“Bruxo do Cosme Velho” (por ter morado durante anos
no bairro carioca) serpenteiam nossa existência,
nos inquietam. Aliás, Capitu traiu mesmo Bentinho?
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu em 21 de junho
de 1839, no Rio de Janeiro. Dezesseis anos mais
tarde publicou o poema “Ela” no periódico “A Marmota
Fluminense”. Em seguida, sua primeira atividade
profissional: aprendiz de tipógrafo. Grosso modo,
o derradeiro emprego de Machado foi como diretor de
Comércio na Secretaria de Agricultura/RJ. Alguns de seus
romances mais conhecidos – “A Mão e a Luva”,
“Memórias Póstumas de Brás Cubas”, “Quincas Borba”
e Dom Casmurro” – foram lançados entre 1874 e 1899.
reProdUÇÃo
Capitu livre
Machado trabalhou como
redator do “Diário do Rio de
Janeiro”, em 1860. Na página ao
lado, caricatura do “Bruxo do
Cosme Velho”, por Paladino
Independência e vida - Poeta, cronista,
homem de teatro, contista, romancista, Machado desnorteou
a crítica do século 19 ancorada nos “ismos” de realismo,
naturalismo, positivismo e evolucionismo. Sua
independência em relação a escolas e modelos proporcionou
distância a dogmas, causando perplexidade geral e
revelando a estreiteza dos padrões da época. “Macaqueador
de estrangeiros”, foi acusado por Sílvio Romero, seu
contemporâneo. Muitos anos mais tarde, o crítico Augusto
Meyer identificou e caracterizou a profundidade do
projeto machadiano, situando-o no mesmo campo
de escritores como Luigi Pirandello e Fiodor Dostoievski.
“Uma noite destas, vindo da cidade para o Engenho Novo,
encontrei no trem da Central um rapaz aqui do bairro,
que eu conheço de vista e de chapéu. Cumprimentou-me,
sentou-se ao pé de mim, falou da lua e dos ministros”,
inicia ele “Dom Casmurro”, narrado pelo personagem
advogado Bento Santiago, o Bentinho, em que conta
como conheceu e se casou com Capitolina, a Capitu.
Para Nicolau Sevcenko, professor de história na
Universidade de São Paulo, “Dom Casmurro” (e “História dos
Subúrbios”, seu desdobramento) equivale a “A Comédia
Humana”, do francês Honoré de Balzac, em que aparecem
as novas classes, seu sistema de valores,
devaneios de poder, exibição e expansão.
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RELATÓRIO DE ATIVIDADES
2007
“Desencadeou-se, por assim dizer, a nossa ‘Comédia
Humana’, com as escandalosas manipulações do mercado e
da política por mecanismos espúrios”, afirma Sevcenko,
localizando a publicação do romance (1899) no governo de
Campos Salles, que consolidou as estruturas política,
econômica e financeira da Primeira República.
Estrela-d’alva - Outro professor da USP, Alfredo
Bosi, considera o contexto histórico-social da obra,
mas enfatiza as implicações filosóficas, psicológicas
e existenciais do escritor. Próxima daí, a crítica
norte-americana Helen Caldwell escreveu que a traição de
Capitu, dada como certa por várias gerações de leitores, não
passava de calúnia de um homem enlouquecido pelo ciúme.
“Os loucos por amor eram três ou quatro, mas só dois
espantavam pelo curioso do delírio. O primeiro, um Falcão,
rapaz de vinte e cinco anos, supunha-se estrela-d’alva, abria
os braços e alargava as pernas (...) O outro andava sempre,
sempre, sempre, à roda das salas ou do pátio, ao longo dos
corredores, à procura do fim do mundo.” ( “O Alienista”, 1882)
Fora do romance, Machado escreveu cerca de duzentos
contos, que abrangem praticamente toda sua vida de escri-
tor até um ano antes da morte. Os contos iniciais foram publicados nas revistas “Jornal das Famílias” e “A Estação”, e
no jornal “A Gazeta de Notícias”. Um dos mais célebres é “O
Alienista”, de trecho acima, em que a ambição do ilustre
doutor Simão Bacamarte, de Itaguaí, leva-o à vertiginosa
análise da mente humana: “Pobre moço! Pensou o alienista.
E continuou consigo: Trata-se de um caso de lesão cerebral;
fenômeno sem gravidade, mas digno de estudo...”
Nogueira e Conceição - Outro conto famoso,
e eleito como supremo por uma reunião de críticos
[“Machado de Assis: seus 30 melhores contos”, editora
Nova Fronteira] é “Missa do Galo”, em que ele realiza uma
magistral viagem literária, social e psicológica, envolvendo
os personagens Nogueira, adolescente descobrindo
o mundo, e Conceição, mulher de trinta anos.
“Chegamos a ficar por algum tempo – não posso
dizer quanto – inteiramente calados. O rumor único
e escasso era um roer de camundongo no gabinete,
que me acordou daquela espécie de sonolência;
quis falar dele, mas não achei modo (...)
Subitamente, ouvi uma pancada na janela,
do lado de fora, e uma voz que bradava:
“Missa do galo! missa do galo!”.
Machado de Assis morreu na madrugada de
29 de setembro de 1908. Cem anos depois,
a Academia Brasileira de Letras prepara
exposições comemorativas e
conferências, a USP organiza um colóquio, a
Unesp promove em agosto um simpósio
internacional. Nos EUA, em outubro,
a Universidade Yale fará um
congresso sobre o escritor brasileiro
que tem uma obra muito longe da
paz dos cemitérios. Machado não
é para a estante; é para a vida.
NA INTERNET
www.machadodeassis.org.br
www.dominiopublico.gov.br
Em julho de 1999, um século
depois de vir a público o rumoroso
caso relatado por Bento Santiago
(“Bentinho”), em “Dom Casmurro”,
advogados, juristas, escritores e
jornalistas se reuniram em São Paulo
para um julgamento “jurídico e literário”
destinado a apreciar o caso do
suposto adultério cometido por
Maria Capitolina Pádua (“Capitu”).
O ex-ministro do STF Sepúlveda
Pertence atuou como juiz. Márcio
Thomaz Bastos, ex-titular do ministério
da Justiça, encarregou-se da acusação.
A defesa coube a Luiza Nagib Eluf
(procuradora de Justiça de SP,
à ocasião). Testemunhas de acusação e
defesa: Carlos Heitor Cony, Marcelo
Rubens Paiva, o historiador Boris Fausto
e a escritora Rosinska Darcy de Oliveira.
Cony e Paiva foram peculiares:
insistiram na ocorrência do adultério,
mas inocentaram Capitu. No entender
de Cony, o marido era um “chato”;
Paiva apontou “pendores homossexuais”
em Bentinho. Thomaz Bastos pediu a
condenação; a defesa alegou, além de
“chatice” e “inclinação homossexual”,
que o marido era um espírito
inseguro, “incapaz de conviver sem
fabulações com uma mulher bela,
de personalidade e luz próprias.”
Após três horas de debates, o juiz
Sepúlveda Pertence decidiu pela
absolvição da ré, alegando insuficiência
de provas e inconstitucionalidade dos
dispositivos legais da época à luz da
atual (1999) ordem constitucional.
E foi encerrada a sessão. (JCC)
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