UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
LICENCIATURA PLENA EM LETRAS
HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA
MARIA ISABELLE RIBEIRO DA ROCHA
PARA ALÉM DA SEDUÇÃO: UMA LEITURA
DE DOM CASMURRO, DE MACHADO DE ASSIS
João Pessoa – PB
2013.
MARIA ISABELLE RIBEIRO DA ROCHA
PARA ALÉM DA SEDUÇÃO: UMA LEITURA
DE DOM CASMURRO, DE MACHADO DE ASSIS
Trabalho apresentado ao Curso de Licenciatura
em Letras da Universidade Federal da Paraíba
como requisito para obtenção do grau de
Licenciado em Letras, habilitação em Língua
Portuguesa.
Orientadora: Prof.ª Dra. Gláucia Vieira Machado.
João Pessoa – PB
2013.
Catalogação da Publicação na Fonte.
Universidade Federal da Paraíba.
Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA).
Rocha, Maria Isabelle Ribeiro da.
Para além da sedução: uma leitura de Dom Casmurro, de Machado de
Assis/ Maria Isabelle Ribeiro da Rocha. - João Pessoa, 2013.
42f.
Monografia (Graduação em Letras) – Universidade Federal da Paraíba Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes.
Orientador: Prof.ª Dr.ª Gláucia Vieira Machado
1. Literatura brasileira. 2. Dom Casmurro - Sedução. 3. Beleza. 4.
Feiura. I. Assis, Machado de. II. Título.
.
BSE-CCHLA
CDU 821.134.3(81)
MARIA ISABELLE RIBEIRO DA ROCHA
PARA ALÉM DA SEDUÇÃO: UMA LEITURA
DE DOM CASMURRO DE MACHADO DE ASSIS
Trabalho apresentado ao Curso de
Licenciatura em Letras da Universidade
Federal da Paraíba como requisito para
obtenção do grau de Licenciado em
Letras,
habilitação
em
Língua
Portuguesa.
Data de aprovação: ____/____/____
Banca examinadora
Prof.ª Dra. Gláucia Vieira Machado, DLCV, UFPB
Orientadora
Prof.ª Dra. Maria Bernardete Nóbrega, DLCV, UFPB
Examinadora
Prof. Dr. Expedito Ferraz, DLCV, UFPB
Examinador
Prof. Dr. Vinícius Meira, DLEM, UFPB
Examinador
A minha mãe e meu pai.
Aos meus irmãos e a minha prima, que são o meu
alicerce.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, por nunca desistir de mim e nunca permitir que eu desista. À minha mãe
que consegue ser mais feliz que eu em minhas conquistas. Ao meu pai que nunca perde a
calma e a esperança. Aos meus irmãos que já não vivem sob o mesmo teto que eu, mas estão
sempre muito presentes em minha vida. À minha prima Vanessa que hoje é uma irmã. À
turma 2009.1 do curso de Letras da UFPB, em especial a Laís, Patrícia, Gabriela, Fabiana,
Mariana Soares, Mariana Coutinho, Tatiane, Kelianny e Lidiane, que me acolheram todas as
manhãs e pude dividir durante esses anos minhas alegrias e tristezas. Não sei como seria sem
elas. À professora Gláucia Machado que, além de me orientar, me passou calma e confiança
para não desistir. À Sebastián, que me deu forças durante esse período como um anjo protetor
que vela de longe sua protegida.
A beleza é a única coisa preciosa na vida. É
difícil encontrá-la. Mas, quem consegue
descobre tudo.
(Charles Chaplin)
RESUMO
Este trabalho é uma reflexão sobre o conceito de sedução a partir do romance Dom Casmurro,
de Machado de Assis. Em diálogo com essa narrativa e seus personagens ambíguos e omissos
está o suporte teórico de Jean Baudrillard em sua obra Da Sedução, que nos traz um enfoque
etimológico e social do termo. O entendimento do conceito de Belo, a partir da “Teoria da
Beleza” de Platão em O Banquete, com o apoio de Ariano Suassuna em seu ensaio Iniciação
à Estética, soma-se o percurso histórico e social de Umberto Eco, em A História da Feiura,
que aponta a evolução do sentido de fealdade e como ele se faz necessário para a
compreensão da beleza. Ao utilizar os conceitos de sedução e beleza avançamos no sentido
das semelhanças e diferenças entre os termos e até que ponto elas podem ser tão
correlacionadas a ponto de, muitas vezes, serem confundidas. Com esse aparato conceitual
trabalha-se aqui a linguagem e a historicidade como aspectos da sedução, assim como a
importância dessa temática nas narrativas literárias.
Palavras-chave: Sedução; Beleza; Feiura; Narrativa; Dom Casmurro.
ABSTRACT
This work is a reflection on the concept of seduction from the novel Dom Casmurro written
by Machado de Assis. In dialogue with this story and its ambiguous and omitted characters is
the theoretical support of Jean Baudrillard in his book Da Sedução, which brings a focus
etymological and social of the terms. Understanding the concept of Belo, from Plato's Theory
of Beauty in O Banquete, with the support of Ariano Suassuna in his essay Iniciação à
Estética, sum up the historical and social cited by Umberto Eco, in A História da Feiura,
which points the evolution of the sense of ugliness and how it is necessary to understand the
beauty. By using the concepts of seduction and beauty we move towards the similarities and
differences between the terms and the extent to which they can be so correlated as to often be
confused. With this conceptual apparatus works here the historicity and language as aspects of
seduction, as well as the importance of this theme in storytelling.
Keywords: Seduction, Beauty, Ugliness, Narrative, Dom Casmurro.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................9
I DAS TEORIAS
1.1 A Sedução.................................................................................................................12
1.2 Da sedução do corpo à beleza da alma......................................................................14
1.3 Beleza x Fealdade......................................................................................................17
1.4 A sedução estilística de Machado de Assis...............................................................19
II DA ANÁLISE
2.1 A sedução em Dom Casmurro..................................................................................20
2.2 A sedução dissimulada de Capitu..............................................................................24
2.3 A religiosidade em Dom Casmurro...........................................................................28
2.4 Patriarcalismo e Capitu silenciada.............................................................................30
2.5 Contemplação do Belo...............................................................................................33
2.6 Procriar no Belo.........................................................................................................35
CONCLUSÃO..........................................................................................................................37
REFERÊNCIAS........................................................................................................................40
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INTRODUÇÃO
Este trabalho tem por objetivo principal analisar o conceito e a amplitude do termo
sedução no livro Dom Casmurro (1997), de Machado de Assis. Para o entendimento mais
profundo foi necessária a busca conceitual e sócio-histórica de termos como beleza e feiura,
que se correlacionam facilmente.
A intrigante personagem Capitu é facilmente associada ao termo sedução, uma vez
que sua descrição envolve o leitor de tal maneira que ele se sente envolvido por seus olhos, tal
qual o personagem Bentinho. A narrativa atribui a Capitu características como dissimulada.
Logo, a personagem corre o risco de ser julgada, uma vez que um dos mistérios da obra é sua
suposta traição. Este trabalho, portanto, não se limitou a fadada condenação ou absolvição de
Capitu, mas sim se libertar das amarras desse enfoque e ir além. É entender porque esta
personagem é uma das mais enigmáticas da literatura brasileira. É entender porque, por
décadas, muitos se perguntam se houve ou não traição.
Se a personagem é misteriosa, sedutora, ela já carrega em si atributos não confiáveis.
Basta buscar o próprio significado do termo. Pois, nada mais introdutório e explicativo que a
sua própria etimologia: A palavra provém do Latim seducere (se [d] + ducere). Sed, além de
conjunção equivalente a “mas”, nos livros mais antigos tinha sentido de “separação”,
“afastamento”, “privação”. Ducere significava “levar”, “guiar”, “atrair”. Então, “seduzir” é
maneira de se fazer atrair para privar o outro do controle de si, sob o interesse de obter-lhe a
sensação do prazer. O sedutor sempre tem o poder. Quer dominar. O seduzido foge da
realidade. Vive na ilusão. Entre sedutor e seduzido, há o jogo a fragilidade e do dominante. O
sedutor está incompleto no seu jogo. Não se entrega para não demonstrar fragilidade, mas
exige a entrega completa do ser seduzido.
Os traços semânticos do termo apresentam sentidos variados. Podemos associá-los
tanto a sentidos edificantes quanto eticamente condenáveis. De qualquer maneira, a sedução
utiliza uma estratégia linguística. Linguagem e sedução acabam virando parceiras nas
narrativas.
Há muito tempo que muitas narrativas estão acompanhadas de personagens
misteriosos, míticos, lendários e sedutores. A sedução na cultura literária mundial é
fortemente associada às relações amorosas.
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Se trouxermos a sedução para o cenário religioso, ela é entendida como pecaminosa,
diabólica, atributo de feiticeiros, maligna. Jamais relacionada a algo divino, mas algo do
mundo. O divino usa a “sedução” como ferramenta de seus desígnios inconfessáveis. Basta
lembrarmos-nos de Dalila, Cleópatra, Salomé, e Eva, com serpente e o fruto proibido.
Muitas narrativas remetem à ideia de possuírem uma linguagem para traduzir o
processo de uma trama na qual triunfa a sedução, com o objetivo de obter a ordem do desejo,
do proibido. A linguagem e a sedução andam juntas em prol da verdade ou da mentira num
jogo para obter ou ocultar algo.
Como na narrativa bíblica, a narrativa na literatura brasileira nos é apresentada usando
um artifício de linguagem que, atrelado à sedução, é entendido como algo tentador e perverso.
No enredo da sedução há sempre um jogo (de palavras, de olhares de gestos, de atitudes) onde
existe sempre quem seduz e quem se deixa seduzir. Seguindo a linha dessa construção de um
jogo, nossa literatura é marcada por verdades que não são ditas a fim de um objetivo futuro
usando a sedução como artimanha.
Jean Baudrillard (1991, p. 61), afirma: “A Sedução é aquilo que desloca o sentido do
discurso e o desvia de sua verdade.” Segundo o filósofo, a sedução, mesmo com o passar do
tempo, se perpetuou na sombra, associada ao mal. E esse pensamento não era apenas
“privilégio” religioso. O “carma” da sedução a persegue em outros campos como na filosofia
e na psicanálise.
Não é de se espantar que o leitor sinta-se fisgado pela personagem e, ao mesmo tempo,
condene-a como um ser perigoso. É preciso, portanto, enxergar vários aspectos sociais,
históricos e, principalmente, narrativos presentes na obra. Ora, se Capitu é tão sedutora, deve
atribuir toda a sua descrição à narrativa em primeira pessoa presente na obra. Mais do que
observar a sedução em Capitu é ir além e analisar a sedução nas palavras do personagem
Bento Santiago.
A obra de Machado de Assis é caracterizada por apresentar ironias, contradições e
diálogos com o leitor. Para aprofundar o entendimento de sua estrutura e a expressão narrativa
vamos averiguar a visão crítica de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2007), que em seu
livro Linguagem e Estilo de Machado de Assis, Eça de Queirós e Simões Lopes Neto, fará
uma análise sobre o estilo do escritor e como suas expressões fazem dele tão enigmático e,
porque não, sedutor. Dom Casmurro possui termos centrais bastante relevantes que também
serão devidamente explanados com o apoio de ensaios críticos presentes em Nos Labirintos
de Dom Casmurro, de Juracy Asmann Saraiva (2005) em que A Retórica da Verossimilhança,
11
de Salviano Santiago, presente no livro, se torna fundamental para desvendar os mistérios e
pontos cruciais da obra, tornando o olhar mais periférico para detalhes, até então, tratados de
forma bastante superficial.
12
I DAS TEORIAS
1.1 A Sedução
Jean Baudrillard, em seu livro Da Sedução, dialoga a sedução com várias temáticas
como a sociedade, a produção, o erotismo, o feminino. O que torna bastante relevante para
dialogar com Machado de Assis. Uma vez que para compreender os caminhos de Dom
Casmurro, se faz necessário o entendimento do contexto sócio-histórico em que os
personagens estão inseridos.
Ele afirma que a sedução opõe-se à produção. A revolução burguesa no século XVIII,
como o pensamento da produção dominando ocultou a sedução. Ainda que tivesse surgido a
ideia da liberação da natureza das energias, a sedução fica à margem, já que é considerada um
artifício. Os grandes sistemas de produção excluíram-na do campo conceitual. Pois, a sedução
como um malefício à ordem, sempre tenta acabar com os mandamentos do divino, da
produção e até mesmo do desejo. A sedução parecia ir contra as verdades.
A sedução tem também como característica a reciprocidade entre os sujeitos. É
necessária a troca para que haja o bem sucedido jogo sedutor. O sedutor enxerga no seduzido
partes de si. Ele aproxima o contraste:
Suponhamos que todas as grandes oposições distintivas que organizam
nossa relação com o mundo sejam atravessadas pela sedução, em vez de ser
fundadas na oposição e na distinção. Que não apenas o feminino seduza o
masculino, mas que a ausência seduza a presença, que o frio seduza o calor,
que o sujeito seduza o objeto, ou, ao contrário, claro, pois a sedução supõe
esse mínimo de reversibilidade que acaba com toda oposição ordenada e,
portanto, com toda a semiologia convencional. (BAUDRILLARD, 1991,
p.118/119).
A sedução se constrói, portanto, na diferença entre os sujeitos. Porém é na ilusão que a
sedução se vê plena em sua realização. Pois é a fantasia que se torna a fuga da realidade. É na
fantasia que o jogo de sedução se encaixa nas lacunas da vida.
Segundo Baudrillard, quem seduz nega a realidade e mergulha na fantasia para atingir
o objetivo: atrair o seduzido que está com os olhos voltados para a ilusão, supostamente.
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Baudrillard atribui a sedução ao feminino, uma vez que, segundo ele, a mulher domina
o universo da aparência. A mulher possui a simulação em si junto com a ambiguidade entre o
jogo estratégico e o da ingenuidade, a sutileza e a brutalidade.
O discurso da sedução se constrói, portanto, na aparência para agradar o outro e
produzir-se em signos de encanto para conquistar. Daí lançar mão da ritualidade da estética.
Assim, na sedução, a mulher não tem corpo próprio, nem desejo próprio.
Mas que é o corpo e que é o desejo? Ela não acredita neles, joga. Não tendo
corpo próprio, ela se faz pura aparência, construção artificial a que se vem
prender o desejo do outro. (BAUDRILLARD, 1991, p. 98).
O filósofo acredita que a sedução venha a ter sua capacidade de se intensificar
alcançada, pois ela tem o poder de se transformar, se recriar e penetrar no inexplorado. A
sedução joga com a realidade através do irreal, do imaginário preenchendo, assim, as lacunas
do mundo real.
Nessa teia de ilusão, pode-se compreender porque Baudrillard afirma que “a sedução é
aquilo que desloca o sentido do discurso e o desvia de sua verdade.” (BAUDRILLARD,
1991, p. 61).
O ser seduzido quer viver na ilusão que a sedução proporciona. Ele só enxerga o que a
sedução quer que ele veja. Caso contrário, não seria seduzido.
Enfocando o erotismo. Jean Baudrillard afirma que o sexual triunfou sobre a sedução,
tornando-a subordinada. É enfática a conclusão do autor acerca da prevalência do sexo sobre a
sedução: “Somos a cultura da ejaculação precoce. Cada vez mais, qualquer forma de sedução, que é
um processo altamente ritualizado apaga-se por trás do imperativo sexual neutralizado, por trás da
realização imediata de um desejo.” (BAUDRILLARD, 1991, P. 47).
A sedução tem o poder de movimentar a sociedade, já que ela é a detentora do
universo simbólico. Baudrillard afirma que sedução e desejo não devem ser considerados uma
única coisa. A sedução tem relação sim com o desejo, mas uma relação de querer o que não
tem. Afinal, deseja-se o que não se tem.
Ele afirma que a mídia estimula ainda mais esse desejo no momento em que torna a
imagem, o simulacro mais sedutor através da hiper-realidade.
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E essa gana pelo que não se tem torna o diálogo de Baudrillard com Platão e sua
Teoria da Beleza, que será explorada mais adiante, bastante apropriada para complementar o
termo de sedução e, juntos, dialogar com Dom Casmurro.
1.2 Da Sedução do Corpo à Beleza da Alma
Em O Banquete, Platão se expressa através de vários filósofos reunidos em uma festa
na casa do poeta Agatão para decifrar teorias sobre o Amor. Esse diálogo é característica sua
porque é uma maneira que Platão encontrou de abordar seu método filosófico para provar que
adquirimos o conhecimento através do convívio e discussão entre os homens. Esse é o
verdadeiro aprendizado.
Opiniões se complementam e se chocam. A principio são vários elogios sobre o deus
Eros e sua origem, sua força, seu caráter, sua idade, beleza e conduta.
No discurso de Sócrates encontraremos, mais evidentemente, a Teoria Platônica da
Beleza, intimamente relacionada com o Amor.
Sócrates inicia sua fala num diálogo com Agatão, filósofo que discursou antes dele,
remetendo alguns pontos de sua fala numa espécie de reparação camarada de seus pontos de
vista. Sua primeira observação é sobre o que é o amor. E conclui que o amor é a busca do belo
e do bem. Ele afirma que, se desejamos algo é porque não temos. Sócrates vai buscar seu
diálogo com Diotima, a quem descobriu os mistérios do Amor. Ele passa para seus
companheiros do banquete os ensinamentos que obteve de Diotima: “Considera agora, falou
Sócrates, se em vez de parece, não é mais certo dizer que necessariamente só se deseja o que
não se tem, e que ninguém deseja o de que não carece.” (PLATÃO, 2001, p. 60).
Para entendermos a lógica de Platão e até mesmo sua Teoria da Beleza, se faz
necessária a busca para a compreensão de sua Teoria das Coisas e a Teoria das Ideias.
Segundo o filósofo, o mundo das Ideias é o mundo perfeito. No momento em que a
ideia é concretizada no mundo das coisas torna-se imperfeita. O Livro X da República explica
sua teoria:
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Logo, se faz o que não existe, e pode não fazer o que existe, mas
simplesmente algo de semelhante ao que existe, mas que não existe, e se
alguém afirmasse que o produto do trabalho do marceneiro ou qualquer
outro artífice era uma realidade completa, correria o risco de falar a
verdade? (PLATÃO, 1990, p. 455)
A teoria de Platão explica a perfeição existente no mundo das Ideias, um mundo
universalizado. Antes de algo ser concretizado, ele já existe na ideia. No Mundo das Coisas
tudo é visto singularmente. A materialização é cópia da ideia. Portanto, imperfeita.
Para o filósofo, as obras são imitações imperfeitas de objetos particulares. Ou seja,
cópias igualmente imperfeitas das ideias ou formas. Platão exemplifica sua teoria com uma
mesa. Temos a mesa ideal que determina todas as outras particularmente. As mesas sensíveis,
perfeitas e as mesas representadas pelos artistas que não determinam as outras e não servem
aos mesmos propósitos que as mesas particulares. De acordo com este argumento, a
materialização artística das ideias está distanciada da verdade universal das ideias ou formas
e, por isso, representam coisas inferiores no pensamento platônico: “... o criador de fantasmas,
o imitador, segundo dissemos, nada entende da realidade, mas só da aparência” (PLATÃO,
1990, p. 464).
Platão afirma que tudo que é materializado é imitação, é cópia daquilo que é
idealizado. A cópia é sempre imitação imperfeita do original.
Na Teoria da Beleza, Platão segue a mesma lógica do Mundo das Coisas. Pois, para
ele, no mundo das Ideias se encontra a Beleza Absoluta. Pura, perfeita e imutável.
Ariano Suassuna, em seu livro Introdução à Estética, aborda a Teoria Platônica da
Beleza. Ele nos explica que Platão tem uma visão espiritual para explicar sua teoria. Segundo
o filósofo, nossa alma é originária do Mundo das Essências. Ao ser arremessada para o mundo
real, que é rude, grotesco e imperfeito, ela sente falta do seu lugar de origem e busca aqui o
que é belo. Mas a alma está defeituosa e perdeu a pureza de sua essência aqui no mundo real.
Portanto, ela está no primeiro estágio de sua contemplação do belo. Ela se atrai por belos
corpos: “(...) a alma é invencivelmente atraída pela Beleza, pois sua pátria natural é o mundo das
essências; é exilada neste nosso mundo, ela sente saudade do outro. (...) a alma humana, eterna, sofre
uma decadência ao se unir ao corpo material.” (ARIANO, 2008, p44).
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Esse é o estágio inicial do culto à beleza. Algumas almas têm mais facilidade de
recordar a Beleza pura do Mundo das Essências. Outras não são evoluídas e sentem mais
dificuldades. Veem-se, portanto, presas à parte superficial, corpórea.
É a contemplação amorosa que fará com que a alma supere a devoção da beleza física.
O espírito se sentirá fortificado atingindo o estágio final de arrebatamento e contemplação da
natureza maravilhosa. A alma descansará plena no momento em que sacia sua busca e lhe será
apresentada a Beleza não existente em qualquer parte corporal. É a beleza que existe em si
mesma.
Em O Banquete diz que o amor se faz, a princípio, naquele que busca a beleza dos
corpos:
Quem quiser percorrer nessas questões o verdadeiro caminho, deve começar
desde a infância a procurar belos corpos. De início, se dispuser de um guia
seguro, amará apenas um corpo, ocasião propícia de gerar belos discursos.
(PLATÃO, 2001, p. 74/75)
Porém, quem se apega apenas à beleza corpórea está destinado a contemplar a forma
mais grosseira e impura do amor. A alma ainda não está preparada para o arrebatamento
proporcionado pela Beleza Absoluta.
A teoria da Beleza de Platão parece nos encaminhar para o puro e sublime Mundo das
Essências, embora nunca o alcancemos, uma vez que habitamos o Mundo das Coisas. Já a
sedução é associada a uma contemplação carnal e sexual. Toda a narrativa Machadiana possui
essas contradições de sentimentos de pureza e sensualidade; compaixão e punição. O ciúme
descrito pelo narrador caminha lado a lado com a carga de culpa que o termo sedução traz.
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1.3 Beleza x Fealdade
Capitu tem sua forma física exaltada ao longo do romance. Beleza e sedução parecem
andar juntas. Muitas vezes representadas como sinônimos. Acredita-se que para seduzir devese estar munido de beleza.
A beleza nos contos de fada é relacionada à bondade. As mocinhas são belas, puras e
inocentes, enquanto a vilã é a bruxa feia e má. O feio assume o papel de oposto ao belo. O
belo está relacionado a tudo que apresenta formas harmônicas e proporcionais. Tudo que não
é belo torna-se intolerável.
Mas nem sempre beleza e sedução compartilham do mesmo ser. Branca de Neve, por
exemplo, se vê encantada pelos simpáticos homenzinhos que a deram abrigo. E estes fogem
dos padrões de beleza. E também quando cai na armadilha de comer a maçã envenenada da
bruxa má disfarçada de velhinha maltrapilha. A literatura nos traz personagens grotescos que
acabam por seduzir. Curiosamente nos identificamos e nos compadecemos com a figura deles.
Entre os mais notáveis podemos citar O corcunda de Notre Dame, de Victor Hugo e Cyrano
de Bergerac de Edmond Rostand.
Em A História da Feiura, Umberto Eco (2004) afirma que a beleza está relacionada ao
sublime e ao maravilhoso que povoa o imaginário das pessoas. A definição do belo vai variar
de acordo com os padrões de cada época. Ele descreve o caminho que esses valores estéticos
percorreram ao longo da história.
Na Antiguidade predominava a ideia de que o belo era reflexo da arte de seus povos.
Dessa forma, cada parte do corpo deveria obedecer a uma dimensão exata, caso quisesse ser
belo, já que eles levavam em conta a harmonia e a proporção exata das formas.
A civilização helênica via em seus deuses o modelo da beleza suprema que deveria ser
imitado. Com o surgimento do Cristianismo, a beleza estava no mundo criado por Deus e tudo
era belo e contemplativo. O universo todo era belo, já que foi feito com a imagem e
semelhança de seu criador. Assim, o mundo era belo e bom. Ambos os termos tinham o
mesmo sentido. Seres demoníacos eram representados como criaturas feias e medonhas.
A modernidade quebra este laço entre as más feições e o diabo. A maldade ganha
beleza e sedução.
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No Renascimento, corpos deformados acabavam por ter uma atenção especial. A
valorização do conhecimento e da razão, do estímulo intelectual e artístico que essa época
adquire faz com que os seres disformes virem objetos de observação científica. Embora feios,
eles se tornam contemplativos. As atenções voltam-se para eles.
Sobre a representação da mulher, há o desprezo pela fealdade feminina. A juventude é
bela e exaltada enquanto que a aparência velha e desagradável significa as horripilantes
formas que uma mulher vai assumir futuramente. A velhice representa decadência e é a
expressão exterior da maldade que carrega dentro de si. O feio feminino passa a ser, também,
objeto de divertimento. Essa queda da beleza inspira poetas da época que descrevem a
deformidade feminina causada pelo tempo em tom, ora melancólico, ora cômico.
No Romantismo, a estética ganha mais profundidade. É aí que surge o Sublime.
Aparecem questionamentos para a compreensão do belo e do feio. Preocupa-se em observar
que efeito o belo causa como a contemplação da natureza, de obras artísticas, numa paisagem
ou até mesmo num lugar de muita escuridão. O Sublime é alguém conseguir atingir este grau
de enxergar o contemplativo naquilo que não se pode definir. E é na obra de Victor Hugo, Do
Grotesco e do Sublime (1827), que o escritor une o feio ao lado do belo, o disforme ao lado
do gracioso e o grotesco como oposto ao sublime. Sublime, segundo ele, é a superação do
olhar para um mundo mais elevado, não apenas o que é considerado belo. É a estética além da
beleza. É a exaltação de imagens grotescas que instigam prazer além da tradicional beleza.
Estudar o feio em comparação ao belo é bem mais relativo. Antes ele era definido
como o oposto à beleza. Porém, Umberto Eco aborda em seu livro todo o percurso estético da
beleza/feiura e as denominações que foi adquirindo de acordo com o contexto histórico e
social de cada época.
O feio poderia, então, ser definido simplesmente como o contrário do belo,
mesmo um contrário que se transforma com a mudança da ideia de seu
oposto? Uma história da feiura coloca-se como contraponto simétrico de
uma história da beleza? (ECO, 2007, p16.).
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1.4 A Sedução estilística de Machado de Assis
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira (2007), em seu livro Linguagem e Estilo de
Machado de Assis, Eça de Queirós e Simões Lopes Neto, já dizia que basta um primeiro
contato com a narrativa Machadiana para perceber seus traços linguísticos e estilísticos.
Machado consegue trabalhar com a linguagem de sua época e, ao mesmo tempo, um toque
mais além.
A sua escrita tradicional acaba por se diferenciar graças a sua, também, ousadia em
inovar. Além disso, ele reúne, em suas obras a preocupação gramatical, a presença do
clássico, arcaísmos, neologismos, brasileirismos e estrangeirismos.
Para o autor, Machado de Assis conseguiu “casar” o talento da escrita correta, sem
possuir a rigidez de um gramático, e a leveza de um escritor. É a mescla entre o estilo clássico
lusitano e o brasileirismo que não o abandonam: “o orgulho de escrever à portuguesa não
abandonaria o moleque do morro do Livramento.” (FERREIRA, 2007, p. 30).
Para o crítico, a obra Dom Casmurro é reflexo dos traços inquietantes de Machado de
Assis. Para ele fica evidente sua timidez, indecisões, descrenças e hesitações. “Não sei de
escritor em que o estilo seja mais vivo reflexo em personalidade do que nesse estranho, nesse raro
criador do ‘Dom Casmurro’(...)” (FERREIRA, 2007, p. 31).
Aurélio Buarque acredita que nos livros de Machado de Assis está o seu autorretrato
psicológico, contradizendo a muitos que viam no escritor um ser enigmático e impenetrável.
Machado de Assis se revela, em seus livros, cada etapa de sua vida. Assim, seu estilo
narrativo estava diretamente ligado ao seu estilo de ser. Machado era polido, discreto, linear e
sem os excessos do Romantismo. “Essa aparente pobreza escondendo uma riqueza real reflete
a ‘singular conjunção de contrastes’ que Machado realizou na obra, como na vida”
(FERREIRA, 2007, p.36).
Aurélio revela uma curiosidade na narrativa Machadiana a respeito do emprego dos
adjetivos: Ele não usava superlativo. Quando o fez, trouxe toda uma carga irônica na pele do
personagem José Dias, ridicularizando-o. A explicação que Machado de Assis dava era a de
não deixar o seu leitor chocado com exibições de superlativos.
Os adjetivos e os verbos eram uma peculiaridade do escritor. Ele os fazia ser bastante
originais. Capitu tornava-se ainda mais singular quando o narrador lhe atribuía termos como:
“oblíquos” e “dissimulados”.
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Machado de Assis lançava mão também de expressões e metáforas bem suas. Capazes
de caracterizar bem o estilo do escritor:
Escobar veio abrindo a alma toda, desde a porta da rua até o fundo do
quintal. A alma da gente, como sabes, é uma casa assim disposta, não raro
com janelas para todos os lados, muita luz e ar puro. Também as há
fechadas e escuras sem janelas, ou com poucas e gradeadas, às
semelhanças, de conventos e prisões. Outrossim, capelas e bazares, simples
alpendres ou paços suntuosos (ASSIS, 1997, p.170).
Embora Aurélio Buarque de Holanda faça várias críticas ao estilo de Machado de
Assis, afirmando que o escritor, por sua linearidade, acaba deixando seus diálogos cansativos
e superficiais exagerando na repetição proposital de alguns termos e ainda reforçando suas
críticas fazendo recorte de opiniões de outros críticos, ele reconhece seu valor estilístico
dizendo que para ler Machado de Assis tem que se aproximar bem dele, das suas letras com
paciência para investigar o que há por trás. Para ele, Machado esconde sua inquietude dentro
de toda a calmaria. Machado tem uma agitação íntima e apenas olhos dispostos o reconhecem.
E finaliza sua crítica temendo ser contraditório ao falar do escritor. Risco esse que
corremos ao mergulharmos em seu universo narrativo. Ainda mais se tratando de Dom
Casmurro.
II DA ANÁLISE
2.1 A sedução em Dom Casmurro
Se pensarmos na sedução dentro da literatura observamos a construção de muitos
personagens em que a aparência deles é essencial para a estratégia da sedução. O poder está
na imagem que eles conseguem causar. Sobretudo numa mente de um narrador onde nada é
vetado ou proibido. Pelo contrário, tudo é permitido, já que essa é uma das promessas do
sedutor: Liberdade de prazer. E a literatura permite isso. Ainda que os desejos sejam
embutidos, camuflados, o leitor torna-se cúmplice do pensamento do narrador.
Todos os argumentos oratórios da sedução devem ser tramados pelo sedutor. É ele
quem espacializa, mesmo quando se finge de seduzido. O fingimento das reais intenções
norteia os gestos e os sentimentos do sedutor, preparando a armadilha para a presa.
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Na sedução amorosa das narrativas literárias é comum a morte ou a tragédia. A
entrega ao prazer terá como consequência o sofrimento. Vivenciar a sedução na paixão é
perigoso. Tudo é aflição, devastação onde parece haver um vencedor e um vencido; um
predador e uma presa; um sedutor e um seduzido.
A literatura do século XIX é marcada pela fase romanesca. Flaubert, Eça de Queiroz,
Camilo Castelo Branco, José de Alencar, Machado de Assis, entre outros, nos deixaram obras
que até hoje nos instigam, fascinam e seduz. Tornando-nos reflexores e analistas de suas
narrativas.
Jean Baudrillard, em sua obra Da Sedução, traz um estudo sobre a arte da sedução em
vários aspectos de análise. Para dialogar com a narrativa Machadiana podemos agregar seu
pensamento de que a sedução é um atributo feminino. Pois, para ele, o feminino representa a
força diante do masculino, uma vez que possui o poder da sedução que lhe é inato. “... a
sedução pode ser dita feminina por convenção” (BAUDRILLARD, 1991, p. 13).
A mulher conquista através de símbolos num jogo de aparências em que o corpo é seu
principal
instrumento.
É
a
representação
do
“domínio
do universo
simbólico”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 13). Quebrando a imagem de mulher frágil e promovendo-a para
dominante.
A mulher ‘tradicional’ não era nem recalcada, nem proibida de gozar; ela
estava inteiramente dentro de seu estatuto, de nenhum modo vencida, de
nenhum modo passiva. [...] Sempre teve sua própria estratégia, incessante e
vitoriosa estratégia de desafio (cuja forma maior é a sedução)
(BAUDRILLARD, 1991, p. 25).
O feminino se coloca não mais como oposto ao masculino, mas mergulha num jogo
estratégico de aparências. E o autor quebra a ideia de que o masculino é o ser dominante,
tornando-o um ser “residual, uma formação secundária e frágil que é preciso defender à força
de supressões, de instituições e de artifícios. (...) Vive apenas na finalidade do sexo que se
esgota na reprodução ou no gozo.” (BAUDRILLARD, 1991, p.21).
A visão bíblica nos faz crer que a sedução feminina carrega todo o pecado divino
sentindo a dor incalculável no momento da procriação. Por causa da mulher o homem recebe
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todo o pecado. Essa ideia permeia pela humanidade e a mulher sempre tem sua imagem
associada à sedução, à tentação e ao pecado.
Em Dom Casmurro é constante a presença da dúvida, da incerteza, do mistério, da
ironia. O leitor, assim como o personagem Bentinho, é fisgado pela beleza da personagem
Capitu, que é descrita pelo narrador com detalhes peculiares de sua personalidade atraente. A
forma cronológica da narrativa já nos instiga para desvendar o porquê do desfecho solitário do
personagem-narrador, que resolve resgatar seu passado para que o leitor entenda o que foram
“aqueles olhos de ressaca” em sua vida.
Retórica dos namorados dá-me uma comparação exata e poética para dizer
o que foram aqueles olhos de Capitu. Não me acode imagem capaz de dizer,
sem quebra da dignidade de estilo, o que eles foram e me fizeram. Olhos de
ressaca? Vá, de ressaca. É o que me dá ideia daquela feição nova. Traziam
não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força que arrastava para
dentro, como a vaga que se retira da praia, nos dias de ressaca (ASSIS,
1997, p.85).
Baudrillard cita passagens do Diário de Um Sedutor para explicar o poder de um
olhar:
Que arma é tão afiada, tão penetrante, tão luzente no seu movimento e,
graças a isso, tão ilusória quanto um olhar? Marca-se uma guarda alta,
como na esgrima, e fere em seguida... Esse instante é indescritível.
(BAUDRILLARD, 1991 p. 121).
Como a sedução é tida como algo estratégico e manipulador, características atribuídas
pela narrativa a Capitu, vê-se nela como uma predadora e em Bentinho, a presa frágil.
Bentinho, a princípio, parece lutar contra o poder que a ninfa exerce sobre ele. E Baudrillard
aponta para essa fuga do seduzido. Segundo ele, até mesmo a arte de seduzir é um escapismo
para não se deixar prender pelo sedutor. O ser como seduzido sempre se passa como vítima e
vulnerável, sujeito ao jogo do sedutor. É manipulável.
Para não ser arrastado, agarrei-me às outras partes vizinhas, às orelhas, aos
braços, aos cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa buscava as
pupilas, a onda que saía delas vinha crescendo, vaga e escura, ameaçando
envolver-me, puxar e tragar-me. (ASSIS, 1997, p. 85).
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O personagem-narrador se descreve como criado sem o pai, cercado por mulheres,
sem muito convívio social das outras crianças. É tímido e com receio de falar o que pensava.
No primeiro beijo, toda a sua timidez e insegurança vem à tona:
Não me atrevi a dizer nada; ainda que quisesse, faltava-me língua. Preso,
atordoado, não achava gesto nem ímpeto que me descolasse da parede e me
atirasse a ela com mil palavras cálidas e mimosas (ASSIS, 1997, p. 87).
Capitu, com sua intuição dissimulada, disfarça no momento em que ambos quase são
flagrados pela mãe dela:
Capitu compõe-se depressa, tão depressa que, quando a mãe apontou a
porta, ela abanava a cabeça e ria. Nenhum laivo amarelo, nenhuma
contração de acanhamento, um riso espontâneo e claro (...) (ASSIS, 1997,
p.87).
Bentinho não possui a artimanha que parece ser inata em Capitu. Ele se vê incapaz de
rir para simular uma brincadeira. Ele se descreve como passivo, sem iniciativa. Não tem
coragem de enfrentar a mãe quando esta decidiu pô-lo em um seminário. Acatou pelo receio
em de dizer o que pensava.
Se a sedução é uma paixão ou um destino, no mais das vezes é a paixão
inversa que a suplanta: a de não ser seduzido. Lutamos para nos fortalecer
em nossa verdade, lutamos contra aquilo que nos quer seduzir.
Renunciamos a seduzir por medo de ser seduzidos. (BAUDRILLARD,
1991, p. 136).
O narrador é ambíguo e contraditório em sua narrativa. Se por um lado o leitor se
compadece do menino acanhado, sem coragem, ciumento e cheio de imaginação, por outro
essa sedução narrativa que tenta nos persuadir torna esse mesmo narrador incompetente para
insinuar as artimanhas, dissimulações e a sedução de Capitu. O leitor se vê numa dualidade de
crenças que o acompanha durante toda a narrativa. O personagem, por ser narrador, nos
convence do poder que Capitu exerce sobre sua fraca personalidade. E quando o leitor já se
convence de algo é lembrado de que Bentinho tinha muita imaginação, ao passo que também
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não tinha boa memória. A sua narração é omissa, com suposições a serem preenchidas pelo
leitor. O narrador assume que suas memórias compõem um livro falho e cheio de lacunas. Daí
o convite para o leitor perceber de que o narrador é incompetente para a tarefa.
Mais do que se agarrar na questão do julgamento de Capitu, o leitor deve se prender e
desfrutar desse jogo narrativo que nos transporta de um lado para o outro.
2.2 Sedução Dissimulada de Capitu
Capitu é descrita como imperiosa, falava com segurança em qualquer situação, era
curiosa e sabia dissimular, mentir. Algumas passagens mostram essas características que,
combinadas, conferem à personagem a competência necessária para a sedução.
No capítulo “A inscrição”, Bentinho, personagem que passa uma figura melindrosa e
manipulável, fica atônito e assustado. Capitu domina a situação e evita que seja descoberta
pelo pai dela a inscrição dos nomes deles no muro. Capitu tem ampliada a sua habilidade.
Além de dissimular e mentir tinha raciocínio rápido.
Dissimulada é, talvez, a palavra que mais permeia para a descrição de Capitu. É ela
quem persuade Bentinho para que seus planos triunfem. Ela seduz de longe usando Bentinho
como instrumento, pondo suas palavras na boca do rapaz para, enfim, evitar a ida do seu
amigo ao Seminário.
(...) Não lhe fale acanhado. Tudo é que você não tenha medo, mostre que há
de vir a ser dono da casa, mostre que quer e que pode. Dê-lhe bem a
entender que não é favor. Faça-lhe também elogios; ele gosta muito de ser
elogiado, D. Glória presta-lhe atenção; mas o principal não é isso; é que ele,
tendo de servir a vocês, falará com muito mais calor que outra pessoa
(ASSIS, 1997, p. 63).
Capitu, muito astuta, sabia que José Dias, por trás de toda a gratidão e subordinação à
família, tinha ambições e sabia como seduzi-lo para torná-lo um aliado.
Sua habilidade em camuflar seu comportamento é perceptível no momento em que ela
e Bentinho se beijam e, na iminência de serem flagrados pelo pai dela, Bentinho está atônito e
Capitu está controlada. A narração serve para mostrar a sua capacidade de dissimulação
quando lhe é conveniente:
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O susto é naturalmente sério; eu estava ainda sob do que trouxe a entrada do
Pádua, e não fui capaz de rir, por mais que devesse fazê-lo, para legitimar a
resposta de Capitu. Esta, cansada de esperar, desviou o rosto, dizendo que
eu não ria daquela vez por estar ao pé do pai. E nem assim ri. (ASSIS, 1997,
p. 56).
Bentinho reconhecia a habilidade de Capitu e invejava que ela se governasse tão bem.
E no momento em que ele narra o passado faz reflexões lamentando sua ingenuidade da
adolescência: “Há coisas que só se aprendem tarde; é mister nascer com elas para fazê-las
cedo. E melhor é naturalmente cedo que artificialmente tarde.” (ASSIS, 1997, p. 56).
Existe na narrativa um encantamento de Bentinho com o jogo sedutor, nas palavras e
na maneira de ser de Capitu, ao passo que há também o receio, típico de quem está sendo
seduzido. Bentinho é homem, antes de qualquer coisa. Não se descarta a possibilidade, na
narrativa, de um receio à ameaça patriarcal.
É tendencioso o leitor focar a atenção na suspeita de adultério da personagem
feminina. Mas, uma das coisas que, de fato, deveria ser mais relevante na obra são a
ambiguidade e estratégia da narrativa, que revelam mais sobre o feminino do que se pensa. É
preciso captar a construção da palavra, do enredo e do personagem narrador.
No livro “Os Labirintos de Dom Casmurro: ensaios críticos” Helder Macedo propõe
uma nova visão contrária a habitual. Ele vê os aspectos sociopolíticos como estruturantes do
livro e não acessórios.
Enquanto toda a trama é voltada para a conduta de Capitu e o ciúme de Bentinho,
Macedo observa que a sedução que a personagem carrega em si trata-se de uma artimanha
para sua ascensão social. Ele vê como superficial e precipitado o foco que se dá aos
sentimentos dos personagens e como são analisados. É válido observar como o livro foi, por
décadas, interpretado sem dualidades, sem suposições. Apenas uma verdade e uma leitura
conclusiva imposta no conceituado Dicionário de Literatura: literatura portuguesa, literatura
brasileira literatura galega, estilística literária:
CAPITU. Personagem do Dom Casmurro (v) de Machado de Assis. O seu
feitio ambicioso e pérfido deixa-se adivinhar nas entrelinhas da primeira
parte do romance para, na segunda parte, se revelar em plena luz. Ainda
menina, os seus “olhos de ressaca” faziam pensar. ‘Você já reparou nos
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olhos dela? – perguntava José Dias a Bentinho. – São assim de cigana
oblíqua e dissimulada’. Mas Bentinho não reparava, era ingênuo e
confiante; amava. Capitu vem a casar com ele, atraiçoa-o com Escobar, e no
dia em que este é enterrado mais uma vez exerce a sua arte de fingir,
enxugando rapidamente duas lágrimas, ‘consolando’ a pobre viúva.
(SARAIVA, 2005, p. 105).
É essa visão interpretativa limitada que Helder Macedo critica. E louva os novos
críticos que permitem uma nova leitura nas entrelinhas machadianas. Ele descobre em
Silviano Santiago uma afinidade de pensamento. Silviano Santiago (1978) traz a “Retórica da
Verossimilhança” para entender as personagens, escapando da armadilha psicológica do
ciúme de Bentinho, do adultério, da obsessão pela beleza e sedução de Capitu. Ele sugere que,
se é para falar do ciúme presente na obra, que se fale sobre o ciúme pelo ciúme.
Helder Macedo adverte que toda a narrativa em cima de Capitu, sejam elas
psicológicas, biológicas e sociais é suficiente para explanar sua intenção estratégica para se
equiparar à classe social que é própria de Bento Santiago.
O seu jogo sedutor é notório aos olhos do personagem José Dias. E é este que a
descreve com a metáfora a condição de “cigana obliqua e dissimulada”.
Assim voltamos a questionar sobre a sedução como característica de alguém
manipulador e de caráter duvidoso.
(...) prima Justina reteve-me alguns minutos falando do calor e da próxima
festa da conceição, dos meus velhos oratórios e, finalmente, de Capitu. Não
disse mal dela; ao contrário, insinuou-me que podia vir a ser uma moça
bonita (...) É certo que, após algum tempo, modificou os elogios a Capitu, e
até lhe fez algumas críticas, disse-me que era um pouco trêfega e olhava por
baixo. (ASSIS, 1997, P. 69).
Bentinho narra a descrição da prima Justina sobre as características de Capitu com
desconfiança. Exalta suas qualidades, mas não se deixa convencer pela maneira de olhar da
personagem. É a sedução sendo associada ao que é indigno e não confiável. Ou, como diria o
crítico Helder Macedo, uma forma preconceituosa de “barrar” Capitu, que não pertence ao
mesmo nível social da gente do Bento Santiago.
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A gente do Pádua não é de todo má. Capitu, apesar daqueles olhos que o
diabo lhe deu... Você já reparou nos olhos dela? São assim de cigana
oblíqua e dissimulada. Pois, apesar deles, poderia passar se não fosse a
vaidade e a ondulação. (ASSIS, 1997, p. 71)
José Dias, o agregado da família de Bento Santiago, nessa passagem, faz nascer a
expressão tão conhecida da obra - cigana oblíqua e dissimulada - e que Bentinho logo adota
ao longo de sua narrativa. Aqui José Dias também envolve a família de Capitu. Passagem essa
que pode vir a atenuar o que Helder Macedo defende em seu ensaio ao afirmar traços
preconceituosos em Dom Casmurro.
Silviano Santiago em seu ensaio “Retórica da Verossimilhança” (2000, p. 27), afirma
que a obra de Machado de Assis é “um todo coerentemente organizado”. Toda a narrativa
deve ser levada em conta e nada deve ser descartado. Para Santiago, Machado de Assis se
revela pouco a pouco em sua narrativa. Tornando a leitura profunda e cercada de elementos
imaginativos o que torna Dom Casmurro um livro envolvente, com interpretações variadas.
Não se trata de uma obra como O Primo Basílio e Madame Bovary e o adultério abordado
meramente como uma discussão ética. É, antes de qualquer coisa, abordar o ciúme e estudálo.
O que é tido como sedutor e relevante em Dom Casmurro, segundo Silviano, é sua
construção discursiva sobre a verossimilhança, sustentada pela semiótica para a realização da
narrativa de Machado de Assis. Verossimilhança não deve ser confundida com realidade; é
mais forte diante dos elementos discursivos. Capitu não fala. Não se defende diante de tudo o
que vem atrelado a Bentinho: Ex-seminarista, advogado, pertencente à elite social e patriarca.
Mas, Machado de Assis, com suas dissimulações e ambiguidades, deixa escapar algumas
contradições de Bentinho e evidencia o seu ciúme ainda na adolescência, fazendo com que o
leitor oscile entre a condenação de Capitu por suas características envolventes que se opõem
às de Bentinho: criado sem pai, tímido, inseguro e podendo ser visto como vítima de sua
amiga (que carrega o poder de sedução) e sua absolvição.
É certo que Dom Casmurro sempre foi alvo de diversos tipos de leituras. Esmiuçar a
intencionalidade de Machado de Assis requer ousadia interpretativa. Assim, Silviano Santiago
o fez ao analisá-lo:
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E se for possível ou necessário identificar Machado de Assis com alguma
de suas personagens, não seria com o senhorial Bento Santiago, seria com a
marginalizada Capitu, mesmo quando – sobretudo quando – maliciosamente
caracterizada como cigana oblíqua e dissimulada. (SARAIVA, 2005, p.
107)
Juracy Aussmann Saraiva, em seu ensaio, evidencia, além do aspecto tendencioso dos
artifícios da narrativa de Bento Santiago para envolver o leitor na sua lógica e justificar seu
ciúme, assim como também o sentimento de desconfiança do leitor, uma vez que “pelos
próprios procedimentos discursivos e pelas declarações metaficcionais do narrador (...)
convidam o leitor a desconfiar dessa voz,” (SARAIVA 2005, p. 113); ele observa em Dom
Casmurro a importância do aspecto visual na narrativa como chave para passar informações
para o interlocutor. Imagens, gestos e, principalmente, olhares.
Saraiva evidencia em sua crítica a incansável menção ao olhar dos personagens. Além
do olhar de “ressaca” que também é descrito como o de “cigana oblíqua e dissimulada” como
se o olhar fosse a janela para descobrir sua personalidade, que é comparada ao Diabo pelo
agregado José Dias, ele descreve também o olhar de Escobar como “dulcíssimos” (ASSIS,
1997, P. 147). E isso pode justificar terem seduzido Capitu. E descreve a semelhança entre os
olhos de Escobar aos de Ezequiel, implicando que ambos sejam pai e filho e comprovando
sua dúvida do adultério.
Sendo os olhos a ponte que interliga o mundo interior de Bento Santiago ao exterior,
essa função é transferida aos olhos das outras personagens, diante dos quais ele se
situa como intérprete. Portanto, a ação de descrever o olhar reafirma caracteres do
próprio protagonista, embora esse procedimento conflua para a realização do
objetivo implícito à narrativa (SARAIVA 2005, p. 130).
2.3 A religiosidade em Dom Casmurro
A construção narrativa do livro traz reações ao leitor relacionadas à dúvida sobre a
infidelidade conjugal de Capitu mesmo sem nenhuma prova que tenha, de fato, cometido o
adultério. O narrador do romance tenta seduzir o leitor de que isso aconteceu porque ele
possui artifícios para isso. Como a carga religiosa em que foi inserido desde muito pequeno,
por exemplo.
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A religião está muito presente em Dom Casmurro. A mãe de Bentinho é extremamente
devota e o próprio protagonista é destinado ao Seminário tornando, assim, o maior obstáculo
para ficar junto de Capitu. Bento Santiago fica entre o desejo religioso da mãe e o desejo por
Capitu. Esse discurso religioso acompanha toda a obra, porém sem comentários específicos
do narrador sobre essa temática.
Todavia, se tratando de uma obra Machadiana, podemos identificar uma forma irônica
de abordar a tradição e os costumes religiosos da época. Bentinho cresce no ambiente
religioso, faz promessas que nunca consegue cumprir, entra no Seminário e, na narrativa, não
foca a questão religiosa mais do que as experiências que lá viveu. Machado de Assis é famoso
por estar à frente de sua época. Portanto, não é surpreendente que ele foca sobre a religião em
Dom Casmurro de forma a questioná-la.
Desde pequenino acostumara-me a pedir ao céu os seus favores, mediante
orações que diria, se elas viessem. Disse as primeiras, as outras foram
adiadas, e à medida que se amontoavam iam sendo esquecidas. Assim
cheguei aos números vinte, trinta, cinquenta. Entrei nas centenas e agora no
milhar. Era um modo de peitar a vontade divina pela quantia das orações...
(ASSIS, 1997, p. 65).
Se Capitu carrega em si o papel da enigmática sedutora personagem da obra, ela acaba
virando o lado oposto da religião. O lado profano. Aquela que desvia o caminho do bem do
ingênuo Bentinho. E esse é mais um argumento a favor do narrador. Bento Santiago vive a
constante divisão entre o sagrado e o profano.
Ao mesmo tempo em que ele parece profanar seu destino, também parece manter o
laço tradicional que acompanhou sua formação.
Ora, se Bento Santiago rejeita e pratica diversas sabotagens para que sua estadia no
Seminário seja curta é por causa da tentadora e articulosa Capitu. É isso que ele deixa bem
claro em sua narrativa. Além de o narrador nos passar que ele segue os planos da amada para
se livrar do “castigo” de virar Padre um dia, Capitu também se aproxima de D. Glória
enquanto ele não está presente. Mas não se deve esquecer que o narrador denuncia Capitu
quando ela proclama ofensas quando chama a mãe de bentinho de carola e papa missas. Logo,
o leitor não tem outra opção a não ser pensar que essa amizade é mais uma artimanha de
Capitu para seduzir a confiança da futura sogra: “Capitu ia agora entrando na alma de minha
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mãe. Viviam o mais tempo juntas, falando de mim, a propósito do sol e da chuva, ou de nada;
Capitu ia lá coser, às manhãs; alguma vez ficava para jantar.” (ASSIS, 1997, p. 139).
Também se deve levar em conta o afastamento religioso do protagonista na medida em
que fica mais próximo de Capitu. No fim das contas, sozinho e descrente, Bentinho utiliza o
apelido “Dom Casmurro” e não mais Bento (nome religioso).
Como a obra machadiana tem características ambíguas, é possível, nesse caráter
religioso, sentirmos essa dualidade de sentidos. Dom Casmurro é uma obra trágica e é
possível, ora fazermos uma leitura irônica sobre o profano e religioso, ora espiritual, em que
Bentinho sofre as consequências do homem arreligioso e tem o predestinado fim solitário.
Muito embora, ao longo da obra, o personagem Bentinho cometa “deslizes” de contradições
quanto as suas suspeitas.
Machado de Assis envolve-nos nessa operação narrativa em uma teia de ambiguidades
tão características suas com omissões e contradições. Como resultado, pensamos que, se
Capitu realmente foi infiel, o narrador não tem como acusá-la. O que se tem é o relato de
Bentinho. O leitor é surpreendido pela dúvida.
2.4 Patriarcalismo e Capitu Silenciada
O contexto social em que Capitu se encontra a torna passiva e de mãos atadas num
sistema que pode perfeitamente transformá-la numa vítima e não numa suspeita.
Pelo fato de Bento Santiago obter a palavra, ele possui, então, a soberania para impor
sua visão. Bento se diz regido pela sedução de Capitu e esta é regida pelas palavras do
narrador. É dessa maneira que podemos identificar o patriarcalismo presente, uma vez que a
mulher cumpre o papel submisso servindo para ser observada, falada, desejada e julgada. Se
for tentador ler a obra e cair no vício de ser conivente com a condenação de Capitu, isso se dá
devido à inteligência narrativa de Bentinho.
As características de Capitu são sedutoras e ela transborda confiança em sua
personalidade o que é o oposto a imagem da mulher suave, quieta que a sociedade cultuava.
No decorrer do discurso de Bentinho, ele confessa os “talentos” masculinos que Capitu
possui.
31
Quando Bentinho evidencia o talento de Capitu em mudar bruscamente de
comportamento diante da presença de outros, ele direciona o leitor, implicitamente, para a sua
ideia de que Capitu já tinha, desde muito nova um caráter falso e manipulador, não admitindo
que ela seja superior a ele por ser mais astuta.
Paralelo ao discurso que Bentinho faz em cima da sedução suspeita de Capitu que a
acompanha desde a adolescência, Bentinho parece induzir o leitor à seu favor em outros
aspectos também como, por exemplo, a maneira em que ele descreve a reação da sua amiga
ao saber que a mãe dele decidira pô-lo em um Seminário.
“– Beata! Carola! Papa missas!” (ASSIS, 1997, p. 60).
Bentinho torna Capitu uma mulher descontrolada emocionalmente e rude. Fica
assustado e não leva em conta que se tratava de uma adolescente que estava temendo se
afastar do seu primeiro amor. Nesta cena Capitu se recompõe e, mais uma vez, Bento
Santiago faz transparecer que essas engenhosidades de Capitu são perigosas para uma mulher.
Ainda que essas acusações não sejam feitas explicitamente. O leitor é direcionado para isso ao
mergulhar nas lembranças do protagonista.
Um traço bastante característico em Machado de Assis é o uso da imagem. E esse
recurso faz de Capitu uma personagem ainda mais sedutora e forte. A descrição dos seus
olhos é feito por José Dias e depois por Bentinho. O primeiro os caracteriza negativamente.
Para o personagem, Capitu traz em seu olhar o reflexo de uma mulher não confiável.
Interessante também observar na obra o contraste entre a mãe de Bentinho, D. Glória,
e Capitu. As duas mulheres mais presentes em sua vida. Ambas bastante distintas. Enquanto
D. Glória é descrita como uma mulher virtuosa, extremamente devota a Deus, viúva fiel ao
marido falecido, Capitu é descrita como detentora de uma personalidade questionável. Como
se aquela fosse um exemplo a ser seguido enquanto esta uma ameaça feminina para a figura
do homem.
Capitu, ao ser acusada por Bentinho, deixa o lar. Atitude oposta ao que se espera da
mulher da época. “– Não, Bentinho, ou conte o resto, para que eu me defenda, se você acha
que tenho defesa, ou peço-lhe desde já nossa separação: não posso mais!” (ASSIS, 1997, p.
235).
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A forma como o feminino é representado quebra o tradicionalismo da mulher. Ainda
que tenha que analisar através dos olhos de Bentinho, é possível captar uma mulher que foge
das obrigações sociais que lhe estão destinadas.
Outro aspecto interessante a ser observado é que Capitu é silenciada cada vez mais ao
longo da narrativa o que faz predominar ainda mais a suspeita e convicção de Bentinho sobre
sua suposta traição.
Machado de Assis é um escritor do Realismo, que quebra muitos tabus do
Romantismo. Dá vida a Capitu, personagem forte e sedutora. Então, é lógica nossa visão de
que se trata de uma personagem também reprimida e silenciada por uma sociedade patriarcal
e machista.
O risco de mergulharmos na narrativa exclusiva de Bentinho a ponto de sermos
cúmplices de seu ciúme patológico se dá também porque Capitu não tem voz. Esse é um
mecanismo de manipulação do narrador que é seduzido pela sua amiga e nos seduz para a sua
parcial descrição dos acontecimentos.
E é essa a artimanha sedutora de Machado de Assis: Cairmos na mesma armadilha de
Bento Santiago. É olhar superficialmente e erroneamente a obra e deixarmos de nos deter ao
que realmente é belo e sedutor na obra.
Há décadas que o que ronda em torno de Dom Casmurro é o julgamento da conduta
(ou falta dela) da personagem Capitu. Talvez toda essa atenção para a temática seja provocada
justamente pelo termo sedução em si e toda a culpa que lhe é atribuída.
Olhamos com os olhos de Bentinho os olhos de Capitu e somos tragados por eles.
Sentimos o ciúme, a posse do objeto de desejo sendo ameaçado. Entendemos sua loucura
confundida com o amor exacerbado e logo caímos na teia do julgamento de personagem
Capitu.
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2.5 Contemplação do Belo
Em Dom Casmurro, o narrador descreve Capitu ainda na adolescência, exaltando suas
características físicas:
Não podia tirar os olhos daquela criatura de quatorze anos, alta, forte e
cheia, apertada em um vestido de chita, meio desbotado. Os cabelos
grossos, feitos em duas tranças com as pontas atadas uma à outra, à moda
do tempo, desciam-lhe pelas costas. Morena, olhos claros e grandes, nariz
reto e comprido. Tinha a boca fina e o queixo largo. As mãos, à despeito de
alguns ofícios rudes eram curadas com amor; não cheiravam a sabões finos
nem águas de toucador, mas com água de poço e sabão comum trazia-as
sem malícia. Calçava sapatos de duraque, rasos e velhos, a que ela mesma
dera alguns pontos. (ASSIS, 1997, p.53).
Em O Banquete, Platão afirma que contemplamos, primeiramente, a beleza dos
corpos. “Alcançando esse ponto tornar-se-á apaixonado de todos os corpos belos e relaxará
por outro lado, a violência do amor de um único corpo que passará a desprezar, por haver
reconhecido a sua insignificância.” (PLATÃO, 2001, p. 75).
O narrador-personagem Bento Santiago nos mostra uma narrativa sutil ao falar de
Sancha, esposa de Escobar e sua quase inconfessável inclinação para a traição. Comprovando,
assim, que sua alma ainda estava em sua forma primitiva, Ainda não teria, segundo a hipótese
platônica, evoluído para a contemplação além do corpo. Ele se vê tomado pela experiência
que viveu com Sancha: “Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos
outros. Foi um instante de vertigem e de pecado. Passou depressa no relógio do tempo;
quando cheguei o relógio ao ouvido trabalhavam só os minutos da virtude e da razão.”
(ASSIS, 1997, p. 213).
Ao passo que ele admite a atração e de certa forma se puni, ele, como narrador, tem a
narrativa em suas mãos para torná-la omissa. Bento se vê no estágio de se contemplar o belo,
o formoso. Assim como também exaltou a beleza do seu amigo Escobar ao admitir que o
rapaz possui características físicas admiráveis.
Apalpei-lhe os braços, como se fossem os de Sancha. Custava-me esta
confissão, mas não posso suprimi-la; era jarretar a verdade. Não só os
apalpei com essa ideia, mas ainda senti outra coisa: achei-os mais grossos e
fortes que os meus, e tive-lhes inveja; acresce que sabiam nadar. (ASSIS,
1997, p. 213).
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Quando Bento toca em Sancha, sente uma dualidade de sentimentos. Não ignora a
vertigem que sente, mas se vê culpado. O pecado da sedução, da tentação que o feminino
carrega em si, já comentado. E também, dialogando com a ideia platônica de que se
agregarmos a teoria platônica, a alma de Bentinho se vê impura e grotesca, mas clama por
evoluir.
Bento Santiago, com toda a sua devoção a Capitu, não é indiferente a outros seres. Sua
alma vive no mundo real. E sua alma busca o belo que havia no mundo das essências. O
conceito de amor se funde com a ideia da beleza. Ama-se o belo, mas o caminho inicial é o
amor físico e depois o espiritual. Assim, como a superação da contemplação da beleza física
para a absoluta.
Em um momento da narrativa, o personagem busca a superação da contemplação de
outros corpos para se dedicar a um único ser:
Outros olhos me procuravam também, não muitos, e não digo nada por eles,
tendo, aliás, confessado a princípio as minhas aventuras vindouras, mas
eram ainda vindouras. Naquele tempo, por mais mulheres bonitas que
achasse, nenhuma receberia a mínima parte do amor que tinha a Capitu. À
minha própria mãe não queria mais que metade. “Capitu era tudo e mais
que tudo; não vivia nem trabalhava que não fosse pensando nela.” (ASSIS,
1997, p.204).
Com o tempo o homem passará a compreender que outros corpos o atraem também.
Passará da visão singular (um indivíduo) para a universal (todos os indivíduos). E a alma
sentirá necessidade de evoluir do desejo de belos corpos para a Beleza Absoluta. Beleza essa
inalcançável para o homem. Já que este vive num mundo imperfeito e bruto. Porém nada o
proíbe dessa eterna busca da evolução de sua alma.
Só assim deve alguém entrar ou ser levado pelo caminho do amor, partindo
das belezas particulares para subir até aquela outra beleza, e servindo-se das
primeiras como degraus: de um belo corpo passará para dois; de dois, para
todos os corpos belos para as belas ações para os belos conhecimentos, até
que dos belos conhecimentos alcance, finalmente, aquele conhecimento que
outra coisa não é senão o próprio conhecimento do Belo, para terminar por
contemplar o Belo em si mesmo. (PLATÃO, 2001, p. 76).
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2.6 Procriar no belo
Para Platão e, ainda no discurso de Sócrates, sentimos ganas de procriar e procuramos
belos corpos. Esse também é um desejo de nos imortalizar.
A união do homem e da mulher é geração, obra divina, participando, assim,
da imortalidade o ser mortal, pela concepção e pela geração. Mas é
impossível que isso se realize no que é discordante; tudo o que é feio está
em discordância com o divino, ao passo que o belo está em consonância
com ele. Logo a beleza é a parteira da geração. (PLATÃO, 2001, p. 70).
O desejo de se atrair por um belo corpo e nele querer procriar se dá devido à alma
ainda estar no estágio de desejar o físico. Mas também ha o desejo da imortalidade.
Em seguida, a alma evolui e vem o estágio dos amantes fecundos das almas. São
aqueles que admiram as almas, as leis e as ciências.
Bento Santiago e Capitu geram Ezequiel. Bantinho, em um dado momento,
observando a cria contempla nele os traços que imortaliza da amada:
Capitu alheia a ambos fitava agora a outra borda da mesa; mas dizendo-lhe
eu que, na beleza, os olhos de Ezequiel saíam aos da mãe. Capitu sorriu,
abanando a cabeça com um ar que nunca achei em mulher nenhuma,
provavelmente porque não gostei tanto das outras. As pessoas valem o que
vale a afeição da gente, e é daí que mestre Povo tirou aquele adágio que
quem o feio ama bonito lhe parece. Capitu tinha meia dúzia de gestos
únicos na terra. Aquele entrou pela alma dentro. Assim fica explicado que
eu corresse à minha esposa e amiga e lhe enchesse a cara de beijo (...)
(ASSIS, 1997, p.225).
Platão ainda afirma que há indivíduos onde sua força fecundante resite no corpo e
outros, na alma. Indivíduos com força fecundante no corpo buscam procriar em mulheres para
gerar filhos e se eternizarem. Os indivíduos, cuja força fecundante está na alma, são mais
evoluídos e se atraem por almas evoluídas também. Assim, procriará filhos belos e mais
próximos da imortalidade.
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Quando a alma de um desses homens divinos encerra essa virtude
fecundante e, na idade própria, sente desejos de fecundar e procriar, pôe-se
também, segundo creio, a procurar por toda a parte o belo para nele
procriar, o que jamais poderia dar-se na fealdade. Essa a razão de deleitar-se
muito mais com corpos belos do que com os feios, por querer procriar; e se
coincide encontrar uma alma bela, generosa e bem nascida, alegra-se
sobremodo com essa dupla beleza, a do corpo e da alma. (PLATÀO, 2001,
p. 74).
Ora, tomado pela ideia de que Ezequiel não seja o seu filho, Bentinho não consegue
nutrir o amor por aquele que não o vai eternizar, já que não compartilham do mesmo sangue.
Platão afirma que toda a devoção e sacrifícios em batalhas de pais para salvar os filhos é uma
maneira de protegerem a cria que carrega a eles mesmos. É a perpetuação do seu ser. Daí vem
a lógica de morrer em prol de outro ser. Bentinho não vê em Ezequiel a perpetuação de si.
Ezequiel vivia agora mais fora da minha vista; mas a volta dele, ao fim das
semanas, ou pelo descostume em que eu fixava, ou porque o tempo fosse
andando e contemplando a semelhança, era a volta de Escobar mais vivo e
ruidoso. Até a voz, dentro de pouco, já me parecia a mesma. (...) o demo do
pequeno cada vez morria mais por mim. Eu, a falar verdade, sentia agora
uma aversão que mal podia disfarçar (...) (ASSIS, 1997, p. 228).
A repulsa de Bento Santiago por Ezequiel se dá por acreditar que a criança foi
concebida por Capitu e Escobar. Tanto que ele vê, com o passar do tempo, traços do rival na
criança. Impossibilitando-o, segundo a teoria de Platão, de que não há como nutrir amor e
contemplação por aquele que não está carregando sua continuidade.
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CONCLUSÃO
Este trabalho teve como proposta fazer uma análise à respeito da sedução presente na
personagem Capitu por meio da narrativa do personagem Bento Santiago na obra Dom
Casmurro, de Machado de Assis. Sendo esta obra o objeto de estudo. O principal objetivo foi
demonstrar de que maneira a linguagem narrativa pode ser sedutora ampliando, assim, o
significado de sedução.
A análise da obra machadiana tornou-se um desafio, uma vez que o autor se
caracteriza por ser enigmático e irônico. Nesta obra narrada em primeira pessoa, o
personagem principal foi construído de maneira à tendencionar o leitor à cerca de sua visão
tentando torná-lo cúmplice do seu ciúme e desconfiança do suposto adultério cometido por
sua amada Capitu.
Durante décadas o que girou em torno da obra era a dúvida se Capitu havia ou não
traído Bentinho. Mais importante do que analisar psicologicamente a obra, foi verificar a
riqueza narrativa. Mais importante que visualizar a sedução na aparência da misteriosa
personagem Capitu foi esmiuçar a rede de possibilidades que a obra traz.
Foi de fundamental importância a compreensão conceitual dos termos sedução e
beleza e quantos significados eles podem carregar. O que tornam os personagens ainda mais
enigmáticos e ricos para análise. Entendemos, assim, porque tantos autores mergulham fundo
nas águas desconhecidas de Dom Casmurro trazendo sempre pontos de vista novos e
distintos.
A historicidade é fundamental para o entendimento evolutivo do conceito de sedução.
Fez-se necessária a análise conceitual através de recortes de vários autores e seus pontos de
vista para, assim, tornar o olhar mais periférico sobre a obra e, também, compreender que as
verdades de cada um se complementam.
Percebeu-se o quanto há em comum com o conceito de sedução e beleza. Como se,
para seduzir é necessário ser belo de corpo. Platão traz a compreensão de beleza como algo
para se transcender.
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Que ideia faríamos, continuou, da ventura de quem se elevasse até essa
visão do Belo em si mesmo, simples, puro e sem misura, e contemplasse não
a beleza maculada pela carne, por cortes e mil outras futilidades perecíveis,
porém a Beleza divina em si mesma sob sua forma inconfundível? (...) Ora,
quem gera e alimenta a verdadeira virtude é que merece ser querido dos
deuses, e se for dado ao homem ficar imortal, torna-se imortal ele também.
(PLATÃO, 2001, p. 77).
Já a sedução, explanada por Jean Baudrillard, por anos foi associada a algo
manipulador e perigoso. Nada melhor do que unir esses conceitos ora distintos, ora
semelhantes para entender a visão narrativa contraditória de Bento Santiago para com sua
amiga/ mulher Capitu. Ora santa, ora, profana.
A sedução nunca joga com o desejo ou a propensão amorosa; tudo isso é
mecânica e física carnal vulgar, desinteressante. É necessário que tudo se
corresponda por alusões sutis e que todos os signos fiquem presos na
armadilha. Assim, os artifícios do sedutor são o reflexo da essência sedutora
da jovem, e esta como que se multiplica numa encenação irônica, um
engano exato da sua própria natureza, ao qual virá se prender sem esforço.
(BAUDRILLARD, 1991 p.116).
Fez-se necessária a compreensão do feio, do grotesco exposto por Umberto Eco em A
História da Feiura, uma vez que não poderia existir o belo sem o feio. E este acaba sendo
mais interessante de se estudar por ter uma relatividade maior que o estudo da beleza. E o
quanto o feio pode se aproximar do conceito de sedução, já que os dois termos têm
interpretações duvidosas. A literatura quebra os conceitos congelados de beleza, feiura,
grotesco e sedução. Observamos que a sedução está além da beleza. Basta lembrarmos-nos da
obra de Victor Hugo, O Corcunda de Notre Dame, em que o personagem horrendo
Quasimodo vem, por décadas, conquistando leitores de todo o mundo.
Em Dom Casmurro, foi prioritário para a composição desse trabalho analisar a beleza
e sedução em Capitu. sob a ótica de Bentinho, ou seja, através de sua narrativa cheia de
dualidades e contradições, sujeita a várias interpretações onde algumas aqui foram expostas e
comentadas. Capitu tornou-se esse personagem enigmático, misterioso e inesquecível graças a
Bentinho. Jean Braudillard explica que o sedutor só é sedutor devido ao olhar do seduzido.
São os olhos de Bento Santiago que veem os olhos de ressaca de Capitu. Ele intimida e
desafia o leitor para ser compreensível sua devoção pela bela Capitu: “Se isto vos parecer
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enfático, desgraçado leitor, é que nunca penteaste uma pequena, nunca puseste as mãos
adolescentes na jovem cabeça de uma ninfa... Uma ninfa!” (ASSIS, 1997, p. 86).
Portanto, analisar Dom Casmurro é compreender de que forma a elaboração
machadiana se constrói e como o seu estilo literário, invocando o leitor, lançando mão de
expressões singulares, metáforas por ele criadas, ocultando e mostrando informações cruciais
de sua obra fez da sua narrativa tão sedutora.
Dom Casmurro divide no mesmo espaço o novo e o tradicional, o sacro e o profano, o
belo e o grotesco, a pureza e a loucura de um sentimento de um ser para outro, questionando
toda a fragilidade presente no ser humano.
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REFERÊNCIAS
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: Publifolha, 1997.
BAUDRILLARD, Jean. Da Sedução. Tradução de Tânia Pellegrini. Campinas - São Paulo:
Papirus, 1991.
PLATÃO. O Banquete. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém - Pará: Editora
Universitária UFPA, 2001.
PLATÃO. A República 6.ed.Lisboa:Fundação Calouste Gulbenkian, 1990.
SUASSUNA, Ariano. Iniciação à Estética. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2007.
ECO, Umberto. A História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.
SARAIVA Juracy Assmann. Nos Labirintos de Dom Casmurro: Ensaios Críticos. Porto
Alegre: EDIPUCRS, 2005.
FERERIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Linguagem e Estilo de Machado de Assis, Eça
de Queirós e Simões Lopes Neto. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2007.
SILVA, Da Costa E, Dicionário Universal de Curiosidades. São Paulo: CIL, 1966.
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