem ora usar símbolos (roupas, objetos) que lhes conferem
status de nobreza, ora insígnias que os assemelham aos encantados de baixa
patente ou ainda se apresentar como animais. É o caso de Dona Mariana
pode estar na linhagem de princesa, cabocla ou aparecer na linha de cura
como Arara Cantadeira.
Algumas outras características das famílias caboclas podem ser
mencionadas entre elas destaca-se a mobilidade e a agregação. É comum
se ouvir narrativas de caboclos oriundos de uma família que migra para
outra. Geralmente esses personagens são pacificamente incluídos
passando a possuir características dos dois grupos (de origem e de
destino). As famílias mestiças são eminentemente híbridas. Não há como
negar que a mina é uma religião de panteão plural, formado por entidades
das mais diversas origens e cores, se organiza respeitando uma hierarquia
semelhante àquela que caracteriza a sociedade brasileira. Brancos, negros
e índios demarcam espaços, constroem hierarquias e se misturam neste
imaginário religioso.
Nos limites desse artigo me dedicarei a mostrar que a hierarquia
constituída nesse panteão se configura numa “Sociedade de Corte” 22
ritualizado nas festas públicas especificamente pela presença dos nobres
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gentis nagôs ou senhores de toalha,23 talvez os personagens mais
intrigantes do panteão.
Tambor de Mina: ritual de Corte
Nos manuais de civilidade, uma mesma exigência se
impõe: saber controlar-se, possuir-se, conter-se (...).
Importa aprender a se dominar para dominar os
outros e conter suas paixões para manter a ordem
cristã, social e política. É possível, numa palavra,
possuir-se para possuir seus súditos. Na tradição das
civilidades, importa aprender a se dominar para
respeitar o próximo no espaço social (...).24
Uma das grandes dificuldades que tive durante a confecção desse
artigo, foi a de construir a etnografia. Descrever um único ritual destinado
à saudação dos senhores de toalha foi problemático dado o grande número
de terreiros pesquisados e as muitas festas vivenciadas. Tentei então
elaborar um modelo geral e conforme o escrevia lembrava-me das tantas
variações, dexirê,25 vestimentas, os símbolos demarcadores de status etc.
Decidi então etnografar o modelo de ritual praticado entre os
descendentes dos mineiros de primeira migração, apontando, sempre que
possível, as alterações.
Algumas festas de branco26 costumam durar mais de uma noite. No
Terreiro de Mina Dois Irmãos, por exemplo, chega a se estender por três
dias. A festa de Dom José Rei Floriano inicia com as obrigações privadas,
das quais participam apenas pela comunidade do terreiro. Neste momento
alimentam-se os assentamentos27 da casa e faz-se obrigação28 para as
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entidades que serão homenageadas. A festa pública tem início na manhã
do dia 19 de março quando a comunidade religiosa sai do terreiro rumo à
residência de um dos filhos-de-santo de Mãe Lulu. Os membros da casa
levam consigo o andor, devidamente ornamentado, o carro-som e os
amigos que resolvem acompanhar a procissão. A imagem de São José –
santo que corresponde a Dom José – é levada no dia anterior e pernoita
na residência escolhida para ser o ponto de partida da procissão, que
invariavelmente localiza-se no bairro do Guamá. Lá chegando, o dono da
casa serve um lanche aos visitantes. Geralmente mingau ou suco com
bolo.
Na sequência, os afro-religiosos amarram o santo no andor utilizando
fitas de seda nas cores azul e amarela, que são votivas a Dom José. Por
volta das nove e meia da manhã a procissão tem início. O andor
ornamentado com flores carregando Dom José deixa a residência em
peregrinação ao terreiro. O percurso varia um pouco todos os anos uma
vez que, o santo sempre sai da casa de um filho-de-santo diferente, mas
invariavelmente segue a Av. Conselheiro Furtado até a Av. José Bonifácio
passando em frente ao cemitério de Santa Izabel, onde faz uma parada.
Na porta do “Campo Santo” o andor é prostrado de frente e uma saudação
é feita com fogos e orações.
Durante todo o percurso da procissão o carro-som toca CDs católicos
contendo músicas escutadas no Círio de Nossa Senhora de Nazaré ou de
padres famosos. O andor é carregado pelos filhos do terreiro que se
revezam continuamente. Existe um homem, que recebe a incumbência de
soltar fogos e crianças carregam um pano de seda para fazer esmolação.
Os religiosos não acompanham a procissão com roupas de rituais
públicos, mas invariavelmente estão trajados de branco com a cabeça
amarada. Durante o circuito, diversos transeuntes param e fazem orações,
jogam beijos, dão adeus ou simplesmente observam curiosos. Após a
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parada realizada na porta do cemitério, o cortejo vai pela Av. José
Bonifácio rumo ao Mercado do Guamá, 29 que tem como padroeiro São
José. Neste recinto o andor entra, a imagem percorre os corredores do
mercado recebendo homenagem dos feirantes e seguindo sua caminhada
pela Barão de Igarapé-Miri, Barão de Mamoré até a Pedreirinha, onde está
localizado o centenário terreiro.
Quando o andor entra no mercado, um acompanhante, desvia a rota
para avisar aos religiosos que permaneceram no Dois Irmãos, a localização
do santo dando início a salva de fogos que apenas termina depois da
chegada da procissão. Na porta do terreiro centenário esperam Mãe
Lulu,30 e outros membros da comunidade, já vestidos com roupas rituais
– richelieu – esperam São José chegar. O fim da procissão é saudado com
muitos fogos, lágrimas, doutrinas de Dom José e emoção. Uma pessoa
defuma a fachada, o andor e os peregrinos. O santo adentra o barracão,
ainda agasalhado em meio às flores e fitas, sob o rufar dos tambores e o
som frenético dos aplausos.
Mãe Lulu, a liderança do terreiro, tocando a sineta de cobre toda
enfeitada com laços de fita nas cores azul e amarelo, guia o santo para
dentro. O andor dá três voltas no terreiro e depois é repousado em duas
cadeiras. Tem início uma festa pública curta durante a qual de canta para
Verequete, Dom José e outros brancos, até que o dono da festa incorpore
em Mãe Lulu. Dom José era o santo recebido por Mãe Amelinha, segunda
liderança do terreiro e mãe biológica de Mãe Lulu. Esta, por sua vez,
recebe o vodum Verequete, mas herdou de sua genitora o Dom José.
Nessa casa religiosa as duas entidades são festejadas juntas. Na ocasião da
festividade de Dom José, por exemplo, a primeira noite de festa é
destinada a saudar o senhor de toalha e a segunda o vodum Verequete.
Essas entidades são levadas para a “sala dos velhos” onde dará início a
mesa dos inocentes. As filhas e netas de Mãe Lulu estendem uma esteira
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no chão sobre a qual se coloca uma toalha branca, onde será servida essa
comunhão compartilhada apenas por crianças.
Ao centro da toalha coloca-se uma imagem da sagrada família –
enfeitada com um laço de fita de seda branca, um castiçal dourado
contendo uma vela branca e vasos de flores artificiais. As crianças,
parentes de Mãe Lulu ou de algum membro da comunidade, sentam-se no
entorno da mesa e são servidas, em pratos de porcelana branca, com arroz
e frango, ou seja, comida branca. Num copo transparente as crianças
bebem suco de uva, alusão ao vinho servido no episódio bíblico da Santa
Ceia. A refeição é feita com as mãos. Os menores são ajudados pelas filhas
e netas de Mãe Lulu que permanecem no recinto organizando tudo.
Durante todo ritual entoa-se repetidamente, um cântico da Igreja Católica
muito comum em festas de irmandades religiosas do interior do Pará.
Bendito Louvado Seja
O Santo Nome de Jesus, São José e Maria,
Viva o Pão do Céu
O Seu Sacramento
Deixa Jesus pra Louvar Maria
Na cabeceira da mesa, sentados em cadeiras-trono, cobertas com pano
branco, encontram-se Dom José velando pela comunhão das crianças, de
mãos erguidas em gesto de benção. O ritual dura cerca de meia hora. Ao
término dele, traz-se água para lavar as mãos das crianças que tomam a
benção da entidade e se retira. Conforme a mesa vai sendo desmontada,
algumas pessoas adentram, se ajoelham aos pés dos brancos numa atitude
de saudação e pedido de proteção.
Após essa sessão, a religiosa se desincorpora e retorna para o salão do
ritual. Algumas entidades de alto status podem se apresentar a exemplo cito
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Janaina que incorpora em Dilcelena, num transe zoomórfico que faz a
religiosa deitar no chão enquanto seu corpo toma forma de sereia.
Rapidamente uma pessoa de cargo na casa estende o alá31 sobre o corpo
da mesma. Uma vez pude registrar a presença de Mãe Josina, a fundadora
do terreiro, incorporasse em Mãe Lulu durante a festa de Dom José.
Apesar de não ser propriamente nem uma divindade nem uma encandada,
dona Josina é vista como uma ancestral e por isso não pode ser tratada
como egume consequentemente despachada. Quando está em terra recebe
uma vela branca que a médium incorporada segura com as duas mãos
acima da altura da cabeça.
Quando em terra, mãe Josina recebe o nome de Mestrinha e possui até
doutrina. Geralmente a Mestrinha só vem em rituais fechados dos quais
participam apenas os membros da casa. A performance corporal da
médium que a recebe muito se assemelha a do transe de branco. A família
de Mãe Lulu e os membros da comunidade religiosa ajoelham-se aos pés
da ancestral que os abençoa esfregando a base da vela no centro da cabeça
e nas costas de cada pessoa. Após a ida da Mestrinha, Mãe Lulu encosta32
o ritual que será reaberto na noite do mesmo dia.33 A festa pública segue
um padrão que possui poucas variações. Os religiosos costumam adentrar
no salão de ritual, organizados em fila indiana respeitando a hierarquia do
culto: pai-de-santo (ou mãe-de-santo), guia da casa, mãe pequena, filhosde-santo iniciados seguindo o tempo de iniciação, demais filhos-de-santo,
respeitando o número de obrigações pagas. Após a entrada se saúda os
tambores envergando o corpo e levando a mão direita da boca do tambor
à cabeça e dão-se três voltas ao longo do salão.
Posteriormente os religiosos se posicionam em fileiras, de acordo com
a hierarquia ritual, por vezes formam duas rodas, na interna ficam as
pessoas mais velhas no santo e na externas os mais novos. Como essas
festas costumam ser as mais importantes do calendário litúrgico dos
terreiros é frequente a visita de outros pais ou mães-de-santo que se
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agregam ao ritual respeitando a posição social que ocupam. O xirê varia
muito de terreiro para terreiro. Algumas casas abrem o ritual tocando o
embarabô.34 Outros religiosos iniciam cantando para o vodum dono de
cabeça do chefe da casa, a exemplo do centenário Terreiro Dois Irmãos
onde a maioria dos rituais são abertos com doutrinas em homenagem a
Verequete.
Posso dizer que o ritual de mina costuma dividir-se em quatro partes:
Canto de Abertura ou Embarabô: Início do ritual. Xirêde senhor, ou seja,
vodum, orixás e senhores de toalha: Parte do Ritual voltada a homenagear essas
categorias de entidade de status mais elevado que são hierarquicamente
superiores aos caboclos. Virada para caboclo: Parte do ritual onde se passa a
cantar para os caboclos que rapidamente tomam seus cavalos e vão até o
tambor entoar suas doutrinas. Neutralização ou diminuição das
hierarquias. Encerramento ou encostamento: Neste momento a maioria
dos caboclos que estão em guma são mandados embora e os tambores,
silenciados. Quando a festividade tem mais de um dia, costuma-se dizer
que o ritual foi apenas encostado para recomeçar na noite seguinte.
No referido terreiro, existem dois tipos de posição de dança. São elas:
Hierarquia: Tipo de dança que respeita a hierarquia do terreiro. Os
dançantes estão dispostos em filas na frente do tambor. Na primeira ficam
os pais e mães-de-santo. Um passo atrás dançam os visitantes ilustres. Na
segunda fila dançam os filhos-de-santo com cargo de destaque nas casas dos
religiosos dispostos na primeira fila. As demais são organizadas
hierarquicamente dos feitos para os não-feitos, dos mais antigos para os mais
novos no santo. Na sequência do ritual, a primeira fileira dá as costas para
os tambores segue dançando até a entrada do terreiro, efetuando uma
saudação a porta. Essa atitude é repetida pelas outras filas de forma a
inverter a posição da hierarquia. Quando a primeira fila esta no fundo do
salão a última posiciona-se em frente aos tambores. Logo a posição se
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normaliza. Circulo: Forma-se um círculo e os passos são dados de forma
a fazê-lo girar. Na maior parte das vezes, fazem-se dois círculos. No
interno dançam as pessoas mais velhas e com alta hierarquia no universo
religioso e no externo, os mais novos.
O canto de abertura é seguido por doutrinas a orixás, voduns e senhores
de toalha. Entoam-se músicas para a linhagem da entidade homenageada.
Desta forma se a festa é em homenagem a Dom José, geralmente cantarse-á para o orixá Xangô e para o vodum Badé que corresponde, no
sincretismo, ao referido senhor de toalha. Sobre as entidades cultuadas,
Anaíza Vergolino, em seu trabalho “Os Cultos Afros no Pará”, informa:
Na tradição Mina-Nagô tanto se cultuam os orixás
nagô – Exu, Ogum, Oxossi, Iansã, Nanã Iemanjá,
Xangô e Oxalá – quanto os voduns jejes que podem
corresponder aos seguintes orixás nagôs: Elebara
(Exu),
Doçu
(Ogum),
Azacá
(Oxossi),
Obaluaê/Omulu/Xapanã (Acossi Sapatá), Badé
(Xangô), Euá (Oxum), Vó Missã (Nanã). De todos
os orixás, Yansã é sem dúvida, a mais popular. Ela
é festejada no dia 4 de dezembro, associada a Santa
Bárbara e, em Belém, é amplamente conhecida
como Barbassuera,
Maria Barba Soeira ou
simplesmente, Maria Bárbara.35
Na medida em que as doutrinas para os senhores vão sendo entoadas,
aqueles que recebem as entidades entram em transe. Geralmente o
primeiro a incorporar-se é o dono da festa. Quando isso acontece os seus
filhos dirigem-se até ele, jogando-se a seus pés, em saudação. Os mais
antigos e os demais sacerdotes presentes no ritual limitam-se a beijar-lhe a
mão num pedido de benção ou a cumprimentá-lo curvando o corpo. As
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doutrinas entoadas para os senhores costumam ser lentas mostrando o
peso da tradição e fazendo referência a valor da ancianidade. A possessão
é discreta. Esse tipo de entidade pouco fala ou dança. O tronco do
médium fica um pouco envergado para frente titubeando, enquanto as
pernas permanecem unidas e paradas. O rosto permanece fechado e baixo,
os olhos apertados e os braços posicionados nas costas. Em alguns terreiros
os nobres gentis nagôs dançam, cantam e conversam. Eu mesma cheguei a
fazer entrevistas com Dom Miguel da Gama incorporado em pai Serginho
de Oxossi. Todavia, apesar da diferença permanece a postura austera e o
distanciamento em relação às entidades de status inferior.
A guia da casa36 coloca o Alá na cintura do senhor que está em guma,
ou cobre-lhe a cabeça com a mesma. A assistência aplaude e tem início
uma sessão de cumprimentos que geralmente segue a hierarquia do ritual.
Os religiosos de pouco status se ajoelham aos pés da entidade ou lhe batem
a cabeça.37 Algumas pessoas, ao saudarem a entidade são induzidas ao
transe. Outros voduns e senhores de toalha chegam em guma e logo são
encobertos com alá. Forma-se então uma fileira de encantados de alto
status que continuam recebendo as congratulações da assistência. Após as
saudações, o branco entoa algumas doutrinas numa voz baixa e rouca e é
retirado do salão para ser devidamente vestido com roupas apropriadas.
O ritual continua, dirigido por uma pessoa de destaque da casa – a guia da
casa ou mãe pequena – e na sequência, pelos religiosos visitantes da festa.
O xirê segue com doutrinas para senhor. Badé, Xangô, Dom João, Dom
Sebastião, Oxum, Iansã, Nanã, Iemanjá e muitos outros. Entre as
doutrinas cantadas destaquei as que considero mais bonitas:
Keviosso Badé Zorô
Keviosso Badé Zorô”
“Badé Zorogama Gamaô
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Badé Zorogama Gamaô
Senhor Badé Pedro Angasso
É de Kocoriô
Senhor Badé Pedro Angasso
É de Kokoriá
Kocoriô, Kocoriô
Kokoriô, Kokoriá
Badé foi a Mina de Kokoriô
Castelo de Dom João
Tem vinte e cinco janelas
Cada janela é um cruzeiro
Cada cruzeiro é uma vela
Dom Sebastião, Guerreiro Militar
Dom Sebastião, Guerreiro Militar
E Xapanã, Ele é Pai de Terreiro
Ele é Guerreiro nessa Guma Imperial
Ora viva a Rainha do mar
Mina Jê, Mina já
Rainha do Sereiá
Ela é sereia
Sereiá
Ela é Sereia
A rainha do mar
Ô Janaina
Princesa Real
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É encantada
Na Cobra Coral
A sereia lá no mar cantou
E a estrela lá no céu já brilhou
A sereia lá no mar cantou
E a estrela lá no céu já brilhou
Trilhou caminho tão certo que Deus me guiou
Trilhou caminho tão certo que Deus me guiou
Trilhou caminho tão certo que Deus me guiou
Trilhou caminho tão certo que Deus me guiou
Ô menina, ô menina
Oxum é uma menina
Ô menina, ô menina
Oxum é uma menina
Uma pessoa do terreiro adentra o salão do ritual distribuindo pétalas
de rosa, numa bandeja prateada. Este é o sinal de que o Dono da Festa
está pronto e voltará à guma para ser homenageado. Os presentes
levantam-se. O senhor adentra vestido com roupas tecido fino que
reproduzem suas cores, conduzido por dois religiosos escolhidos pela
entidade ao som dos aplausos permanentes. A “comitiva” dá três voltas
no salão e é homenageada com arremessos de pétalas de rosa. Geralmente
as pessoas escolhidas para acompanhar a entidade, ou recebem o mesmo
encantado ou fazem parte da rede de afinidades da pessoa incorporada.
Após a apresentação pública o branco entoa algumas doutrinas e logo é
sentado numa cadeira – trono situada em frente aos tambores. Então
segue-se a sequência de congratulações. Nesse momento, em alguns
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terreiros, inicia-se a comunhão do afurá; bebida branca, servida sobre uma
esteira, coberta com uma toalha branca e bebido com muita reverência.
Não tarda que o senhor vá embora, desincorporando do médium, de
forma quase imperceptível. Apenas sua cabeça tomba para traz e o
religioso abre os olhos ainda um pouco sombreada. Um filho-de-santo
pega um pano e se põe a abanar o religioso que permanece cansado
geralmente jogado numa cadeira. Após recuperar-se retorna ao ritual,
encerrando o xirê de senhor e dando início a vira para caboclo. O processo
modifica-se de terreiro para terreiro. No Dois Irmãos a virada é feita com
a doutrina para Oxossi. Em toda e qualquer casa-de-santo a virada para
caboclo representa o fim da hierarquização marcada. Este momento é
completamente marcado pelo transe. Os caboclos vêm chegando um a
um, sejam eles juremeiros, turcos ou codoenses. Dão aos seus filhos –
mesmos os mais novos que em ocasião anterior permaneciam sempre ao
fundo do terreiro – a possibilidade de se aproximar dos tambores que
soam constantemente ao som do toque do corrido.
Os caboclos da mina não costumam usar penas, mesmo aqueles ligados
a mata, como os índios. Geralmente vestem blusas e calças (ou saias),
confeccionados a partir de tecidos de algodão com estamparias coloridas.
Amarram lenços ou faixas na altura da testa ou usam chapéus. Conforme
eles chegam tiram logo as guias38 e os rosários39 de orixá e vodum,
cruzando no peito, as de caboclo. É comum também o uso de espadas,
pano amarrado a cintura do médium que geralmente traz o nome da
entidade bordada. O processo extático é bem mais agitado do que o de
senhor. O caboclo faz tremer o corpo do religioso, joga seus sapatos longe,
arranca-lhe o ojá de ori40 e os adereços que porventura prendam os cabelos
do médium. A primeira atitude dos caboclos em guma é cumprimentar a
assistência e reclamar que estão “secos”, ou seja, com sede de cerveja.
É comum aos caboclos da mina a ingestão de bebida alcoólica.
Enquanto os nobres tomam bebidas finas, o caboclo prefere a espumosa
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(cerveja). O líquido é ingerido em taças, copos, ou no cuité. A variação se
dá, de acordo com a hierarquia da entidade. Bebidas como vinho e a
cachaça são menos usadas, pois geralmente são consumidos por Exus.
Cada caboclo vai para frente do tambor se apresentar até os que
incorporam em filhos-de-santo de pouca notoriedade. Alguns deles
chegam a tocar instrumentos musicais como o cheque e o agogô.
As doutrinas entoadas tematizam a negritude do caboclo codoense:
Ô Mearim, Ô Mearim, Ô Mearim a é Codó
Ô Mearim, Ô Mearim, Ô Mearim Codó
Codó não é Mearim, Mearim não é Codó
Codó não é Mearim, Mearim não é Codó
Preta, Preta, Pretinha
Preta, Preta Pretinha
Ela é Pretinha Codoense
Ela é Pretinha Codoense.
Ou seu ethos boiadeiro:
Eu selei o meu cavalo
Para não andar a pé
Minha morada é Morro de Areia
Ô, serra, ô serra, lá no tremenda.
A relação do mouro com o mar:
Seu Turquia vamos ao mar
Correr o mundo geral
Seu Turquia vamos ao mar correr o mundo geral
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Ora vamos louvar a Maria
Averê e Pombo do Ar
A relação do índio com a natureza:
Ô caçador da beira do caminho
Ô não me mate essa coral na estrada
Ela abandonou sua choupana caçador
Foi no romper da madrugada, caçador
Brilhou no céu, uma estrela
Foi no romper da aurora
Já clareou, já clareou
Essa Choupana, aonde Oxossimora
Caçador.
Eu vi a lua, eu vi a lua, eu vi a lua
Eu brinquei com ela
Eu vi a lua, eu vi a lua, eu vi a lua
Eu vi alua e o clarão foi dela
Aê caboco, lá na mata serenô
Aê caboco, lá na mata serenô
Eu mandei içar bandeira
Pra caboco baiador
Eu mandei içar bandeira
Pra caboco baiador.
E a sua valentia:
Ele atirou
Ele atirou e ninguém viu
só ele mesmo é quem sabe
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Aonde a flecha caiu
Por volta das duas horas o ritual encaminha-se para o encerramento.
Chega o momento de mandar subir os caboclos. Alguns reclamam.
Mesmo a contragosto, começa a despedida. O ritual de encerramento varia
muito entre os terreiros de Belém. Alguns religiosos colocam os caboclos
de seus filhos de joelhos para os mandarem embora de um a um tocandolhes o peito e a nuca. Neste momento eles dão um impulso para trás e,
ainda um pouco sombreados, voltam para a dança. Nem todas as
entidades vão embora. Muitos permaneceram bebendo e brincando até o
final da noite. São geralmente caboclos de pessoas mais velhas, que
ocupam posição hierarquicamente superior dentro do culto. Em algumas
casas-de-santo, os caboclos não são despachados após o ritual. Eles
continuam na terra ajudando a servir as mesas e atender aos visitantes.41
As festas prosseguem até perto do amanhecer, quando os visitantes
deixam a casa. Caso o ritual tenha mais de um dia, ele é apenas encostado,
reiniciando na noite posterior com uma sequência festiva que se assemelha
a da primeira noite. Para analisar o ritual acima descrito é necessário referir
ao conceito de sociedade de corte, desenvolvido por Norbert Elias. Tratase de um centro formador de estilo e de autoridade social.42 “Fonte e
origem de modelos de comportamento. 43 A corte é o lugar onde evolui
uma forma de sociedade específica, de alto status “a boa sociedade”.44
Possui regras próprias de comportamento, códigos de conduta e
linguagens simbólica que as diferenciam das ordens sociais de menor
status.45 Representa um meio de exibição de poder através de maneiras
refinadas de cumprimentar, escolher palavras, controlar as emoções, etc.
A corte possui etiqueta própria que funciona como sinal diacrítico para
marcar sua posição na hierarquia. Nesse espaço social “os hábitos mais
rudes, os costumes mais soltos e desinibidos da sociedade (...) são
174 • Revista Estudos Amazônicos
suavizados, polidos e civilizados.”46 Trata-se de um grupo marcado pela
autodisciplina e pelo autocontrole, formado por homens pretensamente
superiores que gera uma cultura de corte. A sociedade de corte é, acima de
tudo, uma expressão de civilização. Para Norbert Elias47 ela se baseia,
acima de tudo, na oposição. Ao refletir sobre a sociedade absolutista
francesa, ele pondera que é nítida a separação entre a aristocracia e os
elementos de classe média excluídos dos cargos mais importantes do
Estado.48 A comunidade que estudo não pode ser classificada como de
Estado mas devo observar uma separação marcada entre a “aristocracia”
de senhores e a “classe média” cabocla que sequer ocupa a mesma
geografia ritual.
Neste sentido se estabelece dicotomia entre senhor e caboclo. Recupero
as palavras de Norbert Elias49 e a etnografia realizada acima para explicar
que o panteão da mina paraense pode ser visto a partir dos seguintes pares
de opostos: senhor/caboclo ordem/desordem, status/falta de status,
polidez/hábitos
“toscos”,
sobriedade/bagunça,
hierarquia/mistura,
virtude ilibada/humanidade, alto/baixo, civilizado/não civilizado,
luxo/simplicidade,
branco/escuro
(misturado),
vagaroso/rápido,
socado50/corrido.51 Outra antítese destacada por Elias é a que separa
paganismo de cristianismo. Ser civilizado, durante a Idade Moderna, era
sinônimo de ser cristão. Em nome da cruz e (...) da civilização a sociedade
do ocidente, empenha-se em guerras de colonização e de expansão.52
Quando os reis cristãos portugueses mencionados nos limites desta
tese se dedicaram à empresa colonizadora, a relação estabelecida com os
outros grupos humanos, era completamente vertical. A desculpa europeia
de fazer as sociedades “primitivas” ascenderem ao patamar de civilizados
acabou por legitimar a dominação do homem sobre o homem.
Retornando aos encantados mineiros tenho, no alto o branco colonizador que
realiza procissão, de postura austera e contida, de pouca fala, de passos
lentos, de contrição. Do outro, encontra-se o mestiço colonizado,
Revista Estudos Amazônicos • 175
cristianizado porém jamais ascendeu ao patamar da civilização. Essa
tentativa de branqueamento ideológico deu origem, pelo menos em nível
do imaginário, a uma sociedade miscível que antropofagicamente sintetiza
a vestimenta de pena à adoração ao santo católico.53
A corte, segundo Norbert Elias é também, uma descendente do
sistema de dominação patriarcal. 54 O rei é o pater família, senhor de uma
comunidade extensa e personificação do total do poder. Ele porta-se
como o centro da corte. Isso também se reflete no panteão mineiro que
relega à mulher o papel secundário de personagem coadjuvante em
famílias incontestavelmente chefiadas por homens. As mitologias
apontam pais e filhos, omitindo, na maioria das vezes, o elemento
materno. Se já está claro que o ritual realizado para os nobres gentis nagôs
é uma dinâmica de corte, os senhores mineiros apresentam-se como
“pessoas de distinção” que dominam a civilidade.55 Entre os sinais
diacríticos que atestam o caráter aristocrático do branco mineiro destaco:
Em primeiro lugar, linguagem clara e polida. A fala do nobre gentil nagô
é austera, permeada de autoridade, firme, baixa e contida. O rei jamais tem
atitude de galhofa. Ele usa a linguagem para ordenar, curar, abençoar.
Nunca dispensa palavras inúteis nem altera o tom de voz.
Em segundo lugar, o olhar inerte.
O olhar esbugalhado é sinal de estupidez; o olhar
fixo sinal de inércia; o olhar dos que têm inclinação
para a ira, é cortante demais; é vivo e eloquente, o
dos impudicos. Se o olhar demonstra uma mente
plácida e afabilidade respeitosa, é melhor.56
O olhar do nobre mineiro mistura afabilidade e inércia. Com carinho,
este rei-deus fita acolhedoramente o filho ajoelhado aos seus pés em
176 • Revista Estudos Amazônicos
atitude de reverência. Com inércia ele demonstra a estabilidade de quem
se eternizou.
Em terceiro lugar, a lentidão:
O passo não deve ser demasiado lento nem
demasiado rápido. (...) O nobre, ou qualquer outro
homem de honra, não deve correr como um lacaio,
nem andar tão vagarosamente como mulheres ou
noivas. (...) O nobre não deve (...) correr na rua ou
apressa-se demais uma vez que isso é próprio de
lacaio e não de cavalheiro.57
Retomando o dualismo exposto acima, nobres estão para “homens de
honra” como caboclos para baixo status (a exemplo dos lacaios referidos
na citação acima). A diferença entre socado e corrido exemplifica essa
dicotomia. O ritmo tocado para senhores de toalha é, na maioria das vezes,
lento e pontuado, exigindo passos pesados ou, no máximo, marciais. Há
um “signo de poder na lentidão de um passo ou na contenção de um
movimento.58 As doutrinas de caboclos são entoadas ao som do corrido
que excita os ânimos e exige agitação no dançar. Os caboclos
movimentam-se tão rapidamente que por vezes parecem flutuar no salão,
molhados de suor. Os gestos de imobilismo do homem-deus são signos
tanto de perfeição quanto de soberania diante dos quais “todos os demais
dão mostras de agitação e configuram sujeição moral e social.59
Em quarto lugar, não comer. Como uma festa de corte os rituais de
terreiro são fartos de comida e bebida. As comidas são servidas para a
assistência e religiosos não incorporados e as bebidas, divididas entre estes
e os caboclos. “No ato de comer (...), tudo é mais simples e são menos
Revista Estudos Amazônicos • 177
restringidos os impulsos e inclinações”. O comportamento cortês não
admite, por exemplo, barulho a mesa:
Se um homem bufa como uma foca quando come,
como acontece como algumas pessoas e estala os
beiços como um camponês bávaro, então ele
renunciou toda a boa educação.60
Também não se pode atacar o alimento vorazmente. Era condigno aos
homens finos, comer pouco e pausadamente. Os senhores de toalha são
aristocráticos até no hábito de não comer e de beber apenas bebidas finas.
A cultura de corte se estende à comunidade afro-brasileira. Nas festas de
senhor, quando se serve o afurá, o processo de comunhão deve ser feito
calmamente e em silêncio numa atitude de reverência, respeito e etiqueta.
Nas ocasiões em que são servidas comidas secas, as mesmas devem ser
consumidas com a mão tal qual fosse um jantar da corte francesa. Lá
também, os sólidos são pegados com a mão e os líquidos com conchas ou colheres
seguindo a regra da cautela.61 A higiene é outra máxima a ser seguida, toda
vez que uma refeição de corte se encerra, os participantes devem
invariavelmente lavar as mãos.62 O mesmo ocorre nas comunhões mineiras,
pois um recipiente com água é mantido no recinto para que os fiéis, que
participaram da mesa se higienizem.
Em quinto lugar, a cortesia. Essa palavra, em sua origem significava
“formas de comportamento que se desenvolveram na corte”.63 Entre as
regras do ethos cortês destaca-se a polidez. Um nobre deve ser acima de
tudo, cortês. Nunca se mostra grosseiro. Austero e afável, os senhores de
toalha tratam os fiéis com educação e hierarquia. Numa posição social
inferior, os adeptos da mina recorrem ao rei-deus com objetivo de pedir
intercessão na resolução de algum problema. Os que pedem benção são
178 • Revista Estudos Amazônicos
abençoados, os que procuram conselho, são ouvidos. O rei mineiro governa
a sua guma docemente. O rei mineiro, poucas vezes, manifesta sua força, 64
exerce uma forma de poder silenciosa que consiste na exaltação ritual de
sua pessoa que tem por objetivo de amealhar respeito e obediência
coletiva. O ritual real “ordenam proximidade e distância com relação ao
monarca”. A submissão dos subalternos está na postura e posição corporal
que se derrama (dubá) aos pés do rei num ato sempre subserviente. A
soberania e o poder são inculcados nas mentes de forma leve.
Os rituais, dispositivos contínuos, silenciosos e
imperceptíveis contribuem para despertar, por
gestos e posturas, sentimentos de deferência e
reverência, de respeito, temor e medo em relação ao
monarca, mas também sentimento de apego e de
amor: uma sensibilidade monárquica.65
Dessa forma, o corpo do médium é domesticado para ser cavalo real e
os outros fiéis, tornam-se serviçais, sempre atento à necessidade de
enxugar-lhe o rosto quando o suor escorre ou trocar-lhe a roupa quando
incorpora em meio às festas públicas.
O controle das emoções é outra característica. É nítida a diferença
entre o transe de senhor e o transe de caboclo. O segundo assume uma
postura acalorada, prenhe de subjetividade, desejo, alegria, agitação e raiva.
Esses sentimentos são expressos na voz, nos movimentos corporais, nas
brincadeiras tiradas com a assistência e até nas brigas travadas com outro
caboclo ou com o ser humano. O caboclo tem ciúme, simpatiza, antipatiza,
discute, fala alto, ri, por vezes profere palavras de baixo calão. O nobre gentil
nagô está acima do sentido de humanidade. Sua performance em guma é
uma exaltação a sua superioridade. Seu rosto fechado não expressa
Revista Estudos Amazônicos • 179
sentimento algum. Não se excede na alegria nem demonstra tristeza. É
superior a todas as emoções.
Segue-se o decoro. As regras de civilidade foram, de certa forma,
construídas em cima de padrões morais cristãos. Ser civilizado é estar
diametralmente oposto ao “pecado”. Portanto pode-se dizer que civilidade
e pureza são conceitos semelhantes. O decoro dos senhores de toalha pode
ser observado na sobriedade das vestimentas, sempre discretas, o tom
contido de sua voz, no jeito nobre de se sentar alto e com o corpo
fechado.66 Na possibilidade do exagero de bebida alcoólica. No riso farto
e sonoro. Por vezes até pornografia mencionada. Decoro é sinônimo de
contenção. A palavra contenção é oriunda do verbo conter. Nesse sentido
o sujeito contido é aquele que consegue neutralizar suas paixões, seus
membros, suas ações, sua língua e suas palavras nos limites em que todas essas coisas
devem ser contidas.67 O caboclo é avesso da regra de decoro cortesão, enquanto
o senhor é cristão também nos seus atos.
Em oitavo lugar, o vestuário. As roupas dos senhores de toalha
traduzem a pureza do branco, cor e a hierarquia do branco, status.68 Os
signos de realeza medieval (manto e coroa) e afro-brasileira (bengala,
guarda sol, etc.) compõem um guarda-roupa sagrado que diferencia o
senhor de seus subalternos. No entanto, o elemento mais significativo de
ser mencionado como vestimenta de corte é o uso do richelieu. O bordado
richelieu69 surgiu na França. A denominação ocorreu entre 1624 e 1642,
pelo uso frequente nas vestes de Armanol-Jean Du Plessis, cardeal e duque
de Richelieu.70 O tecido ganhou fama, pois além de ser sinônimo de
riqueza, distinguiu-se por sua técnica, realizada com pontos cortados
aplicados sobre um fundo de tecido aberto, no qual os fios são
delicadamente retirados até formarem verdadeiros vazios entre os
motivos.
180 • Revista Estudos Amazônicos
A moda, inspirada no modelo civilizacional francês, o levou para
Portugal. O uso desses bordados em território brasileiro deve-se ao
processo colonial português uma vez que esses pontos passaram a ser
utilizados nas vestimentas das elites luso-brasileiras. Segundo Aldrin
Moura Figueiredo, o cronista da moda, João Affonso, autor do livro “Três
séculos de moda”, ao analisar e a evolução da indumentária no Pará,
comparou a imagem dos primeiros colonizadores (como o próprio
Francisco Caldeira Castelo Branco) à imagem de Luis XIII e da nobreza
de Richelieu.71 É interessante notar o significado de nobreza do bordado
que irá permanecer incólume nas religiões afro-brasileiras.
Após tudo que foi dito, partindo da ideia de que “O Estado ganhava o
caráter de uma ação social do rei”,72 ao adorar o rei português, o mineiro
paraense, rememora o Estado lusitano, ritualiza o processo colonizador e
o jogo de relações sociais suscitado por ele, em nível do imaginário.
Considerações finais
Cabe refletir de que forma todas essas informações sobre a “sociedade
de corte” chegaram aos terreiros de Belém. Mary Del Priore em seu livro
“Festas e utopias” revelou, como o poder do rei era teatralizado nas festas
do Brasil Colônia como forma de divulgação da estrutura política vigente
entre a sociedade escravocrata da época.73 As festas públicas, em sua
maioria produzidas pela Igreja, tematizavam, dentre outras coisas a
sacralidade do poder real. Tudo que se passava com a família real chegava
ao povo de forma lúdica. O casamento de Dona Maria foi amplamente
festejado na Bahia com presença de cavaleiros vestidos à mourisca,
batalhas fingidas, banda de tambores etc. Durante o XVII, mas
precisamente em 1641, o holandês Maurício de Nassau fez uma
encamisada para homenagear a aclamação de Dom João IV. 74
Revista Estudos Amazônicos • 181
Muitas também eram as festas de louvação à Coroa Portuguesa. Em
1818, as lanterninhas que ornavam um evento religioso no Rio de Janeiro
serviam de propaganda do Estado Moderno, estampando a esfinge do rei
e a seguinte frase ao nosso bom rei e senhor, Dom João VI, gratidão.75 Essas
luminárias eram sempre penduradas nos telhados episcopais ou em cima
das residências como forma de mostrar a posição soberana de sua
majestade. Outro elemento intrigante era a relação entre a imagem real e a
luz produzida pelos fogos de artifício. Em Sabará, durante uma
comemoração religiosa, acionou-se um fogo de artifício brilhantíssimo, no fim do
qual apareceu o retrato de sua majestade; oportunidade que fez o governador gritar
“Viva El Rei Nosso Senhor”, para o povo transportado (...) responder “Viva o Rei
do Reino Unido”.76 O rei estava associado a um instrumento capaz de mudar
o curso da natureza, iluminando a noite, neste período ainda muito escura.
Esse artifício tinha também finalidade religiosa, que atraía pela estética,
com anseios proselitistas. Foi a Igreja que atrelou religião e realeza. A
mensagem pastoral, passada em seu bojo divulgava o aspecto centralizador
da Coroa Lusitana. A festa ganhava conotação de propaganda
governamental. Outros valores foram festejados, dentre eles cito a guerra
entre mouros e cristãos que se traduzia numa vitória portuguesa cristã e
fazia apologia à branquitude. O negro e o índio eram sempre associados,
metaforicamente, a figura do perigo e do mal. Os carros alegóricos que
desfilavam em meio aos eventos religiosos – ou não – serviram de
divulgação ideológica. Mary Del Priore mostra que alguns deles traziam
alegorias de cobras, jacarés e dragões em cima dos quais desfilavam
pessoas de cor. Suas vestimentas reduziam-se a penas e adereços que
simbolizavam atraso e inferioridade técnica.77
É em cima desses valores divulgados pelas estruturas dominantes que
os imaginários afro-brasileiros se recriam. Signos persistiram há séculos:
mudanças e permanências foram usadas como fonte na construção de um
182 • Revista Estudos Amazônicos
imaginário repleto de acontecimentos reais e fantásticos. O fantástico é a
costura que amarra o real o ritual e o mitológico. Por intermédio dele, o
homem se fez divindade ou encantado, como o leitor queira. Caracteriza-se
“pela intromissão brutal do mistério no quadro da vida real”.78 É o
complemento que dá sentido ao acontecimento estranho.
Nos
textos
fantásticos
o
autor
relata
acontecimentos que não são suscetíveis de
acontecer na vida, se nos prendermos aos
acontecimentos comuns de cada época no tocante
ao que pode ou não pode acontecer (...). É onde
entram os seres sobrenaturais. (...) O fantástico
explora o espaço interior tem uma estreita relação
com a imaginação, a angústia de viver e a esperança
de salvação.79
O elemento fantástico se transforma em maravilhoso quando a
estranheza provocada pelo elemento extraordinário acata uma explicação
sobrenatural. Na maioria dos casos os religiosos não param para pensar na
trajetória dos reis cultuados, o quão espetacular é tê-los agregados ao
panteão de uma religião de matriz africana. Eles simplesmente vivenciam,
dançam, cantam, praticam. O espanto e a inquietude vêm do pesquisador.
Mas construção simbólica é narrada como detentora de uma lógica
própria. Formulam-se explicações completamente racionais cerzidas por
metáforas que criam uma teia híbrida tão rica que não dá para ser de todo
analisada nos limites desse artigo.
Limitei-me a reproduzir a hierarquia dessa corte híbrida onde “existem
os grandes e os pequenos (Pai Serginho de Oxossi, mineiro de segunda
migração) tipo um quartel: soldado, cabo, sargento, tenente, capitão até
chegar ao general ou almirante (Pai Aluísio Brasil, mineiro de segunda
Revista Estudos Amazônicos • 183
migração)”. Infelizmente não pude “descer na hierarquia do panteão” e
analisar o mestiço, traçando analogia entre ser mestiço, ser misturado e ser
caboclo. Optei por falar de nobre. Destaco que o branco mineiro é o branco
expansionista, conquistador de encantarias, líder de famílias extensas. É o
sujeito proprietário de garbo, digno de reverência: o dominador. O branco
mineiro é o não escravo, o não trabalhador. Descrito como guerreiro que,
do topo da sociedade, esbanja poder político e prestígio social.80
Todos os personagens descritos como brancos possuem como
características comuns, a altivez. Nos rituais existe uma clara demarcação
de limites entre senhores e caboclos.81 Quando um senhor está em terra,
nenhuma entidade de menor status se aproxima. Caso isso ocorra é
imediatamente afastada. São referidos por primeiro na sequência de
cânticos, demonstram sua posição na hierarquia, usam alá. Todavia, apesar
de todos esses sinais diacríticos de branquidade não há como negar que o
branco mineiro é, e em alguns aspectos foi “deseuropeisado” pois ele está
fixado na pedra (otá) como mana.82 Transformando-se no sagrado
imanente, apresenta-se ao público numa experiência de transe extático e
recebe obrigação.
Se por um lado os nobres passam por uma espécie de criolité
africanizando-se83 por outro, sistema de crenças mineiro reproduz o modelo
de branquitude de forma tão direta que não é preciso ter muito treino para
assistir a um ritual e constatar que tem branco na guma.84
Artigo recebido em setembro de 2014
Aprovado em dezembro de 2014
184 • Revista Estudos Amazônicos
NOTAS

Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião (PPGCR)
e do Curso de Licenciatura Plena em Ciências da Religião da Universidade do
Estado do Pará (UEPA) e Coordenadora do Grupo de Estudos Religiões de
Matriz Africana na Amazônia (GERMAA). E-mail: [email protected]
1 LUCA, Taissa Tavernard. Tem branco na Guma. Belém, 2010. 260 f. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais – Área de Concentração: Antropologia).
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas. Universidade Federal do Pará.
CAMPELO, Marilu & LUCA, Taissa Tavernard. As duas africanidades
estabelecidas no Pará. In: BELLOTTI, Karina. & VALÉRIO, Mairon. (Org.).
Revista Aulas. São Paulo, n. 4, p. 1-27, 2007. Disponível em –
www.unicamp.br/aulas. Acesso em 11 fev. 2013.
2 Entidade muito comum no imaginário amazônico. Tiveram vida, mas não
vivenciaram a experiência da morte. No Tambor de Mina existem encantados em
diversos níveis hierárquicos. VERGOLINO, Anaíza. “Os Cultos Afro no Pará”.
In: FONTES, Edilza Joana. (Org.). Contando a História do Pará: Diálogos entre
a História e a Antropologia. Belém: E. Motion, 2003. LUCA, Taissa. Tavernard.
Tem branco na Guma. Belém, 2010. 260 f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais
– Área de Concentração: Antropologia). Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas. Universidade Federal do Pará. CAMPELO, Marilu. LUCA, Taissa
Tavernard. As duas africanidades estabelecidas no Pará. In: BELLOTTI, Karina
& VALÉRIO, Mairon. (Org.). Revista Aulas. São Paulo, n. 4, p. 1-27, 2007.
Disponível em – www.unicamp.br/aulas. Acesso em 11 fev. 2013.
3 Adepto do Tambor de Mina.
4 LUCA. Tem branco na Guma. Op., cit. CAMPELO & LUCA. As duas
africanidades estabelecidas no Pará. Op., cit.
5 Mesmo que mina. Nomenclatura mais utilizada no Estado do Maranhão.
6 Mesmo que terreiro.
7 LUCA. Tem branco na Guma. Op., cit., p. 67. CAMPELO & LUCA. As duas
africanidades estabelecidas no Pará. Op., cit., p. 15.
8 Divindades yorubana. Muitos deles são antigos reis ou heróis divinizados.
Representam as vibrações das forças da natureza.
9 Nome dado às entidades do panteão jeje que correspondem, hierarquicamente,
aos orixás nagôs. LEACOCK, Seth & LEACOCK, Ruth. Spirits of the Deep: A
Study of an Afro-Brasilian Cult. Nova York: Anchor Book, 1972.
10 LEACOCK, Seth & LEACOCK, Ruth. Spirits of the Deep: A study of an AfroBrasilian Cult. Nova York: Anchor Book, 1972.
11 FERRETTI, Mundicarmo. Maranhão encantado. São Luís: UEMA Editorial,
2000.
Revista Estudos Amazônicos • 185
FERRETTI. Maranhão Encantado. Op., cit VERGOLINO, Anaíza. “Os
Cultos Afro no Pará”. In: FONTES, Edilza Joana. (Org.). Contando a História
do Pará: Diálogos entre a História e a Antropologia. Belém: E. Motion, 2003.
PRANDI, Reginaldo & SOUZA, Patrícia. “Encantaria de Mina em São Paulo”.
In: Encantaria brasileira: o livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de
Janeiro: Pallas, 2001. SHAPANAN, Francelino. “Entre Caboclos e Encantados”.
In: Encantaria brasileira: o livro dos Mestres, Caboclos e Encantados. Rio de
Janeiro: Pallas, 2001.
13 TODOROV, Tedzan. Introdução a literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva,
2003.
14 Grafarei a palavra caboco e não caboclo por se tratar da denominação nativa.
15 VERGOLINO, Anaíza. “Os cultos Afro no Pará”. In: FONTES, Edilza Joana.
(Org.). Contando a história do Pará: Diálogos entre a História e a Antropologia.
Belém: E. Motion, 2003, p. 22.
16 Os turcos são personagens que retomam o episódio histórico das cruzadas e os
bandeirantes representam simbolicamente o processo de ocupação do interior
brasileiro denominado de Entradas e Bandeiras. São ora apresentados como
nobres, ora como cabocos o que nos fez pensar que sejam nobres com status um
pouco inferior ao dos senhores de toalha. Mundicarmo Ferretti em seu livro
Desceu na Guma os classifica como gentilheiros e os descreve como “fidalgos, não
confundidos com os orixás, as vezes também confundidos com os caboclos (...)
que não pertencem a nobreza europeia cristã”. São consideradas categorias
hierarquicamente intermediárias compostas de nobres, as vezes descritos como
mestiços e não brancos. Na maioria das vezes vestem-se com roupas finas e
luxuosas confeccionadas de tecidos brilhosos e richelieu colorido. Todavia, por
serem personagens ambíguos, podem também trajar roupas de florão que os
aproximam dos juremeiros e codoenses. FERRETTI, Mundicarmo. Maranhão
encantado. São Luís: UEMA Editorial, 2000, p. 74.
17 Família composta em sua maioria por cabocos ligados ao episódio histórico das
Entradas e Bandeiras. Trata-se de uma família eclética, pois inclusiva chefiada por
seu João da Mata.
18 Os codoenses representam a imagem do negro que vigora no Pensamento
Social Brasileiro do século XIX. Trata-se do negro trabalhador que pode realizar
serviços domésticos dentro do terreiro. Possui forte ligação com o gado. Suas
doutrinas falam da sela, do ato de laçar boi e outras atividades desse gênero.
19 Os juremeiros e codoenses, por sua vez, são cabocos de baixo status. Os
primeiros representam o índio romântico, civilizado quanto à vestimenta, pois usa
roupas confeccionadas com tecido de chita e não, trajes de pena. No entanto os
juremeiros apresentam uma performance ritual que demonstra sua coragem e
valentia. Essa característica pode ser vista na dança, no ato de pular de joelho em
toda área do terreiro, no grito quase selvagem e no gestual de mão que, por vezes,
reproduz o movimento do arco e flecha.
20 Os surrupiras, descritos por Vergolino como encantados locais, tendo sua
encantaria ou morada na localidade de Arapixi, município de Chaves, Ilha do
12
186 • Revista Estudos Amazônicos
Marajó. As narrativas sobre essas entidades são imprecisas. Uns os descrevem de
índios não “civilizados”, outros como personagens zoomórficos muito peludos.
O fato é que todos concordam com os hábitos selvagens de se embrenhar no
meio do mato, se abraçar com as árvores de tucumã (espinheiro), ou até dormir
em cama de espinhos. VERGOLINO. Op., cit. FERRETTI. Maranhão
encantado. Op., cit. PRANDI & SOUZA. Op., cit.
21 A maioria das casas também absorveu a imagem de exu advinda da umbanda
que é uma representação do povo da rua e por tal formada por personagens como
a cigana e o malandro.
22 ELIAS, Norbert. Sociedade de Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
23 Essas entidades recebem o nome de senhores de toalha, pois, uma vez em guma
elas usam toalha de richelieu bordada como sinal de status.
24 HAROUCHE, Claudine. Da palavra ao gesto. São Paulo: Papirus, 1998, p. 41.
25 Sequência de cantos entoados em homenagem ao panteão mineiro.
26 As entidades de mais alta Hierarquia dentro do panteão do tambor de Mina são
chamadas de brancos. Neste sentido pertencem a essa categoria os Voduns,
Orixás e Nobres gentis Nagôs ou Senhores de Toalha.
27 Local onde a divindade está fixada. Nele se encontram os objetos sagrados do
mesmo como a pedra (otá). Cerimônia que transforma um lugar profano em
sagrado.
28 Oferendas rituais que os médiuns são obrigados a fazer para suas entidades a
fim de que mantenha o equilíbrio de sua vida. O não cumprimento das mesmas
acarreta em punição dada em forma de peia ou de infortúnio.
29 O mercado do Guamá está situado na esquina da Av. José Bonifácio com a
Barão de Igarapé-Miri, principais ruas do periférico bairro, universitário, do
Guamá.
30 Dona Luiza Ninfa de Oliveira, conhecida como mãe Lulu é a terceira liderança
do Centenário Terreiro Dois Irmãos, Único Tombado pelo Patrimônio Histórico
em Belém do Pará. Antes dela lideraram o mesmo templo religioso Mãe Amelinha
(sua mãe biológica) e Mãe Josina, a maranhense fundadora do terreiro.
31 Toalha branca confeccionada em bordado richilieu que serve como símbolo de
status.
32 Dá-se o nome encostar quando há continuidade do mesmo ritual em outro
momento. Nesta circunstância não se fecha o ritual mas encosta-se, ou seja,
procede-se uma pausa.
33 Outros terreiros de mina realizam procissão antes das festas públicas para senhores
de toalha. Pai Orlando Bassu (filho de Xapanã) liderança do Abassá Afro-Brasileiro
Lego Xapanã, promove peregrinação para São Sebastião no início da noite de 20
de janeiro, saindo da Igreja de São Judas Tadeu, no bairro da Condor.
Antes da caminhada, o santo do terreiro é colocado no altar e a comunidade afroreligiosa assiste missa. Após a celebração, a procissão sai da Igreja rumo àcasa-desanto acompanhada por católicos e afros. Lá chegando tem início a cerimônia
religiosa de matriz africana com doutrinas entoadas para Rei Sebastião, Xapanã e
Obaluaê entre outros vodunse orixás.
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Trata-se de um conjunto de doutrinas de Exu seguidas por outras destinadas a
Ogum. Esses dois orixás são responsáveis pela abertura do ritual uma vez que são
considerados senhores dos caminhos.
35 VERGOLINO. Op., cit., p. 18.
36 Segunda liderança religiosa de um terreiro de mina.
37 Chama-se de bater cabeça o ato de prostrar-se aos pés do senhor, fazendo-lhe o
dubá.
38 Fio de contas que os afro-religiosos carregam no pescoço cuja cor corresponde
a da entidade que o médium recebe. Existem guias de diversas espessuras. O
número de pernas aumenta a medida que o sujeito vai ascendendo na hierarquia
do ritual e cumprindo suas obrigações religiosas.
39 Nome dado aos colares rituais de cores variadas. Possuem número de pernas
variado e uma medalha na ponta contendo crucifixo, imagem de santo, ou outro
símbolo cristão. Algumas vezes é possível observar o uso do signo Salomão, uma
referência clara a influência judaica.
40 Chama-se ojá de ori ou pano de cabeça à longa faixa utilizada pelos afroreligiosos com o propósito de cobrir a cabeça. A denominação Ojá de Ori é mais
comum no candomblé enquanto pano de cabeça é utilizada com mais frequência,
pelos mineiros.
41 Os cabocos que permanecem nos terreiros ajudando a servir os convidados são
geralmente codoenses.
42 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Vol. 2. Rio de janeiro: Jorge Zahar, 1993,
p. 16.
43 Idem. p. 17
44 Idem.
45 A ideia de sociedade de corte surgiu na França absolutista e se difundiu para o
mundo ocidental.
46 ELIAS. O processo civilizador. Vol. 2. Op., cit., p. 18.
47 ELIAS, Norbert. O processo civilizador. Vol. 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993,
p. 59.
48 Idem. P. 53.
49 Idem.
50 Ritmo lento, tocado no do tambor prioritariamente para orixás, voduns e senhores
de toalha.
51 Ritmo ligeiro, tocado no tambor, prioritariamente para cabocos.
52
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Vol. 1. Op., cit., p.
67.
53 No Tambor de Mina existem alguns cabocos que têm adoração a santos católicos.
54 ELIAS, Norbert. Sociedade de corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
55 ELIAS. O processo civilizador. Vol. 2. Op., cit., p. 17.
56 ELIAS. O processo civilizador. Vol. 1. Op., cit., p. 69.
57 Idem. P. 89.
58 HAROUCHE. Op., cit., p. 36.
59 Idem.
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ELIAS. O Processo Civilizador. Vol. 1. Op., cit., p. 77.
Idem. P. 80.
62 Idem. P. 99.
63 ELIAS. Sociedade de corte. Op., cit., p. 111.
64 HAROUCHE. Op., cit., p. 19.
65 Idem. P. 53.
66 Um nobre nunca se senta em pequenos bancos de pouca altura, nem tampouco
permanece com as penas abertas.
67 HAROUCHE. Op., cit., p. 39.
68 LUCA. Tem branco na Guma. Op., cit.
69 As informações sobre o bordado richelieu foram cedidas pelo co-orientador de
tese, Profº Dr. Aldrin Moura de Figueiredo.
70 Essas informações me foram repassadas pelo meu coorientador de minha tese
de doutorado, o historiador Aldrin Moura de Figueiredo.
71 FIGUEIREDO, Aldrin Moura. "A memória modernista do tempo do Rei:
narrativas das guerras napoleônicas e do Grão-Pará nos tempos do Brasil-Reino
(1808-1831)". In: Revista do Arquivo Público da Cidade do Rio de Janeiro. Rio
de Janeiro: Garamond, 2008.
72 ELIAS. Sociedade de corte. Op., cit., p. 67.
73 PRIORE, Mary Del. Festas e utopias no Brasil colonial. São Paulo, Brasiliense,
1994.
74 Idem.
75 Idem. P. 36.
76 Idem. P. 40.
77 Idem. P. 50.
78 TODOROV. Op., cit., p. 32.
79 Idem, p. 41.
80 WARE, Vron. “Introdução: O Poder duradouro da branquidade, um problema
a solucinar.” In: WARE, Vron. Branquidade: Identidade Branca e
Multiculturalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.
81 LEACOCK. Op., cit.
82 MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia. Vol. 2. São Paulo: EPU, 1974.
83 MOTTA-MAUÉS, Maria Angélica. Negro sobre negro: a questão racial no
pensamento das elites negras brasileiras (1930-1988). Rio de Janeiro: IUPRJ, 1997.
(Tese de Doutorado), p. 47.
84 Título de minha Tese de Doutorado defendida em 2010, no Programa de PósGraduação em Ciências Sociais da UFPA.
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Por uma sociedade de corte nos terreiros de Belém