PANFLETO SOBRE O RIDÍCULO EM DIREITO CIVIL
Pedro Múrias
Caiamos em nós sem amparo. O 408.º/1 é ridículo.1 Contradizer os romanos dá azar e, a nós,
deu-nos o azar de um «princípio estruturante» risível, mas aprendido sem pasmo e ensinado com
apego por gerações sucessivas de juristas.
Em terras civilizadas — digamos, em Madrid, Londres, Amesterdão, Berlim, Atenas, Buenos
Aires, Tóquio, Melbourne... — vigora o princípio oposto, como vigorava em Roma. A nossa
regra é produto da frivolidade jusracionalista que culminou no código francês, código de que
todos fogem a sete pés, salvo pruridos identitários. Por graça da diplomacia, tratados da ONU e
leis europeias protestam não querer perturbar a idiossincrasia francófila.
Bem entendido, aquelas terras civilizadas não se furtam a ridículo inverso, na crença de que a
propriedade não pode transmitir-se por contrato. Querendo as partes transmiti-la, não se vê por
que é que não hão-de poder fazê-lo, nem por que é que hão-de sujeitar-se a rituais patetas de
traditio simbólica. A progressiva desmaterialização dos bens expõe o ridículo dos civilizados.
A nossa regra, embora ridícula, também não faz grande mal. Poucos quererão levá-la muito a
sério, conquanto digam o contrário, e, mais um jeitinho aqui, mais uma regra providencial acolá,
tudo se resolve sem rebuliço.
Mas vejamos o ridículo. Não se pode explicá-lo. Há que vê-lo com olhos de ver.
O velho Caio entra numa loja de mobília antiga, namora uma mesa, pergunta pelo preço, diz que
a compra e promete voltar mais logo ou no dia seguinte com o dinheirinho e um carro para o
transporte. Por simpatia, probidade ou marketing, o vendedor Tício deixa em cima do móvel um
papel a dizer «vendido», o que já nem seria preciso para o exemplo ficar pronto.
Tente a minha estimada leitora explicar a um não-jurista com bom senso que Caio é o
proprietário da mesa, tal como quem lha comprar no momento seguinte. Caio tem o famigerado
direito, protegido pelas constituições liberais, que lhe permite reivindicar ubi rem suam inveniat.
«A constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato,
salvas as excepções previstas na lei.» Mais coisa menos coisa, era igual o art. 715.º do Código de Seabra, dobrado
pelo 1549.º e outros que tais. Hoje, também temos o 879.º e mais uns quantos.
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Tente dizer isto a um não-jurista e verá que reforça a opinião generalizada — com bons
motivos! — de que o mundo das leis é o império do formalismo, do contra-senso ou do sem-sentido, conjugados para reafirmar a cada dia um estado burocrático mais ou menos kafkiano.
Mas, como não podia deixar de ser, a regra asneada não faz grande mal.
Uma possibilidade grave de moléstia estaria na sujeição do direito adquirido à execução pelos
credores do adquirente, por fazer parte do seu património. No caso de Caio e Tício, que é
modelar, tudo corre, porém, como deve ser, já que o sinalagma é oponível à execução até ao
cumprimento,2 de modo que, v.g., a mesa por entregar não se integra eficazmente numa eventual
massa falida sem que se pague por ela. A transferência da propriedade acaba irrelevante.
Noutros casos, alguma imaginação e sangue frio tudo resolvem sem hesitação. Suponha-se que
Caio, saindo da loja, vende a coisa a Semprónio. Dir-se-ia que, neste momento, Semprónio pode
reivindicar a mesa a Tício, sem mais fundamento do que as compras sucessivas. Dir-se-ia isto,
claro, se não se temesse o desconchavo. Com um módico de desfaçatez, todavia, pode tresler-se
o 431.º3 e deixar Tício invocar a exceptio numa acção real!
Suponhamos, por fim, que Caio não regressa nem nesse dia nem nos seguintes, e não vende a
mesa a ninguém. Passam uns meses, Semprónio entra na loja, compra a mesa, paga-a e leva-a
para casa. Tício tinha talvez mandado fora o papelinho a dizer «vendido».
Os indefectíveis do 408.º/1 acharão razoável que Caio possa agora reivindicar a coisa a
Semprónio, pretendendo que a usucapião e o 1301.º4 protejam suficientemente os segundos
compradores. Dura lex, sed lex, dizem eles. Os sensatos, com alguma criatividade, dirão que Tício
resolvera o contrato, reavendo a propriedade, o que até seria boa ideia se a declaração de
resolução não fosse receptícia. Outros, com malandrice, mudariam os factos do exemplo,
negando que tivesse havido inicialmente uma compra e venda acabada. Este o expediente
preferido se o caso chegasse a tribunal. Os desesperados invocariam o abuso do direito,5 ou
coisa parecida, para conseguir alcançar o que o bom senso impõe.6
Não nos vamos embora sem recordar duas consequências — uma nas regras, a outra nas
práticas — do pavoroso 408.º/1.
Isto resulta de leizecas extravagantes que não interessa transcrever.
«A excepção de não cumprimento é oponível aos que no contrato vierem a substituir qualquer dos contraentes
nos seus direitos e obrigações.»
4 «O que exigir de terceiro coisa por este comprada, de boa fé, a comerciante que negoceie em coisa do mesmo ou
semelhante género é obrigado a restituir o preço que o adquirente tiver dado por ela, mas goza do direito de
regresso contra aquele que culposamente deu causa ao prejuízo.»
5 Diz o art. 334.º: «É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites
impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.»
6 A leitora atenta reclama que o exemplo não é totalmente honesto, ao misturar os males do 408.º/1 com os
problemas inevitáveis do não cumprimento. Esclareça-se: o lapso é o 408.º/1 levar estes problemas a terceiros!
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A primeira é que o nefando preceito convive com a regra, em si mesma inocente, do 796.º/1,7
sobre «transferência do risco». Quer isto dizer o seguinte: estando dois amigos de férias no
Algarve, e combinando com firmeza que um vende ao outro o seu carro, que ficara em
Coimbra, se o carro for furtado nessa noite, o comprador tem de pagar o preço acordado,
independentemente de o carro ser recuperado ou não. Talvez haja quem ache isto admissível. Só
não é provável que ocorra ao vendedor sem formação em leis ir a tribunal exigir o pagamento.
A segunda consequência é essa peculiaridade do burlesco nacional que dá pelo nome de
«contrato-promessa». A propriedade de imóveis transmite-se por contrato, sim senhor, mas o
contrato é a famosa «escritura pública», formalismo que antecede a formalidade mais vezes
esquecida do registo. Notários e conservadores dividem irmãmente o controlo da legalidade.
Claro que não se conseguiria viver assim, de modo que, no caminho para comprar uma casa, a
única coisa que se parece com um contrato, o que deve ser cumprido, é o «contrato-promessa».
Sejamos claros: não há nada de mau nem de contra naturam num contrato para celebrar outro
contrato. O que há, mais uma vez, é uma boa dose de ridículo, quando o contrato a celebrar tem
o conteúdo previamente estipulado! As pessoas obrigam-se a obrigar-se em vez de se obrigarem
desde logo. Com certeza pelo gosto de duplicar papéis. Bis repetita placent !
O «contrato-promessa» floresce por causa da «escritura», que ninguém vê como um contrato,
mas como momento final de execução do verdadeiro contrato, para transmitir a propriedade.
Na dita «promessa», é claro, as partes obrigam-se ao pagamento e, em geral, à entrega da coisa,
quando o pagamento for completado, tal qual uma venda nas nações civilizadas. Como nem a
escritura é para levar a sério, a lei, desde os anos 80, ainda oferece ao comprador um célebre
«direito de retenção» a partir do momento em que receba a coisa.
O leitor sabe dos rios de tinta jurídica que o «contrato-promessa» e o «registo» têm feito correr.
Advogados, juízes e professores já sobreviveriam mal sem eles. E sabe que tudo se resolve com
paciência, hábito e bom senso, como se resolvem os casos menos razoáveis de reivindicação ou
de transferência do risco.
Mas é pena não podermos esperar que isto seja endireitado, como seria próprio do direito.
Lisboa, Março de 2007
«Nos contratos que importem a transferência do domínio sobre certa coisa ou que constituam ou transfiram um
direito real sobre ela, o perecimento ou deterioração da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta
do adquirente.» Por causa das francesices, esta regra já não chega a documentos internacionais. Uma conhecida
directiva comunitária, não podendo evitar mexer-lhe, jura a pés juntos no preâmbulo que não o faz (vide o
Considerando 14 da Dir. 1999/44/CE)!
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