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REPRODUZIR UMA TÉCNICA OU APERTAR UM BOTÃO?
Fabiane Guimarães
fabiane_guimarã[email protected]
Mestranda do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação Matemática
PUC - SP
Bolsista - Secretaria da Educação do Estado de São Paulo
INTRODUÇÃO
Este trabalho surgiu de reflexões durante um estudo sobre a história do zero, em
específico sobre a importância do zero na constituição e consolidação do sistema de
numeração decimal de origem indiana utilizado até os dias de hoje.
O zero junto com os demais algarismos (1 a 9) formaram um sistema eficiente
que permitiu o desenvolvimento de técnicas para a solução de operações como a
adição, subtração, multiplicação e divisão na forma escrita sem ser necessário o uso do
ábaco.
Por um estudo histórico percebemos o quanto estas novas técnicas e algarismos
contribuíram para o desenvolvimento da sociedade. O que era muito difícil e trabalhoso
de ser realizado com ábacos foi possível e facilmente realizado com a ajuda dos
algarismos. Esta nova tecnologia permitiu a democratização da arte de calcular, assim
qualquer homem comum poderia fazer as operações que necessitava.
Apesar da eficiência do novo sistema a aceitação não foi imediata e este sistema
foi rejeitado e por muitas vezes proibido. Os cálculos usando algarismos mostraram sua
eficiência e com o tempo essas idéias foram sendo amplamente aceitas e divulgadas.
Pensando nos dias de hoje, temos uma nova ferramenta, a calculadora, ela
permite resolver todas as operações que quisermos, e muito mais facilmente que os
ábacos e que as técnicas usando algarismos. Para cálculos com ábacos era necessário
o conhecimento dos procedimentos com as “pedras” e sem contar no peso das tábuas.
Para os algoritmos1 é necessário lidar com muitas regras. Já para cálculos na
calculadora simplesmente precisamos apertar botões.
Ábacos, algoritmos e calculadora tem a mesma função: dar o resultado de
operações. Qual é a tecnologia mais eficiente?
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Algoritmo foi o nome dado as técnicas operatórias desenvolvida com os algarismos, nome que vem do divulgador
árabe dessas idéias Al - Khowarizmi.
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Muito se discute quanto ao uso da calculadora na escola, muitos abominam,
outros acham que o uso deve ser de vez em quando e que a importância deve ser dada
aos algoritmos.
Numa certa época se clamou pelos algoritmos no lugar de ábacos. Não seria o
momento de clamarmos pelas calculadoras no lugar dos algoritmos?
UM POUCO DE HISTÓRIA
No período da extensão do império mulçumano ao longo do caminho para a
China, conquistaram a Índia. Os mulçumanos absorviam os conhecimentos dos povos
que conquistavam e os sábios traduziam os textos para o árabe. E assim os árabes
tiveram contato com os algarismos indianos.
O árabe Al – Khowarizmi um dos primeiros estudantes da Casa da Sabedoria2
escreveu um livro em 825 d.C sobre o sistema de numeração indiano e suas técnicas
para operar com estes números, que foram denominadas como algoritmos, uma
corrupção de seu nome.
Nos combates entre cristãos e mulçumanos, durante o reinado de Carlos Magno,
século IX, e nas cruzadas séculos XI, XII e XII era inevitável o intercâmbio de
conhecimentos e os cristãos voltavam enriquecidos com o contato com as novas
culturas. Este contato fez com que muitos aprendessem os cálculos ao modo de ALKhowarizmi, surgiriam conforme Ifrah, os primeiros algoristas europeus.
A partir do século XI iniciou-se também um período de tradução de obras,
árabes, gregas ou hindus na Espanha. O contato entre os dois mundos Oriente e
Ocidente se tornou cada vez mais freqüente.
De volta ao lar, os cruzados divulgaram os novos cálculos muito mais fáceis e
práticos do que os cálculos com ábacos e muitos aderiram à nova forma de calcular.
No século XIII o italiano Leonardo de Pisa, conhecido como Fibonacci, teve
contato com os árabes que lhe ensinaram o seu sistema numérico, regras do cálculo
algébrico e princípios fundamentais de geometria. Fibonacci, em 1202, escreveu um
tratado que apresentava os algarismos e explicava todas as regras de cálculo
denominado Líber abaci (Tratado do ábaco). Logo mercadores e banqueiros
começaram a aderir o novo sistema.
Era o inicio da democratização do cálculo na Europa. Mas ainda, segundo Ifrah:
“A resistência ainda era muito forte, e os defensores encarniçados
da velha tradição não tinham abandonado suas armas. Os
calculadores..., aqueles que praticavam as operações no ábaco,
queriam ciumentamente conservar para si os segredos desta arte:
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Um importante centro de aprendizado do mundo oriental fundado no século IX pelo califa al-Mamun
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não queriam ouvir falar desses métodos revolucionários que
colocavam as operações aritméticas ao alcance de todos”.(p.315)
A resistência não vinha só dos calculadores:
“Do mesmo modo, determinadas autoridades eclesiásticas
espalharam boato de que, sendo tão fácil e tão engenhoso, o
cálculo ao modo árabe devia ter algo de mágico ou até de
demoníaco só podia vir do próprio Satanás!” (p. 315)
Segundo Ifrah, a igreja não favorecia a democratização do cálculo, pois para ela
seria uma perda de poder. Ela preferia que a arte de calcular ficasse ao poder de
alguns especialistas que pertenciam ao clero da igreja.
Os algarismos arábicos ficaram proibidos e muitos o utilizavam as escondidas.
Esta disputa entre abacistas (defensores dos ábacos) e algoristas (defensores dos
cálculos com os algarismos) durou muitos séculos. E segundo Ifrah, mesmo com a
vitória dos novos métodos o uso do ábaco ainda prevaleceu sendo ensinado ainda no
século XVIII.
Mas é claro que a eficiência era comprovada, e os conservadores tiveram grande
dificuldade de se separar dos ábacos, mas a nova tecnologia era inevitável.
REFLEXÕES ATUAIS
Segundo D`Ambrosio, a tecnologia determina os rumos das civilizações,
observamos que a arte de calcular com algarismos revolucionou, substituindo os
ábacos e permitindo avanços em diversas áreas do conhecimento. Hoje nova
tecnologia, a calculadora, toma este lugar para promover mais avanços.
Ainda em D`Ambrosio:
“A história nos ensina que só pode haver progresso científico,
tecnológico e social se a sociedade incorporar, no seu cotidiano,
todos os meios tecnológicos disponíveis. Assim, depois da
invenção da escrita, não pode se justificar que alguém se recuse a
ler e escrever, depois da invenção da imprensa, não se justifica
que alguém não tenha acesso a livros e jornais, depois da adoção,
na Europa, da aritmética indo-arábica, não se justificaria alguém
se limitando a fazer contas com os ábacos, e assim, desde que há
relógios não se justifica exigir que se diga as horas olhando para o
céu, nem se justifica que, existindo automóveis, ônibus e
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caminhões, se utilize o cavalo como transporte. A sociedade se
organiza em função da tecnologia disponível”.3
Com a calculadora disponível não há justificativa para a insistência no ensino de
algoritmos.
O uso da calculadora permite resolver problemas reais, libera tempo e energia
gastos na execução das técnicas operatórias, permite dar atenção ao significado dos
dados, permite o desenvolvimento da criatividade, busca do novo, sobre a rotina,
mesmice. (D`Ambrosio)
O grande argumento para o não uso da calculadora seria porque ela atrapalharia
o desenvolvimento do raciocínio nos alunos. Mas sabemos que algoritmos são
simplesmente memorizados e muitos alunos não sabem explicar por que “abaixa um
determinado número na divisão”, “completa com zero na multiplicação” para adicionar e
subtrair números com vírgula “virgula em baixo de vírgula”.
Os alunos reproduzem as técnicas operatórias sem entender o que estão
fazendo e dão respostas, por exemplo, 0,63 para a operação 2 – 0,65. Não pensam nos
números em si somente reproduzem.
Que raciocínios estariam por trás dessas reproduções de técnicas? O mesmo
que apertar botões. E com certeza a chance de acerto está no uso da calculadora.
É necessário que a calculadora faça parte das aulas de matemática, insistir no
ensino de algoritmos está preparando os alunos para uma tecnologia que está
ultrapassada e caindo em desuso.
As técnicas operatórias com os algarismos foram criadas para resolver
problemas do passado. Não podemos insistir no ensino de algo do passado.
D`Ambrosio cita em seu livro um poema de Dschuang Dsi completado por René
Thom, para nos fazer refletir: Porque ensinar teorias e práticas que foram criadas para
resolver problemas do passado?
Havia um homem
Que aprendeu a matar dragões e deu tudo o que possuía
Para se aperfeiçoar na arte.
Depois de três anos
Ele se achava perfeitamente preparado mas,
Que frustração, não encontrou
Oportunidades de aplicar sua habilidade
(Dschuang Dsi)
3
Citação tirada do texto “O uso da calculadora” por Ubiratan D`Ambrosio feito para uma disciplina à distância
oferecida pela SBEM em junho de 2003.
5
Como resultado ele resolveu
Ensinar como matar dragões
(René Thom)
(p. 30)
O USO DA CALCULADORA
Nossos alunos vão para escola já sabendo usar a calculadora, pois ela faz parte
do dia a dia da vida em sociedade. Na escola o professor deve utilizar a calculadora
propondo situações de busca de soluções e reflexões sobre o seu uso.
O uso da calculadora deve ser pensado conforme a vertente tecnoracia
defendida por Ubiratan D`Ambrosio como proposta de currículo.
“Tecnoracia: a capacidade de usar e combinar instrumentos,
simples ou complexos, inclusive o próprio corpo, avaliando suas
possibilidades e suas limitações e a sua adequação a
necessidades e situações diversas. (Instrumentos Materiais)” (p.
67)
O professor quando pretende utilizar uma tecnologia em sua sala de aula, deve
se preocupar em como aproveitar eficientemente o novo instrumento. A calculadora
permite resolver muitas operações o que ajudaria na resolução de problemas, não há
sentido em usá-la simplesmente em situações como “arme e efetue”.
Com a calculadora pode-se explorar as operações através de resolução de
situações onde o aluno precise buscar a solução e não reproduzir. Por exemplo:
Resolver a operação 2000 – 190 no lápis e papel trás dificuldades aos alunos devido ao
fato de na hora de desenvolver o algoritmo ser necessário fazer trocas o que acarretará
num “corta corta”. Não teríamos problemas com a calculadora que daria direto a
solução. Muito interessante seria propor aos alunos que resolvessem esta operação,
mas existe um problema a tecla de número 2 está quebrada.
Algumas soluções:
1999 – 190 + 1 = 1810
1900 – 190 = 1710 +100 = 1810
Sobre esta situação problema o professor pode iniciar um estudo de estratégias
de cálculo mental.
Para resolver operações como, por exemplo, 5 + 1,33, os alunos presos a
técnicas operatórias sem pensar nos números em si, ou seja, temos 5 e o outro número
é 1 + 33 partes de um inteiro dividido em 100 partes, montam a operação e dão
respostas como 1,38. O uso de calculadoras não produz este tipo de erro e permite
mais tempo para reflexão sobre os números em si.
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Outras operações apresentam dificuldades na forma lápis e papel, como divisões
e multiplicações principalmente quando falamos de números com vírgula. Algoritmos
complicados e longos só confundem nossos alunos e faz com que gastem muito tempo
desenvolvendo a técnica e no fim nem lembram mais o que realmente queriam resolver.
A importância é dada ao desenvolvimento da técnica e não se pensa na operação em si
e nem em seu resultado.
Nossos alunos não vêm significado algum na reprodução das técnicas e só
erram. Grande maioria dos alunos se considera ruins em matemática e se afastam
desta ciência que poderia promover a eles situações onde a criatividade o raciocínio
estariam presentes.
COMENTÁRIOS FINAIS
Defendo o uso da calculadora e a extinção dos algoritmos, como aconteceu com
os ábacos. Os algoritmos podem ser aprendidos como curiosidades históricas.
O professor deve proporcionar aos alunos situações onde ele possa explorar as
potencialidades da calculadora e também ocasiões onde o aluno deve decidir pelo não
uso e utilizar, por exemplo, o cálculo mental.
Hoje ainda muitos testes e provas exigem a resolução de operações gigantescas
na forma lápis e papel o que não nos permite abandoná-las do ensino. E sabemos que
por conta disso muitas pessoas estão sendo excluídas por não dominarem uma técnica
ultrapassada.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
9 SEIFE, CHARLES. Zero A biografia de uma idéia perigosa. Portugal: Ed.
Gradiva, 2001
9 IFRAH, G. Os Números. A história de uma grande invenção. 9 ed. São Paulo:
Editora Globo, 1998, 367 p.
9 EVES, H. Introdução à História da Matemática. 1 ed. Campinas: Editora
Unicamp, 2004, 843 p.
9 D`AMBROSIO, U. Educação Matemática – da Teoria à Prática, 2 ed.
Campinas: 1997
_____________ Etnomatemática – Elo entre as tradições e a modernidade. 2
ed. Belo Horizonte: Ed. Autêntica, 2002.
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