A CRIANÇA E O ECA NA PEQUENA CATINGUEIRA PARAIBANA:
Direitos reivindicados, direitos conquistados?1
Antonio Luiz da Silva (UFPB)
Flávia Ferreira Pires (UFPB/University of Sheffield)
RESUMO:
Neste artigo, a partir de dados etnográficos, procuraremos entender de que formas as
crianças de famílias do semiárido nordestino, situadas na pequena cidade de Catingueira
–PB, compreendem e/ou reivindicam, dos poderes públicos municipais e do Conselho
Tutelar, a aplicação de seus direitos preconizados pelo ECA - Estatuto da Criança e do
Adolescente. Em nossa análise consideraremos o fato histórico dos 22 anos de
existência, divulgação e implementação política do ECA no Brasil; ao mesmo tempo,
nos apoiaremos teoricamente na vertente da antropologia contemporânea que reconhece
as crianças como sujeitos, atores sociais e interlocutores privilegiados de sua produção
acadêmica.
PALAVRAS-CHAVES: Criança, antropologia, ECA.
INTRODUÇÃO:
Uma parte expressiva da antropologia, de modo especial a antropologia que
inclui crianças em sua observação participante, vem percebendo as crianças como uma
possibilidade eficaz para compreender e explicitar melhor o vivido em um campo de
investigação etnográfica. As crianças estão em toda parte e vem conquistando cada vez
mais espaço e voz no cotidiano das famílias e das sociedades humanas. O mundo
inteiro, a cada dia, tem a sua atenção atraída para elas. No Brasil, a Constituição Federal
as tem tomado como prioridade nacional absoluta (PINHEIRO, 2004, FALEIROS,
2011), seguindo, obviamente, os indicativos das convenções internacionais (SENTOSÉ, 2009). Embora nem sempre estejam representadas nas instâncias que tomam as
grandes decisões, de alguma forma, elas interagem “(...) ativamente com os adultos e
com as outras crianças, com o mundo, sendo parte importante na consolidação dos
papéis que assumem e de suas relações” (Cohn, 2005, p. 28).
1
“Trabalho apresentado na 28ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 02 e 05 de
julho de 2012, em São Paulo, SP, Brasil”.
Nesse trabalho estamos interessados em compreender de que forma as crianças
de famílias empobrecidas do semiárido nordestino e paraibano, situadas na pequena
cidade de Catingueira, entendem seus direitos e em que medida elas têm suas
reivindicações atendidas pelas políticas públicas municipais. É claro que as palavras
compreensão e reivindicação não têm aqui os sentidos politizados e racionais
comumente atribuídos pelos atores que têm atuações sociais militantes. Deixamos claro,
desde já, que a compreensão e a reinvindicação dos direitos das crianças em
Catingueira, mesmo reais e efetivas, ainda são expressas na intuitividade infantis e nas
diversas formas de ocupações que as mesmas fazem de muitos espaços da cidade. São
sem dúvida compreensões e reivindicações afetivas, mas também efetivas, no caminho
de uma racionalidade possível, como entendido por Heloysa Dantas (1992), a partir de
uma inspiração em Henri Wallon. Embora Edilma N. Souza (2011, p. 56) afirme que
“As crianças de Catingueira (...) conhecem as problemáticas do seu cotidiano” e nós as
tenhamos visto propondo soluções criativas para muitos problemas que lhes diziam
respeito, do ponto de vista prático, suas reivindicações ainda não são construções
conscientemente pensadas.
Este artigo será feito em vários movimentos. Procuraremos manter um diálogo
com autores que tomam as crianças como interlocutoras de seu trabalho, ao mesmo
tempo em que teremos em mente o fato histórico dos 22 anos de existência, divulgação
e implementação política do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL,
2006) no Brasil. No primeiro momento, justificaremos nossa decisão de estudar direitos
de crianças em Catingueira, afirmando que foram as próprias crianças que exigiram ser
consideradas pelos pesquisadores na cidade. No segundo tempo, de forma breve,
caracterizaremos Catingueira para que o leitor possa ter uma noção mínima do campo a
partir do qual estamos tecendo considerações. No terceiro instante, buscaremos situar os
serviços públicos ofertados às crianças, entendendo desde logo que eles são importantes
no sentido de, por si só, esclarecerem a abordagem municipal em torno da infância. Na
quarta mirada, destacaremos a participação política das crianças, entendendo que esta se
dá pela ocupação dos espaços de visibilidades infantil. No penúltimo tópico
adentraremos na representação social que o município vem construindo sobre o
Conselho Tutelar, entendendo que ele e o CMDCA – Conselho Municipal dos Direitos
da Criança e do Adolescente são os principais encarregados e guardiões da política que
assegura os direitos das crianças. Por derradeiro, procuraremos responder em que
medida os direitos reivindicados pelas crianças podem ser considerados direitos
conquistados.
POR QUE ESTUDAR CRIANÇAS E DIREITOS EM CATINGUEIRA?
No Brasil, do ponto de vista jurídico, as crianças situam-se naquela faixa etária
que vai de zero aos 12 anos de idade, um intervalo bastante complexo, constituído por
uma diversidade de experiência, quase impossível de ser enquadrada num mesmo
rótulo. O documento que trata dos direitos das crianças no Brasil é chamado de ECA –
Estatuto da Criança e do Adolescente (BRASIL, 2006), o que indica que não é uma lei
apenas das crianças, ela inclui também os adolescentes, mas isso parece nunca ter sido
problemático a ponto de exigir uma ruptura etária. A primeira parte desse documento
trata dos direitos: “à Vida e à Saúde (art. 7º ao 14), à Liberdade, ao Respeito e à
Dignidade (art. 15 ao 18), à Convivência Familiar e Comunitária (art. 19 ao 52), à
Educação, à Cultura, ao Esporte e ao Lazer (art. 53 ao 59), à Profissionalização e à
Proteção no Trabalho (art. 60 ao 69)”. Da forma como o texto está disposto é, sem
dúvida, uma poesia belíssima e apaixonante. E, nesse artigo, cada vez que nos
referirmos aos direitos das crianças procuraremos ter sempre esses elementos ao alcance
da imaginação.
Há mais de uma década a cidade de Catingueira, no semiárido paraibano
nordestino, vem sendo tomada como campo primordial de investigação antropológica
(PIRES, 2000; PIRES, 2003; PIRES, 2007, PIRES, 2009; PIRES, 2010a; PIRES,
SANTOS, SILVA, 2011; SILVA JARDIM, 2010a; SANTOS & PIRES, 2011; SOUZA,
SANTOS & PIRES, 2011). Esse campo, aberto inicialmente por uma única pessoa, hoje
vem se estendendo para diversos pesquisadores das ciências sociais da Universidade
Federal da Paraíba e também da Universidade Federal de Pernambuco. Os projetos: "A
Casa Sertaneja e o Programa Bolsa-Família: Analisando Impactos de Políticas Públicas
no Semiárido Nordestino Brasileiro" e "Do ponto de vista das crianças: O acesso, a
implementação e os efeitos do Programa Bolsa Família no Semiárido Nordestino" são
os mais recentes sinais dessa trajetória. Neste ano de 2012 estendemos o olhar para os
direitos das crianças nesta pequena cidade, num diálogo entre o ECA, adultos e crianças
ainda pelo recorte disciplinar da Antropologia. Queremos, com esse esforço ampliar,
noutra direção, o olhar sobre a cidade, seus moradores e suas crianças, na esteira desses
mesmos estudos.
Mas por que estudar os direitos das crianças em Catingueira? Uma resposta
óbvia seria dizer, e isso não há como negar, que as crianças sempre fizeram parte da
história da antropologia, nem que seja apenas nas entrelinhas das grandes monografias.
Embora já estando presentes nas entrelinhas das pesquisas antropológicas produzidas a
partir de Catingueira desde 2000, as crianças tomaram a cena para si em 2007, passando
a objeto principal de investigação e, depois de então, dela nunca mais saíram. Aliás,
como afirma Dias (2011, p. 139) “(...) a descoberta da criança como sujeito ativo na
produção de um mundo social que lhe é próprio deveu-se principalmente a pesquisas
etnográficas que se multiplicavam pelo mundo todo”. Mesmo assumindo desde cedo
uma presença difusa no texto etnográfico, as crianças de Catingueira estavam chamando
as atenções sobre si próprias até assumirem a direção do olhar de vários pesquisadores,
como parece ter sido o caso em Silva Jardim (2010b). Em Catingueira podemos dizer
que as crianças cavaram seu lugar no olhar, no ouvir e no escrever antropológicos
(CARDOSO DE OLIVEIRA, 2000). Além disso, cabe também dizer que o espaço que
as crianças ocupam na pesquisa antropológica contemporânea não é apenas uma
maneira interessante de olhar as produções do vivido humano a partir de um novo
enfoque, é, sobretudo, o reconhecimento de que as crianças são seres sociais e históricos
capazes de contribuir, influenciando, a seu modo e em sua medida, o ambiente que as
circunda (PIRES, 2010b; CORSARO, 2011; NUNES, 2003; CONH, 2005; SOUSA,
2004). E por fim, do ponto de vista prático, em Catingueira, as crianças estão em todos
os recantos da cidade, ocupando praticamente todas as posições geográficas e
econômicas da cidade, na serra, no alto, no centro, na parte baixa, no campo de futebol,
na piscina, na praça, nas calcadas, nas ruas; é impossível não vê-las, e o que é o mais
importante, não há como não ser tomado por sua presença. Em Catingueira, como diz
Jessica Silva (2011, p.51) as “(...) crianças possuem liberdade em transitar pelas ruas da
cidade, seja para brincar na casa de outra criança, entregar um recado (...), comprar
algum produto, (...) pagar uma conta; receber o dinheiro do PBF etc”. É impossível não
ser tomado por sua presença.
CARACTERIZAÇÃO DE CATINGUEIRA: A PARTIR DE ONDE ESTAMOS
FALANDO?
Depois de termos dito algumas razões e motivações que nos conduziram ao tema
dos direitos das crianças, esperamos oferecer uma caracterização mínima do campo que
vimos pesquisando.
Catingueira é uma cidade bem pequena que vive, como dizem alguns de seus
habitantes: “por detrás do mundo” ou “no fim do mundo”. Na verdade, não é bem por
detrás do mundo, mas enfincada ao pé de uma grande pedra, também chamada de Serra
da Catingueira, um gigantesco acidente geográfico, muito importante atrativo turístico
do município, onde se tem, ultimamente, encontrado pinturas e inscrições rupestres,
além dos dois cruzeiros, símbolos da fé no município e, do banho de "cachoeira", muito
valorizado pelos visitantes e pelos moradores da região.
De acordo com o Plano Municipal de Cultura da cidade (SECULT, 2012), o
município encontra-se no Território do Médio Sertão do Estado da Paraíba, localizado
no Vale do Piancó, a 308 km da capital João Pessoa. Uma observação importante é o
fato de ser o município atravessado pela BR-361, o que permite trânsito constante dos
viajantes que vem de Patos, importante centro comercial paraibano, para Olho D’Água,
Piancó, Itaporanga, Emas, Aguiar, Conceição, Santa Terezinha etc. Seus moradores
dizem que Catingueira “fica na linha direta”, por isso, não está imune a problemas
sociais contemporâneos, tais como a droga e a exploração sexual infanto-juvenil.
Problemas que, somados a tantos outros, acabaram justificando, inclusive, que o MDS –
Ministério do Desenvolvimento Social tenha lhe beneficiado com um Programa
Sentinela, hoje transformado em CREAS – Centro de Referência da Assistência Social.
“Atualmente, segundo dados do IBGE 2010, conta com uma população de 4.812
habitantes, distribuídos em uma área territorial de aproximadamente 529,46 km²”
(SOUZA, SANTOS & PIRES, 2011, p, 23). A população urbana é de 2.884 e a rural é
de 1.928, distribuída em cerca de vinte comunidades e um distrito, de acordo com o
censo IBGE – 2010. Conforme a SECULT (2012), quase um terço de sua população
ainda está na zona rural.
Em Catingueira as pessoas vivem como podem, retirando seu sustento e o de
suas famílias a partir da “(...) agricultura e de alguns empregos gerados pelo comércio
local e pela prefeitura, (...) das aposentadorias e do benefício do Programa Bolsa
Família” (SANTOS & PIRES, 2011, p.2). Sobre a agricultura, as informações são
contraditórias, há quem diga que ninguém quer mais trabalhar na roça, depois das
políticas de transferências de renda do governo federal e há também quem avalie que
boa parte da população urbana tem algum vínculo rural. Há na região, no que diz
respeito à “política agrária”, assentamentos rurais e um acampamento do MST –
Movimento dos Sem-Terra – há quase sete anos, o que é, de alguma forma, um
indicativo do vínculo que esta população ainda mantém com a terra.
Em muitas das conversas que tivemos pela cidade, muitas pessoas nos disseram
que gostavam de trabalhar na roça. O que não gostavam era de trabalhar na terra dos
outros, o arranjo conhecido como trabalho "alugado". De qualquer forma, “(...) com o
passar das gerações há um aparente desinteresse pelo trabalho agrícola, havendo a
preferência pelo trabalho no comércio ou na prefeitura” (PIRES, SANTOS E SILVA,
2011, p. 110). Talvez se fossem os donos da terra tivessem outro posicionamento.
Há uma outra observação da população de que mais da metade dos
catingueirenses encontra-se fora da cidade, constituindo aquilo que se convencionou
chamar de "filhos ausentes" (PIRES, 2003). Ainda hoje se diz em Catingueira que quem
estuda não tem lugar nem nada pra fazer. No entanto, quem não quer nada com estudo
também não tem. Parece que Catingueira está, politicamente, condenada a produzir
filhos para viver em trânsito.
Há quem diga que a população de Catingueira é mestiça e que há sinais, embora
não certificados por instituição de competência de pelo menos uma comunidade
quilombola no Sítio Curtume (SECULT, 2012). As pessoas também apontam Inácio da
Catingueira, o poeta/repentista/cantador negro e escravo como símbolo importante da
cidade, mas há um claro predomínio da população considerada branca na região urbana.
A Catingueira contemporânea, embora vários de seus habitantes digam que não
tem tido uma boa sorte administrativa, e seu atual prefeito viva se esbarrando com a
justiça federal, tendo sido preso duas vezes durante seu último mandato, a cidade
apresenta-se bastante agradável ao olhar de um observador não vinculado a ela. Suas
habitações, mesmo as mais pobres, encontram-se bem cuidadas, bonitas de se ver, com
fachadas simples, mas bem arrumadas. Tem havido na cidade uma política de
substituição das casas de taipa por casas de tijolos, por conta de campanhas pela
erradicação do barbeiro, mosquito transmissor da doença de Chagas. Vista do alto do
segundo cruzeiro que se encontra na Serra da Catingueira, a cidade é bastante aprazível
e organizada.
OS SERVIÇOS PÚBLICOS OFERTADOS ÀS CRIANÇAS.
Está claro que as políticas públicas municipais, em Catingueira e mesmo no
Brasil, ainda não cobrem todas as necessidades das crianças de sua população. Na
verdade, comumente nem são as crianças que influenciam racionalmente os trabalhos de
uma gestão. Em outras palavras, elas não são consultadas e também não são tomadas
como prioridade absoluta dos governos, embora seja assim que ordena o ECA e a
Constituição Federal. Por isso, os serviços públicos apenas tocam tangencialmente as
crianças e isso diz muito sobre a direção e a consideração que elas recebem dos poderes
municipais. Nesse sentido, estamos de acordo com Qvortrup (2010, p.783) quando diz
que: “(...) muito do que influencia as crianças no seu dia a dia é, na verdade, instigado,
inventado, ou simplesmente ocorre sem que houvesse a menor preocupação com as
crianças ou a infância”, porque isso é realidade em Catingueira.
Ao trazermos à cena as políticas públicas, estamos partindo do pressuposto de
que toda política pública é a resposta de um governo a um demanda da população. É
uma ação feita de opções ideológicas. Embora seja uma ação de governo, ela é também
a destinação de um orçamento público. Política pública não é favor e nem é bondade do
gestor municipal, como muitas vezes pensa a população assistida. É o investimento, a
aplicação, a devolução de parte dos impostos recolhidos em favor de uma camada,
geralmente a mais desprotegida, da população. Uma política pública é sempre
desenvolvida no conflito de diversas ideologias, ou como notou Sposati: “(...) é um
campo de forças entre concepções, interesses, perspectivas e tradições” (2009, p. 15).
Para obter aprovação, ela tem de passar pelo crivo ideológico do legislativo, até ser
sancionada pelo poder executivo. Os serviços públicos destinados às crianças
catingueirenses são todos derivados das políticas públicas.
Este ano, 2012, no que tange à Educação, na zona urbana, a cidade conta com
duas grandes escolas, sendo uma do Estado da Paraíba e outra do Município de
Catingueira. O Estado dispõe de cursos do 1º ao 5º anos do Ensino Fundamental e do 1º
ao 3º anos do Ensino Médio. O Ensino Fundamental só será ofertado pelo Estado até
2015, a partir de então o município se responsabilizará. O poder municipal já oferece
todo o Ensino Fundamental, não dispondo de creches ou outra forma de educação
infantil na modalidade pública. Há também escolas rurais, mas constata-se a crescente
redução do número de seus alunos, por isso, algumas escolas, já foram fechadas. Se diz
na cidade que, para o município é mais barato trazer os alunos para a cidade, em dois
ônibus escolares, do que manter a escola com um funcionamento reduzido. Conforme
ficamos sabendo, os professores rurais estão sendo aproveitados na cidade e se diz que
alguns pais de alunos dos sítios preferem que seus filhos estudem na cidade. O
município não dispõe ainda do BPC – Benefício de Progressão Continuada – na Escola,
que é aquele auxílio financeiro oferecido às crianças com deficiências. Uma diretora do
município nos informou que a escola está equipada para receber pessoas com
deficiências, mas ninguém se matriculou. A Escola do Estado conta com alunos com
algumas deficiências, mas não foram contemplados com o referido benefício, somente
com o Programa Bolsa Família.
Dentro das políticas tradicionais do município, a educação é, talvez aquela que
figura como “direito” na compreensão da maioria das crianças, mas este é um direito
contestado, porque transformado em condicionalidade pelo Programa Bolsa Família
(PIRES no prelo). Ou como diz a partir de Catingueira Jessica Silva (2011, p.25): “(...)
direito não deve ser tratado como uma moeda de troca”.
Em Catingueira, certa vez, um idoso observava, no final da tarde, o transporte
escolar que conduzia os universitários à Patos, cidade vizinha que fica a uma distância
inferior a 40km: “Hoje está muito bom. Só não estuda quem não quer. O governo dá o
carro, dá a escola e até paga para os estudantes ficarem na escola. Quando eu era criança
nem escola existia. Tinha a casa da professora, mas somente quem podia pagar é que ia
estudar. Hoje está muito diferente”. Será que a reflexão acima esta confirmando, de
algum modo, a positividade dos impactos desses 22 anos de semeadura do ECA em prol
das crianças (SILVA, PEREIRA & BRAGA, 2011)?
O município é também acobertado pelo SUS (Sistema Único de Saúde). Dispõe
de três postos de saúde na zona urbana, um deles desativado, por falta de equipamentos,
segundo os moradores. Há uma maternidade, que fora erguida numa antiga gestão
municipal, mas encontra-se há vários anos com funcionamento suspenso. Pensando nas
políticas de saúde da cidade, o Sr. Galvão disse: “Aqui tudo que começa não vai pra
frente, é que nem flor, só tem princípio. Para mim era bem melhor equipar um só posto
e poder trabalhar bem do que multiplicá-los sem que eles possam funcionar”. No prédio
da antiga maternidade, hoje funciona uma das Equipes do PSF – Programa de Saúde da
Família, e uma unidade do SAMU, atendendo 24h por dia. O SAMU foi instalado em
setembro de 2011, e tem prestado 60 atendimentos mensais, em média, à população. O
município dispõe ainda de ambulâncias e carros à disposição da secretaria de saúde, os
quais transportam as pessoas que carecem de atendimentos tanto para Patos – PB,
Campina Grande, quanto para a Capital do Estado, João Pessoa. Existem ainda três
Postos de Saúde na zona rural, provavelmente com funcionamento precário,
obviamente, por cobrir 20 sítios e um distrito. Há também o trabalho dos Agentes
Comunitários de Saúde, fazendo visitas periódicas às famílias. Não existem
especialistas em saúde infantil e todas as parturientes são levadas à cidade de Patos.
A saúde não chega a ser considerada uma necessidade no universo infantil. Certa
vez perguntamos a uma criança se ela ia ao posto de saúde, esta nos respondeu que não,
que nunca ficava doente, mas que sua avó ia lá direto. Os adultos não estão totalmente
satisfeitos com o serviço de saúde, queixam-se, como de resto no Brasil inteiro, que não
tem médico todos os dias, por exemplo. Embora tenha serviço de pesagem de crianças,
não há na cidade especialista algum em saúde infantil, além do fato de que há anos a
maternidade encontra-se fechada.
A Secretaria de Ação Social, mesmo não tendo recursos próprios e vivendo de
programas federais, dispõe de PBF – Programa Bolsa Família, CRAS – Centro de
Referência da Assistência Social, CREAS – Centro de Referência Especializado da
Assistência Social, Tele-Centro (também conhecido como centro de inclusão digital),
PETI – Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. Embora durante seu tempo de
funcionamento tenha sido um dos serviços mais bem aproveitados, ouvimos das
crianças que o Tele-Centro estava parado havia um bom tempo. Ficamos ainda sabendo
que o PETI estava procedendo a uma nova seleção, tendo seu quadro profissional, no
período, também reduzido no que diz respeito ao número de suas educadoras sociais.
Abrimos aqui um parênteses para dizer que a presença do CREAS e do PETI significa
que os observadores nacionais reconhecem que há violação de direitos das crianças na
localidade. Esses dois grandes programas, situados na proteção social especial
(BRASIL, 2004), visam justamente reestabelecer os vínculos sociais rompidos pela
violência doméstica, sexual ou pelo trabalho infantil. Há 10 anos existia um Programa
Sentinela (especializado no atendimento de crianças que sofreram abuso sexual) hoje
transformado em CREAS, que reforçam esses indicadores de violação dos direitos das
crianças. Mas o município, e isso é extensivo a boa parte da região, ao menos no que diz
respeito ao trabalho infantil tem uma compreensão diferente daquela preconizada na lei
e nas cartilhas das políticas públicas para crianças. Vimos crianças vendendo picolé ou
cocada pela rua. Vimos que as crianças são levadas por seus responsáveis para o roçado
ou se ocupam no corte de capim para os animais. No entanto, em Catingueira, para as
autoridades, isso só será considerado trabalho infantil se estiver sendo executado no
horário escolar. Para a cidade e também para a região o trabalho infantil é um
importante educador moral (PIRES, 2007; SOUSA, 2004). Aqui pensamos que é
importante estabelecer uma consideração adicional: o trabalho infantil é fonte de
educação moral ou de complementação de renda familiar? Se ele é fonte de educação
moral, como ficam as crianças que estão fora dele, por seus pais disporem de melhores
condições econômicas, não se educarão para a moralidade? Autores que têm estudado a
questão, sob a perspectiva da história, tem mostrado que são justamente as famílias mais
pobres que “(...) se veem, muitas vezes, na contingência de encaminhar os filhos para o
trabalho precoce para um reforço ou até garantia de renda familiar” (FALEIROS, 2011,
p. 84). De qualquer forma, nos pareceu que o trabalho infantil, em Catingueira, só serve
de fonte de educação moral para as crianças empobrecidas; para as crianças situadas em
melhores condições econômicas os caminhos, tradicionalmente, na cidade tem sido bem
outros.
À secretaria de Ação Social também, em certo sentido, estão ligados o Conselho
Tutelar e o CMDCA – Conselho Municipal da Criança e do Adolescente. O Conselho
Tutelar, no período em que realizamos nossa pesquisa estava há um mês sem funcionar,
porque o mandato dos ex-conselheiros havia expirado e o CMDCA estava organizando
eleições para novos conselheiros. Ouvimos de seus antigos conselheiros que um
promotor determinou que os problemas envolvendo crianças seriam resolvidos pela
polícia local, enquanto se esperava a posse dos novos conselheiros. O presidente do
CMDCA disse-nos que o referido conselho tem dificuldades extremas para funcionar,
uma vez que é todo ele feito a partir do voluntariado. Se o conselho que deveria
determinar a destinação e o financiamento das políticas públicas não consegue
funcionar satisfatoriamente, que políticas esperar para a garantia dos direitos das
crianças?
No que diz respeito à Secretaria de Cultura, a primeira a confeccionar um plano
municipal de cultura em todo Estado da Paraíba (SECULT, 2012), elaborado a partir de
uma conferência, com importantes lideranças municipais, não contempla, ao menos de
forma explícita, serviços para as crianças em seu texto final. O titular da pasta está
oferecendo, por conta própria, aulas de violão para as crianças da cidade e espera poder
contemplá-las com alguns dos projetos que estão em fase de captação de recursos.
Catingueira é a terra do esporte único: o futebol. Mesmo que outras
manifestações sejam praticadas esporadicamente, todos os que jogam ou torcem
preferem, claramente, o futebol. Aliás, se diz que Catingueira é “100% futebol”.
Durante o dia, as crianças vão ao campo, à quadra destelhada ou jogam bola nas bordas
das ruas, nas praças, nas calçadas ou em qualquer espaço disponível. Para se ter uma
ideia, recentemente foram proibidas de jogar dentro da Secretaria de Ação Social,
porque haviam quebrado várias lâmpadas do espaço. À noite, às quartas-feiras, crianças
do sexo masculino e homens se aglomeram na frente da televisão, no principal bar e
lanchonete da cidade, para assistir aos jogos de diferentes rodadas brasileiras.
Estranhamente, a Secretaria de Esportes não tem políticas esportivas para crianças. O
trabalho da pasta se resume ao trato do campo de futebol, por sinal muito bem cuidado,
e à escala dos times adultos que se revezam, ocupando o campo em dias prédeterminados. Em Catingueira, como em quase todas as partes do Brasil, as crianças
todos os dias estão correndo atrás de bola. Embora estejam todos os dias, como se
estivesse batendo ponto numa obrigação laboral, ocupando pequenos espaços nas
beiradas do gramado, enquanto os adultos disputam ou treinam em dias determinados, o
principal campo de futebol do município não tem nenhum horário reservado às crianças.
Na cidade, existe uma única escolinha de futebol, que ocupa o campo do
município, duas manhãs por semana. Mas esta é paga, logo nela a maioria da população
infantil empobrecida do município não entra, por não ter como arcar com o valor da
mensalidade de R$15,00.
ESPAÇOS DE VISIBILIDADES E LUGARES DE OCUPAÇÃO POLÍTICA
INFANTIL.
Pensando as crianças em situação de rua, no Recife, Liana Lewis (2004, p. 233),
afirma: “A forma como a sociedade em geral exerce controle sobre as crianças explicita
como lida com o poder, pois a criança não apenas não é um ser natural e neutro, como
também é um ser político”. A atuação política das crianças em Catingueira, observamos
no início deste trabalho, não é uma é uma atuação militante, no sentido racional da
expressão, comumente entendida pelos diversos atores sociais. É uma atuação intuitiva,
afetiva, no caminho de uma racionalidade possível. Essa atuação política, em nosso
modo de entender, certamente se dá pela ocupação e pelo uso dos espaços e dos
equipamentos públicos de sua comunidade.
Do ponto de vista do lazer, do lúdico e do brincar infantil, que é, talvez, em
Catingueira, a melhor forma de expressão da atuação política efetiva e da ocupação dos
espaços na cidade, as crianças se viram como podem. Tivemos diversas vezes a
sensação de que a atuação politica das crianças, sem Catingueira, acontece por sua
ocupação espacial. Como observado por Liana Lewis (2004) em crianças em situação
de rua, embora em situação bem diferente, as crianças, a partir das quais tecemos nossos
comentários, demonstram seu poder, ocupando a cidade, estando em todos os espaços.
Comumente elas podem ser vistas correndo atrás duma bola, isso em todo e qualquer
lugar, ou montadas em bicicletas pela rua, ou brincando de esconde-esconde em cima
das pedras da Fonte do Olho D’água ou pulando o calçadão da igreja. Sua ocupação
territorial nem sempre ocorre pacificamente. Muitas vezes elas são proibidas, pelos
adultos, de ocuparem alguns lugares, como ocorreu quando brincavam na Fonte do
Olho D’Àgua ou quando jogavam bola no espaço da Secretaria de Assistência Social.
Em alguns ambientes, no entanto, as crianças parecem ganhar mais visibilidade
política, por conta de sua ocupação espaço-territorial. O primeiro desses ambientes que
aqui destacamos é a piscina, uma importante construção da prefeitura e que é aberta aos
domingos à população. Lógico que esse não é um espaço apenas delas, e nem foi
pensado somente para elas, mas para todos da cidade. É para lá que vão homens e
mulheres, rapazes e moças, também para beber, comer, paquerar, nadar, etc. É um
espaço caracteristicamente híbrido (CANCLINI, 1997), como toda sociedade humana.
Dentro do espaço da piscina há também um bar que vende bebida alcoólica. Aliás, a
cidade tem mais de 20 bares, sem contar os outros espaços que vendem bebida
alcoólica, como as pequenas mercearias, supermercado, mercadinhos e bodegas,
inclusive às crianças e aos adolescentes. Complementando nossa observação, durante
seu período de pesquisa em Catingueira, Silva Jardim (2010) disse ter presenciado
garotos menores de 12 anos de idade, portanto, crianças bebendo. Uma antiga
conselheira municipal nos informou que o promotor de justiça já havia convocado todos
os donos de bares e botecos, numa advertência geral e coletiva, para chamá-los a um
acordo quanto à venda de bebidas às crianças e aos adolescentes. Mas ela própria
desconfia que a referida advertência não havia surtido efeito algum. Certa vez, um
senhor que conosco conversava, enquanto passava uma criança, apontou: “Aquele
menino bebe mais do que um homem”.
Outro lugar importante de visualização das crianças é a praça da Igreja de São
Sebastião. Nela brincam crianças, sentam-se em conversas, jogam na banca de jogo de
azar, também conhecida como a banca do enfinca.
Um terceiro espaço de atuação política pela ocupação infantil, mesmo que em
menor proporção, é a religião. Em todas as igrejas as crianças estão presentes. Aqui
queremos destacar o terço dos homens, recitado a casa sexta-feira, na igreja Católica, no
qual as crianças são convidadas a rezar o quinto mistério. Esse convite parece ser uma
deferência especial, confirmando aquilo que Pires (2007) observou, no sentido de que,
ser um catingueirense é também ser um religioso.
Por derradeiro, um espaço de especial visibilidade infantil em Catingueira é o
campo de futebol. Esse espaço é marcadamente masculino. Nele os homens e os adultos
em geral estão sempre no centro, sobrando às crianças algumas migalhas, como a
condição marginal de se aproveitarem das beiradas do campo, enquanto os adultos
jogam ou treinam.
Pareceu-nos, a partir de nossa observação, que os dois equipamentos públicos
que mais congregam a atuação política das crianças, os quais não foram pensados
certamente apenas para elas, são a piscina pública e o campo de futebol. A piscina,
estranhamente, está sob a responsabilidade da Secretaria de Obras. O campo de futebol
encontra-se sob a responsabilidade da Secretaria de Esportes. Ao nosso ver, a piscina é,
inclusive, um dos melhores exercícios de democracia e inclusão em Catingueira, ela não
coloca apenas os adultos no centro. Em certo sentido, parece-nos que a piscina é muito
mais sensível às crianças do que o campo de futebol. Na piscina misturam-se adultos,
jovens e crianças, homens, rapazes, mulheres, moças, meninos e meninas. No campo de
futebol ocorre claramente uma divisão de gênero, sendo frequentado exclusivamente
por pessoas do sexo masculino. Mas o campo de futebol também tem uma peculiaridade
importante: mesmo que apenas nas beiradas, ele reúne crianças das várias divisões
geográficas da cidade, não importando se elas residem na parte baixa, no centro ou no
alto. Além disso, o campo não faz classificações e distinções sociais e econômicas na
cidade.
A
REPRESENTAÇÃO
SOCIAL
DO
CONSELHO
TUTELAR
EM
CATINGUEIRA.
É preciso compreender que as crianças contemporâneas não podem ser
igualadas, social e culturalmente, às crianças que nasceram antes de 1990, ou seja antes
do ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. Como temos observado (SILVA &
PIRES, 2011), por conta das ideias do ECA, a convivência cotidiana de crianças e
adultos tem recebido novos elementos, os quais tem contribuído para a formação de
uma nova cultura relacional. Mesmo submetida à tutela de uma sociedade
adultocentrada, vale lembrar que, na socialização das crianças, os adultos não são os
únicos a participar. Numa situação de vivências comuns as ideias incidem sobre as
pessoas e as pessoas reagem sobre elas. Como diz Sá (2004, p.28): “(...) os indivíduos
não são apenas processadores de informações, nem meros “portadores” de ideologias ou
crenças coletivas, mas pensadores ativos”.
Nesse processo de averiguar de perto a relação das crianças com seus direitos,
nessa parte do texto, destacaremos elementos do imaginário local sobre o Conselho
Tutelar. Partimos do pressuposto de que o Conselho Tutelar é um importante órgão de
garantias dos direitos das crianças no município (RIZZINI & PILOTTI, 2011). Aliás,
como reza o artigo 131 do ECA (BRASIL, 2006): “O Conselho Tutelar é órgão
permanente e autônomo, não-jusrisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo
cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta lei”.
As falas abaixo foram todas coletadas em conversas informais e em entrevistas
com adultos e crianças da cidade de Catingueira. Embora o espaço não nos permita um
maior aprofundamento, acreditamos que as ideias abaixo nos indicam a representação
que as pessoas da cidade têm sobre o Conselho; embora compartilhada por um universo
coletivo, social no sentido pleno da palavra, é importante acrescentar que elas nem
sempre são reproduzidas pacificamente.
“O Conselho Tutelar é um esforço perdido”. “O Conselho Tutelar trabalha
apenas com as mãos e mais nada”. “O Conselho Tutelar não tem nenhum poder”. “O
Conselho Tutelar não tem nenhum apoio no munícipio, não tem a menor estrutura”. “O
conselho não faz absolutamente nada”. “O Conselho trabalha com o sigilo, por isso o
povo acha que ele não faz nada”. "As crianças não tem medo do conselho”. “O filho
chega em casa de manhã, o pai vai reclamar, ele corre e vai dá parte do pai no
Conselho”. “Esses meninos ai bebem mais do que os adultos e o Conselho não faz
nada”. “Tem conselheiro semi-analfabeto”. “O Conselho existe, mas é só 'proforma',
como quase tudo aqui na cidade”. “Nessa molecada de hoje ninguém dá jeito, nem o
juiz, nem a igreja, nem o Conselho”. “Às vezes o Conselho Tutelar é visto como
inimigo pelas próprias crianças”. “O Conselho trabalha com famílias desestruturadas”.
“As pessoas acham que o Conselho deve fazer o papel que cabe ao pai”. “Tem
conselheiro despreparado, que não sabe lidar com criança”. “O Conselho é chamado pra
tudo, até pra resolver roubo de galinha”. “O Conselho não tem estrutura para trabalhar”.
“Tem conselheiro que não tem regra nem pros próprios filhos, como pode ser
conselheiro?”. “O problema do Conselho são as famílias desajustadas que não
conseguem cuidar de seus filhos”. “Muitos pais chegam ao Conselho, trazendo seu filho
e dizem aos conselheiros: 'resolvam, vocês não dizem que a gente não pode bater?'”.
“Quando os meninos estão se danando, a professora faz medo, dizendo que vai chamar
o Conselho”. “Alguns pais dizem aos filhos que o Conselho Tutelar tem uma cadeia pra
menino danado”. “O Conselho não tem poder de polícia, mas algum conselheiro
gostaria de ter”. “A polícia já chegou levando “trombadinha” para a porta de
conselheiro”. “Tem pessoa que só entra no Conselho pelo salário”. “Eu não voto em
nenhum desses porras, não fazem nada”. “Direito das crianças, não sei o que isso não,
nunca ouvi falar”. “O Cara não faz nada e esse Conselho bota o nome da gente lá no
caderno deles”.
Se formos julgar pelo que acabamos de ler acima, todas as frases ditas pela força
expressiva de adultos e crianças da comunidade pesquisada, diremos que a
representação que se tem do Conselho Tutelar não é muito boa; ela é, no mínimo,
confusa e contraditória. Não está claro para a comunidade, de um modo geral, qual é o
papel do Conselho Tutelar, mas também não está claro nem para alguns dos próprios
conselheiros. O que as famílias demandam ao Conselho, muitas vezes, foge às suas
atribuições.
As crianças fazem parte da comunidade dos adultos e vice-versa. Aquilo que um
diz o outro compartilha. No entanto, temos verificado que nem toda representação
compartilhada é reproduzida pacificamente. Nesse sentido Duveen (2000, p. 261-262)
está correto quando indica que é preciso "(...) examinarmos os processos através dos
quais a criança incorpora as estruturas do pensamento de sua comunidade”. O Conselho
Tutelar é um exemplo claro. Para as crianças, às vezes, ele pode representar um inimigo.
Mas às vezes pode ser um aliado, servindo para que as crianças ameacem seus pais. Da
mesma forma para o adulto, para quem o Conselho Tutelar pode ser uma instituição
inoperante, que não vale de nada, pode ser, a qualquer momento, a instituição a qual
uma mãe vai recorrer para que seu ex-marido pague a pensão alimentícia a que seus
filhos têm direito.
Em Catingueira, como em todo o Brasil, nem sempre as ideias do ECA são
compreendidas por adultos e por crianças da mesma forma. Catingueira tem nos
ensinado que compartilhar informações coletivas, não significa reproduzi-las
socialmente de forma pacífica. Aliás, em muitos casos, da forma como as ideias em
torno do ECA são veiculadas, acabam mesmo criando uma oposição entre adultos e
crianças (SILVA & PIRES, 2011); para nosso entendimento, o Conselho Tutelar é um
exemplo clássico, em alguns momentos, “visto como inimigo das crianças pelas
próprias crianças”.
Se atentarmos bem para as expressões acima aludidas vamos perceber que em
Catingueira existe um confronto claro entre, pelo menos, três gerações: avós, pais e
crianças no que diz respeito ao ECA. É importante lembrar que, da maneira como é
introduzido no convívio de diferentes gerações, o ECA acaba promovendo uma cisão
entre os que não conheceram direitos e os que estão, ao menos pela lei, protegidos.
Além disso, como em muitos lugares do país, no semiárido, o ECA não é lido, é ouvido
das formas mais controversas possíveis, como se fosse um pequeno escrito fantasma,
cuja função é garantir direitos às crianças (SILVA, 2011).
RESPONDENDO À QUESTÃO: DIREITOS REIVINDICADOS, DIREITOS
CONQUISTADOS?
No momento de fechamento desta reflexão, julgamos importante amarrar alguns
elementos que nos sugerem o percurso de nossa observação. A maneira como uma
comunidade humana dispõe recursos para as suas crianças é um indicativo importante
de como ela as considera. Ao mostrarmos as políticas públicas oferecidas às crianças de
Catingueira estamos crendo que há nelas um indicativo de como a cidade compreende
os direitos infantis. Pelo que temos observado, não parece haver nelas uma influência
direta do ECA. Em Catingueira, as políticas públicas infantis são todas determinadas
pela instância federal. No âmbito municipal, as crianças não são sequer contadas, vistas
e ouvidas como sujeitos políticos de direitos, embora esta não seja situação exclusiva da
cidade em questão. Além disso, o CMDCA e o Conselho Tutelar parecem não entender
muito claramente o papel que a eles compete. Aliás, a própria comunidade não dá
demonstrativos de que entende o papel dos referidos conselhos. Embora contempladas
pelas políticas públicas, estas respingam sobre as crianças como migalhas.
Há uma visão bastante difusa na cidade de que os problemas que o Conselho
enfrenta vêm justamente das famílias desestruturadas. E aqui nos lembramos de Claudia
Fonseca (2005, p.56) quando diz “(...) que “desestruturada” é uma palavra usada para
descrever a família dos outros. Não simplesmente outros ... ainda por cima, pobres”.
Além disso, como reflete Cardarello (1998, p. 311): “A expressão "família
desestruturada" reflete a busca da sociedade em encaixar a realidade numa lógica
uniforme, orientada pelos padrões familiares de classe média”. Em Catingueira, como
em qualquer parte do Brasil, não é mais possível pensar num modelo único de família,
mas numa polifonia híbrida deles.
Catingueira ainda tem flagrantes claros de desrespeito aos direitos das crianças.
Estas podem ser vistas, em vários horários, em ocupações trabalhísticas, o que não é
considerado assunto grave ou preocupantes pelas autoridades municipais, a não ser
quando executadas em horário escolar. Certa vez uma criança nos contou que um
homem, que “pega muita mulher” na cidade, vive pedindo-lhe: “ajeita tua mãe pra
mim”. Outra pessoa nos disse que um homem influente na cidade “deu um murro na
boca de um “trombadinha” que estava perturbando em seu estabelecimento comercial”.
Trombadinha é sempre a forma das pessoas se referirem às crianças que fazem
pequenos atos delinquenciais, geralmente crianças empobrecidas. De qualquer forma, a
presença do antigo Programa Sentinela, hoje transformado em CREAS e do PETI, ao
menos para os avaliadores nacionais, são indicativos de que direitos infantis são
violados no município.
É importante dizer que as crianças catingueirenses, por sua presença e pela
ocupação de vários espaços sociais estão, de diversas formas, afetiva e intuitivamente,
efetivando sua participando política na vida da cidade. A ocupação dos espaços como
forma de participação, em certo sentido, desagua na reivindicação da garantia de seus
direitos no município. Não saberíamos dizer se as reivindicações serão atendidas em sua
integralidade. Contudo, percebemos que, sem que esta esteja atenta ao fato, de alguma
forma, a política pública respinga nas crianças, apontando sinais positivos, que indicam
que os direitos das crianças do semiárido estão, ao menos, minimamente garantidos.
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Antonio Luiz da Silva (UFPB)