Segurança pública e responsabilidade civil do Estado (Transcrições)
AI 400.336 AgR/RJ*
RELATOR: Min. Joaquim Barbosa
RELATÓRIO: É este o teor da decisão com que neguei seguimento ao agravo de instrumento
(fls. 80/81):
Trata-se de agravo de instrumento interposto de decisão que inadmitiu recurso
extraordinário (art. 102, III, a, da Constituição Federal) contra acórdão, prolatado pelo
Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, que entendeu não estar configurada a
responsabilidade do Estado do Rio de Janeiro, tanto analisando a questão sob a ótica da
responsabilidade objetiva, quanto pelo lado da omissão no exercício de poder de polícia.
2. A jurisprudência desta Corte é firme no sentido de que as pessoas jurídicas de
direito público e as pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público
respondem objetivamente pelos seus atos, bastando para isso que esteja estabelecido um
nexo causal entre o ato e o dano causado (cf. AI 383.872-AgR, rel. min. Carlos Velloso,
Segunda Turma, DJ 08.11.2002; RE 217.389, rel. min. Néri da Silveira, Segunda Turma,
DJ 24.05.2002; AI 209.782-AgR, rel. min. Marco Aurélio, Segunda Turma, DJ 18.06.1999;
RE 206.711, rel. min. Moreira Alves, Primeira Turma, DJ 25.06.1999; RE 163.203, rel. min.
Ilmar Galvão, Primeira Turma, DJ 15.09.1995, e RE 113.587, rel. min. Carlos Velloso,
Segunda Turma, DJ 03.04.1992).
3. Contudo, a mesma jurisprudência, por ter consagrado a teoria do risco
administrativo, ressalva algumas hipóteses em que é possível perquirir a culpa lato sensu:
(i) quando a vítima tiver concorrido para o acontecimento danoso e (ii) quando se tratar de
ato omissivo. Os pontos a seguir, extraídos da ementa do acórdão proferido no RE
179.147 (rel. min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ 27.02.1998), sintetizam bem a
questão:
‘(...) I. - A responsabilidade civil das pessoas jurídicas de direito público e das
pessoas jurídicas de direito privado prestadoras de serviço público, responsabilidade
objetiva, com base no risco administrativo, ocorre diante dos seguintes requisitos: a)
do dano; b) da ação administrativa; c) e desde que haja nexo causal entre o dano e a
ação administrativa.
II. - Essa responsabilidade objetiva, com base no risco administrativo, admite
pesquisa em torno da culpa da vítima, para o fim de abrandar ou mesmo excluir a
responsabilidade da pessoa jurídica de direito público ou da pessoa jurídica de direito
privado prestadora de serviço público.
III. - Tratando-se de ato omissivo do poder público, a responsabilidade civil por
tal ato é subjetiva, pelo que exige dolo ou culpa, numa de suas três vertentes,
negligência, imperícia ou imprudência, não sendo, entretanto, necessário
individualizá-la, dado que pode ser atribuída ao serviço público, de forma genérica, a
faute de service dos franceses. (...)’ (Grifos nossos)
Acrescentem-se os seguintes julgados, que também elucidam o assunto: RE 178.806
(rel. min. Carlos Velloso, Segunda Turma, DJ 30.06.1995), RE 140.270 (rel. min. Marco
Aurélio, Segunda Turma, DJ 18.10.1996) e RE 130.764 (rel. min. Moreira Alves, Primeira
Turma, DJ 07.08.1992).
Dessa orientação não divergiu o acórdão recorrido.
4. Ademais, sustenta o agravante que seu irmão somente foi assassinado por
ausência de policiamento ostensivo na região em que se encontrava (fls. 26), devendo
assim ser o Estado responsabilizado por omissão no serviço de dar segurança aos
cidadãos e preservar a incolumidade das pessoas (art. 144 da Constituição). Impossível
chegar à conclusão contrária sem o reexame de prova, o que dá margem ao
descabimento do recurso extraordinário (Súmula 279).
5. Do exposto, nego seguimento ao presente agravo.”
Dessa decisão interpõe-se agravo interno mediante o qual se alega que o Estado deve
responder por falha na prestação da segurança pública, nos termos do artigo 144 da
Constituição.
Mantenho a decisão e trago o agravo à apreciação da Turma.
É o relatório.
VOTO: Inconsistente o recurso.
Discute-se, no caso, a possível responsabilidade civil do Estado do Rio de Janeiro por
conduta omissiva, considerada a falha da segurança pública fluminense em evitar o massacre
da Candelária, ocorrido há 18 anos.
O acórdão recorrido considerou que a omissão estatal, porque calcada no artigo 144 na
Lei Maior, não seria hábil a caracterizar a responsabilidade do Poder Público, visto que o
mencionado dispositivo, em virtude de sua natureza meramente programática, teria imposto ao
Poder Público somente um dever genérico e progressivo de agir. Afirmou ainda o Tribunal de
origem (fls. 54):
“De qualquer ângulo que se queira examinar a responsabilidade do Estado, in casu,
do Estado do Rio de Janeiro, não se pode concluir, à míngua de qualquer elemento
probatório, venha de que lado for, pela responsabilidade objetiva ou pela responsabilidade
subjetiva, esta considerada na falta do serviço ou na sua deficiência.”
A ausência de suporte probatório, como sói acontecer, inviabiliza o exame pormenorizado
de questão fática na esfera extraordinária, dada a insuficiente capacidade institucional desta
Corte para examinar esse tipo de matéria. Essa é a orientação de longa data firmada, nos
termos do enunciado 279 da Súmula/STF. No que diz respeito à aplicação do verbete a casos
semelhantes a este, destaco os seguintes precedentes: AI 836248 AgR, rel. min. Joaquim
Barbosa, Segunda Turma, DJ 29.04.2011; RE 628339 AgR, rel. min. Cármen Lúcia, Primeira
Turma, DJ 08.04.2011; RE 553075 AgR, rel. min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, DJ
11.03.2011; RE 529241 AgR, rel. min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJ 14.03.2011.
Ainda que se considere a ampla notoriedade dos fatos em questão, a presente demanda
deve ser examinada em seus devidos termos.
Não se cuida de pretensão veiculada por vítima da chacina da Candelária, tampouco por
representante legal em seu nome. A bem da verdade, trata-se de ação proposta por irmão de
vítima do massacre, em interesse próprio. O que se alega, portanto, é a ocorrência de suposto
“dano moral por ricochete”, vale dizer, prejuízo indireto à dignidade do autor em razão das
ofensas mortais perpetradas contra seu ente querido.
Tal circunstância, desconsiderada em segundo grau de jurisdição, interfere decisivamente
na pesquisa do nexo de causalidade.
É que a determinação do nexo de causalidade faz-se conforme a denominada teoria da
causalidade direta e imediata, segundo a qual são indenizáveis apenas os danos decorrentes
diretamente de uma conduta, afastados os prejuízos indiretos e reflexos. Nessa linha, a título
meramente ilustrativo, confiram-se os seguintes julgados: RE 130.764, rel. min. Moreira Alves,
Primeira Turma, DJ 07.08.1992; RE 369.820, rel. min. Carlos Velloso Segunda Turma, DJ
27.02.2004
Esse entendimento, que geralmente afasta a reparação civil de danos reflexos, encontra
importante exceção no chamado “dano moral por ricochete”, como assevera a doutrina. No
entanto, a ressalva decorre implicitamente da sistemática do Código Civil, o que desautoriza
maiores divagações na instância extraordinária, cuja vocação está no exame de questões
constitucionais.
Além disso, o caráter excepcional da categoria de dano ora tratada torna mais difícil a
prova da ocorrência do prejuízo por quem o alega, visto que fundamental é a efetiva
comprovação do vínculo de afeto entre vítima e demandante. Nessa linha, a expressão
francesa “préjudice d’affection” parece retratar com maior fidelidade o fenômeno debatido,
que pode até mesmo prescindir das relações de parentesco.
Assim, entendo que a ausência de suporte probatório acerca da relação de afeto entre o
agravante e a vítima do bárbaro massacre inviabiliza a reforma do acórdão na esfera
extraordinária, aplicando-se uma vez mais o enunciado 279 da Súmula.
Nem se alegue suposta presunção relativa de dano em favor do autor, irmão da vítima.
Certo, pode-se cogitar de tal presunção em favor de certas pessoas, como parentes
próximos que tenham desenvolvido relação bastante íntima com a vítima. No entanto, do
parentesco, por si só, nada se extrai. Do contrário, por exemplo, a mãe que abandona o filho
em tenra idade poderia alegar dano moral reflexo pela morte do descendente e vencer a
demanda, na hipótese de revelia. Por isso, é fundamental a comprovação da relação de afeto,
mormente no presente caso, em que o demandante não é pai, nem mãe, mas irmão. Nunca é
demais lembrar: consideradas as circunstâncias do massacre, o vitimado provavelmente era
um morador de rua entregue à própria sorte.
Por fim, não há presunção relativa oponível à Fazenda Pública, cuja atuação em juízo
está voltada à proteção do interesse público, de caráter indisponível (artigos 320, 320 e 351 do
Código de Processo Civil, com as devidas adaptações).
Ante o exposto, nego provimento ao agravo regimental.
*acórdão publicado no DJe de 7.6.2011
Download

decisão do stf