Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem
(GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407)
A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA E SUAS PERSPECTIVAS NO TRABALHO DO
HISTORIADOR
Maria Lúcia Porto Silva Nogueira
Fazer o estudo de mulheres comuns, sertanejas, baianas, nas décadas de 1930 a 1960,
tomando como ponto de partida os seus escritos autobiográficos, tem como objetivo
primordial evidenciar os aspectos da cotidianidade dos espaços temporais dos sujeitos
femininos que escrevem e que dão a conhecer especificidades nem sempre presentes em
outros tipos de documentos. Dessa forma, busca-se incorporar agentes históricos que desafiam
a imposição de uma cultura centrada na figura do homem, indo na contramão da ausência das
mulheres na maioria da documentação escrita e reconhecendo-as como agentes que tecem
redes de sociabilidade, que inscrevem suas ações em consonância ou não com os padrões
vigentes e que, por sua essência, configuram-se numa forma de resistência.
Os quadros de cotidianidade trazidos pelas memorialistas favorecem enormes
possibilidades de percepção de estilos de vida que fogem ao controle da dominação e assim
podem ser usados num trabalho historiográfico com vistas a “fazer funcionar um conjunto
cultural, fazer com que apareçam suas leis, ouvir seus silêncios, estruturar uma paisagem que
não poderia ser um simples reflexo, sob pena de nada ser” e “mostrar que os mecanismos
sociais de seleção, de crítica, de repressão”, são sempre carregados de violência para se fundar
um saber. (CERTEAU, 1995:79).1
As memórias escritas femininas podem se constituir em fontes históricas respeitáveis
porque as personagens deixam transparecer as influências assimiladas na constituição do seu
“eu” e também expressam outras que extrapolam a si próprios e que são comuns ao seu grupo
social. Portanto, lembra-nos Marina Maluf (1995:83) “o ato pessoal de pensar o passado – de
contar uma vida – está enganchado na trama coletiva da sua existência social”. Essas trazem
as vivências das mulheres enriquecidas na inter-relação com outros sujeitos sociais e na
assimilação ou embate dos valores dos grupos dos quais participam. São registros
memoráveis que perpetuam singularidades e especificidades das suas culturas. São registros
Professora Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus VI–Caetité/Bahia.Doutoranda em
História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em História Social- PUC-SP.
1
SegundoThompson (1981:181) as análises das ações dos sujeitos históricos, principalmente das mulheres, dão
margem à apreensão de toda a “experiência humana” na inteireza de sua cotidianidade e nas manifestações de
sua cultura, dando a perceber alteridades e favorecendo o reconhecimento de subjetividades e outras
identidades.
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carregados de cores, sabores e odores, que desvendam detalhes do público e do privado, e
permitem vislumbrar diferentes ritmos dos processos sociais. Para se considerar tais escritos
como fontes históricas, cabe ao historiador, além de preservar as diferenças entre memória e
história, adotar uma postura crítica e olhar o documento em sua “natureza indiciária”. A
explicação a ser construída nessa tarefa deve se basear não tanto no que parece mais evidente,
mas também pelo que parece desconexo e irregular, de forma que a inteligibilidade
perseguida pelo historiador possa conter o compromisso sério na construção do conhecimento
histórico.
Longe de fazer história de “coisas miúdas”, importa tentar “ver e ouvir o que elas viam
e ouviam; [...] dar um mergulho em suas vidas cotidianas, não para estudá-las
horizontalmente”, mas para perseguir as pistas que podem vir destas histórias individuais.
Assim, busca-se caminhar na direção contrária de outras histórias individuais feitas para
glória de uns poucos privilegiados ou de histórias de mulheres/homens comuns ou pobres
feitos sempre coletivamente e pensar numa outra história como sugere Corbin (1999:210), em
que seja possível “conhecer os sistemas de apreciação do mundo, os afetos e as emoções de
pessoas de outras épocas, os usos dos seus sentidos”.
Como conhecer “mais completamente”- se é que isso seja possível - a vida de uma
pessoa? Nessa empreitada ambiciosa de se perseguir a constituição de subjetividades ou de
arriscar como que “um mergulho na alma”, a autobiografia ou a “produção de si” pode se
somar a registros de tradição familiar, correspondências, entrevistas e objetos da cultura
material. É uma pretensão que não pode excluir “as incertezas intuídas” as “ausências e
vazios” tão caros ao ofício historiográfico (BORGES, 2006:221)2.
As autobiografias se constituem em um gênero literário que, como nos diz Philippe
Levillain (2003:166), muito “se aproximam das memórias” num estilo em que autor, narrador
e personagem se misturam no momento da escrita, diferentemente da biografia. Este gênero
vem crescendo como reflexo de uma renovação do individualismo e das múltiplas formas de
constituição de individualidades.
Entretanto, uma autobiografia não é e nem pode ser apresentada como narrativa única
de informação sobre uma vida ou um contexto. Um exemplo desse terreno movediço que é a
escrita de si recai sobre a empreitada pretendida por Rousseau quando se propôs escrever as
suas confissões com exatidão, procurando mostrar o mais recôndito de sua interioridade.
2
Levi, Giovanni (1996: 180) aborda as contradições implícitas neste tipo de fontes, apontando as dificuldades
que permeiam esta prática, as quais transitam desde as incoerências internas das normas de cada sistema social
até os embates do indivíduo dentro de seu próprio grupo. A posição deste autor afasta o peso das singularidades
nas determinações inconscientes, estruturadas e estruturantes como defendidas por Pierre Bourdieu.
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Constatou, já no início de sua tarefa, que uma primeira limitação advinha da imprecisão da
“linguagem tradicional” por não dar conta de exprimir “a absoluta e imediata presença de si”.
Como contar algo que não foi dito, nem feito, nem mesmo pensado, mas somente apreciado e
sentido? O que receava não era falar demais ou falar mentiras, mas sim não atingir a pura
verdade tão almejada. Ao desistir da sua intenção, o seu silêncio torna-se ainda assim, algo
muito significativo e não pode ser desprezado por um bom observador. (DUQUE-ESTRADA,
2009: 18).
Considerando que as autobiografias têm na memória o seu elemento mais expressivo,
vale lembrar Ecléa Bosi (1979:17) quando salienta que escrever memórias não se situa no
simples fato de rememorar; antes, os significados das lembranças precisam ser reconstruídos e
isso é feito com os condicionamentos impostos pelas circunstâncias atuais de vida das
narradoras em seus novos lugares sociais. Assim, a lembrança é induzida pela situação do
momento da escrita: “por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é
a mesma imagem que experimentamos na infância porque nós não somos os mesmos de então
e porque nossa percepção alterou-se e com ela nossas idéias, nossos juízos de realidade e de
valor”. Portanto, no ato de rememorar acontece uma mudança interna na pessoa que pode ver
com outros olhos aquela experiência do passado 3. As autoras desse tipo de escrita, conscientes
ou não, se submetem a escolhas filtradas pelas suas memórias, omitindo certos fatos que não
querem ou não podem revelar e, rendendo-se à censura das suas consciências, enterram
segredos que poderiam ser mais esclarecedores em suas narrativas. Ainda assim, o valor de
tais trabalhos é incontestável, por trazerem elementos ausentes em outros tipos
de
documentos.
Narrativas de mulheres merecem uma consideração especial, visto que se diferenciam
daquelas feitas por homens. Segundo Paul Thompson, a linguagem masculina fica centrada no
“eu”, considerando “a vida que viveram como sua e eles mesmos como sujeitos de suas
ações”, mas as mulheres
[...] falam sobre as próprias vidas tipicamente em termos de relações,
incluindo em sua história de vida partes de histórias de vida de outras
pessoas; e muito frequentemente falam como “nós” ou “a gente”,
simbolizando as relações subjacentes àquela parte de sua vida: “nós” como
3
Para aprofundamento nos estudos sobre a memória existem trabalhos consagrados como Nora (1984), Le Goff
(1992), dentre outros. Michael Pollak (1992:202) afirma que “A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado.
Nem tudo fica registrado. [...] A memória sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada,
em que ela está sendo expressa”. E sobre memórias articuladas às relações de gênero: Maluf (1995),
Viana(1995), Lacerda (2003). Michelle Perrot (1998:359), no seu Práticas da Memória Feminina, aponta que
“a memória é sempre algo reconstruído. É reconstruído em função das experiências da pessoa que fala... é
preciso interpretá-la num conjunto mais vasto de fontes”.
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“meus pais e nós”, ou como “meu marido e eu”, ou como “eu e meus
filhos”(THOMPSON, 1992:204).
Nesse sentido, vale dizer que mulheres ou homens ao se colocarem como sujeitos
fazem-no apoiando-se na memória histórica do seu grupo e da sociedade a que pertencem.
Como nos diz Halbwachs (2006:30-31), o relembrar é um ato que se prende às experiências
coletivas mesmo que sejam escritas individualmente ou que estejam expressas numa memória
autobiográfica. Assim, uma lembrança mesmo sendo individual, pode retratar acontecimentos
ou aspectos significativos pra todo um grupo; um exemplo nos vem do registro do
rompimento de uma barragem em 1960, no distrito de Ceraíma/Guanambi-Ba, momento
crucial para a população de uma cidade inteira, assim descrito por Silva (2004:42), uma das
memorialistas deste estudo:
Às dezoito horas ouvimos um estrondo, era o açude rachando-se ao meio no
sentido vertical. As gotículas d‟água formavam uma densa neblina que subia
bem alto, fazendo uma espécie de neve em cuja base destacava-se o amarelo
do rio afoito invadindo as terras.
Essa forma de narrar apresenta uma linguagem que compõe um quadro estético, como
que uma obra de arte sobre o acontecido. Isso nos remete a estudos sobre a atualidade da
escrita autobiográfica que trazem à tona questões ligadas à linguagem enquanto
representação. Admitindo-se os abalos sofridos nesse campo com a emergência dos novos
paradigmas do conhecimento na contemporaneidade, vale recorrer aos estudos focaultianos,
principalmente na obra As Palavras e as Coisas, que apontam as mudanças que vêm
acontecendo nessa inter-relação linguagem/representação. Assim, perde sentido a leitura
monolítica que se fazia (ou se faz ainda?) das autobiografias na concepção positivista. O
conhecimento não mais se apóia em bases estáveis visto que é “lançado num jogo sem fim de
significações sempre alcançadas e extraviadas”. Com esses abalos no campo literário, lembranos Duque-Estrada (2009:27), “não só a narrativa autobiográfica perde o seu suposto fio
condutor da intenção do seu autor, como também este perde a sua posição privilegiada de
autoridade primeira e última sobre a narrativa por ele criada”.
Para se falar de sujeitos femininos é importante pensar nas questões teóricas que
recaem sobre a idéia do sujeito na contemporaneidade. Aquele sujeito moderno, cartesiano,
que esteve presente por longo período em vários campos do conhecimento, agora não mais
detém hegemonia nos limites da complexidade que vai se instalando nas relações sociais. Esse
sujeito vai se tornando inadequado frente às mudanças e exigências postas pelos avanços da
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modernidade, a partir da segunda metade do século XX. Assim, assistimos hoje à crise desse
sujeito universal do conhecimento, paralelamente ao abandono de conceitos-chave do
racionalismo, que vão sendo substituídos pela adoção de sujeitos plurais, diferentes,
fragmentados, em processos de identificação continuamente renovados, conforme nos
apontam os novos estudos culturais. (HALL, 2005:34).
É importante observar os meandros pelos quais as subjetividades se ligam às
experiências femininas que são escritas como memórias. Nesse sentido, Scott (1999:47)
afirma que a experiência é uma palavra usada em grande escala quando se trata de
“essencializar a identidade e reificar o sujeito” e está tão presente na linguagem comum, que
já não podemos eliminá-la em nossas narrativas. Para ela:
a experiência é, ao mesmo tempo, já uma interpretação e algo que precisa de
interpretação. O que conta como experiência não é nem auto-evidente, nem
definido; é sempre contestável, portanto, sempre político. Sendo assim o
estudo da experiência deve questionar sua posição enquanto origem na
narrativa histórica. (SCOTT, 1999:48).
Nas narrativas do tipo memórias, as autoras vão narrando suas experiências pessoais,
caminhando geralmente das mais distantes para as mais próximos e vão se posicionando na
escrita, de forma mais afetiva e subjetiva. Há um caráter confessional nesses testemunhos de
vida que incorporam outros elementos como lugares e pessoas e podem trazer visões de
múltiplas singularidades até então ignoradas.
Ao escrever sobre a “crítica do testemunho: sujeito e experiência” Beatriz Sarlo
falando sobre testemunhas do Holocausto explicita condições para “o recurso ao otimismo
teórico” da seguinte forma:
O testemunho, por sua auto-representação como verdade de um sujeito que
relata sua experiência, exige não ser submetido às regras que se aplicam a
outros discursos de intenção referencial, alegando a verdade da experiência,
quando não a do sofrimento, que é justamente a que deve ser examinada.
(SARLO:2007:38).
Pode-se dizer que as memorialistas são verdadeiros testemunhos quando, além de
narrarem acontecimentos da sua vida, narram outros políticos, sociais, etc, que se tornam
denúncias contra o esquecimento de arbitrariedades políticas e desmandos com sérios
desdobramentos para a população envolvida. Assim é a escrita de Dulce da Silva Meira
(2007:79), falando sobre os abusos do poder no alto sertão baiano na década de 30, quando o
crime era praticado como retaliação nas rixas partidárias. Um caso dentre vários, registra o
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espancamento e morte de um advogado que não aceitou as imposições de um líder da política
baiana.
Para os limites desse trabalho, importa-nos considerar como as mulheres se constituem
enquanto sujeitos históricos ou constituem subjetividades; importa-nos saber se essas
subjetividades carregam a experiência do vivido, se traduzem informações sobre saberes
locais ou linguagens locais, tão necessários hoje em contraposição a um mundo que se quer
global. Um exemplo pode ser tomado em Lucília Domingues Donato (2001:154), uma das
memorialistas em estudo, ao descrever as mudanças provocadas pela chegada da luz elétrica
em Guanambi, sua cidade: “A cidade iluminada, as ruas ganharam vida nova. Os passeios
dominicais, antes apenas nas noites enluaradas, passaram a ser quase que diários”. Vê-se que
ela se apresenta como testemunho de uma realidade da qual fez parte e articula a sua
experiência ao desenvolvimento da cidade e disso podemos inferir inicialmente o peso que
teve tal acontecimento nas condições reais de vida da autora, do seu grupo de convívio e
naquele meio urbano de modo geral.
Para se estudar aspectos da constituição das subjetividades, vale observar
contribuições das reflexões filosóficas que mostram o longo caminho percorrido por tais
estudos sobre a temática em diferentes temporalidades. Charles Taylor em seu trabalho As
fontes do self analisou o pensamento de Santo Agostinho sobre a interioridade humana e
afirma que este filósofo inaugurou uma noção de “eu” pautado num “eu” profundo, com
emoções e sentimentos. Sua grande contribuição parte da idéia de que “Deus é luz”, mas não
uma luz que vem de fora iluminando o ser, como pensou Platão, mas uma luz interior que
pode ser sentida pelo “humano”, desde que este adote uma atitude reflexiva. Isso implica em
que cada um volte-se para a sua vida particular, caminho para o conhecer-se. Trilhar esse
caminho que leva a Deus e ao conhecimento é o da fé que traz segurança. Mas é preciso estar
em sintonia com essa fé e afastar tudo que a prejudique, portanto é preciso estar vigilante e
“cuidar de si”, não se perder. Assim, ainda que seja um pensamento carregado de
religiosidade, Santo Agostinho inaugurou uma forma de subjetividade. (TAYLOR, 1997:
173/174).
Para Taylor, uma subjetividade manifesta-se nessa “atitude de reflexão radical” o que
implica em prestar atenção na extensão das experiências adquiridas, em vez de deixá-las
passar ao largo, como comumente se faz, para se envolver nas coisas experimentadas. Uma
atitude reflexiva significa
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tomar consciência de nossa consciência, procurar experimentar nossa
experiência e concentrar-nos na forma como o mundo é para nós. [...] A
reflexão radical traz para o primeiro plano uma espécie de presença para a
pessoa, que é inseparável do fato de essa pessoa ser o agente da experiência,
algo cujo acesso é, por sua própria natureza, assimétrico: há uma diferença
crucial entre a forma de eu experienciar minha atividade, pensamento e
sentimento e a forma pela qual você ou qualquer outro o faz. É isso que me
torna um ser que pode falar de si na primeira pessoa. (TAYLOR, op. cit:
174).
Outra contribuição para os estudos da subjetividade moderna veio de Descartes,
herdeiro da tradição agostiniana, que explorando temas como paz interior, determinação,
controle e generosidade, justificou a racionalidade como uma decorrência do “pensamento
subjetivo”. O seu “penso, logo existo” caminhou para demonstrar inversamente que a atitude
reflexiva coloca o sujeito na certeza da sua auto-suficiência e isso trouxe desdobramentos nas
vivências humanas da modernidade. (TAYLOR, 1997:207).
Sujeitos plurais são o modelo que vem substituindo o sujeito universal, assim como a
subjetividade clássica, tida como autônoma e homogênea vem sendo contestada. Nesse
sentido, a crítica nietzschiana propõe que toda subjetividade seja destituída do peso que lhe
confere a tradição filosófica, quando a sobrecarrega de traços de “grandeza e profundidade interioridade, presença de si, domínio e autonomia”, para deixá-la na fluidez de uma
construção que se dá numa inter-relação de forças e significados, como uma “instância
meramente contingencial”. A despeito dos muitos desdobramentos que esse pensamento
acarretou, entre os quais a idéia de liquidação do sujeito ou do conceito de subjetividade,
estudos apontam para a necessidade de se buscar mecanismos para reinterpretar o sujeito,
colocando- o numa posição compatível com as exigências éticas e políticas surgidas nos
séculos XIX e XX, sem deixar que se perca o que lhe é mais valioso: a sua dimensão crítica.
Aqui, mais uma vez, Duque-Estrada (2009:39) ancorada nas idéias de Derrida e Deleuze,
escreve:
A desconstrução inclemente da noção clássica de sujeito tem como
horizonte, independentemente das suas variadas formulações, a abertura para
a compreensão de uma subjetividade sempre em devir, de processos de
subjetivação que não atendam a nenhuma finalidade preconcebida, pois que
elas só se processam no acontecer contínuo e aleatório da própria vida.
Disso se depreende que, como qualquer outro conceito filosófico, o de subjetividade
também não se estabelece fora das questões a que ele tem que responder, pois que a sua
validade está em ser capaz de dar conta das indagações que lhe são colocadas. Deleuze situa a
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questão do sujeito na dimensão direta da experiência da sua ligação vital com aquilo que lhe
diz respeito e, aproveitando-se da trilha aberta por Foucault, ele lança o homem a sua
historicidade e à sua natureza essencialmente temporal, finita, conforme escreve:
Os processos de subjetivação nada têm a ver com a „vida privada‟, mas
designam a operação pela qual indivíduos ou comunidades se constituem
como sujeitos, à margem dos saberes constituídos e dos poderes
estabelecidos, podendo dar lugar a novos saberes e poderes.(DELEUZE,
1992:193)
Ao se desconstruir o conceito filosófico de sujeito (entendido aqui de forma mais
abrangente) estabelece-se uma crise que afeta também o sujeito autobiográfico em suas
especificidades. Dada à sua natureza mais empírica e psicológica do que teórica, uma questão
ainda se impõe sobre esse sujeito, visto que não pode reivindicar para si, inconteste, as bases
conceituais e teóricas do conceito de subjetividade. Elizabeth Duque-Estrada (2009:45),
recorre a Nietzsche quando este faz a sua “crítica da subjetividade não a partir do lugar de um
sujeito autor fundador de sentido, mas, antes, de um sujeito performático, que submerge na
sua contingencialidade histórica, cultural e pulsional e percebe-se como um ser corporificado,
construído numa multiplicidade de máscaras e de papéis”. É preciso desfazer a armadilha de
acreditar que o pensamento filosófico é “grandioso, porque é puro, objetivo e desinteressado”,
a exemplo dele próprio, que diz ter descoberto paulatinamente em sua prática intelectual, que
toda grande filosofia é a confissão pessoal do seu autor, uma espécie de memórias
involuntárias e inadvertidas.
Esse quadro de desconstrução coloca a autobiografia numa posição de quem busca
outros parâmetros e critérios para ser compreendida segundo as novas exigências do mundo
contemporâneo. Assim, deparamo-nos com várias proposições teóricas que longe estão de
atingir um equilíbrio epistemológico 4. Uma delas, a de Philippe Lejeune (uma das mais
aceitas), é criticada pelo seu caráter dissimulado e conservador e por fugir do enfrentamento
crítico necessário às questões mais significativas da atualidade desta escrita. Define-a como
4
O texto de Elizabeth Duque-Estrada (2009: 49 e segs) discorre sobre estas várias propostas: 1) Elizabeth Bruss,
Paul Jay e Porter Abbott defendem a concepção de que a autobiografia é um esforço de construção de história
pessoal, não no sentido propriamente histórico, mas como um evento terapêutico; é uma ação pessoal que se
alinha à compreensão do leitor, ou seja, este sabe que o autor está presente no texto, conduzindo-o da forma que
lhe interessa. 2) Luis Costa Lima considera-a na relação discurso histórico x narrativa ficcional e esta distinção
vai depender do papel que cada um concede ao seu eu. 3) Eliane Zagury, numa postura semelhante à anterior,
acredita que a escrita autobiografia está sempre em desequilíbrio e o ser em crise, sendo o sujeito do seu próprio
objeto, como que caminha numa perna só, oscilando entre subjetividade e objetividade.
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uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria existência,
quando focaliza especialmente sua vida individual, sobretudo a história de sua personalidade”.
Diz ele que não é no interior do texto que se deve buscar os elementos para compreender a
escrita, mas no modo de leitura, ou no pacto que se estabelece entre leitor e autor; ao ler, não
perder de vista que autor, personagem e narrador são coincidentes.
A proposta de Paul de Man alinha-se ao ponto de vista desconstrucionista e também é
criticado pela radicalidade das suas idéias. Censura a elevação da escrita autobiográfica à
condição de gênero literário ao lado da tragédia, do épico ou da poesia lírica, por faltar-lhe
mais peso quanto às exigências estéticas. Acha igualmente desnecessário estabelecer
contraposição entre o que é ficcional e o que é real, pois afinal, a autobiografia está presa a
fatos verificáveis e reais, existindo ali um sujeito, um nome envolvidos. Entretanto, diante da
dúvida se a “vida produz a autobiografia da mesma forma que o ato produz as suas
conseqüências”, admite que a autobiografia pode ser tomada, não como um valor em si
mesmo, mas apenas como um “acontecimento textual”. DUQUE-ESTRADA, 2009: 49 e 51).
Todas essas discussões desembocaram em avanços e benefícios para a autobiografia e
serviram para libertá-la da posição de subgênero da biografia e para lançá-la frente às mais
complexas demandas levantadas pelas narrativas em primeira pessoa, demandas ligadas à
“identidade, auto-definição ou auto-engano”, demandas que não excluem as imbricações de
ordem filosófica, literária, social, psicológica ou política.
Concluindo, podemos dizer que foram muitos os abalos resultantes da desconstrução
da subjetividade clássica, que poderão ser pensados no sentido de perscrutar as
especificidades e complexidades dos registros a serem analisados e não com uma visão
monolítica tão prejudicial ao rumo da pesquisa. Esse trabalho, ainda não concluído, analisa
portanto, as subjetividades numa perspectiva que considere sugestões inovadoras e que
possam trazer à tona saberes e poderes que vão se constituindo incessantemente nas cenas do
dia-a-dia e que estão presentes nas narrativas em foco.
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