Moçambique
O Sector da Justiça e o Estado de Direito
DOCUMENTO PARA DEBATE
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Índice
Introdução
1
1
O direito internacional, a Constituição da República e a reforma legal
3
2 Gestão e fiscalização do sistema de justiça
7
3 Independência e responsabilização de masgistrados e advogados
11
4 Justiça criminal
15
5 Acesso à justiça e protecção dos direitos
19
6 Assistência ao desenvolvimento do sector da justiça
21
23
Conclusão
Introdução
Este documento para debate baseia-se num relatório geral sobre o sector da justiça em
Moçambique intitulado Moçambique: O sector da Justiça e o Estado de Direito (o relatório principal). Este relatório é produto de um projecto de pesquisa de um ano, conduzido com base
num questionário, no qual se solicitaram opiniões, informação de funcionários judiciais, de
membros da sociedade civil, académicos, políticos, cidadãos comuns e doadores. Ele é parte de
uma série de relatórios sobre Moçambique a ser produzido pelo Africa Governance Monitoring
and Advocacy Project (AfriMAP), um projecto da Open Society Foundation (OSF) implementado
em conjunto com a Open Society Initiative for Southern Africa (OSISA). O AfriMAP está igualmente a produzir relatórios similares na África do Sul, Malawi, Gana e Senegal. A ideia subjacente ao AfriMAP é efectuar auditorias ao cumprimento pelos Governos africanos dos padrões
internacionais e africanos dos direitos humanos e boa governação, incluindo os compromissos
assumidos nas Constituições nacionais. Os relatórios destinam-se a ser um recurso para profissionais e activistas dos direitos humanos nos países seleccionados, assim como para aqueles que
trabalham noutros países africanos, para com base nele melhorarem o respeito pelos direitos
humanos e valores democráticos no continente.
Este documento não é um resumo do relatório principal, que deve ser tomado como um
documento distinto e lido separadamente. Ele visa, sim, suscitar o debate em torno de algumas
informações, dos argumentos ilustrados no relatório principal e com base neles avançar algumas
recomendações de políticas concretas a serem adoptadas. Estas recomendações visam encorajar
um debate centrado na identificação de medidas prioritárias que podem ser consideradas pelo
Governo na resolução dos problemas subjacentes no sector da justiça. Embora o sector da justiça
tenha passado por transformações substanciais desde o fim da guerra civil, ainda há por ultrapassar vários obstáculos para que o sector seja capaz de satisfazer as necessidades de justiça e do
respeito do Estado de Direito.
D O C U M E N T O P A R A D E B AT E
1. O direito internacional, a
Constituição da República e a
reforma legal
O sistema de justiça em Moçambique tem sofrido grandes transformações desde a independência nacional em 1975, decorrentes das revisões constitucionais que se foram registando. A
Constituição de 1975 consagrava um Estado socialista monopartidário, dirigido pela FRELIMO
(Frente de Libertação de Moçambique), sem separação de poderes. A Constituição de 1990,
elaborada como parte integrante das negociações de paz que acabaram com a guerra civil entre
a FRELIMO e a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), determinava a existência de
um sistema multipartidário, ampliava o reconhecimento dos direitos dos cidadãos, assim como
a independência dos tribunais em relação ao Executivo e ao controlo partidário. Ao longo do
mesmo período, foi adoptada nova e importante legislação que levou a subsequentes alterações
no sistema judicial. Em 2004, foi adoptada uma terceira Constituição pós-independência, que
viria a consagrar mais direitos individuais e reforçar a independência dos tribunais, embora as
reformas introduzidas não tenham sido tão amplas como alguns esperavam.
A estrutura dos tribunais moçambicanos continua a ser regulada pela Lei Orgânica dos
Tribunais Judiciais de 1992, que estabelece três níveis principais de tribunais judiciais: distritais,
provinciais e o Tribunal Supremo, em Maputo. Esta lei carece de revisão por forma a reflectir os
desenvolvimentos dos últimos quinze anos. Por exemplo, a Constituição de 2004 estabelece a possibilidade de existência de tribunais judiciais de nível intermédio, entre o provincial e o Tribunal
Supremo, ao qual caberia julgar os recursos dos tribunais judiciais provinciais. A criação destes
tribunais regionais de recurso poderia contribuir de forma significativa para reduzir o enorme
volume de processos com que o Tribunal Supremo se debate, bem como melhorar o acesso
à justiça aos cidadãos que vivem fora de Maputo. Igualmente à luz da Constituição de 2004,
também seria necessário criar novos tribunais administrativos nas províncias, o que permitiria o
recurso contra as decisões do Executivo ao nível provincial. Ou seja, a reforma legislativa tem que
ser seguida de acção prática. Por exemplo, os tribunais do trabalho foram criados legalmente em
1992, mas ainda não se encontram a funcionar. Apesar de se terem criado secções laborais tanto
nos tribunais provinciais como no Tribunal Supremo, elas não conseguem dar vazão ao enorme
volume de processos que aguardam julgamento nos tribunais judiciais.
D O C U M E N T O P A R A D E B AT E
A ausência da menção aos tribunais comunitários talvez seja a falha mais gritante da Lei
Orgânica dos Tribunais Judiciais. Os tribunais comunitários que foram estabelecidos após a
independência, são, dentre os fóruns oficialmente reconhecidos, os mais generalizados em
Moçambique, sabendo-se da existência de pelo menos 1.500. Embora juridicamente regulados
pela Lei dos Tribunais Comunitários de 1992, que lhes atribui competência legal para julgar
disputas cíveis e criminais de menor valor e gravidade, os tribunais comunitários não se encontram reconhecidos na Constituição de 1990 e não têm laços formais com os tribunais judiciais.
Na prática, eles não têm recebido apoio financeiro nem material do Governo ou dos tribunais
judiciais. Representando um importante passo em frente, a Constituição de 2004 reconheceu a
sua existência, sendo agora urgente a aprovação de legislação que enquadre juridicamente este
seu novo estatuto, permitindo-se o recurso das suas decisões ao resto do sistema de tribunais, de
forma similar ao que ocorre com os tribunais judiciais. Há informações de que a UTREL está a
trabalhar na revisão da Lei dos Tribunais Comunitários que os enquadra no sector judicial, o que
permitiria a sua ligação aos tribunais judiciais através de um sistema de recurso.
Em Moçambique, tem sido quase nula a prática de litigação sobre a constitucionalidade das leis aprovadas pelo Parlamento ou das acções do Executivo, embora tal situação
possa vir a alterar-se com o estabelecimento do Conselho Constitucional em 2003 e com a
ampliação dos seus poderes pela Constituição de 2004; até aí, as decisões finais em matéria
juríco-constitucionais eram tomadas pelo Tribunal Supremo, agindo como Conselho
Constitucional. Até hoje, o Presidente da República só remeteu duas leis ao Tribunal Supremo
ou ao Conselho Constitucional para a sua fiscalização prévia, antes da promulgação: a Lei dos
Feriados Islâmicos Idul-Fitre e Idul-Adhah em 1996 e a Lei da Família em 2004. Houve séria
discussão no Tribunal acerca da admissibilidade de ambos os casos. No primeiro, o Tribunal
julgou favoravelmente à sua admissibilidade, e, subsequentemente, decidiu que a lei proposta
era inconstitucional e não deveria ser promulgada. No segundo caso, o pedido do Presidente não
foi aceite. Em vista da disparidade das decisões, discutiu-se, durante o processo de revisão constitucional de 2004, a função do Conselho Constitucional de fiscalizar a legislação previamente à
sua promulgação, e esta situação ficou clarificada na Constituição de 2004.
Uma maior utilização do Conselho Constitucional levaria à criação de jurisprudência
sobre assuntos constitucionais e contribuiria para a reforma de leis e práticas inconstitucionais.
Todavia, tal litigação só pode obter resultados graduais, havendo grande necessidade de uma
reforma legal abrangente em Moçambique, que assegure a observância dos princípios constitucionais. Nos últimos anos, a reforma legal do sector da justiça sofreu um grande impulso, devido,
em particular, à criação da Comissão Interministerial da Reforma Legal (CIREL) e do seu órgão
técnico de implementação, a Unidade Técnica de Revisão Legal (UTREL). Lamentavelmente,
têm-se registado atrasos na elaboração e implementação de alguns diplomas importantes, como
por exemplo o Código Penal e o Código de Processo Penal. Embora fosse conveniente uma
abordagem mais sistemática na identificação de prioridades, o Governo está, de um modo geral,
a fazer progressos no que diz respeito à reforma legal. Dentre as leis ainda pendentes, deve ser
mencionada a nova Lei Orgânica do Ministério Público, proposta pela Procuradoria-Geral da
República.
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É urgente que se reforce a capacidade dos membros do Parlamento (deputados) para que
possam participem de forma substancial e positiva no processo legislativo. A falta de conhecimentos técnicos não lhes permite iniciar legislação ou contribuir para as leis propostas pelo
Executivo, apesar de a supervisão do processo legislativo constituir uma das suas funções chave.
Assim, corre-se o risco de o Parlamento se tornar num entrave ao processo de reforma legal; por
exemplo, a Lei da Família ficou no Parlamento durante anos antes de ser promulgada.
O contributo do Parlamento processo legislativo tornou-se particularmente importante
com a crescente utilização de decretos-leis, um novo tipo de acto normativo introduzido pela
Constituição de 2004, que permite que o Conselho de Ministros solicite ao Parlamento uma
delegação da autoridade legislativa para fins determinados. Um decreto-lei adoptado pelo
Conselho de Ministros entra automaticamente em vigor se o Parlamento não o contestar na
sessão imediatamente a seguir à sua aprovação. Este poder tem sido utilizado pelo Governo para
fazer passar legislação significativa, incluindo o recentemente revisto Código de Processo Civil.
Se o Parlamento não exercer as suas responsabilidades de supervisão, haverá cada vez mais a
tendência de os decretos-lei serem tacitamente aprovados, sem o devido debate.
Se a reforma legal em Moçambique decorrer em ritmo mais acelerado, existe também o
risco de se acentuar o fosso entre legislação promulgada e legislação aplicada. O decreto-lei de
Dezembro de 2005 que aprovou o novo Código Comercial estabeleceu, pela primeira vez, uma
comissão destinada a supervisionar a sua implementação. Este tipo de comissão poderia ser
um mecanismo útil para se garantir a implementação de legislação chave, embora ainda não se
conheça, na prática, o grau de seriedade com que a comissão estabelecida está a trabalhar. Na
falta de mecanismos gerais de monitoria do impacto das leis aprovadas, uma possível solução
seria a realização pela CIREL de um encontro anual para análise da legislação adoptada no ano
anterior. Esta seria uma área em que a sociedade civil também poderia contribuir em termos
de monitoria; a CIREL, por exemplo, poderia estabelecer uma Comissão Legal composta por
membros do Judiciário, Governo, academia e sociedade civil para realizar tal papel.
A produção de relatórios relativos à implementação de tratados internacionais de direitos
humanos poderia ser um importante instrumento da reforma legal. Embora Moçambique tenha
um historial relativamente bom quanto à ratificação, sem reserva, de instrumentos regionais e
internacionais de direitos humanos, Moçambique não tem conseguido cumprir com as suas
obrigações em termos da submissão de relatórios, tanto aos órgãos de monitoria de tratados das
Nações Unidas, como à Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. Tal situação
poderá vir a melhorar com a recente criação de uma comissão ad hoc inter-ministerial, que terá
a responsabilidade de reportar sobre a situação dos direitos humanos em Moçambique, e que
provavelmente será estabelecida permanentemente no final de 2006. Muitos países vêem a
apresentação obrigatória de relatórios sobre a implementação dos tratados de direitos humanos
como uma distracção desnecessária; no entanto, em Moçambique como noutros países, tais
relatórios podem fornecer um quadro analítico e uma oportunidade de revisão e planeamento
de esforços no sentido de uma reforma legal que amplie o respeito pelos direitos humanos ao
nível nacional. Além disso, Moçambique deveria ser encorajado subscrever os vários mecanismos dos tratados das Nações Unidas que permitem a apresentação de petições individuais aos
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órgãos desses tratados. A sociedade civil moçambicana também tem claudicado no seu papel
de contrapor ao Estado no sentido de pressioná-lo para cumprir com as suas obrigações para
com os organismos das Nações Unidas e da União Africana. Os grupos da sociedade civil nunca
submeteram um relatório “sombra” (“shadow report”) a qualquer organismo de monitoria de tratados internacionais, sendo que um processo paralelo poderia pressionar o Governo no sentido
de melhorar o seu desempenho.
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2. Gestão e fiscalização do sistema
de justiça
Em 2001, o Governo moçambicano criou o Conselho de Coordenação da Legalidade e Justiça
(CCLJ), composto por representantes dos ministérios relevantes, da Procuradoria-Geral da
República e dos tribunais. Em 2003, o Conselho de Ministros adoptou o primeiro plano estratégico (Plano Estratégico Integrado, PEI) do sector da justiça, com base em contributos do CCLJ e
de outros actores. Mesmo assim, o sector da justiça continua a experimentar falta de coordenação
entre as suas instituições chave, ao mesmo tempo que a implementação deficiente do PEI leva
a crer que o empenho na planificação conjunta ainda é questionável. O primeiro PEI expira no
fim de 2006.
O sector sairia claramente beneficiado se o CCLJ cumprisse melhor as suas responsabilidades
de coordenação e, para tal, a sua representatividade deveria ser alargada à Ordem dos Advogados
de Moçambique (OAM). O CCLJ não deveria, no entanto, tornar-se num ‘superministério’, cooptando poderes das diversas instituições do sector. O Ministério da Justiça deveria, acima de tudo,
desempenhar um papel mais claro de liderança, sem pôr em perigo a independência dos tribunais. Este deveria agir no sentido de implementar uma série de atribuições que fazem parte do
seu mandato, incluindo a provisão de assistência jurídica e de representação legal gratuitas aos
nessecitados, assim como a prestação de apoio aos tribunais comunitários, como estabelecem
a Constituição e os regulamentos do próprio Ministério da Justiça. Responsabilidades como a
aquisição de bens e serviços, manutenção de infra-estrutura física e compilação e disseminação
de dados poderiam ser executadas e lideradas pelo Ministério da Justiça, como já acontece com
a formação de magistrados. É bem-vindo o recente anúncio do Ministro da Justiça quanto à
realização de auscultações públicas sobre a visão do sector, pois poderão desempenhar um papel
importante no desenvolvimento de um novo plano estratégico abragente e inclusivo.
Nos últimos anos, o financiamento do sector da justiça tem melhorado, não constituindo já
um problema crítico. Contudo, a execução orçamental continua deficiente, em particular no que
se refere aos orçamentos de investimento (apesar de alguma contenção na divulgação dos respectivos números). Os orçamentos destinados aos tribunais distritais estão centralizados nos tribunais de nível provincial, que são muito lentos no seu desembolso. O Tribunal Supremo deveria
melhorar a informação prestada aos tribunais distritais sobre as alocações orçamentais aos
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tribunais provinciais, para que tivessem uma base a partir do qual pudessem pedir contas pelos
fundos recebidos pelos tribunais provinciais. O Tribunal Supremo poderia igualmente orientar
de forma mais clara os tribunais provinciais quanto ao desembolso de fundos. Actualmente, as
alocações dos tribunais provinciais para os distritais são, muitas vezes, determinadas na base das
relações individuais entre juízes, sendo necessária a existência e implementação de mecanismos
institucionais de regulamentação.
Além do mais, o facto de o sector da justiça ter diversas fontes de financiamento e de existirem vários – ou nenhuns – procedimentos de auditoria, também gera confusão. De acordo
com informações prestadas pela Inspecção Geral das Finanças (IGF), instituição do Estado responsável pela realização de inspecções e auditorias, de um total de 357 inspecções e auditorias
realizadas entre 2002 e 2005, somente um tribunal foi incluído: o Tribunal de Sofala. A Terceira
Secção do Tribunal Administrativo também deveria controlar e auditar a despesa pública, mas,
por falta de recursos, tem tido dificuldades em cumprir tal missão. Esta instituição não foi capaz
de responder a um pedido de informação sobre as auditorias realizadas para a inclusão no
relatório do AfriMAP.
O financiamento proveniente de doadores externos segue, muitas vezes, um sistema
diferente. O Governo está a encorajar os parceiros de desenvolvimento a canalizarem todos os
fundos directamente ao Orçamento Geral do Estado, mas os projectos de financiamento externo
continuam a ter um peso significativo no sector da justiça, e os doadores tendem a estipular os
seus próprios requisitos de auditoria, geralmente através de auditores externos.
A lei que regula o Sistema de Administração Financeira do Estado (SISTAFE) estipula a obrigação de todas as instituições reportarem e incluírem as suas fontes independentes de receita
nas suas propostas orçamentais ao Ministério das Finanças. No entanto, nem as consideráveis
receitas dos tribunais, provenientes seus emolumentos e que são canalisados directamente para
os Cofres dos Tribunais, nem os fundos recebidos pelo Ministério da Justiça relativos à actividade dos registos e notariados, são sujeitos a quaisquer mecanismos de supervisão. A falta de
transparência na utilização de tais fundos de ‘fontes próprias’ deve ser urgentemente sanada,
integrando-os no SISTAFE. Ao mesmo tempo, há que reforçar os procedimentos gerais de auditoria dos tribunais, devendo este reforço fazer parte de um esforço global pelo melhoramento e
extensão das auditorias financeiras a todas as instituições públicas.
O reforço da administração dos tribunais contribuiria significativamente para melhorar a
sua gestão financeira. A partir da altura em que a Constituição de 1990 introduziu a separação
formal entre o Judiciário e o Executivo, os juízes passaram a ser responsáveis pela administração dos tribunais. Embora tal decisão tenha aumentado a independência administrativa dos
tribunais, tais responsabilidades são vistas com preocupação, devido à sobrecarga que representam para os juízes, reduzindo-lhes o tempo que deveriam dedicar aos julgamentos. Embora a
devolução destas obrigações ao Ministério da Justiça pudesse vir a pôr em causa o princípio de
independência que sustenta o sector – o que deve ser evitado – também é necessário garantir
aos juízes a possibilidade de despenderem mais tempo nas suas tarefas fundamentais de adjudicação e gestão de processos.
O Presidente do Tribunal Supremo anunciou que está em curso a contratação e formação
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de ‘gestores de tribunais’, que serão responsáveis pela administração correntes dos tribunais.
Este processo, que conta com o apoio do Banco Mundial, poderá representar um contributo
muito útil, devendo a proposta, contudo, ser amplamente discutida com todos interessados.
Os juízes devem beneficiar de formação em gestão e administração para a execução das tarefas
que continuarem a seu cargo. Acautelando-se a independência do Judiciário, o Governo poderia
encarregar-se de outras actividades de rotina administrativa sem impacto directo no julgamento
de casos, como a construção de edifícios para os tribunais e a aquisição de serviços e bens.
Apesar de se terem registado melhorias nos últimos anos, a falta de pessoal nos tribunais,
tanto em quantidade como em qualidade, continua crítica, com salários ainda muito baixos,
mesmo depois de um aumento em 2003. De um modo geral, os tribunais funcionam em más
condições físicas, sobretudo ao nível distrital, em instalações muito básicas e antiquadas. A
nível distrital, muitos tribunais partilham espaço com outras instituições do Estado, levando à
percepção entre os cidadãos de que a independência dos tribunais está comprometida. Tanto o
Governo como os parceiros de desenvolvimento deveriam canalizar mais fundos para colmatar
este problema.
A disponibilidade de legislação e de jurisprudência também constitui um problema nos
tribunais, em particular ao nível distrital, onde a maioria não possui exemplares de diplomas
legislativos essenciais; quando existem, tais diplomas pertencem, em geral, aos juízes, que os
levam consigo em caso de transferência ou de aposentação. O Centro de Formação Jurídica e
Judicial (CFJJ) começõu a fornecer legislação aos juízes que aí são formados, o que pode ser uma
via importante para lhes garantir alguns instrumentos de trabalho para o cumprimento das suas
obrigações. No entanto, estes diplomas legislativos só são atribuidos aos juízes recém-formados
e não aos que se encontram em funções há mais tempo. Dado o ritmo crescente da reforma
legal, há o risco real de os juízes dos tribunais distritais ficarem legalmente desactualizados a
ela. Apesar dos esforços desenvolvidos, incluindo pelos doadores, no sentido de se melhorar a
distribuição de legislação, tais iniciativas têm-se revelado inconsistentes, devendo ser aceleradas e
mais sistemáticas por forma a atingirem todos os tribunais do país. Todos os tribunais deveriam
possuir, no mínimo, um pacote annual com asleis em vigor.
Para além do simples texto da lei, também há uma falta dramática de jurisprudência e de
comentários especializados sobre a experiência legal em Moçambique. Muitos juízes dependem
da jurisprudência dos tribunais portugueses, que é muito mais divulgada. Os que apoiam financeiramente o sector da justiça poderiam considerar, por exemplo, o patrocínio de uma publicação
de direito africano lusófono, possibilitando aos juristas moçambicanos a aprendizagem não só
com os seus colegas locais, mas também a partir da experiência legal de Angola, Guiné Bissau,
Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Poderia igualmente ser útil a divulgação de jurisprudência
e comentários brasileiros, assim como a tradução e distribuição de peças seleccionadas da jurisprudência e comentário de outros países da Comunidade para o Desenvolvimento da África
Austral.
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3. Independência e responsabilização
de magistrados e advogados
O Presidente da República, Armando Guebuza, tem enfatizado claramente o seu compromisso
com o Estado de Direito. Apelos a um maior respeito pelo Estado de Direito marcaram a sua
campanha eleitoral e, desde que assumiu o cargo em Fevereiro de 2005, não tem cessado de
afirmar publicamente este seu empenho. É séria a tarefa que o Governo enfrenta: apesar de
existirem códigos de conduta claros, alguns membros do Executivo parecem engajados em
violação deliberada das leis, quer não respeitando decisões judiciais quer interferindo em investigações e processos judiciais. O grau de incumprimento da lei pelo Executivo foi comentado
pelo Procurador-Geral da República quando, em 2001, afirmou no Parlamento que “a cultura
da legalidade é ainda um sonho, mesmo entre os nossos líderes”. O famoso julgamento dos
assassinos do jornalista Carlos Cardoso, morto em 2000 na sequência das suas reportagens
sobre corrupção, tornou evidente a percepção de que o crime organizado tem ligações com altos
funcionários do Governo e de que é capaz de ‘comprar’ a sua fuga à justiça. As repetidas fugas
de Anibalzinho, condenado pelo assassinato de Carlos Cardoso, de sua prisão de alta segurança,
tornaram ainda mais fortes tais percepções.
A Constituição de 2004 prevê uma série de sanções criminais e cíveis, assim como mecanismos de investigação de alegações de abusos cometidos por titulares de cargos públicos.
Contudo, na prática, tais mecanismos não têm sido implementados, apesar das frequentes
alegações vindas a público na comunicação social de envolvimento de funcionários do Governo
em actos de corrupção. O Tribunal Administrativo também informou ao Parlamento sobre ilegalidades e irregularidades detectadas nas contas do Estado, sobre as quais não se desencadeou
qualquer acção, apesar de serem susceptíveis de investigação por parte da Procuradoria-Geral
da República. A integridade e eficiência do trabalho da Procuradoria-Geral da República tem
suscitado sérios questionamentos. O próprio Procurador-Geral tem sublinhado repetidas vezes a
existência de corrupção em investigações criminais. As alegações de obstrução da justiça surgidas durante as investigações e o julgamento do chamado caso Carlos Cardoso, assim como
a falta de progresso nas investigações do igualmente famoso assassinato de António Siba-Siba
Macuácua em 2001, que também estava a investigar situações de corrupção oficial, serviram para
destacar a existência de graves problemas na acção do Ministério Público.
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Uma maior protecção estrutural da independência no processo de nomeações tanto para
o judiciário como para o Ministério Público seria uma das formas mais óbvias de reforço da
independência dos tribunais relativamente ao Executivo.
A Constituição de 1990 foi a primeira a introduzir em Moçambique o princípio da independência do Judiciário, que viria a ser retomado pela Constituição de 2004 com garantias reforçadas
de independência administrativa e política dos tribunais. No entanto, o Presidente da República
detém um controlo bastante forte sobre as nomeações para os tribunais superiores, sendo directamente responsável pela nomeação do Presidente e Vice-Presidente do Tribunal Supremo, cabendo
ao Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) um papel de aconselhamento. O CSMJ é
um órgão de dezasseis membros, constituído pelo Presidente do Tribunal Supremo (presidente
ex officio do CSMJ) e pelo seu Vice-Presidente, por dois membros nomeados pelo Presidente da
República, cinco eleitos pelo Parlamento com base na sua representação proporcional e por sete
juízes eleitos pelos seus pares. Também cabe ao CSMJ a responsabilidade de propor uma lista de
juízes para nomeação ao Tribunal Supremo, assim como nomear e orientar as carreiras dos juízes
e do pessoal de todos os outros tribunais judiciais (provinciais, distritais e especializados).
Para contrabalançar o poder do Executivo, é extremamente importante a supervisão do
processo de nomeação dos membros do judiciário. Contudo, o facto de o Presidente do Tribunal
Supremo ser Presidente ex officio do Conselho Superior da Magistratura Judicial leva à percepção de que o CSMJ se encontra intimamente ligado ao Executivo. Esta duplicidade de papéis
revela-se importante não só no processo de nomeações para o Judiciário, mas também quando
as próprias decisões do CSMJ são submetidas ao Tribunal Supremo. Tal conflito de interesses
foi reconhecido num processo de 2002 - Luís Timóteo Matsinhe v. Presidente do Tribunal Supremo
de Moçambique – em que o Tribunal Administrativo decidiu que era inconstitucional recorrer
das decisões do CSMJ ao Tribunal Supremo, pois um determinado processo poderia vir a ser
apreciado pelos mesmos indivíduos que já o haviam julgado. Apesar desta decisão, em 2005 o
Presidente do Tribunal Supremo nomeou uma comissão composta por três juízes do Tribunal
Supremo para continuarem a julgar recursos relacionados com decisões do CSMJ.
O reforço do papel do CSMJ no processo de nomeação e designação de juízes poderia ser
uma das medidas de resposta à percepção de falta de independência dos níveis mais altos do
Judiciário perante o Executivo, à semelhança do sistema existente na África do Sul e em alguns
outros países da África Austral. Embora na maior parte dos países seja normal o chefe do
Governo ter um papel importante nas nomeações de magistrados para os tribunais superiores,
a influência do CSMJ poderia ser reforçada e a sua representatividade ampliada, em particular
com a inclusão da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM). O CSMJ seleccionaria então
os candidatos ao Judiciário, incluindo para a presidência do Tribunal Supremo, com base em critérios públicos e num processo de entrevistas igualmente públicas, os quais seriam apresentados
ao Presidente da República, que poderia escolher dentre os propostos, mas não sugerir nomes
alternativos. Tais requisitos deveriam ter protecção constitucional. Além disso, também deveria
caber ao Tribunal Administrativo, e não ao Tribunal Supremo, o julgamento de recursos relativos
a decisões de natureza disciplinar.
As mesmas medidas deveriam ser estendidas à nomeação do Procurador-Geral da
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República, considerado membro do Judiciário à luz do sistema de direito civil. Presentemente,
o Procurador-Geral e o Vice Procurador-Geral são nomeados pelo Presidente da República. A
Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da República, de 1989, prevê a existência de um Conselho
Superior da Magistratura do Ministério Público (CSMMP), responsável pela gestão e disciplina
do Ministério Público. A Constituição de 2004 estipula que o CSMMP deveria incluir membros
eleitos pela Assembleia da República, assim como pelo Ministério Público. Este órgão deveria ser
implementado com carácter de urgência. A nova Lei Orgânica proposta pelo Procurador-Geral da
República também deveria providenciar uma maior independência na nomeação do ProcuradorGeral. Especialmente no caso do Procurador-Geral e do Vice Procurador-Geral, a escolha deveria
caber ao Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público num processo transparente,
sendo o Presidente da República responsável apenas pela formalização da nomeação e pela
investidura. O Procurador-Geral propôs a inclusão deste procedimento na Constituição de 2004,
mas tal não aconteceu.
Os problemas relativos à independência perante o Executivo também ocorrem aos níveis
mais baixos do sistema judicial. Tanto os juízes como os procuradores entrevistados no decurso
da pesquisa da AfriMAP referiram uma série de exemplos específicos de interferência indevida
nos tribunais por membros da Administração Pública, que procuraram, directa ou indirectamente, influenciar decisões judiciais. Devido à falta de fundos e de infra-estruturas físicas, que
tende a caracterizar os tribunais distritais, os juízes a este nível são mais vulneráveis a influências externas. Esta situação deve-se, em parte, ao historial de autoridade do partido FRELIMO
sobre todas as áreas da governação, em especial nas zonas rurais, e à dramática falta de juízes
devidamente qualificados, particularmente ao nível distrital, apesar das melhorias registadas nos
últimos anos.
Se os juízes e os procuradores tivessem formação superior, ser-lhes-ia mais fácil resistir a
interferências por parte do Executivo ou de dirigentes partidários. O Conselho Coordenador da
Legalidade e Justiça (CCLJ) tomou a iniciativa de recrutar e formar mais juízes, e os aumentos
salariais efectuados têm ajudado a atrair mais candidatos; contudo, o seu número mantém-se
dramaticamente insuficiente, fazendo com que esta continue a ser uma questão prioritária,
embora não de resolução fácil ou rápida. Além disso, o Conselho Superior da Magistratura
Judicial deveria fortalecer-se e tornar mais transparente a sua acção disciplinar contra os juízes
cujo desempenho não esteja ao nível esperado. Segundo a informação geral publicada pelo
Presidente do Tribunal Supremo sobre as actividades do CSMJ, este tem iniciado uma série
de processos disciplinares que, no entanto, visam mais os membros do pessoal administrativo
dos tribunais do que os juízes. A informação publicada deveria ser mais detalhada por forma
a esclarecer o público quanto às alegações de má conduta por parte de juízes. O CSMJ poderia
igualmente elaborar critérios de avaliação do desempenho judicial e divulgá-los, o que daria ao
público a possibilidade de monitorar a conduta dos juízes e de conhecer melhor o grau de independência exigido no que se refere a interferências por parte do Executivo.
Embora hajam medidas imediatas a serem tomadas, a melhoria da qualidade das tomadas
de decisões judiciais, incluindo o combate às interferências do Executivo, implica um esforço a
longo prazo pelo fortalecimento mais global da profissão jurídica em Moçambique. Apesar de
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nos últimos anos haver mais formação jurídica disponível, inclusive através da abertura de universidades fora de Maputo, a OAM tem carência de advogados qualificados que prestem serviços
de representação legal, mesmo para aqueles que podem pagar pelos serviços. Além do mais,
os conteúdos da formação jurídica são, muitas vezes, demasiado teóricos e insuficientemente
práticos, tendo como consequência graduados pouco preparados para o exercício da profissão.
Graduados em direito devem estagiar com membros da OAM para ganharem experiência profissional antes de serem admitidos como advogados, mas a Ordem já reconheceu não ter capacidade para supervisionar todos os potenciais candidatos. No tocante as medidas disciplinares dos
seus membros, o papel da OAM deixa muito a desejar. A OAM deveria avançar com a elaboração
já proposta de um código de conduta para os seus membros. Por outro lado, é necessário um
debate mais imaginativo e inovador sobre a estrutura da formação jurídica, por forma a assegurar que os admitidos na OAM tenham alcançado um padrão mínimo de qualificação. A OAM
deveria ser apoiada nos seus esforços de reforma, com vista a ser mais pro-activa no seu papel
de fiscalização.
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4. Justiça criminal
Moçambique tem um dos rácios mais baixos do mundo de agentes da polícia vs cidadãos: 1 para
cada 1.089 cidadãos (em comparação com 1 para 450 na África do Sul). Não admira, pois, que
uma cobertura tão fraca leve à convicção generalizada de que os índices de criminalidade são
muito mais elevados do que os números divulgados. Têm-se desenvolvido esforços para melhorar o recrutamento e ministrar formação às forças policiais, em particular com a abertura da
Academia de Ciências Policiais (ACIPOL). Todavia, para melhorar substancialmente a cobertura
policial do país, será necessário um financiamento muito maior, que permita pagar salários mais
elevados e assegurar a formação. Não existe informação disponível do Ministério do Interior
(MINT) sobre as dotações orçamentais à Polícia da República de Moçambique (PRM), nem sobre
a maneira como são dispendidas. Maior transparência permitiria um debate público, aberto,
sobre a suficiência ou não dos fundos alocados à PRM. Com o impacto adicional do HIV/SIDA
sobre as forças policiais — em 2006, um representante do MINT disse que a PRM estava a
perder anualmente 1000 agentes devido ao HIV/SIDA — é cada vez mais urgente enfrentar
este problema.
Em 2001, o Ministro do Interior lançou a iniciativa de criação dos conselhos comunitários
da polícia, sem dúvida como resposta, pelo menos em parte, à falta de uma cobertura policial
adequada. No fim de 2005, já existiam mais de 1.000 em todo o país. Estas estruturas foram
criadas para promover o diálogo entre a polícia e os cidadãos sobre problemas de segurança
pública, e para os envolver nos esforços de prevenção do crime. Tais conselhos poderiam, em
princípio, constituir um mecanismo útil no melhoramento da segurança nos bairros, mas tem
havido problemas na sua implementação. Os cidadãos têm recebido armas de fogo, assim como
a autoridade para usá-las na manutenção da segurança nos bairros, mas sem uma boa formação
prévia. Frequentemente esses voluntários são jovens desempregados sem qualquer fonte de
rendimento, havendo, por isso, mais probabilidades de virem a abusar da sua posição em benefício próprio. Estes conselhos não deveriam ser vistos como substitutos dos agentes da polícia
formados e, se têm que operar, é indispensável que as suas funções e responsabilidades sejam
regulamentadas. Neste momento, apesar de fornecer armas de fogo aos membros dos conselhos
comunitários da polícia, a PRM não se responsabiliza pelas consequências da sua utilização.
No seio da própria PRM, as alegações de abusos de direitos humanos têm vindo a diminuir
de forma consistente desde os anos 1990, e estão a ser envidados esforços no sentido de se
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profissionalizar a corporação, por exemplo, com a criação da ACIPOL. Contudo, têm ocorrido
incidentes graves que mostram que a despolitização das forças policiais ainda não está completa
— embora fosse um princípio fundamental dos acordos de paz que puseram fim à guerra civil.
Em Novembro de 2000, mais de 100 pessoas, na sua quase totalidade apoiantes da oposição,
morreram asfixiadas numa cela superlotada da polícia, em Montepuez. As mortes seguiram-se
a uma rusga policial levada a cabo após terem eclodido actos de violência numa manifestação
realizada pela Resistência Nacional de Moçambique-União Eleitoral (RENAMO-UE), contra
alegadas fraudes eleitorais. O incidente de Montepuez levou a um sério questionamento sobre
o grau de imparcialidade das forças policiais. Embora tenham sido estabelecidas uma comissão
parlamentar de inquérito e uma iniciativa independente, constituída por representantes da
sociedade civil, para averiguar o ocorrido, não foi tornado público qualquer relatório. Às organizações da sociedade civil, como a Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH), cabe um
papel essencial no registo e monitorização das alegações de abusos dos direitos humanos cometidos pela polícia. Não existe, no entanto, um mecanismo externo e independente, financiado
pelo Governo e legalmente instituído, para investigar queixas contra a polícia, sendo urgente a
sua criação.
O sistema prisional também carece dramaticamente de um mecanismo independente de
supervisão. Apesar de as comissões parlamentares visitarem, esporadicamente, as cadeias, e
reportarem sobre as suas condições, tal método não substitui um mecanismo externo e permanente. Não se deve perder a oportunidade de criar um mecanismo deste género na nova
estrutura unificada das prisões. Em Maio de 2006, foi aprovada legislação que possibilita a
unificação da estrutura dualista das prisões em Moçambique, até aí divididas entre o Ministério
do Interior e o Ministério da Justiça; e em Agosto de 2006 foi nomeado o director da nova instituição, o Serviço Nacional de Prisões (SNAPRI). O SNAPRI tem agora pela frente o desafio de
formular uma estratégia transitória clara para a unificação dos dois sistemas no terreno. Seja
qual for o plano, ele deve submeter-se a um calendário claro, com objectivos e indicadores, e ser
do domínio público, para que as organizações da sociedade civil possam monitorizar e avaliar o
andamento do processo.
As condições nas cadeias moçambicanas são deveras preocupantes, com graves taxas de
superlotação, más infra-estruturas físicas e, consequentemente, falta de condições sanitárias e
de acesso a cuidados médicos básicos. São frequentes as doenças, entre as quais o HIV/SIDA.
Muitas das prisões não funcionam na sua capacidade máxima, havendo áreas que foram abandonadas por degradação, devido, por exemplo, a danos provocados pelas recentes cheias. Há que
aplicar integralmente os fundos alocados às prisões e iniciar urgentemente obras de reparação.
Embora uma elevada percentagem dos reclusos seja constituída por jovens, quase que não
existem instalações separadas para delinquentes juvenis, levando-os a misturar-se com criminosos mais velhos e calejados no crime. Há que dar prioridade à instalação de centros de detenção
exclusivamente para jovens, com ênfase na formação e reintegração; doutro modo, será muito
difícil quebrar o ciclo do crime. Sendo tão elevada a percentagem de reclusos jovens e tendo em
conta que o actual quadro legal não prevê sentenças alternativas à prisão, é necessário que haja
mais debate sobre tal possibilidade, envolvendo o Estado e a sociedade civil.
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A questão da superlotação das cadeias moçambicanas também se prende com as enormes
demoras processuais para levar os casos criminais a julgamento. Apesar de a situação ter melhorado consideravelmente nos últimos anos, 53% dos reclusos estavam a cumprir prisão preventiva
em 2005. O actual quadro legal estabelecido pelo Código de Processo Penal permite que um
suspeito permaneça detido até seis meses sem ter sido formalmente acusado. Com a grande
acumulação de processos nos tribunais judiciais, é provável que leve anos até ser ouvido. Tratase de uma grave violação dos princípios do julgamento justo adoptados pela Comissão Africana
dos Direitos do Homem e dos Povos, à luz da Carta Africana. Neste momento, o Código do
Processo Penal está a ser revisto, e os que estão à frente deste processo deveriam reconsiderar
radicalmente o actual quadro legal de detenção e acusação, que permite longos períodos de
detenção sem que acusação tenha sido formulada. Qualquer novo quadro deverá reduzir consideravelmente os prazos de detenção de um suspeito sem acusação. Isto obrigaria a polícia e o
Ministério Público a fazer mais investigações antes de procederem a uma detenção. Raramente
se cumprem as disposições já em vigor, segundo as quais um suspeito de delito menor tem que
ser julgado no prazo máximo de 5 dias após a detenção. Se fossem aplicadas, aliviar-se-ia consideravelmente a pressão tanto sobre as cadeias superlotadas, onde muitos reclusos aguardam
julgamento por delitos menores, como sobre os tribunais judiciais, com grande acumulação de
processos à aguardar julgamento.
Com um novo quadro legal a guiar o processo desde a detenção até ao julgamento e, crucialmente, com a aplicação de tal quadro legal, haveria mais probabilidades de evitar demoras
indevidas na realização dos julgamentos. A sua aplicação dependeria da eficiência da polícia, do
Ministério Público e dos tribunais no cumprimento atempado das suas responsabilidades. O
Ministério Público tem enfrentado sérios problemas no cumprimento efectivo da sua responsabilidade de supervisão das investigações criminais, tanto por carência de pessoal como pela sua
dependência da Polícia de Investigação Criminal (PIC). Apesar de ser responsável pelas investigações criminais sob supervisão do Ministério Público, a PIC encontra-se, em última análise,
sob o comando do Ministério do Interior. Este modelo institucional criou ambiguidades na linha
de controlo das investigações criminais e é uma questão que carece de resolução. Parece que o
Ministério Público e o Ministério do Interior chegaram a consenso quanto à permanência da PIC
no MINT, mas com maior autonomia administrativa e melhores recursos, para poder melhorar
o processo de investigação criminal. Se algum consenso foi alcançado sobre a PIC, este deve ser
completamente clarificado e confirmado para que a atenção se possa virar para a concretização
das melhorias no processo de investigação.
Consagrado constitucionalmente em Moçambique, o direito à representação jurídica é outra
componente chave do direito a um julgamento justo. O Instituto de Assistência e Patrocínio
Judicial (IPAJ), criado em 1994 e sob tutela do Ministério da Justiça, é o responsável pela satisfação deste comando constitucional. Os estatutos da OAM dispõem que seus membros devem
oferecer patrocínio jurídico gratuito como uma das suas obrigações durante o estágio. Como
último recurso, a lei prevê que os tribunais, o Ministério Público ou o juiz possam designar um
advogado ad hoc para representar o acusado, caso não haja outra possibilidade de representação.
Contudo, na prática, há muitas falhas na prestação deste serviço em casos criminais pela OAM
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e pelo IPAJ. Muitas vezes, os suspeitos são defendidos por um representante designado pelo
tribunal no próprio dia do julgamento e sem qualquer formação jurídica.
O facto de, num contexto de pobreza generalizada, a maioria dos réus depender de assistência jurídica tem consideráveis implicações num julgamento justo, sendo necessário proceder
a uma profunda revisão do sistema. Tanto a OAM como o IPAJ deveriam beneficiar de mais
fundos; no caso da OAM, para cobrir despesas relacionadas com a assistência jurídica e, no
caso do IPAJ, para pagar os salários dos seus membros. Também é necessário adoptar medidas
inovadoras, utilizando, por exemplo, estudantes de direito ou os que se encontram em estágio
para admissão na OAM, assim como apoiando a crescente rede de paralegais de organizações da
sociedade civil que dão assistência jurídica.
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5. Acesso à justiça e protecção dos
direitos
Como em outros países subdesenvolvidos, constitui um desafio para Moçambique garantir a
todos os cidadãos a protecção dos seus direitos consagrados na Constituição. Para a maioria dos
moçambicanos, os tribunais judiciais são inacessíveis, bloqueados por uma série de impedimentos, nomeadamente: custas judiciais demasiado elevadas relativamente aos seus rendimentos, localização a grandes distâncias e redes de transporte deficientes. Mesmo com isenção do
pagamento de custas judiciais e assistência jurídica gratuita, as despesas de transporte para os
tribunais e de alojamento fora de casa podem tornar-se obstáculos enormes e insuperáveis.
Embora medidas de pormenor, como a introdução de uma escala de custas judiciais mais
reduzida e simplificada, pudessem ajudar, são necessários passos mais radicais para que a
maioria dos moçambicanos tenha acesso a um fórum reconhecido oficialmente onde os conflitos possam ser resolvidos perante um tribunal imparcial.
A Constituição de 2004 abre várias oportunidades interessantes de resposta a este desafio.
A primeira é o reconhecimento do direito de ‘acção popular’, à luz do qual indivíduos e grupos
podem levar a tribunal casos relacionados com questões de saúde pública, direitos dos consumidores, conservação ambiental, herança cultural e propriedade pública. Como não existe legislação que faça vigorar esta disposição, não é clara a forma de obtenção deste direito. A UTREL
deveria ser mandatada e financiada para proceder a consultas amplas e preparar legislação que
fornecesse o quadro legal necessário ao cumprimento desta disposição.
Em segundo lugar, como acima se referiu, a Constituição de 2004 também trouxe um novo
e importante reconhecimento dos tribunais comunitários, que talvez constituam o fórum mais
acessível e rápido de resolução de disputas formalmente reconhecido pelo Estado. Contudo,
tais tribunais jamais receberam apoio financeiro, material e de recursos humanos (embora,
em alguns casos, eles sejam apoiados esporadicamente pelos tribunais distritais), estando sem
nenhum controle formal, incluindo no tocante à legislação aplicada e a nomeações. A nova
legislação proposta pela UTREL restabelece a anterior ligação dos tribunais comunitários com o
Ministério da Justiça, mas, desta vez, com um vínculo formal aos tribunais judiciais. Embora seja
importante o apoio financeiro e a integração dos tribunais comunitários no sistema de justiça,
o seu financiamento e administração deveriam ser estruturados com as mesmas garantias de
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independência asseguradas aos tribunais judiciais no que se refere a interferências do Executivo.
Tendo em conta, no entanto, os actuais problemas de distribuição de fundos do nível central
(nacional) do sistema judicial para o distrital, o CCLJ ou o CSMJ deveriam, com carácter de
urgência, considerar a criação de um sistema através do qual os tribunais nos escalões inferiores
da hierarquia pudessem ser financiados com maior rapidez. O Ministério da Justiça poderia
provar ser mais efectivo na provisão de fundos a estes tribunais que a actual estrutura. Seja qual
for a relação institucional, ela não deveria comprometer a eficácia e a relativa velocidade de funcionamento dos tribunais comunitários.
Por último, a Constituição de 2004 reconhece pela primeira vez o pluralismo jurídico em
Moçambique, o que representa um importante passo no sentido de integrar os vários sistemas
normativos e de resolução de conflitos que coexistem no país na estrutura judicial formal. Não há,
no entanto, um entendimento claro, mesmo em termos de princípio, sobre o que este reconhecimento poderá significar na prática. A Constituição não reconhece expressamente os fóruns
tradicionais de resolução de conflitos orientados por líderes tradicionais (régulos) e por líderes
locais nomeados pelo Governo (secretários de bairro ou secretários de aldeia), embora para a
maioria dos moçambicanos estes continuem a ser o seu principal mecanismo de acesso à justiça.
A questão da operacionalização do princípio do pluralismo jurídico e, especificamente, da incorporação ou não destes fóruns tradicionais de resolução de conflitos no sistema formal, carece de
um amplo debate, com auscultação pública.
Ao mesmo tempo, é necessário considerar a possibilidade de criar um mecanismo que
assegure o respeito pelos princípios constitucionais quando os fóruns tradicionais aplicam o
direito costumeiro. Ao decidir sobre o processo Presidente da República de Moçambique v. Bernardo
Sacarolha Ngomacha, o Tribunal Supremo referiu claramente que o direito costumeiro tem que
ser aplicado em conformidade com os princípios constitucionais e com os instrumentos de protecção dos direitos humanos acordados internacionalmente.
Moçambique não possui uma Comissão dos Direitos Humanos, embora discussões internas no Governo para o estabelecimento deste órgão já tenham iniciado. Uma tal Comissão
poderia desempenhar um papel importante, por exemplo, em garantir um grau maior de independência na supervisão da polícia e das prisões. O Parlamento aprovou recentemente legislação
que cria a figura do Provedor de Justiça, mas este ainda não foi eleito. O Provedor constituirá
um mecanismo adicional na defesa extra-judicial dos direitos e deveria ser implementado
rapidamente, para que este trabalho se inicie. A sociedade civil deveria exercer a sua influência de
advocacia neste sentido e ser envolvida no processo de eleição do Provedor pelo Parlamento.
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6. Assistência ao desenvolvimento
do sector da justiça
Moçambique irá, por necessidade, continuar a depender da assistência de doadores para implementar muitas das reformas identificadas neste documento. Em geral, é bem-vinda a tendência
de passar do financiamento de projectos individuais para um apoio directo ao Orçamento do
Estado, dirigido a prioridades identificadas pelo Governo e associadas a um plano estratégico.
Nos últimos anos, a coordenação entre os parceiros de desenvolvimento de Moçambique também
melhorou, mas deveria ser mais transparente, para que a sociedade civil possa determinar e fiscalizar mais facilmente a assistência canalizada para o sector. O Governo deve tomar a dianteira
na apresentação de um plano sectorial que congregue a assistência da comunidade doadora.
Algumas iniciativas específicas poderiam, no entanto, receber apoio individual directo de doadores, incluindo, por exemplo, a publicação de revistas jurídicas e a realização e patrocínio de
colóquios sobre matérias jurídicas, assim como o desenvolvimento de uma troca de experiência
entre os países africanos lusófonos.
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Conclusão
Desde o fim da guerra civil e da assinatura dos acordos de paz, o sector da justiça em Moçambique
tem sofrido transformações que reflectem as mudanças políticas e sócio-económicas que estão
a ser implementadas pelo Governo. Moçambique passou de Estado monopartidário para uma
democracia constitucional, multipartidária, e o sector da justiça deixou de ser uma ramificação do
partido FRELIMO. A Constituição de 1990 consagrou o princípio da separação de poderes entre
os Tribunais, o Executivo e o Legislativo, que viria a ser reforçado na Constituição de 2004.
Contudo, apesar de melhorias substanciais que foram introduzidas, a independência dos
tribunais e do Judiciário ainda não está garantida. A todos os níveis do Governo, os membros
do Executivo deveriam submeter-se às decisões dos tribunais, cooperar com os processos de
investigação e respeitar a independência dos tribunais e dos seus juízes, mas tal nem sempre
se verifica. Se tais princípios não forem estritamente respeitados, a confiança do público nos
tribunais corre o risco de ficar ainda mais enfraquecida. Para que a independência judicial
seja verdadeiramente assegurada, é preciso que os órgãos de supervisão também vejam reforçado o seu papel no processo de nomeação do Presidente do Tribunal Supremo e também do
Procurador-Geral da República.
Os tribunais judiciais não são uma realidade para a grande maioria dos cidadãos moçambicanos. Há que implementar as disposições da Constituição de 2004 para a introdução de um novo
escalão de tribunais de recurso ao nível provincial e de tribunais administrativos nas províncias, como
forma de melhorar a acessibilidade dos tribunais. A maioria dos cidadãos continua, no entanto, a
depender do sector informal: de tribunais comunitários ou de outros mecanismos tradicionais de
resolução de conflitos. É urgente a clarificação do estatuto dos tribunais comunitários, assim como é
a prestação de apoio financeiro para sua operação. A formação dos juízes dos tribunais comunitários
e dos líderes tradicionais locais aumentaria a possibilidade de os princípios constitucionais e padrões
de direitos humanos serem observados nestes fóruns de resolução de conflitos.
Há um grande debate nas instituições do sector da justiça quanto ao seu futuro, um processo de auto-reflexão e de discussão interna que é de saudar. Agora, é essencial que o sector seja
capaz de trabalhar como um todo na implementação de novas estratégias e políticas. No entanto,
o crucial no processo da reforma do sector da justiça é garantir que haja vontade política para
a concretização das medidas resultantes da reflexão pública e das novas políticas e estratégias
adoptadas.
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