A progressividade de alíquotas como realização da justiça fiscal:
distributivismo e capacidade contributiva
Tathiane Piscitelli
Doutora e Mestre em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo
O debate a respeito das alíquotas progressivas concentra-se na
possibilidade de sua utilização nos chamados “impostos reais”, ou seja, tributos
cujos fatos ensejadores da incidência tributária relacionam-se com a
propriedade de um bem. Exemplo clássico de imposto real é o IPTU, imposto
sobre a propriedade predial e territorial urbana. A despeito de a questão
envolver basicamente um único dispositivo constitucional, o artigo 145,
parágrafo 1o, que contempla o princípio da capacidade contributiva, não se pode
dizer que as disputas em torno do tema sejam simples. Ao contrário. Argumentos
relativos à justiça tributária e ao papel que o direito tributário deve assumir em
um Estado Democrático de Direito são comumente suscitados, o que nos
direciona à análise detida de pontos estruturais do direito tributário.
O objetivo deste artigo é apresentar uma solução para tal debate, a partir
da interpretação do princípio da capacidade contributiva considerando-se
critérios de justiça fiscal e, mais especificamente, tendo-se em vista a
necessidade de o direito tributário empregar elementos distributivos na
imposição dos ônus sobre os diversos fatos eleitos pela Constituição como
passíveis de tributação. Nesse aspecto, conforme será visto, a realização da
justiça distributiva é primado essencial do sistema tributário tal como ele se
apresenta na Constituição de 1988.
Para tanto, partiremos de situações concretas: as alíquotas progressivas
empregadas no IPTU, no ITCMD, imposto sobre transmissão causa mortis e
doações, e no ITBI, imposto sobre a transmissão onerosa, por ato inter vivos, de
bens imóveis. Apresentados os casos, seguimos para a construção do princípio da
capacidade contributiva e dos valores implicados por ele, com vistas à
determinação da melhor interpretação possível para os casos apresentados.
1. Progressividade de alíquotas nos impostos reais: os casos do IPTU,
ITCMD e ITBI
O artigo 145, parágrafo 1o da Constituição fundamenta a possibilidade de
alíquotas progressivas como técnica de aferição da capacidade econômica dos
contribuintes e, assim, melhor distribuição dos ônus tributários. Contudo, a
redação do dispositivo suscita incertezas sobre a possibilidade de se mensurar
os tributos a partir da manifestação de riqueza quando se trata de impostos
reais.
A dúvida sobre a aplicação do princípio da capacidade contributiva a
referidos impostos é suscitada, inicialmente, pela expressão “impostos pessoais”
presente no texto constitucional. Confira-se:
“Art. 145, § 1o - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão
graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à
administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses
objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
A questão é: apenas os impostos pessoais é que seriam graduados
segundo a capacidade econômica dos contribuintes ou todos os impostos,
independentemente dessa característica específica, poderiam sê-lo?
Desde logo esclareça-se que os impostos pessoais são aqueles cujo fato
ensejador da incidência tributária está relacionado, exclusivamente, com uma
conduta do sujeito passivo determinada apenas por este, sem influência ou
dependência de elementos externos. Como exemplo, cite-se o imposto de renda.
O comportamento que enseja a incidência é a obtenção de rendas ou proventos
de qualquer natureza, nos termos do artigo 43 do CTN e da legislação aplicável.
Trata-se de um imposto pessoal porque o fato “obter renda” não se relaciona,
externamente, com nenhum bem ou situação jurídica independente do sujeito
passivo. O que se tributa é a capacidade do sujeito de auferir rendimentos. Daí se
dizer que estamos diante de um imposto pessoal.
De outro lado, os impostos reais, conforme mencionado linhas acima, são
aqueles em que a conduta tributável vai além das características do sujeito e
alcança uma situação jurídica ou um bem externo a ele. Cite-se, novamente, os
impostos sobre a propriedade e, assim, o IPTU ou mesmo o ITR, imposto
territorial rural. A incidência tributária volta-se, nessas situações, à propriedade
de um bem, que é tributada independentemente de quaisquer elementos
pessoais ou peculiares aplicáveis ao sujeito passivo. Assim, para fins de
tributação do IPTU, por exemplo, pouco importa se o proprietário tem gastos
estrondosos com o imóvel. Essas despesas não podem ser consideradas por
ocasião da determinação do valor devido – exatamente o oposto do que ocorre
com o imposto de renda. Nos impostos reais, o legislador atinge uma situação
objetiva, que coloca as particularidades de cada sujeito passivo de lado, para
onerar um bem ou uma situação jurídica a ele relacionada.
Diante disso, a redação do artigo 145, parágrafo 1o da Constituição
comporta interpretação que restrinja o princípio da capacidade contributiva aos
impostos pessoais? O Supremo Tribunal Federal analisou, no passado, referido
argumento sob o enfoque do IPTU e do ITBI e concluiu pela impossibilidade de
estabelecimento de alíquotas progressivas para os impostos reais. As razões que
embasam tal posição serão melhor detalhadas a seguir. Antes, porém, diga-se
que, mais recentemente, considerando alterações na Constituição, pela Emenda
Constitucional nº 29/2000 (EC 29/2000) e, ainda, modificações significativas na
composição da Corte, a postura pela limitação de alíquotas progressivas aos
impostos pessoais foi abandonada e isso é possível de ser visto tanto em novos
julgados que apreciam casos de IPTU progressivo quanto em julgamentos
envolvendo o ITCMD. Tendo-se em vista a grande gama de argumentos e, mais
ainda, a mudança no entendimento do Supremo Tribunal Federal, cumpre tratar
cada situação separadamente, com vistas à construção de um quadro fiel da
compreensão do Supremo sobre o instituto para então, após, apresentarmos as
razões a favor ou contra tal progressividade.
1.1.
A
postura
do
Supremo
Tribunal
Federal
pela
inconstitucionalidade da progressividade de alíquotas do IPTU e do ITBI
O tema relativo à constitucionalidade de alíquotas progressivas nos
impostos reais foi levado ao Supremo Tribunal Federal, inicialmente, pela
tributação havida nesses moldes para o IPTU, imposto de competência
municipal, previsto no artigo 156, inciso I da Constituição. No geral, as leis
municipais previam a progressão de alíquotas em vista do aumento da base de
cálculo, e, assim, considerando-se o valor venal do imóvel.
O leading case no Supremo foi o Recurso Extraordinário nº 153.771, cuja
discussão calcou-se em legislação do Município de Belo Horizonte, que
estabelecia alíquotas progressivas para o IPTU. À época, o texto constitucional
apenas previa alíquotas progressivas para os casos de não observância da função
social da propriedade urbana, segundo o artigo 182, parágrafo 4o da
Constituição.
Ao analisar o tema, em 20/11/1996, o Supremo Tribunal Federal houve
por bem reconhecer a inconstitucionalidade da progressividade de alíquotas,
tendo-se em vista a ofensa aos princípios da capacidade contributiva e da
isonomia em matéria tributária.
A capacidade contributiva restaria ofendida porque a gradação das
alíquotas do IPTU de acordo com o valor venal do imóvel não seria suficiente
para mensurar, corretamente, a manifestação de riqueza dos contribuintes e,
assim, sua capacidade econômica. Isso porque partia-se de elementos e
características atinentes ao bem e não à pessoa do contribuinte, o que, em tese,
causaria um desvirtuamento da tributação segundo a manifestação de riqueza,
correndo-se o risco de se tributar mais gravosamente sem qualquer
consideração relativa às peculiaridades do sujeito passivo, como indivíduo.
Disso decorreria, também, a ofensa ao princípio da isonomia, já que
contribuintes em situações diferentes – relativas à manifestação “real” de
riqueza, apenas mensurável por critérios relacionados à pessoa do contribuinte,
como o nível de renda – poderiam ser tratados de forma diversa: o critério para a
tributação era o valor do imóvel e não as peculiaridades porventura existentes
relacionadas com o sujeito passivo da exação.
Por fim, para corroborar a impossibilidade de tributação progressiva do
IPTU, um último argumento: não havia, no texto constitucional, qualquer
autorização nesse sentido. A única possibilidade, conforme mencionado, seria a
tributação extrafiscal, cuja finalidade estaria vinculada à proteção e realização da
função social da propriedade e constitucionalmente prevista no artigo 182,
parágrafo 4o, inciso II. Fora dessa hipótese, seriam vedadas quaisquer outras
possibilidades de o legislador municipal inovar e estabelecer progressividade
sem previsão expressa na Constituição.
Nessa linha, foi o voto vencedor do Ministro Moreira Alves, acompanhado
pelos Ministros Celso de Mello, Francisco Rezek, Ilmar Galvão, Maurício Corrêa,
Néri da Silveira, Sepúlveda Pertence, Sydnei Sanches. O Ministro Celso de Mello
restou vencido e, assim, defendia a possibilidade de alíquotas progressivas.
Após o estabelecimento desse precedente, outras tantas decisões se
seguiram, mas voltadas à análise da progressividade do ITBI, imposto de
competência também municipal, previsto no artigo 156, inciso II da Constituição.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 234.105, um dos que firmaram
precedentes acerca do ITBI, especificamente, o Supremo adotou as mesmas
razões relativas ao IPTU para afastar a progressividade do ITBI: o fato de este ser
um imposto real e a ausência de previsão constitucional expressa.
O resultado dessa postura reiterada quanto à limitação das alíquotas
progressivas ao impostos pessoais e a exigência de expressa previsão na
Constituição nesse sentido, foi a publicação da Súmula 656, cuja redação dispõe:
“É inconstitucional a lei que estabelece alíquotas progressivas para o imposto de
transmissão "inter vivos" de bens imóveis - ITBI com base no valor venal do imóvel”.
Com isso, firmou-se a postura no Supremo acerca do ITBI. Em relação ao
IPTU, apesar de não ter havido a consolidação da jurisprudência em uma súmula,
o entendimento era bastante firme pela não progressividade, em vista das razões
acima expostas.
1.2. Mudança de cenário: EC 29/2000 e reavaliação da tese à luz do
ITCMD
Em 14/09/2000, foi publicada a Emenda Constitucional nº 29, que incluiu
o parágrafo 1o ao artigo 156 da Constituição, que passou a dispor:
“Art.156 – [...]
§ 1º Sem prejuízo da progressividade no tempo a que se refere o art. 182, § 4º,
inciso II, o imposto previsto no inciso I poderá:
I – ser progressivo em razão do valor do imóvel; e
II – ter alíquotas diferentes de acordo com a localização e o uso do imóvel”.
Conforme se verifica da redação do dispositivo, tem-se a introdução, no
texto constitucional, da possibilidade de o legislador municipal instituir alíquotas
progressivas para o IPTU considerando o valor do imóvel. A criação de critérios
de progressividade fiscal para o IPTU reabriu a discussão no Supremo, relativa à
constitucionalidade da progressividade de alíquotas dos impostos reais. Nos
termos da jurisprudência firmada em relação ao ITBI e ao próprio IPTU no
Recurso Extraordinário nº 153.771, acima relatado, a progressividade não seria
comportada em relação a esses impostos por conta do fato de serem eles “reais”.
O estabelecimento de alíquotas progressivas nesses casos poderia gerar uma
ofensa à isonomia e, assim, ausência de realização da capacidade contributiva.
Contudo, com a previsão constitucional da progressividade, o Supremo
volta a se manifestar e, dessa vez, com uma nova composição de Ministros,
decide pelo cabimento de tal técnica de tributação, a despeito de tratar-se de um
imposto real. Essa postura foi firmada ao longo do julgamento do Recurso
Extraordinário 423.768, encerrado em 01/12/2010, e conduzido pelo Ministro
Marco Aurélio, relator do caso. O argumento central foi o de que o artigo 145,
parágrafo 1o da Constituição, ao enunciar o princípio da capacidade contributiva,
permitiria a progressividade de todo e qualquer imposto, como medida de
justiça fiscal. Ou seja, adotou-se a interpretação mais ampla do princípio,
segundo a qual as técnicas de aferição da capacidade contributiva, estando a
progressividade nelas inclusa, poderiam ser aplicadas em qualquer hipótese,
como medida de maior realização da justiça tributária.
A esse respeito, o voto do Ministra Cármen Lúcia é ilustrativo:
“Trata-se o IPTU de imposto de natureza eminentemente real, o que impediria
levar-se em conta a capacidade contributiva em decorrência da situação
personalíssima do proprietário. [...]
Não entendo, porém, que, do § 1º do art. 145, possa-se inferir uma proibição à
implementação da capacidade contributiva a impostos reais, ao contrário do que
sustenta o acórdão recorrido. A Constituição apenas proclama sua preferência
pela criação de impostos pessoais, que, com certeza, são os instrumentos que
mais facilmente realizam a isonomia tributária.
No entanto, a progressividade, por garantir a observância da capacidade
contributiva, deve, sempre que possível, ser utilizada. E essa foi a intenção da EC
nº 29/00 ao estabelecer a possibilidade de se instituir a progressividade do
IPTU em razão do valor do imóvel (art. 156, § 1º, inciso I, da Constituição da
República)”.
A mesma orientação, ao que parece, será adotada no RE 562.045, no qual
é discutida a progressividade de alíquotas do ITCMD. Em 04/08/2011, o
julgamento deste e de mais dez recursos sobre o tema, que tem repercussão
geral reconhecida, foi interrompido pelo pedido de vista do Ministro Marco
Aurélio. Até o momento, seis Ministros já se manifestaram pela possibilidade de
cobrança progressiva do imposto, com fundamento genérico no princípio da
capacidade contributiva e, assim, independente da exigência de previsão
constitucional expressa. Nessa linha, votaram os Ministros Eros Grau, Menezes
Direito, Cármen Lúcia, Joaquim Barbosa, Carlos Ayres Britto e Ellen Gracie. Em
sentido diverso, apenas, o relator do recurso, Ministro Ricardo Lewandowski.
Diante disso tudo, a questão é saber se o entendimento atual do Supremo
Tribunal Federal reflete a melhor interpretação possível do princípio da
capacidade contributiva. Trata-se de primado de justiça fiscal que deve ser
aplicado de forma indiscriminada a todos os tributos? Ou, de outro lado, a
aplicação aos impostos reais de fato ofende o princípio da isonomia, nos termos
da postura firmada anteriormente pelo Supremo? As respostas a essas perguntas
serão dadas a seguir, a partir da consideração do papel que a capacidade
contributiva assume na compreensão do direito tributário como prática
essencial para a realização e manutenção do Estado Democrático de Direito.
2. O princípio da capacidade contributiva como corolário de justiça
fiscal
O correto desenho do princípio da capacidade contributiva depende de
uma compreensão mais ampla do direito tributário, nos termos em que
estruturado na Constituição de 1988. Referido texto constitucional se diferencia
dos anteriores por inserir em seus dispositivos um extenso rol de garantias aos
contribuintes e, ainda, a estruturação do Sistema Tributário Nacional que
assegura que a tributação se realizará pelas vias do Estado Democrático de
Direito.
Nesse sentido, devemos reconhecer que o direito tributário, na mesma
medida que visa buscar formas de garantir receitas ao Estado, também se
preocupa em fazê-lo sob os ditames da justiça fiscal, que assume caráter
estritamente distributivo. Portanto, falar em justiça fiscal a partir da
Constituição, pressupõe a consideração da melhor forma de distribuir os ônus e
bônus da tributação entre os cidadãos. O princípio da capacidade contributiva
está claramente a serviço de tal distribuição, como será visto a seguir.
Vale, novamente, transcrever o artigo 145, parágrafo 1o da Constituição:
“Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados
segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração
tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar,
respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os
rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
A adequada compreensão do dispositivo pressupõe sua divisão em três
partes distintas. Em primeiro lugar, deve-se destacar a exigência (“sempre que
possível”) de os impostos terem caráter pessoal. Após, cumpre investigar a
sentença que determina a graduação dos impostos segundo a capacidade
econômica do contribuinte; e, por último, analisar a parte final do dispositivo,
que oferece instrumentos à Administração tributária para aferir a riqueza
manifestada, tal como a identificação do patrimônio, rendimentos e atividades
econômicas dos cidadãos. A partir dessas considerações, será possível construir
em que medida a capacidade contributiva serve à justiça fiscal e como tal tema se
relaciona com o problema da progressividade de alíquotas nos impostos reais.
2.1. “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal”
A sentença supra transcrita inaugura o dispositivo constitucional e o faz já
com uma ressalva: “sempre que possível”. A questão fundamental que se coloca é
saber se a observância do princípio da capacidade contributiva, de um ponto de
vista geral, e do caráter pessoal dos impostos, de um ponto de vista específico, é
facultativa e, assim, realizada, apenas, quando “possível” à Administração
tributária. Por detrás dessa questão, naturalmente, está a distinção entre
impostos pessoais e reais, acima referida.
O artigo 145, parágrafo 1o da Constituição, ao estabelecer que “sempre
que possível, os impostos terão caráter pessoal”, apresenta uma nítida
predileção aos impostos pessoais em detrimento dos reais, já que os primeiros,
por revelarem elementos de riqueza relacionados estritamente com a pessoa do
contribuinte, seriam mais adequados para a obtenção da justiça tributária.
Contudo, ao assim determinar, não afasta a possibilidade – e a necessidade – de
criação de impostos reais, cuja existência é igualmente importante para fins de
realização de justiça tributária, especialmente se considerarmos que grande
parte da tributação do patrimônio se dá a partir deles.
De outro lado, é evidente que a expressão “sempre que possível” não
indica que a criação de impostos pessoais seja facultativa ou discricionária. A
Constituição, na delimitação das competências tributárias, possibilita a criação
de impostos pessoais e esses são bons instrumentos de aferição da justiça fiscal.
Mas, novamente, isso não implica a exclusão dos impostos reais ou qualquer
inconstitucionalidade na sua criação. Também ao delimitar a competência
tributária, o legislador constituinte previu impostos reais, que são igualmente
relevantes no desenho do sistema tributário brasileiro.
Portanto, podemos dizer que, ao enunciar o princípio da capacidade
contributiva, a Constituição indica os impostos pessoais como sendo aqueles que
melhor alcançam e realizam a justiça fiscal sem, no entanto, afastar a
possibilidade e a importância dos impostos reais. Daí a expressão “sempre que
possível”.
2.2. Graduação de impostos segundo a capacidade econômica do
contribuinte
A determinação de que os impostos serão graduados segundo a
capacidade econômica dos contribuintes é o núcleo do princípio da capacidade
contributiva e, a partir dele, devemos destacar duas questões relevantes que
devem ser enfrentadas.
A primeira envolve um tema paralelo ao princípio em si e se refere à
conceituação de capacidade econômica: há diferença entre capacidade
econômica e capacidade contributiva ou são apenas expressões diversas para o
mesmo fenômeno?
A outra, a respeito da qual há muito embate jurisprudencial, tem relação
com a extensão do princípio em análise, que pode ser estudada de dois ângulos
distintos, um mais geral e outro mais específico. A questão geral envolve saber se
o princípio da capacidade contributiva está limitado aos impostos ou, ao
contrário, é aplicável a todas as espécies tributárias. Já a questão específica
relaciona-se com a alcance do princípio do ponto de vista dos impostos: seria ele
extensível a todos os impostos, indiscriminadamente, ou apenas aplicável aos
impostos pessoais? Essa última controvérsia se estabelece por conta da redação
inicial do dispositivo, que menciona os impostos pessoais, acima conceituados.
Vejamos cada uma das discussões separadamente.
a) Capacidade econômica versus capacidade contributiva
O artigo 145, parágrafo 1o da Constituição menciona que os tributos serão
graduados segundo a “capacidade econômica” dos contribuintes. Não obstante
isso, o princípio enunciado em tal dispositivo é conhecido como princípio da
“capacidade contributiva”. Afinal, há diferença entre os dois institutos?
A resposta é positiva. A capacidade econômica revela a habilidade que o
sujeito passivo tem de obter rendimentos e manifestar riqueza. No geral, todos
aqueles que possuem um trabalho remunerado manifestam tal capacidade.
Contudo, isso não implica necessariamente a existência de capacidade
contributiva e, assim, dever de pagar, por exemplo, o imposto sobre os
rendimentos obtidos com o trabalho. A capacidade contributiva é uma
capacidade econômica específica, relacionada ao pagamento de tributos. Ou seja,
o sujeito, além de auferir renda, o faz em um patamar que justifica a tributação
pelo imposto de renda. Essa pessoa tem capacidade de contribuir com as
despesas do Estado e, assim, será atingido pela tributação, conforme os critérios
próprios desse imposto. Nesse sentido, há técnicas para a aferição da capacidade
econômica, com vistas ao atingimento da capacidade contributiva, tais como
proporcionalidade, seletividade, progressividade e diferenciação de alíquotas.
A proporcionalidade é uma das sistemáticas mais utilizadas na
determinação da capacidade contributiva e bastante aplicada no nosso
ordenamento jurídico, especialmente em relação aos tributos sobre o consumo.
Nesses casos, tem-se uma alíquota fixa e uma base de cálculo variável, que
geralmente reflete o valor do bem ou serviço consumido. Assim, quanto maior o
valor do bem ou serviço, maior será a tributação, proporcionalmente. Trata-se de
medida geral de realização da justiça fiscal, já que aqueles que consomem bens
mais caros serão tributados mais gravosamente, exatamente por manifestarem
maior capacidade econômica.
Agregada à proporcionalidade, comumente se vê a seletividade. Nos
tributos tipicamente proporcionais (como ICMS e IPI), em que o valor da
imposição tributária é estabelecido a partir do valor do bem consumido, há
determinação constitucional quanto à seletividade de alíquotas. Ou seja,
independentemente das características próprias do sujeito passivo (relacionadas
com nível de renda, por exemplo), a tributação será mais gravosa nos casos de
consumo de bens supérfluos e mais benéfica para as situações de consumo de
bens essenciais. Trata-se de agregar maiores critérios de justiça à tributação
proporcional e garantir a igualdade dos pontos de partida, aclamada por
Norberto Bobbio1.
De outro lado, temos a progressividade de alíquotas segundo a variação
da base de cálculo. Aqui, diferente do que ocorre com a tributação proporcional,
tanto a base de cálculo quanto a alíquota são variáveis. Com vistas à melhor
identificação da capacidade econômica e à realização da capacidade contributiva,
há casos constitucionalmente previstos em que se tem uma relação direta entre
aumento de base de cálculo e aumento de alíquota, estabelecendo-se faixas de
tributação nesse sentido. Assim, quanto maior a base de cálculo, maior a alíquota
aplicável. O exemplo típico está no imposto de renda, cuja tributação será
necessariamente progressiva, nos termos do artigo 153, parágrafo 2o, inciso I da
Constituição.
Juntamente com a progressividade, destaque-se, por fim, a diferenciação
de alíquotas. Trata-se de técnica que visa, também, identificar com maior
precisão a capacidade econômica dos contribuintes, pela imposição de alíquotas
diferenciadas em vista da forma em que se dá a realização do fato gerador. Para
ilustrar esse ponto, cite-se o IPVA. Esse imposto terá alíquotas diferenciadas em
função do tipo e da utilização do veículo automotor. Ora, naturalmente que um
veículo de luxo deverá pagar mais imposto do que um carro popular. E uma
forma de garantir maior justiça fiscal na imposição desse ônus tributário
específico é estabelecer uma alíquota mais gravosa para aqueles que manifestam
mais riqueza. Daí, então, a diferenciação de alíquotas.
Portanto, diante do que foi exposto, é possível concluir que o princípio da
capacidade contributiva pauta-se pela identificação da capacidade econômica
dos contribuintes e, assim, pela manifestação de riqueza. A proporcionalidade,
progressividade, seletividade e diferenciação de alíquotas são técnicas para
melhor identificação do poder de contribuir dos cidadãos e, portanto, temas que
complementam a análise do presente princípio.
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política – A Filosofia Política e as Lições dos Clássicos. Rio de
Janeiro: Campus, 2000. Pp. 297-306.
1
b) Extensão do princípio da capacidade contributiva: apenas impostos
ou todos os tributos?
Uma outra discussão presente quando se trata de estudar o princípio da
capacidade contributiva é aquela relacionada à possibilidade de estender tal
princípio a todas as espécies tributárias. O dispositivo constitucional é bastante
claro ao prescrever que os “impostos” serão graduados segundo a capacidade
econômica dos contribuintes. Essa menção expressa limita a aplicação do
princípio a outras espécies tributárias?
A resposta a essa questão depende da consideração do papel que o direito
tributário assume no sistema tributário prescrito pela Constituição de 1988.
Como já defendemos em outra ocasião2, a tributação é a forma pela qual a
existência do Estado é viabilizada. Sem tributos, não haveria Estado e, portanto,
nem sequer direitos e garantias asseguradas aos contribuintes. É nessa linha
também o pensamento de Liam Murphy e Thomas Nagel3:
“não já mercado sem governo e não há governo sem tributos; e qual tipo de
mercado existe depende das leis e das decisões políticas que o governo deve
tomar. Na ausência de um sistema jurídico suportado por tributos, não poderia
haver dinheiro, bancos, corporações, venda de ações, patentes ou uma moderna
economia de mercado – nenhuma das instituições que tornam possível a
existência de quase todas as formas contemporâneas de renda e riqueza”.
De outro lado, contudo, o direito tributário não se manifesta unicamente
tendo-se em vista sua função arrecadatória e mantenedora do Estado.
Considerando que a Constituição de 1988 inaugura um Estado Democrático de
Direito, o sistema tributário opera, também, para realizar os ditames de tal
Estado, dentre os quais se encontra a tributação justa, do ponto de vista
distributivo. O papel da tributação, portanto, também será o de assegurar aos
contribuintes uma distribuição proporcional dos ônus e bônus da tributação. E
isso é claramente percebido pela análise de normas constitucionais tributárias,
dentre as quais se destaca o não confisco (artigo 150, inciso V), a uniformidade
geográfica (artigo 151, inciso I) e o próprio princípio da capacidade contributiva
(artigo 145, § 1o).
Disso decorre, pois, que a tributação segundo a manifestação de riqueza é
um ditame de justiça fiscal e da necessidade de a tributação ser distributiva e,
desse modo, não se limita a uma espécie tributária (os impostos), mas sim atinge
PISCITELLI, Tathiane dos Santos. Argumentando pelas consequências no direito tributário. São
Paulo: Noeses, 2011. Especialmente capítulo 04.
3 “There is no market without government and no government without taxes; and what type of
market there is depends on laws and policy decisions that government must make. In the
absence of a legal system supported by taxes, there couldn’t be money, banks, corporations, stock
exchanges, patents or a modern market economy – none of the institutions that make possible
the existence of almost all contemporary forms of income and wealth”. MURPHY, Liam, NAGEL,
Thomas. The myth of ownership – Taxes and Justice. New York: Oxford University Press, 2002. P.
32.
2
todos os tributos, como regra resultante do sistema de tributação tal como ele se
coloca nos termos da Constituição de 1988 e, assim, como decorrência lógica e
indispensável do Estado Democrático de Direito.
quem:
Nessa linha, confira-se o entendimento de José Maurício Conti4, para
“[...] um sistema tributário que tenha por meta ser o mais justo possível pode
adotar, ainda que não como princípio norteador da tributação, mas como
princípio aplicável a alguns tributos, o princípio do benefício.
E é o que ocorre no sistema tributário moldado pela atual Constituição.
Ao lado do princípio da capacidade contributiva – princípio este norteador do
nosso sistema tributário – temos algumas situações em que o legislador adotou
o princípio do benefício como o que vai regular a imposição de determinadas
exações”.
Na jurisprudência, igualmente encontramos, por diferentes fundamentos,
entendimento segundo o qual o princípio da capacidade contributiva não estaria
limitado aos impostos. Para ilustrar, cite-se o julgamento do Recurso
Extraordinário nº 573.675, ocorrido em 25/03/2009, em que o Plenário do
Supremo Tribunal Federal avaliou a constitucionalidade da contribuição para o
custeio do serviço de iluminação pública (COSIP), instituída pelo Município de
São José, SC, com fundamento no artigo 149-A da Constituição. Referido RE foi
julgado em sede de repercussão geral e se originou de uma Ação Direita de
Inconstitucionalidade ajuizada perante o Tribunal de Justiça de Santa Catarina –
já que se trata de norma municipal impugnada.
A decisão do Supremo foi pela constitucionalidade da exação e um dos
fundamentos para embasar a decisão foi exatamente a observância do princípio
da capacidade contributiva no caso em tela, relevado pela adoção de alíquotas
progressivas da contribuição, considerando-se o nível de consumo de energia e o
tipo de sujeito passivo (residência, comércio, indústria, etc.). Apenas o Ministro
Marco Aurélio votou pelo provimento do RE, tendo-se em vista sua postura
quanto à inconstitucionalidade da Emenda Constitucional nº 39/2002, que
introduziu o artigo 149-A na Constituição, conferindo competência aos
Municípios e ao Distrito Federal para instituírem a COSIP.
O Ministro Ricardo Lewandowski foi o relator do recurso e liderou o
entendimento, seguido pelos demais Ministros, com exceção do Ministro Marco
Aurélio, de que o princípio da capacidade contributiva não estava limitado aos
impostos. Seria aplicável preferencialmente a estes, mas sem que isso
representasse um impedimento de utilização de critérios de mensuração de
CONTI, José Maurício. O princípio da capacidade contributiva e a questão da progressividade. São
Paulo: S. N. 1994 (Dissertação de mestrado defendida na Faculdade de Direito da Universidade
de São Paulo, 2005). P. 89.
4
riqueza – como a adoção de alíquotas progressivas – em outras espécies
tributárias. Confira:
“No mais, a despeito de o art. 145 § 1o, da Constituição Federal, que alude à capacidade
contributiva, fazer referencia apenas aos impostos, não há negar que ele consubstancia uma
limitação ao poder de imposição fiscal que informa todo o sistema tributário”.
Portanto, não há qualquer impedimento teórico em se reconhecer a
aplicação da capacidade contributiva para todos os tributos, em que pese a
redação do artigo 145, parágrafo 1o da Constituição fazer apenas referência a
impostos. A tributação segundo a manifestação de riqueza e, portanto,
considerando critérios de justiça fiscal que se mostram distributivos, é desejável
no Estado Democrático de Direito e a estrutura tributária normativa contribui
para esse desenho e realização na maior medida do possível.
Resta agora saber se a técnica da progressividade, que representa um
modus específico de realização da capacidade contributiva, pode ser aplicada aos
impostos reais. Essa questão será respondida mais adiante. Antes, porém,
devemos analisar um último tópico relacionado à estrutura do princípio da
capacidade contributiva: a possibilidade de a Administração identificar
rendimentos, bens e atividades do sujeito passivo.
2.3. Instrumentos para a aferição da capacidade econômica:
identificação do patrimônio, rendimentos e atividades econômicas do
contribuinte
A parte final do artigo 145, parágrafo 1o possibilita à Administração
Tributária “identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”.
Referida identificação seria um instrumento para a aferição da capacidade
econômica, de forma a conferir maior precisão na tributação segundo a
capacidade contributiva.
Um exemplo que permite ilustrar esse elemento da capacidade
contributiva é a previsão legal de quebra, pela Administração, do sigilo bancário
dos contribuintes sem a necessidade de autorização judicial. A Lei Complementar
nº 105/2001 (LC 105/2001), em seus artigos 5o e 6o, prescreve duas
modalidades de quebra de sigilo, sem que haja qualquer intervenção ou
avaliação do Poder Judiciário para tanto. Sobre isso, há grande discussão na
doutrina e na jurisprudência acerca da constitucionalidade de tais dispositivos
da LC 105/20015.
No Supremo Tribunal Federal, cf. ADIs 4006 e ADI 4010. Além disso: DENARI, Zelmo. “A CPMF e
a quebra do sigilo bancário”. Revista Dialética de Direito Tributário. São Paulo. n. 89, p. 116-21,
fev. 2003 e REIRE JÚNIOR, Américo Bedê. “A possibilidade de quebra do sigilo bancário por parte
da receita federal como forma de viabilizar a justiça fiscal”. Revista Dialética de Direito Tributário.
São Paulo. n.97, p.16-9, out. 2003.
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Não obstante, é fora de dúvida que tais medidas, que visam identificar
mais detalhadamente e de forma mais apurada o patrimônio dos contribuintes,
são decorrência direta do princípio da capacidade contributiva. Assim,
independentemente das postulações sobre a constitucionalidade ou não dos
mecanismos de quebra, devemos nisso reconhecer uma tentativa de melhor
verificar a capacidade econômica e, dessa forma, a promoção de uma tributação
mais justa, calcada na efetiva manifestação de riqueza – a qual, muitas vezes,
pode estar protegida por detrás de direitos ditos fundamentais que, a bem da
verdade, são utilizados para mitigar a incidência tributária e reduzir a os tributos
de forma absolutamente injustificada e contra os parâmetros de justiça fiscal que
devem guiar a aplicação do ordenamento jurídico na esfera tributária.
Encerrado, desse modo, a análise do dispositivo constitucional que
contempla a capacidade contributiva, cabe então indagar sobre a aplicação de tal
princípio aos impostos reais, com vistas à avaliação das decisões recentemente
tomadas pelo Supremo Tribunal Federal.
3) A progressividade nos impostos reais revela a melhor aplicação
da capacidade contributiva?
A dúvida sobre a possibilidade de aplicação do princípio da capacidade
contributiva, de um ponto de vista geral, e da progressividade de alíquotas, de
um ponto de vista específico, aos impostos reais decorre de duas possibilidades
interpretativas construídas a partir da redação do artigo 145, parágrafo 1o da
Constituição. Como se sabe, o dispositivo menciona:
“Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte [...]”.
O trecho acima transcrito pode ser interpretado de duas formas. Em
primeiro lugar, podemos dizer que, “sempre que possível” os impostos serão
pessoais e, apenas estes, os impostos pessoais, serão graduados segundo a
capacidade econômica do contribuinte. Ou seja, seria uma característica aplicável
a essa modalidade específica de imposto. Segundo essa construção, as duas
sentenças (“os impostos serão pessoais” e “graduados segundo a capacidade
econômica”) estariam ligadas: apenas serão graduados os impostos pessoais.
Uma outra possibilidade, contudo, seria afirmar que: “sempre que
possível” os impostos serão pessoais e, todos os impostos, pessoais ou reais,
serão graduados segundo a capacidade econômica dos contribuintes. Nesse
segundo caso, as duas sentenças estariam desconectadas e passariam mensagens
independentes: uma, relacionada à preferência de criação de impostos pessoais e
outra, relativa à graduação de todos os impostos, quaisquer que sejam, segundo
critérios de manifestação de riqueza.
A relevância do debate é muito semelhante àquela desenvolvida acima,
relativa à aplicação da capacidade contributiva a outras espécies tributárias. A
questão de fundo é a extensão do princípio da capacidade contributiva. Sendo ele
uma diretriz relacionada à justiça fiscal, até onde essa diretriz se aplica?
De outro lado, há uma questão prática envolvida. Caso se considere que a
possibilidade de graduação de impostos segundo a manifestação de riqueza dos
contribuintes somente se aplica aos impostos pessoais, devemos afastar a
utilização de alíquotas progressivas nos impostos reais, já que tal técnica de
aferição de riqueza estaria limitada a uma modalidade específica de impostos.
Qual a solução, então, para esse impasse?
Em respeito à coerência da argumentação, devemos admitir que a
interpretação mais restritiva, que limita o princípio da capacidade contributiva e
as técnicas relativas à aferição de riqueza aos impostos pessoais, não tem
cabimento na presente análise. Isso decorre especificamente da postura firmada
acima quanto à possibilidade de aplicação do presente princípio a todos os
tributos. Ora, se a mensuração de todos os tributos pode (e deve) ser feita a
partir de considerações relacionadas com a capacidade contributiva e,
notadamente, pela utilização de alíquotas progressivas, com vistas à realização
mais eficiente da justiça fiscal, não faria sentido limitar essa possibilidade a uma
categoria de impostos, os impostos pessoais.
A interpretação que deve prevalecer, portanto, é aquela mais ampla, que
constrói o significado das duas sentenças que inauguram o artigo 145, parágrafo
1o da Constituição de forma separada e independente. Há dois mandamentos
diversos: um, pela prevalência (não absoluta) dos impostos pessoais e outro,
pela graduação de todos os impostos (e porque não dizer tributos) segundo a
capacidade econômica revelada pelos contribuintes.
Em face disso, pode-se rapidamente concluir pela possibilidade de
utilização de alíquotas progressivas nos impostos reais. Referidos impostos são
representativos da tributação sobre o patrimônio, que, por excelência, revelam
maior capacidade de uma distribuição equânime dos ônus tributários. A
tributação progressiva da riqueza, seja expressa em renda, seja expressa em
patrimônio, é uma das formas mais legítimas de realização da justiça fiscal, pois
que implica a imposição de ônus mais pesados para aqueles que externalizam
sua capacidade econômica pela detenção de bens, e não simplesmente pelo
consumo, que é contingente, além de evitar ou minimizar os efeitos da
acumulação de riqueza6,7.
Não obstante, defensores da inaplicabilidade das alíquotas progressivas
aos impostos reais frequentemente alegam que essa forma de tributação ofende
Para uma análise detalhada das vantagens e desvantagens da tributação do consumo versus a
tributação da renda, cf. WARREN, Alvin. “Would a consumption tax be fairer than an income tax?”
The Yale Law Journal, vol. 89, 1980. Pp. 1081-1124.
7 Especificamente sobre a tributação sobre grandes fortunas, cf. PISCITELLI, Tathiane dos Santos.
“O imposto sobre grandes fortunas à luz da justiça distributiva”, in Revista de Direito Tributário, v.
104, Pp. 127-139
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o princípio da isonomia, igualmente relevante para a concretização do Estado
Democrático de Direito e, assim, integrante da forma pela qual o direito
tributário se apresenta e se constitui. Nesse sentido, mencione-se o
entendimento de Luiz Eduardo Schoueri, para quem “a propriedade territorial
não é índice adequado para medir a capacidade contributiva subjetiva, base da
progressividade”8.
Um exemplo seria interessante para ilustrar esse argumento 9,10. Podemos
imaginar uma pessoa que seja proprietária de dez imóveis. Porém, todos eles são
pequenos e não muito bem localizados em um dado Município. A partir dessas
informações, não seria difícil concluir pela enorme possibilidade de tais imóveis
serem isentos do pagamento de IPTU, seja pela metragem, seja pela localização.
Consideremos, agora, uma outra pessoa proprietária de um único imóvel, sendo
este muitíssimo bem localizado e com um tamanho bastante razoável. Nesse
caso, parece evidente também, que essa pessoa será onerada pela imposição do
IPTU.
Em que pese aparentemente razoável, essa situação poderia ser objeto de
alegação de ofensa à isonomia. Isso porque, considerando uma análise pessoal
dos contribuintes em questão poder-se-ia chegar à conclusão de que o detentor
dos dez imóveis possui mais capacidade contributiva do que aquele que é
proprietário de apenas um. Nesse sentido, o primeiro proprietário pode
apresentar-se como um investidor e obter rendimentos a partir do aluguel de
seus imóveis, enquanto o segundo uma pessoa que, apesar de detentora de um
imóvel de alto valor, possui baixos rendimentos e, assim, pouca capacidade de
contribuir.
A obtenção dessas informações, contudo, depende um exame subjetivo
dos contribuintes, que não é possível de ser feito quando se trata de impostos
reais, cuja imposição está estritamente vinculada ao bem objeto de incidência.
Daí se dizer que a tributação mais gravosa, considerando características
exclusivas do imóvel, pode resultar em situação que leve à desigualdade:
teríamos contribuintes em diferentes situações – do ponto de vista das
SCHOUERI, Luís Eduardo. Direito Tributário. São Paulo: Saraiva, 2011. P. 359.
Nesse aspecto e sobre o tema, faz-se referência às ideias desenvolvidas pela autora no livro
Argumentando pelas consequências no direito tributário e, assim, no papel que a justiça fiscal
assume na constituição do direito tributário e, ainda, como os impostos progressivos podem
colaborar para um sistema mais equânime de distribuição dos ônus da tributação. Cf. PISCITELLI,
Tathiane dos Santos. Argumentando pelas consequências..., cit.
10 Exemplo semelhante é mencionado por Schoueri, exatamente para demonstrar o não
cabimento da progressividade: “[...] basta imaginar um contribuinte que detenha diversos
imóveis de pequeno valor, cada qual deles de valor reduzido, mas cuja somatória revelaria
grande capacidade contributiva; ao seu lado, imagine-se agora um contribuinte que detenha um
único imóvel, de pequeno valor, mas relativamente superior ao valor individual de cada um dos
imóveis detidos pelo primeiro contribuinte. A progressividade baseada no valor de cada imóvel
implicará notória distorção, já que o primeiro contribuinte pagará, por imóvel, valor inferior ao
segundo, embora tenha maior capacidade contributiva”. SCHOUERI, Luis Eduardo. Direito
Tributário..., cit., p. 359.
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capacidades contributivas respectivas – sendo tributados a partir do mesmo
critério: a riqueza manifestada tendo-se em vista apenas os imóveis.
Esse raciocínio é plenamente válido e deve ser enfrentado quando se trata
de verificar a possibilidade de alíquotas progressivas para os impostos reais.
Conforme visto linhas acima, o artigo 145, parágrafo 1o da Constituição
comporta, sem esforços ou manobras interpretativas, o sentido segundo o qual
impostos desse tipo podem ser progressivos – como aplicação direta do princípio
da capacidade contributiva. Resta saber, contudo, se essa progressividade é
admitida do ponto de vista do sistema tributário como um todo e, assim, dos
valores que a tributação pelas vias do Estado Democrático de Direito pretende
realizar.
Em primeiro lugar, devemos reconhecer que o risco de ofensa ao
princípio da isonomia existe e pode, de fato, se verificar em situações reais e
muito específicas. Porém, como estamos lidando com um princípio
constitucional nos estritos termos que o vocábulo princípio suscita, devemos ter
em mente que seu comando será realizado na maior medida possível11:
“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os
dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da
obrigação jurídica em circunstancias específicas, mas distinguem-se quanto à
natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira tudoou-nada. [...]
Mas não é assim que funcionam os princípios [...]. Mesmo aqueles que mais se
assemelham a regras não apresentam consequências jurídicas que se seguem
automaticamente quando as condições são dadas”.
Sendo assim, não há, inicialmente, problemas em, alguns casos marginais,
haver um confronto entre capacidade contributiva e isonomia – aliás, o conflito
entre princípios é muitíssimo frequente no direito tributário. Apenas devemos
saber, nesses casos, como valorá-los e qual deve prevalecer. O fio que deve
conduzir a ponderação em situações como tais, deverá estar voltado para os
valores que se pretende realizar através do sistema tributário. Tendo-se em vista
que estamos sob o julgo de um Estado Democrático de Direito, qual é a função
específica da tributação, ao lado da necessidade evidente e inconteste de
financiamento do Estado?
Nos termos em que já mencionado linhas acima, entende-se que o papel
fundamental da tributação está na promoção de justiça distributiva. Um sistema
tributário que não se apresente como justo nesses termos, não pode ser
seriamente considerado como integrante e constituidor de um Estado
Democrático de Direito. Daí se dizer que normas constitucionais que visem a
uma melhor distribuição dos ônus da tributação, onerando aqueles que
manifestam, de alguma forma, mais riqueza, devem ser aplicadas
DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a sério (trad. Nelson Boeira). São Paulo: Martins Fontes,
2002. Pp. 39-40.
11
prioritariamente, ainda que isso implique uma mitigação ocasional de outros
princípios. Nesse aspecto, reitere-se: os princípios, por definição, não serão
aplicados integralmente (“tudo ou nada”), mas sempre na maior medida possível.
Disso conclui-se que é mais benéfico ao sistema como um todo a aplicação
de alíquotas progressivas aos impostos reais. Desse modo, tributa-se mais
gravosamente a propriedade que manifesta mais riqueza e garante-se, também
na maior medida possível, uma distribuição mais justa dos ônus tributários. Daí,
portanto, o acerto das decisões mais recentes do Supremo Tribunal Federal, que
têm reconhecido no artigo 145, parágrafo 1o da Constituição o fundamento para
que todos os impostos (e mesmo tributos) do ordenamento serem progressivos.
Não há, nesse sentido, sequer a necessidade de autorização constitucional
específica. A progressividade como forma de realização da justiça fiscal está no
âmago do Estado Democrático de Direito, razão pela qual não precisa ser
enunciada ou especificada na Constituição. A negativa a essas conclusões
implicaria um direito tributário desprovido de seu sentido material, que é a
promoção da melhor e mais justa distribuição dos recursos na sociedade, como
decorrência direta da forma de Estado inaugurada pela Constituição de 1988.
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Tathiane Dos Santos Piscitelli