Abrimos hoje – oxalá com a periodicidade que desejamos –
um tempo de debate sobre questões do nosso tempo.
Questões imbricadas com a justiça, a sociedade e o poder,
que formam o núcleo recorrente de dificuldades sentidas, de
preocupações teorizadas, de dúvidas ou certezas adiadas.
Daí que tivéssemos recorrido, para este debate, a quem sabe
bem mais do que nós.
Os convidados que irão intervir, durante os dias de hoje e
amanhã, fazem parte, indiscutivelmente, do leque daqueles que
pensam, num patamar superior, a temática que nos propomos
abordar.
Pretendemos ouvir quem sempre se posicionou numa atitude
de distanciamento em relação ao mundo da justiça, quem nunca se
deixou dominar por experiências pessoais ou familiares que tornam
parcial o discurso subjectivo subsequente (como tantas vezes tem
acontecido, entre nós), quem tem o voo de ave capaz de subir
acima dos limites do tempo.
Quando, no primeiro terço do séc. XX, a música clássica
europeia era dominada pelas figuras cimeiras de Ravel e Debussy
e se discutia, comparativamente, a grandeza dos dois, um crítico
musical teve o comentário que ficou: Ravel voa mais vezes,
Debussy quando voa, sobe mais alto.
Não é bem isso o que visionamos: que estes dias nos dêem o
voo das águias sem nos preocuparmos com os limites do voo.
Os tribunais transformaram-se nos mediadores universais das
sociedades democráticas.
Tudo vai parar aos tribunais; e nos conflitos de intensidade
elevada ou radical a morosidade do processo é uma benesse
politicamente bem-vinda que amortece o radicalismo do conflito.
Com isso, o tribunal não é apenas um mediador; é também
um amortecedor que filtra e civiliza o antagonismo primário dos
contendores, seja qual for a natureza assumida por aquele.
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Mas nessa mesma medida, os tribunais “legislam” cada vez
mais no conflito concreto que julgam, seja este público ou privado,
com intervenientes estatais ou não, incidindo sobre interesses
particulares ou colectivos, numa manifestação de poder que, com
frequência, choca com manifestações dos outros poderes.
Se a isto adicionarmos a tendência crescente para a
sindicação generalizada pela opinião pública, que atinge e abarca
também os tribunais, teremos a panóplia de questões cruzadas que
se nos depara.
Entre nós este fenómeno é relativamente recente.
Na verdade, antes de Abril/74, tudo estava sabiamente
programado.
Os tribunais (ou seja, aqueles que tinham verdadeiramente
esse nome) julgavam apenas os conflitos privados e a-sépticos da
sociedade
civil,
afastados
que
eram
intencionalmente
do
julgamento dos conflitos públicos que interessavam ao aparelho do
estado.
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Os tribunais julgavam tão-só o direito privado inter-individual; e
nisso, a teoria geral da relação jurídica, que individualizava o
conflito e o descarnava de todo o colorido social, tinha um papel
matricial fundador que remetia para a tecnicidade jurídica o mundo
sociológico do direito.
O direito laboral estava entregue a órgão travestidos de
tribunais; tal como o direito administrativo (onde o Estado era
sistematicamente
julgado),
entregue
a
órgãos
específicos
legitimados pela teoria monista incapaz de admitir que a separação
de poderes não impede o controlo jurisdicional de actos dos outros
poderes.
Apenas o direito criminal fugia a esta pax; mas, aí, controlouse a montante a investigação criminal, definindo o Ministério
Público (MºPº) como a “longa manus” do Executivo, sujeito às suas
ordens e seus desejos, e, a jusante, o julgamento de crimes
politicamente sensíveis com a instauração dos conhecidos
Tribunais Plenários.
Com um modelo assim, geraram-se, por um lado, condições
para uma independência funcional, ou interna, dos juízes que se
transmitiu como futura tradição, ao arrepio do que seria de supor e
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com a excepção declarada de quem se comprometeu nos
Plenários, e, por outro, abriu-se a porta a uma investigação criminal
à margem da independência dos juízes.
O 25 de Abril subverteu definitivamente todo este modelo; a
democratização que se seguiu e a nossa inserção no espaço
geopolítico da União Europeia fizeram o resto.
Lentamente, as nossa incógnitas passaram a ser as incógnitas
que os países da União já haviam abordado nas suas equações; e
a similitude de gestos e olhares justifica que não fiquemos
“orgulhosamente sós” porque a solidão é remédio procurado por
quem não tem remédio para o confronto recíproco de acertos e
desacertos.
Suponho que os equívocos maiores do Judiciário se situam,
hoje, mais na representação social que deles se faz do que na
interconexão com o poder político.
Com este, (com o poder político) o tempo mudou porque esse
foi o palco primeiro dos desencontros na linha de fractura entre os
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poderes
eleitoralmente
indirectamente
legitimados
legitimado
e,
por
e
aquele
isso,
outro
só
instintivamente
subalternizado.
Com a democratização alargada das sociedades e dos países,
e o alargamento da legitimidade política para além dos limites do
eleitoral, a linha de fractura foi-se atenuando e esbatendo.
Ainda assim, é possível surpreender modernamente três
pontos de fricção, embora de intensidade diferente.
O primeiro relativo aos órgãos de gestão da judicatura (os
Conselhos Superiores) no que toca especificamente ao modo de
designação dos seus membros e à recíproca correlação interna de
forças.
Aliás, neste ponto concreto, a experiência portuguesa é
particularmente impressiva.
O Conselho Superior da Magistratura (C.S.M.) entronca, na
sua matriz genética, no Conselho Disciplinar dos Magistrados
Judiciais, criado em 1892, e seguido sucessivamente, sem
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qualquer interrupção, pelo Conselho Superior da Magistratura
Judicial de 1912 e pelo Conselho Superior Judiciário de 1921.
Em todos eles se detecta o choque de pulsões contraditórias
que se sucedem dialecticamente: a do desejo do controlo de quem
julga por membros designados politicamente para esses órgãos
versus a aceitação geral de um auto-governo quase só entregue a
juízes eleitos por juízes.
A síntese feliz em que parece repousar o nosso actual C.S.M.
pode significar menos do que parece; é que a dialéctica da vida
pode transformar em nova tese uma síntese anterior.
O
segundo
ponto
de
fricção
refere-se
à
delimitação
(provavelmente cada vez mais difícil) da linha de fronteira entre a
função administrativo-executiva e a função jurisdicional.
Obviamente que a questão não se põe hoje como há dias a
colocava um analista de imprensa ao comentar um acórdão deste
Supremo sobre contratos laborais desportivos, situando-a como se
estivéssemos ainda no séc. XVIII e os tribunais fossem o “pouvoir
nul” ou a “bouche de la loi” há muito embalsamados como relíquia
passada.
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Mas põe-se, sim, em se determinar qual o exacto ponto de
equilíbrio a partir do qual a sindicância judiciária tem que parar
porque pisamos já terreno do foro político expresso em opções de
matriz governativa.
Decisões
que
contendem
eventualmente
com
direitos
fundamentais ou com interesses colectivos (conexionados com
relações de direito privado ou administrativo) serão talvez o palco
privilegiado desses desencontros, ademais quando o direito tende
cada vez mais para soluções de legalidade e não de anulação.
O problema não é apenas nosso; generalizou-se.
Quando – como há dias se referiu no Tribunal de Justiça da
União nos 50 anos do Tratado de Roma – a Greenpeace pôs
judicialmente em xeque, na Dinamarca, por razões ambientais, a
construção de uma ponte entre este país e a Suécia, ou – na
mesma Dinamarca – onze cidadãos questionaram em tribunal, com
sucesso, a adesão a Maastrich porque a transferência de
soberania fora além do permitido, e outro grupo de cidadãos
judicializou Schengen, estamos verdadeiramente no epicentro de
um novo fenómeno que se vai agigantar.
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Não se trata da visão estreita do comentador acima referido;
trata-se de algo novo que contende com linhas de fronteira de
poderes do Estado.
O terceiro ponto radica na investigação criminal, numa
perplexidade que renasce como hidra contínua de interesses
cruzados já que a escolha, a montante, de quem vai ser julgado
pode sonegar à publicidade e à imparcialidade do Judiciário o
conhecimento daquilo que se não quer dar a conhecer.
Daí que saber qual o modelo investigatório e qual a estrutura e
função do MºPº sejam a vexata quaestio que atravessa gerações.
Queremos uma investigação centrada em juízes de instrução
para, através da independência, garantir a sua autenticidade, ou
queremo-la centrada no Mº Pº?
E se a centrarmos no juiz, abriremos a porta à sua
parcialidade acusatória a ponto de ser sensato recriar um outro juiz
– o das liberdades – para restabelecer o equilíbrio perdido ou
evitaremos que isso possa acontecer?
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E queremos um MºPº hierarquizado, escalonado, “longa
manus” do Executivo à boa maneira francesa, e reflexo da típica
concentração política do aparelho de estado que a França sempre
conheceu?
Ou queremos um Mº Pº desconcentrado, mais igualizado
estatutariamente, italianizado, fazendo lembrar, aqui, a dicotomia
de Braudel entre estados territoriais e estados urbanos?
E qual o Mº Pº que garante, afinal, a neutralidade
investigatória imposta pela igualdade dos cidadãos perante a lei
quando o juiz não tem lugar no sistema?
Perguntas simples que transportam em si uma difusa e vaga
angustia para o jantar.
Mas é no interface com a sociedade civil que surgem nos
tempos que correm os maiores equívocos do Judiciário.
A mediação com a opinião pública é, tradicionalmente, feita
pela comunicação social (C.S.); e esta é, hoje, o objecto tutelado
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de
grandes
grupos
económico-financeiros
que
não
ficam
indiferentes às potencialidades de penetração e condicionamento
que a C.S. propicia.
É pois, neste quadro de pós-modernidade que devemos ler a
C.S.: um poder de facto, não escrutinado, fugindo aos cânones
clássicos de controlo, que só sobrevive se tiver lucro e que terá
tanto mais poder quanto mais lucro tiver.
O controlo da C.S. por grupos com interesses económicos
específicos (associado ao relaxamento da estabilidade do vínculo
laboral do jornalista e da sua autonomia profissional) conduz, as
mais das vezes, a efeitos noticiosos perversos, visíveis em
mudanças de direcção da política editorial quando a estratégia
empresarial o impele.
Ainda agora isso terá sido provavelmente sentido com a súbita
alteração de alvos a atingir, levado a cabo por um periódico; e
também se viu, no coro a uma só voz de inúmeros órgãos da
imprensa escrita por causa de uma recente decisão deste Supremo
(mesmo
com
a
sonegação
dos
factos
provados
como
sintomaticamente referiu o escritor Manuel António Pina na sua
crónica de 17 de Março) porque estava em jogo uma possível
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inflexão de tendência jurisprudencial com efeitos nefastos nos
hábitos indemnizatórios comunicacionais.
É, aqui, neste cruzamento de pontos confluentes, que nos
caberá perguntar qual o tipo de formação, ou deformação, da
opinião
pública
que
podemos
detectar
ou
desnudar
na
representação social da justiça, e dos tribunais, quando os
interesses hegemónicos do mediador desembocam numa visão
informativa de sentido único.
Este será provavelmente um problema das sociedades
desenvolvidas; mas entre nós, este problema tem um acréscimo
suplementar: o da ausência tradicional da partilha do poder.
Os países acossados historicamente sempre tiveram o trauma
que desembocou nisso: a França com o terror do cerco dos
Habsburgos porque Carlos V e Pavia não se podiam repetir (e que
levou à concentração do estado com Luís XIV e a Revolução); a
Polónia com a tragédia de se encontrar no ponto de intersecção de
três impérios; nós, porque tínhamos aqui ao lado a força centrípeta
da Espanha.
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Os outros foram superando o passado; em nós, o passado
transformou-se num hábito.
Daí que, em Portugal, todo o poder (seja ele qual for) esteja
sempre na capital; a C.S. não é excepção a essa regra, o que nos
reconduz a um monopólio informativo geográfico que atira às
urtigas a visão plúrima que o resto do país tem.
A modernidade do genial Eça de Queirós também radica aí.
Eça não é moderno somente porque urbanizou e oralizou a
nossa escrita; é também porque (escritor da capital e de quem, aí,
detinha o poder ou andava na sua órbita) nos fornece os tipos que
revemos hoje com a autenticidade da sua época.
Mas isso só é possível porque a cidade, a capital e o poder se
mantiveram enclausurados no mesmo lugar, sem a partilha que os
faria mudar.
É caso para saber se, num país assim, corremos seriamente o
risco da unidimensionalidade na mediação que a C.S. faz para a
sociedade civil, ou se esse risco, apesar de larvar, nunca será
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intensivo porque a chegada da Internet vai trazer a comunicação
aberta da cidadania igualitária.
Perguntas e questões estas que – parafraseando um
conhecido comentador radiofónico dos anos 60 - serão pertinentes,
mas muito impertinentes.
Luís António Noronha Nascimento
26 Abril de 2007
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Discurso do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça