DIVISÃO DE TAREFAS NO SERINGAL SÃO FRANCISCO NO ACRE: ALÉM
DA QUESTÃO DE GÊNERO1
Márcia Moreira Barroso
Discente do Mestrado de Geografia - PPGG/UNIR.
[email protected]
Adnilson de Almeida Silva
Doutor em Geografia pela UFPR; Docente do Departamento de Geografia e do
PPGG/UNIR. [email protected]
RESUMO: O artigo apresenta uma análise sobre a divisão de tarefas entre homens e mulheres
no seringal São Francisco da Reserva Extrativista Chico Mendes, em Assis Brasil - Acre.
Assim, há uma descrição do espaço físico, social e relacional com o intuito de situar o
observador dentro das relações de trabalho daquela Colocação, ressaltando uma visão que vai
além da defesa do pensamento masculino ou feminino, uma lógica possível de pensamento,
sem se deter a qualificar o “certo” e o “errado”. Uma questão muito além da luta entre gênero
utilizando mapas mentais coletado no local como auxílio.
PALAVRAS-CHAVE: Seringal. Gênero. Mapas Mentais.
INTRODUÇÃO
O presente artigo é resultado de um trabalho de campo referente à
disciplina de Gênero (PPGG/UNIR) e desenvolvido no Seringal São Francisco,
especificamente na Colocação Cumaru, inserida na Reserva Extrativista –
RESEX - Chico Mendes, utilizando o método dialético, relacionando sujeito e
objeto. O objetivo principal é observar as divisões de tarefas entre gênero,
tendo como principais informantes a Senhora Maria e o Senhor Chico. Apesar
de não serem casados, cada um deles possui a sua família e respectivos
conjugues. Estes informantes eram muito comunicativos e dispostos sempre a
falar sobre aquilo que gostaríamos de obter como informações. Neste sentido,
a observação das ações, das relações, do local e a análise de mapas mentais
coletados foram fundamentais para estruturar a possível lógica utilizada para
definir a divisão de tarefas da família analisada.
Em relação aos aspectos locais, verifica-se que a estruturação da
Colocação encontra-se distante das cidades, prevalecendo a carência de
diversos serviços públicos, o que exige desta família uma organização dentro
1
Artigo para V Colóquio Nacional do NEER 2013. Eixo 3 - Identidades Territoriais. GT. Populações
Tradicionais.
da estrutura familiar para a execução das tarefas fundamentais para seu
sustento e existência.
Para entender como a separação de tarefas é realizada é preciso um
olhar atento e sem preconceitos, ao tempo em que se deve compreender o
papel que cada indivíduo deve assumir para não reproduzir conceitos
generalistas ou algo que realmente não são adequados àquelas pessoas. Cada
indivíduo é único e cada grupo familiar possui uma forma de se organizar e
compreender o mundo.
Diante do cenário que emoldura a vida destas duas pessoas, as quais
possuem um sentimento de pertencimento e afeto ao lugar, transportam
valores culturais advindos de outras gerações, o que reflete, na atualidade, a
diferença de afazeres entre homens e mulheres no seringal e até mesmo na
forma de ver e compreender tais divisões. Entretanto, a divisão das tarefas já
vislumbra
uma
pequena
mudança
de
postura
imposta
pelas
novas
necessidades do mercado as quais o grupo necessita adaptar-se para
continuar a permanecer no lugar onde habitam e incorporam novos valores de
percepção sobre si mesmo e dos demais integrantes do grupo.
1. TRABALHO DE CAMPO: A OBSERVAÇÃO
Neste artigo relato o olhar de quem pesquisa, cujo observar às divisões
de tarefas da Reserva Chico Mendes não consiste no julgamento ou
classificação das posturas (do certo ou do errado) do grupo em foco que
possuem concepções de mundo distintas da sociedade urbana, mas em
esquematizar o possível pensar sobre o tema divisão de trabalho. Trata-se,
portanto, de um exercício de observação e de percepções externas sobre a
situação de vidas relativas aos moradores da Colocação2 Cumaru, Seringal
São Francisco.
O espaço conforme uma das descrições citadas por Canali (2002, p
p.178) ao se referir a diferença entre paisagem e espaço de Milton Santos, é
que “o espaço são essas formas, isto é, a paisagem mais a vida ou a
2
Colocação: Área composta geralmente por duas ou três “ estradas de seringa” destinada à
exploração de um seringueiro. Significado retirado da nota de rodapé do livro “Mulheres da
Floresta: uma história: Alto Juruá, Acre (1890 – 1945)” da autora Cristina Scheibe Wolf(1999,
p.19).
sociedade que o anima”. Situar o cenário é primordial para o entendimento da
ideia aqui defendida.
Saindo de Porto Velho (Rondônia) rumo à mencionada Reserva Chico
Mendes (Acre) pode-se observar ao longo do trajeto que a paisagem
desenhada reflete os avanços do modelo econômico, no caso o capitalismo. O
cenário amazônico ocidental encontra-se com gigantescas estruturas que
conduzem a energia produzida aqui até o “Brasil de fato”.
Em outros momentos a floresta abre espaço para a bovinocultura, com
extensas plantações de capins e gramíneas oriundas de outros cantos do país
e que contrastam com a floresta. Em meio a essas paisagens produzidas para
sustentar as necessidades humanas – a carne bovina como fonte de calorias e
proteínas – observa-se que a energia produzida na região não atende seus
moradores, isto é, existe precariedade de seu fornecimento.
Ainda assim, os tons de verde se intensificam, quando possíveis, nos
recortes de mata cobertos por uma fina camada avermelhada com algumas
pinceladas do roxo dos ipês, do vermelho de algumas flores, do amarelo, do
laranja e do marrom. Percebem-se claramente a beleza do quadro hiperrealista da Floresta Amazônica que de vez em quando nos surpreende com
novas cores e o movimento de pássaros e de borboleta. Ao atravessar o rio
Madeira, e ao adentrar o Acre constata-se a alternância entre pastos e floresta
contínua, porém com menor intensidade do que aquele verificado entre Porto
Velho e a divisa com o Acre.
A chegada em Assis Brasil ocorreu por volta da meia-noite, finalmente
saímos da comodidade de alunos universitários para finalmente vivenciar o
meio de transporte das famílias da RESEX, ou seja, uma caçamba de
caminhão. Dois senhores, muito educados e sorridentes, já esperavam pelo
grupo de universitários. Um deles, o qual chamarei com o nome fictício de
senhor Chico (ex-seringueiro), no dia seguinte foi o nosso guia para percorrer
as trilhas ou estradas de seringa.
Na noite do dia seguinte, prosseguimos na expedição em cima da
caçamba, bem ao fundo iam às malas, mochilas e demais materiais cobertos
por uma lona e separados de nós por uma corrente grossa. Íamos todos
sentados e se segurando onde era possível. O trajeto foi realizado em uma
estrada de terra, e tudo que víamos eram as luzes de algumas casas, sendo
que a estrada era iluminada pelo farol do caminhão e pelas estrelas, no
entanto o sacolejo constante e às vezes abrupto nos fazia visualizar
mentalmente o estado crítico da estrada para a RESEX.
Ao chegarmos à casa da Senhora Maria (nome fictício), no Seringal São
Francisco, fomos recepcionados com uma bela janta: galinha guisada, arroz,
feijão feito com banha de porco, carne de porco e banana frita na banha,
mandioca cozida e um vidro cheio de farinha de mandioca conhecida como
“d’água” de cor amarelada e muito saborosa. Com exceção do arroz e do
feijão, tudo aquilo era cultivado e produzido pelas mãos de dona Maria. Ao
dormir, como é de costume na região, muitos penduraram suas redes na sala
e na varanda da casa, enquanto outros estendiam os colchões no chão.
Ao acordarmos, o que para Maria ocorreu quando a lua ainda brilhava
no céu, fomos presenteados com um café da manhã feito com o maior carinho.
O que mais impressionou é que tudo aquilo foi feito sob a luz de uma vela e
com muito cuidado para não fazer nenhum barulho. O prazer de recepcionar
oferecendo tudo o que tinham de melhor para todos, banana filha, beiju,
mandioca cozida, biscoito de polvilho, café quentinho, achocolatado misturado
a leite líquido e em pó, revela a hospitalidade e a gentileza dos povos
tradicionais da Amazônia.
Observamos que o banheiro com paredes de madeira era externo à
casa e divide-se em dois espaços, no primeiro estava um grande reservatório
de água com se fosse uma caixa de água feita com tijolos e cimento com uma
mesa e um tanquinho elétrico ao lado e, no segundo, estava o vaso sanitário e
o chuveiro. Para entrar no segundo espaço obrigatoriamente tinha que passar
pelo primeiro.
Enquanto o grupo tomava o café da manhã, Maria já havia separado as
roupas para lavar, recolhido as que estavam no varal, auxiliado os filhos para
mandá-los à escola e lavado parte da louça suja. Após o café e o banho, o
grupo de pesquisadores iniciou a caminhada com o Senhor Chico, como guia,
até o Santuário da Santa Raimunda do Bom Sucesso. Essa Santa popular
ainda não é canonizada, mas conta com inúmeros devotos, principalmente
peruanos e bolivianos.
As crianças vinham de todos os lados, a maioria sozinha e outras
acompanhadas pelos pais que naquele dia teriam uma reunião na escola. Os
pequenos calçavam chinelos ou botas. Chegavam a pé ou na garupa de motos
guiadas por adolescentes sem nenhum capacete. Uns traziam caderno
debaixo do braço, o lápis e a borracha na mão e outros com algumas folhas e
os tocos de lápis e borracha.
Dona Maria não pensa em manter seus filhos para sempre no seringal, e
disse que tem vontade de ver seus filhos saírem dali para estudar, para ter
uma vida melhor, embora a própria não possua nenhum desejo de sair do
seringal, porque não conseguiria viver na cidade, devido à bagunça e o
barulho.
No caminho ao Santuário da Santa Raimunda do Bom Sucesso, o
senhor Chico relatava não somente sobre a santa, mas também sobre
assuntos como a vida na localidade, sobre a floresta (fauna e flora) e alguns
causos. Dona Maria, no entanto, ficou com seus compromissos: a casa, a
criação e as crianças.
Vale lembrar que os personagens aqui observados não possuem vínculo
matrimonial, o marido de dona Maria, estava doente e ficará em casa, a
esposa do senhor Chico também ficou na sua nova casa, devido não mais
trabalharem na exploração da seringa. A comunidade, na atualidade, propicia
aos seus moradores ganharem a vida com o turismo religioso, sendo que a
Santa movimenta a economia local atraindo peruanos e bolivianos, talvez até
pela proximidade das fronteiras com estes países.
Agora pode surgir o questionamento: Então como foi analisar esta
relação de divisão de tarefas quando os personagens nem moram na mesma
casa ou sequer possuem laços matrimoniais? Para isso, é necessário se afixar
em suas histórias de vida e no desenvolvimento de suas atividades.
Dentre os assuntos relatos por Chico, um deles era as divisões de
tarefas na localidade, o que foi reiterado por dona Maria que afirmou e muitas
vezes complementou a informação.
Durante o retorno do Santuário, dezenove quilômetros percorridos, o
grupo de acadêmicos se dividiu em dois, os mais ágeis vinham na frente
guiados pelo Senhor Chico e o outro mais atrás, num ritmo menos acelerado
era conduzido por uma das alunas do mestrado que também conhecia bem o
local.
No primeiro grupo, após se distanciarem bem do segundo, foi dado uma
pausa pelo senhor Chico e este propôs um desafio às acadêmicas, como o
“teste do facão”, para ver quem poderia ficar na localidade. Apesar de ser uma
brincadeira demonstrava uma das dificuldades e destrezas que as mulheres
da localidade enfrentavam para manejar o instrumento de trabalho.
Ao chegarmos à residência, onde estávamos hospedados, as crianças e
adolescentes nos esperavam para assistir o filme sugerido por uma das
mestrandas, comendo guloseimas, levadas pelo Programa de Mestrado, o que
para eles era um grande presente, enquanto Maria já havia preparado o
lanche, cuidado da criação, da horta, das roupas e estava no preparo da janta.
O fornecimento de energia naquela localidade, assim como se pode
perceber na região, é precário e em um curto espaço de um dia já havia
faltado duas vezes o que nos impossibilitou passar um filme às crianças e aos
adolescentes, atividade substituída por um momento de desenho, proposto por
nós para não frustrar a espera dos pequenos.
Após tudo pronto, criança em casa, casa limpa e arrumada, janta pronta,
e todos retornados do santuário, dona Maria falou sobre seus afazeres e
mostrou um espaço que era utilizada pelas mulheres para a produção das
biojóias, que já não eram mais produzidas devido à dificuldade de competir
com os produtos oferecidos na cidade e semelhantes ao que elas montavam
na localidade.
Na visão de Chico, que havia relatado sobre esta atividade frustrada na
comunidade, durante o trajeto a caminho do Santuário, foi fracassado em
razão da chegada da energia no local, pois logo adquiriram televisores e as
novelas e outros atrativos substituíram o trabalho das biojóias.
Maria não é uma mulher que vive apenas para a manutenção da casa. É
observadora e que aproveitou a localidade em que sua casa está, próxima à
escola, para contribuir com o aumento da renda familiar. (Observadora,
aproveitou a proximidade de sua casa da escola e incrementou a renda
familiar vendendo picolé de saquinho) tem ainda algumas biojoias que oferece
timidamente a um preço que provavelmente não cobre nem o custo da
produção (pulseiras a um real) e caixas feitas a partir de caixas de papelão
recobertas com folhas de bananeiras.
Chico mais tarde, no período noturno retornou à casa de Maria e
juntamente com o marido da mesma nos relataram como era feita a coleta de
seringa, o que eram as estradas de seringa, a visão que tinham das mulheres
dentro do movimento de luta para a manutenção da comunidade e como
pensam as divisões de tarefas.
O interessante é perceber que ambos não excluem as mulheres da
discussão sobre as melhorias para a comunidade, muito pelo contrário sentem
falta delas nas reuniões e tomadas de decisões. Em contrapartida, relatam as
divisões como ainda vemos em grande parte dos lares: as mulheres
assumindo atividades fora do lar sem deixar totalmente suas antigas funções,
nem elas e tampouco os homens trabalham na extração da seringa.
As mulheres assumem a casa e as pequenas criações (galinhas e o
porcos) e dividem com os homens o roçado. Estes por sua vez trabalham
como guias turísticos e alguns deles desenvolvem o manejo de gado dentro da
RESEX, mas em nenhum momento relatam em dividir as tarefas domésticas
com elas.
1.1 AS DIVISÕES DE TAREFAS: A MULHER
No item anterior pode-se ver toda a sequência de fatos até chegar aos
relatos das divisões de tarefas. Nesta seção, destacamos o papel das mulheres
com o objetivo de compreender e diferenciar as atividades de acordo com o
gênero, o qual não pode ser confundido com identidade sexual. A
compreensão sobre gênero de acordo é definida como:
“Conforme Tânia Santos (2002) existe identidades sexuais e
identidades de gênero na sociedade. A identidade sexual é definida
pelas classificações de heterossexualidade, homossexualidade e
bissexualidade e refere-se às características físicas, enquanto a
identidade de gênero é definida pelas categorias de masculino e
feminino, e refere-se às relações entre categorias; é uma elaboração
cultural sobre os sexos.” (SANTOS apud SILVA e SHNEIDE, 2010,
p.187).
Maria é uma das poucas mulheres atuantes na comunidade, assim como
sua filha que é a professora da escola, ambas buscam o espaço fora das
atividades do lar, no entanto o trabalho artesanal de Maria ainda é considerado
como secundário para a formação da renda familiar. Sua filha, no entanto,
possui um papel bem significativo na renda total da casa.
Ambas agregam funções e contribuem para a renda familiar, no entanto,
dentro de profissões estabelecidas tradicionalmente ao gênero feminino são
pouco valorizadas. Elas, Maria e sua filha, participam ativamente das reuniões
que discutem sobre as tomadas de decisões na comunidade.
Assim como no texto “Gênero, trabalho rural e pluralidade” de Silva e
Shneide (2010, p.185) também é percebido na Colocação Cumaru, pelo menos
neste grupo familiar, que ainda há uma relação de desigualdade, mas é
perceptível que há um avanço no sentido de diminuir o distanciamento entre
homens e mulheres.
Na conversa com Maria, percebe-se seu orgulho quando fala sobre sua
produção artesanal:
“Além da lida da casa tem os meninos, as criações e a horta. A gente
até tentou fazer uma associação de mulheres para trabalhar com as
biojoias, mas não teve muito retorno. Aí a gente parou, mas eu ainda
tenho umas ali, posso mostrar o local que a gente se reunia...”
“...A gente gostava muito daquela atividade, trabalha a cabeça e sai
da lida da casa...” (Maria).
“...Ah! Eu tenho umas caixas também que eu faço, vou pegar pra
vocês verem...”(Maria).
A sua filha pouco falou, e quem a apresentou exclamando com orgulho a
profissão desempenhada como professora foi a Maria, a mãe.
É importante também falar da esposa do Chico, que não era a sua
primeira esposa e que, segundo o próprio, estava cuidando da casa, afinal de
contas tinha muita coisa para fazer e a casa não era muito perto dali. Apesar
disso, Chico ao ser questionado sobre a participação das mulheres nas
tomadas de decisões da comunidade, surpreendeu ao dizer que desejava que
elas participassem mais, que fossem mais ativas frente às tomadas de
decisões e sentia falta delas. Na mesma direção, o marido de Maria também
defendia a ideia e balançava afirmativamente a cabeça.
Interessante como as histórias se repetem, Maués (1993, p.79) percebe
que para os itapuaneses “a atuação da mulher está relacionada à esfera
interna, isto é, ao âmbito doméstico da comunidade e dentro desta, aos setores
considerados menos importantes ou menos cruciais do sistema”. Na
comunidade visitada no Acre ocorre o mesmo comportamento, porém com a
diferença que as mulheres da localidade demonstram o seu desejo por
mudança e inclusive fizeram sua primeira tentativa formando a oficina de
biojóias.
No entanto, as mulheres ainda são responsáveis pelos trabalhos
domésticos3 e não contam com a ajuda de seus companheiros, o que no
período auge dos seringais foi fundamental para o sustento da Família. Hoje a
necessidade frente à nova atividade, o turismo, exige delas novas atividades
voltadas agora para as visitações ao Santuário da Santa Raimunda do Bom
Sucesso, o que ainda assim as mantém sempre ligadas as suas antigas
atividades e nos redores do lar.
1.2 AS DIVISÕES DE TAREFAS: O HOMEM
Quanto às atividades dos homens foi relatado que antigamente, quando
sua fonte de renda advinha do seringal, eles ficavam com todo o processo, o
que lhe tomava o dia todo. Inclusive, seu Chico e o senhor José (marido de
Maria) fizeram mapas representando as estradas de seringa para demonstrar
claramente como eram as atividades existentes no passado.
Nos mapas feitos pelos nossos dois informantes homens, esses
explicaram que cada seringueira fica muito distante uma das outras. O mais
próximo que se pode encontrá-las é de aproximadamente três metros de
distância uma das outras, o que foi constatado durante o caminho ao Santuário
da Santa Raimunda do Bom Sucesso.
Além disso, o seringueiro sai de manhã cedo com as ferramentas,
terçado, água, marmita e tudo que lhe era necessário para a sua lida4, pois só
conseguiam voltar para casa na boca da noite5.
3
Trabalho doméstico: Trata-se dos cuidados com a casa; a produção e manutenção de roupas
para o uso da família; o preparo da comida; o cuidado de crianças, idosos e doentes; muitas
vezes inclui ainda o cultivo de hortaliças e outros alimentos; a coleta de frutos; a criação de
animais, sua alimentação, ordenha e outros cuidados; o artesanato de bens necessários como
esteiras, cestos, cerâmica, sabão, banha, óleos diversos, velas, etc.
4
Lida: Trabalho.
5
Boca da noite: Ao entardecer.
Era uma necessidade da profissão a realização do percurso da estrada
do seringal duas vezes ao dia percorrendo por vários quilômetros, dependendo
de cada estrada (fig.1, fig.2, fig.3), e da disposição das seringueiras daquela
localidade. Em média, cada estrada possuía de 200 a 250 seringueiras,
gastando quase que o dia todo para fazer o corte, a extração e o transporte do
material coletado (O rodo).
Conforme os senhores Chico e José, os seringueiros retornavam para
casa com todos os materiais levados para a lida mais o látex coletado e ao
chegarem a suas residências ainda tinham que recolher a madeira para
acender o fogo que defumava a borracha (látex) para armazená-la e só então
poder tomar o banho e deitar-se, para no dia seguinte começar tudo
novamente. Assim, eles não tinham como realizar outras atividades.
Atualmente, conforme Chico, eles não trabalham mais com a extração
da seringa, uns estão criando gado conciliando com a produção de farinha,
com o auxílio no trato das criações e muitos como eles estão por conta do
turismo, como guias e auxiliando nos preparos para o dia da procissão da
Santa, fazendo o serviço pesado. O turismo é a principal renda dele.
Ao ser questionado quando a sua opinião em dividir as mesmas funções
com as mulheres, Chico respondeu:
“Não tem problema nenhum, se elas aquentarem?! É cansativo e às
vezes tem que fazer força, só que todo mundo tem que ter sua tarefa,
porque se não a coisa não anda e as mulheres dão melhor com a
cozinha e as crianças. A gente até sente falta de elas serem mais
ativas nas reuniões.”
Em seu trabalho em comunidades amazônicas, é constatado por Maués
(1993, p.79) que:
“... o homem é quem deve atuar na esfera externa; além dos limites
domésticos e da própria comunidade, assim como desempenhar as
funções mais importantes e as atividades consideradas como tal, isto
é, as não rotineiras, enquanto as de rotina ficam reservadas à
mulher.”
Senhor Chico demonstra que conseguem perceber a mulher em outras
funções, uma pequena mudança na postura quanto às divisões de tarefas,
embora ainda carregue consigo aquela visão que as mulheres estão mais
direcionadas às funções ao entorno da casa, enquanto aos homens é exigido o
exercício de relações com o meio externo e com atividades que exijam força.
2. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A princípio, a definição das tarefas de cada gênero parece ter vindo
como herança das famílias, em que as mulheres eram responsáveis pelo
espaço doméstico e os homens pelo ambiente externo ao lar - estes como
provedores e responsáveis pela maior fatia da renda familiar.
No entanto, está ocorrendo uma pequena mudança. Com o fim das
atividades no seringal, os homens buscaram outras fontes de renda, o turismo
e/ou outras, o que não mais exige a antiga divisão de tarefas. Há um
redirecionamento, em que os homens não parecem estranhar ou negar a
presença das mulheres entre eles, o que demonstra a necessidade de discutir
com elas as tomadas de decisões da comunidade. Elas são vistas como mais
uma ajuda para pensar na melhoria de qualidade de vida e de renda do grupo.
Apesar das mulheres serem aceitas nas reuniões do grupo e ajudarem a
pensar as ações na comunidade, elas ainda parecem presas a funções
domésticas consideradas mais leves ou quaisquer outras que não dependem
do vigor físico.
Para as mulheres o artesanato não parece ser uma atividade doméstica
é a oportunidade que têm de trabalhar fora e contribuir para a renda familiar, no
entanto é necessário um investimento maior, capacitação e principalmente
maquinário que as possibilitem a uma concorrência justa com a produção da
cidade.
No seringal São Francisco, o grupo pensa nas divisões de tarefas mais
focadas às condições de força do que propriamente no gênero, embora se
perceba em seus discursos “que o melhor lugar para elas ainda é o trabalho
doméstico”.
Na comunidade não é o valor do trabalho o que mais importa, mas a
preocupação é em manter o grupo, de oferecer a todos as condições dignas de
viverem, até porque estas pessoas não almejam em sair desta localidade, isto
por perceberem que ali a vida é tranquila e dificilmente se habituariam na
cidade. Não importa para eles discutir quem ganha mais ou trabalha menos e
sim que todos estejam bem e que seus filhos possam crescer e se desenvolver
em um ambiente saudável.
REFERÊNCIAS
BARROSO, Márcia Moreira. Diário de Campo: Seringal São Francisco da
Colocação Cumari dentro da Reserva Chico Mendes - AC. Junho de 2013.
CANALI, Naldy Emerson. Geografia Ambiental: Desafios epistemológicos. In:
KOZEL, Salete & MENDONÇA, Francisco. Elementos de Epistemologia da
Geografia. Curitiba: EdUFPR, 2002. p.165-185.
MAUÉS, Maria Angélica Motta. “Trabalhadeiras” e “Camarados”: Relações
de gênero, simbolismo e ritualização numa comunidade amazônica. Belém:
EdUFPA, 1993.
SILVA, Joseli Maria; SILVA, Augusto Cesar Pinheiro da (org.). Espaço,
Gênero e Poder: Conectando Fronteiras. Ponta Grossa: Todapalavra, 2011.
SCOTT, Parry; CORDEIRO, Rosineide; MENEZES, Marilda. Gênero e Geração
em Contextos rurais. In: SILVA, Caroline Castilho e; SHNEIDE, Sergio.
Gênero, trabalho rural e pluralidade. Ilha de Santa Catarina: Editora
Mulheres, 2010. p. 185 – 209
WOLFF, Cristina Scheibe. Mulheres da Floresta uma história: Alto Juruá,
Acre (1890-1945). São Paulo: Hucitec, 1999.
ANEXOS
Fig.1 A estrada Centro: ela é o
nome
dado
à
estrada
de
Seringueiras a qual esta longe
da casa, antes de iniciar a
estrada é necessário caminhar
pelo espigão até chegar na
boca da estrada e iniciar o
circuito.
Nesta
imagem
é
possível ver também outros
nomes próprios das estradas
de seringa: a “manga”, quando
seringueira
estrada
está
fora
da
e
é
principal
necessário sair para a coleta
dela; o “oito” um circuito fora
da
estrada
principal,
mas
também pertencente a ela; o
“varão” um a tralho possível
para a coleta do látex.
Fig.2 Estrada de Porta: Nesta a estrada
começa na porta da casa do seringueiro.
vêm pelo mesmo caminho, tendo eles que
sentar e esperar a ultima seringueira
Fig.3 Estrada de Ponta: A mais complicada
das estradas para trabalhar, pois vão e
escorrer seu látex para começar a coleta, o
que para eles era “uma perda de tempo”.
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além da questão de gênero - Márcia