PATOLOGIAS DAS NOVAS TECNOLOGIAS
Francisco de Paula Antunes Lima
Departamento de Engenharia de Produção - UFMG - CP 209 - CEP: 30.161-970 - Belo Horizonte/MG
The new models of production organization, in their technological and managerial
aspects, implies a new pattern of time disposal. This paper examines the every day
damages of operators in the continuous process industry (IPC). In IPC, the contradictions
between production and health did not disappear, they are just moved away to workers’
subjectivity. The contradiction between production ends and archaic forms of work
organizations appear as a primordial cause of psychic suffering of the workers, that are
impossible to be eliminated into the hierarchical division of labor.
Palavras chaves: new technology, human error, psychic suffering
1. Delimitação do problema
As atuais transformações da produção já estão relativamente bem caracterizadas, quer em
seus aspectos técnicos (automação, robótica, informatização, inteligência artificial, etc.),
quer organizacionais (produção enxuta, novas formas de organização do trabalho,
desregulamentação das relações de trabalho, implicação dos trabalhadores, etc.). Todavia, a
análise categorial dos “novos modelos de produção”, necessária para se estabelecer os
conceitos e relações fundamentais, ainda está sendo desenvolvida através de estudos em
várias disciplinas (sociologia do trabalho, economia política, psicologia do trabalho,
ergonomia, etc.). A partir dos estudos realizados pode-se evidenciar pontos de
convergência que comportam simultaneamente aspectos tecnológicos e organizacionais. A
noção de “flexibilidade” é um dos pontos de convergência que tendem a se destacar,
servindo para designar tanto os aspectos macrossociais (fala-se em “acumulação flexível” e
até mesmo em “capitalismo flexível”, cf. Harvey, 1992), como a organização do chão-defábrica (da automação flexível ao trabalhador polivalente). A multiplicidade de aspectos
abrangidos pela noção de flexibilidade a credencia como uma das características essenciais
das atuais transformações técnico-organizacionais e sua utilização certamente deve se
generalizar. Entretanto, a análise e a compreensão de todos os mecanismos que a
constituem estão apenas engatinhando, sobretudo no que diz respeito às dimensões
psicológicas da atividade dos trabalhadores que ainda permanecem no interior dos sistemas
produtivos ditos flexíveis. Este texto traz precisamente uma contribuição para se entender
em que consistem as exigências psicológicas da produção flexível, abordadas aqui através
dos efeitos patológicos sobre os operadores na indústria de processos contínuos (IPC). As
análises e conclusões a que chegamos, poderão, procedendo-se às devidas adaptações, se
aplicar também às manufaturas flexíveis (que fazem ampla utilização de tecnologias de
informação e da robótica, cf. Clot et al., 1990) e, em certos aspectos, mesmo ao setor de
serviços (pensamos, em especial, aos serviços que se utilizam de sistemas on-line, como
bancos, tele-atendimento, etc.). Uma das características essenciais da produção flexível é
que ela introduz uma nova temporalidade, uma nova forma de gestão do tempo produtivo.
Nosso intuito aqui, não é tanto caracterizar em que consiste esta gestão do tempo, mas sim
como ela é vivida subjetivamente pelos trabalhadores.
2. Novas tecnologias e relação saúde/produção
Boa parte dos ergonomistas, mesmo entre aqueles de orientação francofônica, acalentam o
sonho de encontrar uma solução racional capaz de resolver praticamente as contradições
sociais em matéria de saúde dos trabalhadores e de eficiência da produção, reconciliando-as
no interior de uma intervenção de natureza social, na qual todos os pontos de vistas
presentes dentro da empresa sejam expressados e reconhecidos. O reconhecimento das
diferenças permitiria a sua reconciliação, harmonizando eficiência produtiva e saúde dos
trabalhadores, antigo sonho de Taylor e de tantos outros cientistas do trabalho humano,
pelo menos desde Lavoisier (cf. Lima, 1997). Os espíritos mais perspicazes percebem que
não há uma lei geral quanto à relação saúde/produção, reconhecendo a contradição
insolúvel quando se trata de um processo de trabalho de base manual. Neste caso, quanto
mais intenso o ritmo de trabalho, maior será o desgaste do trabalhador. Vêem, entretanto,
na automatização, com o declínio do trabalho manual, uma solução para a contradição, pois
não há mais relação direta entre quantidade de produção e a carga de trabalho do operador
que apenas vigia e controla o processo, comodamente assentado na sala de controle. Com
efeito, o uso de um catalisador que diminui o tempo de uma reação química não acarreta
forçosamente um aumento da carga de trabalho dos operadores na IPC. Ao contrário,
quanto melhor e mais estável o processo, menor é a carga de trabalho dos operadores, que,
às vezes, podem passar longas horas sem fazer intervenções importantes no sistema
produtivo. Além disso, não há como negar que, sobretudo após a introdução dos modernos
sistemas de monitoramento e controle informatizados, melhoraram em muito as condições
de trabalho dos operadores, que dispõem de maior conforto e facilidades para controlar os
processos. Tudo faz crer, portanto, que a automatização de processos levaria naturalmente
à superação da contradição entre produção e saúde. Se isto não acontece, é porque os
tomadores de decisão estariam mal informados ou porque seriam francamente irracionais,
como acontece com a redução arbitrária dos efetivos, aumentando os incidentes e acidentes
e, conseqüentemente, reduzindo a eficiência do processo.
De fato, a automatização propicia condições objetivas para reconciliar saúde e produção, no
interior de uma nova racionalidade produtiva, mas sistêmica e global. Todavia, a efetivação
dessas possibilidades não decorre naturalmente da tecnologia, assim como não lhe é
inerente sua utilização como instrumento de controle e de expropriação do saber. Criadas
no interior de contradições sociais determinadas (em grande medida como forma capitalista
de resolver estas mesmas contradições), as novas tecnologias, por ampliarem as
possibilidades de controle dos homens sobre a natureza dos processos físicos, constituem
um desenvolvimento extraordinário das forças produtivas. Porém, enquanto mecanismo de
controle social do capital sobre o trabalho, leva ao paroxismo as novas formas de
exploração da força de trabalho, que associam a intensificação do trabalho a uma intensa
mobilização da subjetividade. Precisamente porque o capitalismo é uma forma contraditória
de organizar e de gerir a produção material, não pode encontrar dentro de si mesmo uma
solução satisfatória que permita conciliar saúde e produção. Se a sala de controle apresenta
boas condições de higiene, se a carga de trabalho física já não esgota os operadores na IPC
(ao contrário, algumas salas de controle já dispõem de equipamentos de ginástica, para
compensar a falta de atividade física), é porque não é mais no corpo biológico onde se
manifesta a contradição, mas no psiquismo do trabalhador, para lá mesmo onde se
deslocaram as exigências cognitivas e afetivas relacionadas às novas funções
desempenhadas pelo trabalho vivo. Para entender como operam essas contradições, é
necessário investigar o que se passa na interioridade dos trabalhadores a fim de evidenciar
as patologias das novas tecnologias. Para tanto, é necessário considerar a natureza dos
conhecimentos e saberes implicados no controle de processos contínuos, uma vez que a
carga psíquica (ou afetiva) de trabalho é indissociável do conteúdo e características
cognitivas da atividade.
3. A atividade cognitiva em controle de processos: o saber em mosaico
Daniellou & Boel (1985) chamam a atenção para a natureza específica dos conhecimentos
adquiridos durante o trabalho, pelos operadores de salas de controle, que se apresentam na
forma de representações operatórias. Estas representações, porque assumem uma
orientação prática, não são necessariamente negativas, pois têm uma eficácia própria nos
diagnósticos dos incidentes e no controle do sistema técnico. Lembrando resultados
semelhantes de V. de Keyser (1980), para quem, os saberes operatórios podem conduzir a
um saber “em mosaico”, pois “Acrescentar o conhecimento de um incidente ao
conhecimento de um outro e de um terceiro, não permite chegar necessariamente a um
conhecimento funcional do sistema” (Keyser, 1980. Apud Daniellou & Boel, 1985, p. 104.
Sobre o saber em mosaico, ver também Montmollin, 1986; Lima, 1996), esses autores
identificam os problemas ainda não resolvidos quanto à articulação de conhecimentos
formais (ou analíticos) e saberes práticos:
“ (...) um conhecimento apenas analítico poderá conduzir a erros, por
desconhecimento de indícios recolhidos diretamente nas instalações, de valores do
dia anterior (...). O problema que se coloca é então simultaneamente: - o de uma
formação permanente que permita aos operadores agrupar seus conhecimentos
operacionais através de um conhecimento dos mecanismos físico-químicos
explicativos; - o das condições de diálogo entre os conhecimentos dos operadores
da sala de controle e os conhecimentos de outras pessoas que intervêm sobre o
processo.” (Daniellou & Boel, 1983:104)
Os autores alertam, entretanto, que esses problemas não se resolvem sem um
questionamento da organização do trabalho, quer na definição do efetivos, quer na forma de
organização do tempo de trabalho e da divisão de tarefas (Ibid., pp. 212-3). Em especial, a
pouca flexibilidade na divisão de tarefas coloca empecilhos à confrontação e transmissão
mútua de conhecimentos entre os diferentes agentes de produção. Parece evidente que um
problema não se resolve sem o outro: organizar o conhecimento, obtido em situações
particulares, requer um certo tempo disponível, que só pode ser obtido através da
reorganização temporal da atividades de controle e de diagnóstico dos incidentes, o que
pressupõe, por sua vez, uma outra forma de divisão de tarefas entre os membros da equipe.
Esta questão foi abordada mais recentemente por Zarifian (1990, 1993 e 1995), que propõe
o conceito de “organização qualificante” para dar conta das necessidades próprias à nova
racionalidade produtiva dos sistemas de produção automatizados. Um dos aspectos
ressaltados diz respeito precisamente à forma de convocação e de interação dos diferentes
conhecimentos e experiências dos agentes da produção, que se reuniriam em grupos de
trabalho com diversos objetivos, quer de projeto, quer operacionais (melhoria de qualidade,
otimização da funcionamento das instalações; diagnóstico de panes em programas de TPM Total Productive Maintenance, etc.). Para que essas novas formas de gestão e modelos
organizacionais possam render frutos, seria necessário dotar a gestão de uma nova
racionalidade de natureza comunicativa e não mais instrumental, o que, no entanto, se
defronta com vários obstáculos. Para dar apenas um exemplo, o diagnóstico de uma pane
em um sistema complexo, quando envolve circunstâncias que fogem ao conhecimento já
formalizado, pressupõe a articulação de vários conhecimentos informais (produção,
manutenção, qualidade, compras), cujas condições de possibilidade (trabalho cooperativo,
implicação pessoal, diálogo, intercompreensão) ainda não são encontradas nas empresas,
submetidas às formas capitalistas de controle e nas quais impera a organização hierárquica
do trabalho. Não há racionalidade comunicativa numa situação em que um dos
interlocutores está desde o início colocado em situação de subordinação social, isto é,
submetido ao poder de outrem. Encontramos aqui uma das principais causas do sofrimento
psíquico dos operadores dos processos contínuos.
4. Atividade de controle de processos: exigências temporais e afetivas
Sabemos que o trabalho na IPC é intrínseca e potencialmente patogênico, em função das
características próprias à indústria de processo, em particular devido aos riscos de
explosões e de exposição a agentes químicos, cujos efeitos sobre a saúde ainda são
desconhecidos. Estes talvez sejam os aspectos mais evidentes, revelados por pesquisas
realizadas em centrais nucleares e indústrias químicas, às quais se acrescentam os relatos
jornalísticos dos acidentes de dimensões catastróficas (Bhopal, Seveso, Three Mile Island,
Chernobyl). Menos conhecido é o desgaste cotidiano provocado pelas exigências temporais
relacionadas ao fluxo ininterrupto e às incertezas decorrentes da complexidade das
instalações. Esta forma de desgaste (comumente atribuída ao estresse) dificilmente se
manifesta como patologias ocupacionais específicas e já reconhecidas, mas antes de tudo
como sofrimento psíquico. A seguir analisamos dois aspectos marcantes deste sofrimento,
relacionados ao controle cotidiano do fluxo de produção: a vivência do tempo, diante da
incerteza relativa dos acontecimentos (eventos), e a responsabilidade pelas decisões que
devem ser tomadas pelos próprios operadores, diante da insuficiência das regras previstas.
Divisão hierárquica do trabalho e formas de saber
Há uma diferença fundamental entre o conhecimento dos engenheiros sobre os processos
físico-químicos, de natureza mais analítica, e o saber operatório dos operadores. Ambas as
formas de conhecimento seriam necessárias para manter as instalações em funcionamento,
uma complementando a outra. Entretanto, a compatibilização dessas formas de
conhecimento não acontece sem dificuldades, sendo inclusive fonte de sofrimento para os
trabalhadores. Além de estarem colocados em permanência diante dos riscos de acidentes e
de paradas de produção, os operadores devem proceder a “um registro contínuo da
evolução de um grande número de parâmetros, que mantém de modo absoluto a
predominância da responsabilidade investida no trabalho e de uma possível
<<repressão>> em caso de erro. É possível que esta situação seja vivida de modo mais
agudo em ocasiões onde a aplicação estrita e mínima das prescrições não é suficiente, e
onde a distância se faça sentir ainda mais entre os operadores e os supervisores, quanto à
compreensão que cada um tem do conteúdo real do trabalho.” (Daniellou & Boel, 1983:203)
É importante reter esta sugestão quanto à experiência subjetiva dos operadores face à
incerteza e à possibilidade de cometerem erros. Como a incerteza é, em última instância, um
dado ontológico ineliminável da produção, para eliminar esta fonte de sofrimento é mister
criar condições para se lidar com os eventos e os resultados imprevistos, o que requer,
sobretudo, intervenções no âmbito da organização e da gestão. Dada a diferença entre
conhecimentos e representações de engenheiros e de trabalhadores, uma das questões
importantes é saber se a distância entre eles pode ser eliminada no interior de uma
organização hierárquica do trabalho, isto é, com uma repartição diferenciada de tarefas,
responsabilidade e conhecimentos; ou, em caso contrário, que condições são necessárias
para se estabelecer um real diálogo entre agentes da produção e as formas de conhecimento
que cada um deles detêm.
Encontramo-nos, aqui, diante de uma questão bem mais geral - a relação entre
conhecimentos formais e saberes práticos - que, no interior da produção, encontra-se
corporificada numa organização hierárquica e numa repartição desigual de conhecimentos,
de acesso a informações, de formação e de tempo para reflexão e formalização da
experiência adquirida (Lima, 1995 e 1996). Assim como o conhecimento formal (teorias,
métodos e técnicas) pode se instituir em forma superior e ditatorial sobre a experiência
vivida na organização do trabalho, os representantes e detentores destas formas de
conhecimento podem monopolizar as condições que favorecem sua aquisição (e
reprodução), em detrimento dos que detêm as formas mais imediatas e operacionais de
saber. A distribuição desigual do tempo livre para refletir sobre o processo constitui um dos
principais empecilhos à instituição de uma nova racionalidade produtiva.
Mobilização subjetiva, eficiência produtiva e poder disciplinar
Uma das características marcantes dos novos sistemas automatizados é a distribuição
desigual da carga de trabalho conforme os momentos e situações, o que Zarifian (1995)
denomina de situações eventuais (eventualidade), que ocorrem de maneira não previsível.
Esses momentos se caracterizam não apenas pelas situações de urgência (panes graves,
paradas, etc.) mas também por situações em que vários pequenos problemas ou mesmo
situações de rotina ocorrem simultaneamente (Daniellou e Boel, 1983; Daniellou, 1986).
Visto o caráter oscilante da carga de trabalho e das solicitações do sistema, sempre
ocorrerá, em certos momentos, o outro verso da medalha: situações de subcarga, nas quais
os operadores estarão sendo menos solicitados em suas funções psicossensoriais. Nesses
momentos, os operadores, ao contrário do que pode imaginar a hierarquia ou um visitante
apressado, estão também trabalhando, vigiando ativamente determinados parâmetros e
atento aos alarmes que porventura poderão soar indicando um evento inesperado. Não é,
portanto, um tempo livre, útil, durante o qual o trabalhador poderia se dedicar a outras
atividades, particularmente aquelas que requerem reflexão (por exemplo, pensar sobre as
causas de um incidente recente ou como reagir a ele).
A vigilância ativa em períodos calmos é condição para que o operador reaja prontamente às
situações eventuais, mas é insuficiente para mantê-lo num estado de vigília apropriado para
reagir aos incidentes. Os operadores encontram-se assim em uma situação de privação
sensorial, o que é agravado quando estão num turno noturno (poucas pessoas presentes na
sala de controle, sobretudo porque as equipes estão cada vez mais reduzidas. Na indústria
analisada por nós - a do cimento -, tornou-se comum ter apenas um operador na sala de
controle por turno de trabalho). Nesses momentos, o operador precisa realizar um trabalho
orientado para si mesmo, a fim de manter um estado de alerta que propicie as reações
necessárias, ou pelo menos as condições para perceber os alarmes. Para fazer face a este
isolamento, os trabalhadores desenvolvem estratégias de compensação da subcarga
psicossensorial, adotando certos meios que são quase sempre mal compreendidos pela
hierarquia, pois se chocam ao seu poder disciplinar e à sua concepção normativa subjacente
do comportamento do “bom trabalhador”.
Dejours (1993) observou que operadores em uma sala de controle de uma indústria de
processo jogam baralho durante o turno. Entretanto, o tipo de jogo escolhido (se joga em
silêncio), mais do que uma “distração”, faz com que eles permaneçam alertas e sensíveis aos
sinais do processo. Ao lembrar este caso, Y. Clot (1997) comenta: “O jogo torna-se, ao
segundo grau, um instrumento de exploração do processo, ao mesmo tempo constituindose, em primeira mão, numa técnica de trabalho sobre si mesmo.” (Clot, 1997:120) Este
autor relata outros casos de “distrações profissionais”, que servem para manter os
operadores ativos nos postos de trabalho. São as “catacreses centrípetas”, ou orientadas
para os próprios sujeitos e não diretamente para a transformação do instrumento de
trabalho, que caracterizam uma atividade específica de “instrumentação psíquica da ação”
(Id.).
Zarifian também menciona como os operadores sempre encontram um meio de não ficarem
sozinhos na sala de controle (1995:168). Um dos operadores nos deu um depoimento
bastante significativo a este respeito: “Igual à noite, por exemplo, você fica ali dentro
daquele painel sozinho. Você não vê uma viva alma ali dentro. Inclusive, nos meus finais
de semana lá, eu chamava M., chamava o pessoal do Laboratório: <<Venham aqui ficar
comigo aqui que eu já tô... aqui tá ruim>>. Então me dava um baixo astral...
principalmente no final de semana. Nossa! Que tristeza! Você tá ali preso. Sem poder sair
pra ir no banheiro. No banheiro que tá ali ao lado.” (operador sala de controle)
Nesta empresa, os operadores instalaram um pequeno rádio na sala de controle, o que foi
proibido pela chefia após uma mudança do controle acionário. A música na sala de controle
era vista apenas como uma concessão, que foi eliminada assim que normas disciplinares
mais rígidas passaram a vigorar. Ora, faz parte das regras psíquicas colocar-se e manter-se
em condições de responder às variações do sistema produtivo. Nesse caso, os trabalhadores
não têm necessariamente consciência da funcionalidade da música e de sua relação com a
atividade de controle do processo. Apenas dizem que não atrapalha o seu trabalho, mas não
podem argumentar contra a decisão da chefia (e seu poder disciplinar) dizendo como e
porque a música é também operacional e parte integrante da atividade de controle do
processo.
Hierarquia, gestão da complexidade e responsabilidade
Esta mesma distância hierárquica, que se configura em visões de mundo distintas, também
determina formas diversas de gerir o processo de produção. Uma das contradições
fundamentais manifesta-se quando se pretende definir o espaço de autonomia dos
operadores. Formalmente, o espírito de iniciativa e a responsabilidade pessoal são
valorizadas e expressamente incentivadas; na prática, verifica-se pouco espaço para que
estas boas intenções se realizem. A relação patológica com o erro é reveladora do
sofrimento psíquico que esta situação provoca, levando os trabalhadores a assumirem um
relacionamento infantilizado com a gerência. Não há espaço, em uma sociedade
hierarquizada, para o livre desenvolvimento da personalidade dos trabalhadores, que deveria
necessariamente ser acompanhado pela ampliação do escopo e poder de decisão.
Em várias situações, os trabalhadores são obrigados a se submeterem ao poder hierárquico,
sem estarem intimamente convencidos de que as ordens dadas pela chefia são
fundamentadas. Devido às características peculiares ao processo de produção na IPC, os
saberes necessários para controlar o processo são fortemente contextualizados. Uma
intervenção no processo, a correção de uma variável, o diagnóstico subjacente, a forma de
alterar os parâmetros constituem uma atividade que implica uma forma específica de se
relacionar com as situações de trabalho, profundamente arraigada na experiência anterior
dos operadores e na vivência aqui e agora do processo. Em cada jornada de trabalho,
“colocar-se em situação” requer tempo e disponibilidade por parte do operador, como pode
ser visto nos momentos de troca de turnos. Ocorre que, estando apenas esporadicamente
em contato com o processo, os chefes dêem orientações (às vezes formalmente imperativas)
de como controlar um ou outro incidente ou problema. Na maior parte das vezes, essas
orientações ou ordens são desnecessárias, quer porque os trabalhadores já sabiam como se
comportar naquela situação, quer porque são inadequadas. Algumas vezes, dependendo da
insistência dos chefes, os operadores fazem o que eles pedem, sabendo que o problema não
vai ser resolvido, o que, acaba acarretando-lhes uma carga de trabalho maior, porque o
processo fica mais instável. O mais comum é que os trabalhadores ajam da forma como eles
consideram mais acertada, assumindo assim um duplo risco: se dá certo foi mérito do chefe,
se dá errado é culpa do operador porque desobedeceu as orientações. Em suas próprias
palavras: “Se deu certo... Se eu... Suponhamos, você me passou uma instrução, eu fiz de
outra maneira, deu certo, eu não fiz mais do que a minha obrigação. Ma se deu errado,
[faz gesto com as mãos] ferro na boneca. Lá é assim. O certo ninguém enxerga não. Só
enxerga o errado. Você pode trabalhar a vida inteiiiiirinha legal, você pisou na bola uma
vez....” (operador sala de controle).
Como a competência e o espaço de autonomia dos trabalhadores se desenvolvem em grande
parte na clandestinidade, somente os erros ganham visibilidade, isto é, quando, tomam uma
decisão contrária à orientação recebida e não conseguem controlar o processo. Quando
nada de extraordinário acontece, tudo se passa como se o bom funcionamento tivesse sido
assegurado pela obediência estrita às orientações de seus superiores, os quais são vistos
como os responsáveis pelo bom funcionamento do processo. Opera-se assim uma clivagem
na personalidade dos operadores, que se tornam responsáveis apenas pelos erros, jamais
sendo reconhecidos pelas decisões acertadas. Vive-se, assim, uma ambigüidade radical,
existente em toda relação hierárquica: não gostam de trabalhar com os chefes dando
palpites, mas, quando estão sozinhos durante a noite, sentem a falta de seus superiores em
momentos que devem tomar uma decisão importante, como parar uma unidade de
produção.
O paradoxal nesta situação é que também os engenheiros e a chefia imediata estão
satisfeitos com o comportamento dos operadores, alegando que eles demonstram pouca
iniciativa, recorrendo freqüentemente aos superiores para resolver “pequenos” problemas
que eles próprios poderiam resolver. Além das lacunas de ordem cognitiva (saber em
mosaico sobre o processo), parte dessas dificuldades está relacionada à divisão de
responsabilidades e à forma como, numa instituição hierárquica, se lida com os “erros” - em
termos de culpa.
O aspecto infantilizante desta relação de subordinação é que, para se eximirem da
responsabilidade atribuída de forma unilateral, os trabalhadores procuram se comportar da
forma como o chefe quer, agindo como os filhos em relação aos pais ou como alunos diante
de professores. Mesmo quando devem tomar uma decisão sozinhos, se perguntam qual seria
a decisão que seria tomada pelo chefe ou que lhe agradaria. Nestas condições não há espaço
para um desenvolvimento maduro da personalidade, pois os trabalhadores sentem medo de
tomar decisões e assumir publicamente a responsabilidade pelos seus atos. Evidentemente
tal atitude é impossível desde que se mantenham as relações de poder e que os eventuais
erros sejam usados como forma de seleção dos trabalhadores, antes de servirem como
material para reflexão e crescimento pessoal. Os próprios trabalhadores estão impregnados
desta visão racionalizante do comportamento, permitindo-se julgamentos a posteriori sobre
supostos “erros” cometidos por seus colegas. Em caso de incidentes importantes (que
envolvem danos aos equipamentos ou paradas de unidades), alguns operadores são
solicitados a darem sua opinião e, às vezes, julgam que o colega poderia ter evitado o
incidente. Quando, entretanto, falam sobre seus próprios “erros”, os operadores
desqualificam qualquer julgamento a posteriori, contextualizando seu comportamento e o
processo de tomada de decisão, conforme as circunstâncias do momento em que o incidente
ocorreu. O paradoxal é que se permitem julgar os colegas ao mesmo tempo que se sentem
injustiçados quando eles próprios são julgados a posteriori por atos e escolhas que tiveram
que fazer no calor dos acontecimentos.
Os trabalhadores que desacatam com mais freqüência e de forma aberta às ordens recebidas,
porque as julgam infundadas, portanto aqueles que mais dão provas de uma personalidade
autônoma e de capacidade de iniciativa, são taxados de indisciplinados e os primeiros a
serem demitidos quando há redução do efetivos. Na impossibilidade de se apoiarem em
critérios de competência técnica, a hierarquia acaba se apegando aos sinais exteriores do
comportamento, os quais, entretanto, induzem os operadores a adotarem um
comportamento exatamente oposto ao que teoricamente é almejado: de dependência e não
de autonomia.
5. Conclusão
Estas últimas considerações mostram que na concepção de sistemas informatizados estão
implicadas questões bem mais amplas do que a eficiência operacional do controle de
processos contínuos: está em questão também o perfil do trabalhador adequado para se
fazer face às exigências afetivas e cognitivas da IPC. Como estas exigências são evidentes
para quem vive em contato diário com a produção, não poderiam deixar de ser percebidas,
sendo conscientemente buscadas pela hierarquia e expressas em princípios da política de
recursos humanos das empresas. Contudo, da conscientização quanto à importância desse
novo trabalhador à criação de condições para que ele possa se desenvolver há uma grande
distância, insuperável em qualquer forma de organização do trabalho baseada em princípios
hierárquicos formais. Ainda falta espaço para que as competência reais (e com ela as
personalidades autênticas) possam se desenvolver na IPC, ainda que, neste tipo de sistema
produtivo, as condições objetivas exijam um novo trabalhador.
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