Vozes periféricas gritam na urbe.
Graffiti - arte pública, expressão alternativa.
Willian da Silva e Silva
Programa de Pós-Graduação em História Comparada - UFRJ
pesquisador do Laboratório de Estudos do Tempo Presente - TEMPO
Resumo:
O texto é um estudo metalingüístico sobre o graffiti.
O graffiti transcende o significado das palavras e desenhos que expressa, e, dentre outras
coisas, registra para posteridade a marca do artista, e/ou de seu grupo. O muro demarcado
torna-se um espaço de ação que é extensão da Cidade.
Veremos como a materialização desta arte popular tramita através de um canal específico da
cidade: o muro.
A violência e a exclusão social são dois males que assolam o Brasil. Analisamos estas duas
questões pelo olhar do graffiteiro do Rio de Janeiro, Brasil.
De que forma estes sujeitos, que são parte de uma minoria étnica e geracional vítimas da
violência e da exclusão, constroem toda uma linguagem específica? Estética, muitas vezes, e,
codificada, outras tantas vezes.
Protestos, assim como, clamores por paz e igualdade são vistos frequentemente pelos muros.
Há no Rio de Janeiro muitas inscrições parietais, desenhos e escritos, que demonstram a
inquietação com a violência e o racismo.
Vamos decompor algumas imagens de intervenções parietais com diferentes mensagens em
torno da violência e da exclusão social.
A análise imagética foi baseada no método semiótico de Charles Sanders Peirce.
Palavras-chave: graffiti, violência, intervenção.
Através de graffitis encontrados na cidade do Rio de Janeiro, Brasil, localizamos e
estudamos dois males que assolam o país: a violência e a exclusão social.
Demonstraremos como estes sujeitos que são parte de uma minoria étnica e geracional,
vítimas de violência e exclusão constroem toda uma linguagem específica, estética, codificada
muitas vezes, que circula através de um canal específico da cidade: o muro.
Definimos Graffiti como uma arte gráfica, uma comunicação visual que faz circular
mensagens através de símbolos e letras elaborados a partir de um repertório simbólico que,
segundo a vontade do ator, tanto pode ser comum à sociedade, como restrita a pequenos
grupos de sujeitos. É uma linguagem indissociável de seu suporte, caracterizando-se por
interferir diretamente sobre paredes ou muros com talhas, sulcos, pinturas ou escritos. Um
graffiti pode ou não ser lúdico.
Linguagem pode ser entendida como “qualquer conjunto de signos e modo de usá-los,
isto é, modo de relacioná-los entre si (sintaxe) e com referente (semântica) por algum intérprete
(pragmática)”. (RAMOS, p; 19). “Código é o sistema que estabelece um repertório de signos e
suas regras de combinação”. (ibid., p. 81)
O documento iconográfico construído pelo autor através de fotografias é a fonte
primária desta discussão.
Optamos em seguir o método semiótico e Charles Sanders Peirce é o nome escolhido
para guiar-nos nessa trilha. No livro Semiótica de Pierce define signo: “Um signo ou
representâmen é aquilo que, sob certo aspecto representa algo para alguém”, interligando
fundamento, objeto e interpretante. O autor divide a ciência da semiótica em três ramos:
gramática pura “sua tarefa é determinar o que deve ser verdadeiro quanto ao representâmen
utilizado por toda inteligência científica a fim de que possam incorporar um significado
qualquer” (PIERCE, 1977, p. 46). Lógica, ciência formal das condições de verdade das
representações. E a retórica pura “seu objetivo é determinar as leis pelas quais, em toda
inteligência científica, um signo dá origem a outro signo e, especialmente, um pensamento
acarreta outro”. (ibid., p. 47).
A Semiótica é definida por Peirce como “doutrina da natureza e das variedades
fundamentais de cada semiose possível”, sendo semiose o movimento, a ação dos signos.
Definição mais clara e prática é dada por Saussure, que expõe a semiótica como ciência que
estuda a vida dos signos no quadro da vida social1. Em Peirce o interpretante é primordial e
essencialmente um ser passivo e/ou ativo da ação cultural, ponto crucial que conclui as
conveniências que nos aproxima da semiótica.
ANÁLISE PICTÓRICA
Observe a foto 1 ao final do texto.
“Sobrevivência urbana” é a frase que está no centro da intervenção. Sobrevivência
urbana é o tema central deste “quadro”, uma expressão feita em branco sobre um espaço
negro, talhada numa representação de tabuleta-letreiro-luminoso.
Há signos soltos na superfície como PAZ, que pode ser vista na base do quadro à
direita em preto e branco. Rocinha S/A é referência a uma localidade do Rio de Janeiro,
possivelmente moradia do artista. Segue ainda Utris inscrito num círculo. Meninos chorando
preenchem as laterais da composição. Ele é negro e ocupa o lado esquerdo do quadro; ela é
branca de olhos verdes e toma o lado direito. Algo que aparenta ser um bicho de pelúcia, nas
mãos da menina, sangra com ferimento nas costas.
Um outro exemplo é de um graffiti que preenche parte do espaço da intervenção com
a palavra “NATIVIDADE” com o “N” invertido. Existem signos espalhados pelo interior da
composição: “RAS”, “CHEGA”, “POSSE”, “D.A”, “H2”, “RIO 100 VIOLÊNCIA”, “VIOLÊNCIA
NÃO É BRINCADEIRA”. Aparentemente brincando, o artista critica a violência no Rio de
Janeiro. Violência é uma palavra que aparece nove vezes. A palavra PAZ está espalhada na
superfície direita da pintura e estampada na frente da caixa-surpresa. Palavra que aparece
repetidamente dez vezes.
Uma mão salta de dentro de uma caixa, o que seria a representação de uma caixasurpresa de uso para brincadeiras de criança. Um símbolo de proibição corta uma arma fixada
na palma da mão. A brincadeira da caixa contrasta com a não-brincadeira da violência,
elaborando uma mensagem que constrói um protesto contra a violência urbana e um pedido de
paz.
(observe a foto 2).
Um símbolo de protesto sócio-econômico uma crítica à violência e a exclusão social que
traz no canto esquerdo do observador, ao lado do primeiro personagem, na base da molduracoluna (em alto-relevo), os dizeres: “PAZ, AMOR, UNIÃO” palavras localizadas à margem, no
canto do quadro, quase no rodapé, fora do espaço delimitado para o tema, em uma cor clara
sobre um fundo cinza. As colunas do muro são ao mesmo tempo suporte e limite para esta
intervenção. A segunda coluna está sob os cabelos da mulher.
Esse graffiti é composto por quatro personagens, do homem de bigode até a mulher.
Há um balão contendo uma interrogação, é o primeiro de uma série que inicia o diálogo,
está ao lado esquerdo do primeiro personagem, contém a função de expressar o sentido de
dúvida de pensamento. Logo abaixo deste balão têm outro com a assinatura DAM, inscrita num
circulo.
No topo do canto esquerdo existe um 2000, que corresponde à data de criação do
graffiti. Um homem é o primeiro personagem desse quadro. Na cabeça ostenta uma touca
contendo a escrita DAM e está com sua mão esquerda projetada numa posição de indicação,
uma grande mão que leva sobre si os signos PAZ e DAM. Atrás do homem, ao longe - (as
diferenças entre as dimensões induzem a noção de distância) -, existem prédios formando uma
representação da cidade. Acima do terceiro prédio está o nome MAFU. As palavras PAZ e
DAM aparecem três vezes cada uma. Existe a inscrição PAZ, na coluna do muro a margem
esquerda do graffiti, na mão do homem e no peito do garoto. Por sua vez a palavra DAM está
no segundo círculo, na touca do homem e também na mão deste.
1
Conceito retirado do livro Tratado Geral de Semiótica, p 9.
Do lado direito do primeiro personagem, na altura da cabeça, está a frase
“REALIDADE
REALIDADE URBANA...”, solta no interior do graffiti sem balão ou outra forma de ligação com
qualquer personagem ou elemento que indique se tratar de pensamentos. Por sua posição e
forma, o que parece mais adequado quanto ao sentido, é uma apropriação da frase como o
título ou a síntese do quadro, o que não impede que também seja entendido como uma
introdução ao diálogo. Ao lado desse, acima do personagem da criança: “SE
SE ACHA Q EU NÃO
SINTO FOME...”, texto situado dentro de uma bola representando um pensamento. “... PENSE
NISSO!”, diz o terceiro personagem. Com lágrima nos olhos o menino mantém suas mãos
estendidas, pedindo. A mulher está numa posição de defesa, medo ou talvez desconfiança. O
quarto personagem pode ser entendido, até mesmo, como uma representação da criança
interior. Também chora. De olhos fechados nada vê. Em pequena estatura é o menor dos
personagens, uma criança branca com touca na cabeça.
(Observe novamente a foto).
Veja que o bigode do homem é também a touca de uma pequena criança, a grande
mão esquerda do homem toca a pequenina mão esquerda da criança. As roupas são simples,
sem destaque na composição. Traços retos, alguns brilhos (aparentes estrelas - uma em cada
personagem). Não foi pintado o fundo da imagem.
Analisemos agora outro exemplo de manifestação contra a exclusão social:
O graffiti aloja-se num largo muro na entrada da Vila do João, favela carioca que
pertence ao complexo da Maré. Assim como nas demais intervenções deste estudo está
localizada em um local de enorme fluxo de veículos e de grande concentração de intervenções
por metro quadrado de área.
Na parte superior desse graffiti está escrito: “Ñ ADIANTE LER”. Frase localizada acima
da assinatura do codinome do artista PREÁ que preenche o centro do lado direito da
intervenção parietal. A imagem central do texto é de um menino negro de jaleco, com um olhar
perdido, nitidamente desorientado. A mão direita apoiando o queixo está apertando as
bochechas produzindo um bico nos lábios, enquanto a mão esquerda descansa sobre livros. A
cor, o comprimento e a frouxidão da roupa sobre o corpo do garoto somados à posição dos
bolsos e aos grandes botões criam um jaleco, uniforme utilizado por alunos de escolas técnicas
do Rio de Janeiro.
Essa é uma intervenção elaborada no ano 2000, data registrada no lado esquerdo,
paralelo à coluna com o símbolo do grupo que pertence o graffiteiro. Um exemplo de protesto
contra a discriminação, um manifesto que busca demonstrar a dificuldade de se obter uma
sobrevivência digna para o negro. Este quadro desabafa ao mesmo tempo em que chama o
observador para refletir sobre a desigualdade social. A intervenção urbana pode ser entendia
ao mesmo tempo como um protesto contra as elites e contra o Estado. É possível imputar um
sentido de confronto as elites em função da responsabilidade destas sobre as normas informais
que regem as relações de trabalho e ascensão social. O Estado é culpado pela qualidade
inferior da educação nas escolas públicas, local onde irá estudar o negro pobre favelado.
Não adianta ler? Certamente é importante escrever, pintar, “gritar” pelos muros para
quem quiser ouvir, sejam desabafos ou instruções morais. Não adianta ler. Mas certamente é
uma ação positiva fortalecer a auto-estima através do reconhecimento e estímulo de um talento
artístico.
(observe a foto 3, ao final do texto).
Nesta inscrição parietal há um menino projetado, em 3-D, atrás de uma janela.
A imagem de um menino foi dividida em duas partes: o busto e o quadril do garoto. A
parte inferior demonstra que não se trata de um retrato em moldura, trata-se, contudo de uma
imagem que chega de outro plano, além do muro. Podemos enxergar no retângulo inferior uma
garrafa que, da mão do garoto, permite escorregar de seu interior um líquido amarelo. A faixa
estreita que está sobre os olhos do menino, obstruindo totalmente sua visão, porta a frase:
“VOCÊ SE IMPORTA?!”, Uma pergunta ao espectador, uma frase lançada que pode induzir
para outros questionamentos por parte de quem lê, ao invés de meras afirmações impensadas
como um simples “sim” ou um “não”.
O sentido da intervenção se completa com a leitura de alguns signos, que merecem
maior atenção. Sobretudo, fará sentido ao graffiti uma garrafa com um líquido amarelo
escorrendo se entendermos que se trata de entorpecente. As características expostas remetem
à cola de sapateiro, um tóxico comum aos meninos de rua por ser de fácil acesso e preço
baixo. Esse entorpecente é um líquido viscoso de coloração amarela e é preferencialmente
utilizado em pequenos recipientes, como garrafinhas, para fornecer fácil manipulação e
conservar melhor o produto, que se estraga perante exposição prolongada ao oxigênio. Deste
modo, recipientes pequenos e estreitos são convenientes porque diminuem a superfície de
contato com o ar.
Geralmente o tóxico é usado pelas crianças marginalizadas com propósito de disfarçar
a fome. Você se importa?! Um observador deste graffiti pode interpretar que esta intervenção
pretende apenas chamar a atenção para as crianças, todavia além desta possibilidade há outra
que também envolve a questão social: o menino mestiço possui traços de negro e de
nordestino, a luz que incide na imagem de frente e a cor cinza dificultam uma definição étnica,
o que parece ser de propósito. O nariz largo e achatado, os lábio grossos, o cabelo crespo e
sobrancelha larga são traços dos negros, enquanto o rosto largo e retangular, cabeça chata e
orelhas abertas lançadas para frente são traços marcantes das populações nordestinas.
Estereótipos que, majoritariamente, predominam nas favelas cariocas e em vários outros
guetos de miséria.
Você se importa que meninos de rua se droguem? Você se importa que meninos
moradores das favelas usem drogas?
Há no Rio de Janeiro muitas inscrições parietais - desenhos e escritos -, que
demonstram a inquietação com: a violência, o racismo e a exclusão social. Com maior
concentração no centro da cidade, os graffitis perfazem dezenas de kilômetros de muros e
paredes transformando a paisagem urbana ao mesmo tempo em que levam até a população as
vozes desses jovens.
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AMOSTRA ICONOGRÁFICA
(Todas as fotos expostas foram tiradas pelo autor).
Foto 1: UTRIS. Sobrevivência Urbana. Acrílica s/tapume, 2m2. Largo da Carioca, RJ. Foto
de 2000. Atualmente desaparecido.
Foto 2: DAM. Pense nisso! Acrílica s/concreto, 2,20m x 8,85m. Av. Brasil, entrada da
Vila do João, Bonsucesso, em frente a FIOCRUZ. RJ. 2006. Atualmente no local,
sobreposto por outras pinturas.
Foto 3: Composição
coletiva do grupo Nação.
Você
se
importa?!
Acrílica
s/concreto,
2,29m x 1,16m. Av
Radial Oeste, muro da
ferrovia próx. a UERJ,
Maracanã,
2006.
Atualmente no mesmo
lugar.
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