Adão, Eva e seu Carro: as Diferenças entre Homens e Mulheres no Processo de Decisão
de Compra de Automóveis
Autoria: Roberta Dias Campos, Fabricio Molica de Mendonça
Resumo
O caso descreve a véspera de uma importante reunião de estratégia da FIAT. O
gerente de pesquisa reúne resultados das pesquisas sobre consumo feminino e masculino para
apresentar aos demais executivos. Ele seleciona alguns trechos de entrevistas em
profundidade, para fornecer uma leitura mais próxima da voz dos consumidores. As
estatísticas da indústria apontam para uma crescente participação feminina na compra do
automóvel familiar, porém este é um território historicamente masculino. As entrevistas
desenham um quadro de consumo de gênero ainda mais complexo. O caso discute a relação
gênero / consumo, e seus desafios e potencialidades estratégicos.
INTRODUÇÃO
Marcelo Fantini, gerente de pesquisa da FIAT, tinha em cima de sua mesa as últimas
pesquisas de mercado sobre um tema que há muito interessava à empresa: as diferenças entre
homens e mulheres no consumo de automóvel. Muitas pesquisas realizadas pela própria FIAT
ou mesmo noticiadas na imprensa apontavam para uma tendência entre as famílias brasileiras
de maior participação da mulher nas decisões de compra do domicílio, mesmo naquelas
categorias tradicionalmente dominadas pelos homens. Sem dúvida, a família moderna havia
mudado muito nas últimas décadas, apresentando casos de inversão, mistura ou sobreposição
dos papéis femininos e masculinos: mães que trabalhavam enquanto os pais cuidavam da
casa, mulheres em profissões “masculinas” e homens em profissões “femininas”.
No setor automobilístico, essa situação era particularmente curiosa. No passado, a
compra do automóvel era quase sempre protagonizada pelo homem, sendo uma categoria
cercada de valores masculinos. Hoje, no entanto, as mulheres também ocupavam papéis
importantes, assumindo muitas vezes um lugar central no processo de decisão de compra do
automóvel familiar. As campanhas publicitárias da indústria, entretanto, ainda pareciam
refletir o passado da categoria, relegando, muitas vezes, as mulheres a um papel secundário,
sendo retratadas de maneira estereotipada como “objeto de desejo” masculino, que se torna
mais acessível aos homens a partir da aquisição do consumo do automóvel.
No conjunto das pesquisas a serem analisadas, estava um trabalho recente
desenvolvido por um núcleo de pesquisa de uma universidade. Basicamente, o material reunia
e analisava o discurso e o comportamento de consumo de homens e mulheres a respeito do
processo de troca do automóvel. Naquele momento Fantini procurava selecionar algumas
falas das entrevistas em profundidade realizadas, que haviam chamado a sua atenção, na
apresentação do relatório pelos pesquisadores. Por se tratar de um tema complexo, decidira
adotar uma nova estratégia para discutir com a equipe de marketing, comunicação e produtos,
no workshop que realizariam no dia seguinte. No lugar de apresentar resultados fechados das
pesquisas, decidira apresentar extratos das entrevistas em profundidade, que o núcleo de
pesquisadores realizara. A ideia era trazer de volta a experiência “viva” do consumidor para a
“mesa dos executivos”. Fazer com que eles lidassem não apenas com os dados quantitativos
das pesquisas, mas principalmente com o relato das experiências e dos processos de compra
dos consumidores.
A partir dos extratos de entrevistas selecionados, Fantini pretendia discutir com os
gestores alguns temas fundamentais para a estratégia da marca FIAT: homens e mulheres
comprariam automóveis de maneira diferentes? Existiria uma lógica “feminina” no consumo
do automóvel? Se sim, que aspectos eram fundamentalmente diferentes em relação à forma
como os homens compravam seus automóveis? Haveria uma maneira única de falar a homens
e a mulheres? Em que pé estaríamos hoje quase cinquenta anos após o movimento feminista?
E como essa evolução vem se refletindo no consumo do automóvel. Fantini entendia que essa
discussão poderia ter impacto em diversas iniciativas da empresa, que incluíam a estratégia de
desenvolvimento de novos produtos, mas, principalmente, a comunicação e as abordagens de
vendas nas concessionárias. O desafio estava em pensar o caminho para se comunicar com
homens e mulheres dos dias de hoje no mercado automotivo.
ANTECEDENTES
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Com o movimento feminista e a entrada da mulher no mercado de trabalho a partir dos
anos 60 e 70, a configuração de papéis de gênero dentro das famílias vem enfrentando
contínuas modificações (Alves, 2000). Este movimento segue seu curso até os dias de hoje,
onde as mulheres apresentam uma ampla presença tanto no universo profissional como no
espaço de consumo, onde cada vez mais representam um importante tomador de decisão do
domicílio. Uma pesquisa do Instituto Data Popular, publicada pelo site Infomoney, em 2011,
apontou que 82% dos homens entrevistados admitem influência da mulher no planejamento
doméstico, e 68% disseram que as mulheres influenciam até mesmo a compra de automóveis.
A própria FIAT havia noticiado este movimento, em reportagem ao G1de 2008, quando
afirmou que as mulheres influenciam cerca de 80% das compras de automóveis da marca e
são responsáveis diretas por 42% das vendas de automóveis da FIAT no país. Números
similares vinham sendo divulgados também por concorrentes, como a Volkswagen.
Diante das pesquisas recentes, parecia haver para Fantini uma clara ascendência da
participação feminina na compra de automóveis, fosse através de influência sobre maridos e
namorados, fosse por consumo próprio. E esta ascendência vinha crescendo. Se esse ritmo se
mantivesse, na próxima década o consumo de automóveis entre as mulheres se tornaria tão
grande quanto o dos homens. No entanto, atuar neste cenário não seria uma tarefa tão simples.
Itens como espaço interno, compartimentos para armazenagem de objetos, espelho retrovisor
para ver as crianças no banco de trás, por exemplo, atraíam as famílias nas concessionárias da
empresa, e especialmente as mulheres. No entanto, em pesquisas anteriores, os executivos da
FIAT haviam aprendido que nem sempre a mulher busca um carro inteiramente feminino,
mesmo porque muitas vezes decide pelos homens da casa. Há que se pensar sobre como esta
consumidora recebe e consome as mensagens da indústria, que está habituada a se comunicar
majoritariamente com homens há décadas.
A categoria SUV (Sport Utility Vehicle) trazia mais elementos para pensar essa
questão. São carros altos, com rodas grandes, tração 4X4, amplo espaço interno, e com design
mais esportivo que as peruas e minivans para famílias. Este modelo havia trazido uma grande
mudança no mercado, pois se tornaram uma alternativa, nos segmentos de luxo, aos modelos
sedan, que por comparação, passaram a ser associados a “carro de tiozão”. Objeto de desejo
entre os homens, nas pesquisas recentes, o SUV é associado à potência, presença, sofisticação
e poder, mesmo mantendo traços de jovialidade. Os homens declaravam em pesquisas que
finalmente podem ter um carro que lhes dava prazer e status, ao mesmo tempo em que
transportam a família confortavelmente. Um entrevistado, em um focus group, explicou: “não
precisamos mais abrir mão de nosso prazer de consumir carros esportivos quando temos
família. Podemos ter um carro com cara de homem, mas que transporta todo mundo. A gente
não precisa mais ser motorista de van porque casou e teve filhos”. No entanto, se as pesquisas
mostravam a aderência dos homens ao consumo de SUV, as estatísticas de venda do setor
apontam para a existência de um grupo de mulheres que se rendem ao segmento e passam a
preferir este tipo de carro também. O que estas mulheres estariam buscando?
Havia vários desafios em todas essas páginas de pesquisa. Como líder de mercado no
Brasil, a Fiat não podia ignorar essas questões. Queria aprender a se comunicar com as
mulheres sem “perder a mão” com o mercado masculino. Com esta preocupação na cabeça,
Fantini selecionou quatro extratos de entrevistas que representavam, para ele, exemplos
importantes para pensar essa temática. Ele queria mostrar, com esse exercício, a
complexidade do tema, que não pode ser entendido apenas na base da dualidade homem /
mulher. Havia homens e mulheres muito diversos nas páginas das entrevistas e esta
diversidade precisava ser entendida e trabalhada na estratégia da empresa. Antes de dar o dia
por encerrado, resolveu reler os trechos de entrevista selecionados.
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Lara e seu primeiro carro
Aos 23 anos, Lara decidiu comprar o primeiro automóvel da sua vida. Morando com
os pais no Rio de Janeiro, ela começava a dar os primeiros passos de sua carreira profissional
em uma corretora de seguros. Sentia falta de um carro para viajar com os amigos e o
namorado e ir à praia nos finais de semana. Acostumada desde pequena a andar em carros
grandes - já que o pai, dono de pet shop, sempre teve picapes para carregar materiais - Lara
sonha em um dia ter uma caminhonete ou jipe. Por conta de sua experiência, Lara associava
muito o tamanho do carro a uma forma de se obter respeito no trânsito:
“Eu dirigi outros carros pequenos, Palio... e as pessoas gritavam: "mulher no
trânsito". Porque você não tem experiência e tal. E quando você está com um carro
grande, ninguém te fecha, ninguém reclama, ninguém nada... E eu falava, pai, com o
carro do Senhor ninguém reclama de mim no trânsito...”
Quando começa a trabalhar, Lara pensa em juntar dinheiro para a compra do
automóvel, mas acaba gastando seu salário em atividades de lazer como viagens e shows.
Com o tempo, ela vai criando uma rotina de poupança e controle dos gastos, que lhe permite
abrir espaço em seu orçamento para a compra de seu primeiro carro. Apesar de ter realizado a
compra do carro com seu próprio dinheiro, Lara descreve com frequência o processo de
compartilhamento da decisão com seus pais e namorado.
“Eu conversei muito com meus pais, com meu namorado, antes. E eu fiquei
com muito medo. Se os meus pais não me apoiassem, e dissessem, não, Lara, não é a
hora, por mais que eu achasse que era a hora, sozinha, eu não iria. Sou muito assim.
Meus pais, por mais que eu tenha 23 anos, eles têm que dar o aval. No primeiro mês o
meu pai falou, não, não vai comprar. Ele foi comigo até ver os carros nuns lugares,
mas falou, não, não vai comprar, Lara. Eu falei, então está bom. Fiquei triste, mas
está bom. E ele falou, não, agora a gente pode comprar este mês.”
Mesmo assumindo partes importantes da compra, como o pagamento e a negociação
de preço na concessionária, Lara sempre descreve a presença e apoio do pai ou do namorado.
Quando Lara decide concretizar a compra, foi o namorado, Márcio, quem fez o testdrive no
carro, e insistiu que Lara experimentasse o Ford Ka antes de comprar. Depois de alguns dias
de negociações por telefone com a concessionária, cujas idas e vindas eram compartilhadas
com o pai, Lara concretizou a compra de seu primeiro carro, e no mesmo dia saiu para
comemorar com os pais e o namorado.
Roberto e o carro de seus sonhos
Médico de 31 anos, casado e sem filhos, Roberto mora em Minas gerais com sua
esposa, Sara – uma estudante de direito de 23 anos. Roberto descreve o carro como um bem
de grande centralidade em sua vida.
“A gente sempre trabalha, e a gente sempre tem a ambição de ter um
automóvel melhor, a gente sempre procura ter um luxo, um automóvel para gente
poder viajar, para gente poder passear, então sempre que eu posso, dentro das
condições, eu tento melhorar um pouco e ter um automóvel melhor.”
Desde cedo Roberto associava o automóvel a um sentimento de conquista, incentivado
desde sua juventude por seu pai, através da promessa de um carro caso entrasse na faculdade
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de medicina:
“Foi uma das maiores emoções da minha vida, eu tinha passado no vestibular,
e meu pai me prometeu um carro. Depois que eu passei no vestibular, no dia seguinte
ele me acordou, me pedindo para vir no hospital com ele, porque ele tinha que passar
uma visita, e aí ele mudou o trajeto e me levou na Fiat, quando chegou lá, tinha
muitos Palios, e pediu para que eu escolhesse o meu carro, e aí eu não consegui nem
falar, foi uma emoção maravilhosa.”
O carro marca diferentes momentos de sua vida e sempre é descrito com muita paixão
e envolvimento. Cada novo modelo, cada nova compra é também um momento de realização
e de prazer. Roberto cultiva uma paixão secreta por modelos de design mais destacado,
planejando a cada nova compra uma aproximação do “carro de seus sonhos”, sonhos esses
alimentados pela leitura de revistas especializadas e pela observação na rua e concessionárias.
“E eu era apaixonado por um New Beetle, e ai um dia eu fui lá e vi chegando
um Beetle vermelho no Paulinho Automóveis, e ele me ligou e no dia que fui lá para
ver, eu comprei. Já deixei o Punto lá, liguei para ela (esposa), e falei: “Ó, estou
trocando o carro aqui”. Ai fui e peguei o Beetle, era um carro mais caro, melhor e
era um carro dos meus sonhos. Pelo design, era um carro que eu adorava ver em
revista e pelo design dele, pela beleza. Sabe o tipo de carro que passa na rua e todos
olham, por ser um carro diferente.”
A compra de automóveis seguindo uma motivação hedônica culmina com a compra do
Veloster, um carro novo, seu “novo sonho”, que o obriga a ter que achar um lugar para seu
“sonho” anterior, o New Beetle. O vendedor como seu parceiro e quase cúmplice avisa da
chegada de um exemplar do sonhado carro. E o New Beetle torna-se então o carro da esposa:
“Eu já tinha visto na televisão, eu estava apaixonado e o meu novo sonho era
ter um Veloster, e ai o Paulinho me ligou um dia, dizendo que estava trazendo um
Veloster lá de Goiânia, tinha acabado de lançar, veio em uma carreta cheia de
balões, e no dia eu estava lá para resolver uma coisa do seguro do carro dela, e o
carro tinha chegado. Aí o carro estava no alto, e todo mundo olhando, todos babando
no carro, parecia que tinha acontecido um evento. Eu fui, deixei o carro dela lá, o
Crossfox, passei o Beetle para ela e comprei o Veloster. Falei: “É meu, é meu, vou
levar para minha casa, sem documento, sem placa, sem nada”. Trouxe ele pra cá,
ficou guardado até colocar a placa e tudo.”
Ao longo da entrevista, Sara seguia comentando o relato de Roberto, pontuando a
narração do marido com seu ponto de vista. Roberto, no entanto, segue falando de maneira
independente, quase “surdo” às colocações da esposa, que conta, por exemplo, que preferia o
Crossfox ao Beetle, demonstrando que o marido não a consultara sobre a troca. Durante a
entrevista, a dinâmica de negociação no casal tinha um caráter hierárquico, onde Roberto,
provedor da casa e apaixonado por carros, realizava uma gestão individual dos carros do
casal, pautada por suas preferências pessoais.
Karla e o carro de status intermediário
Karla é uma advogada de quarenta anos, casada, e com uma filha de cinco anos. Ela é
sócia de um escritório de advocacia paulista, sendo responsável por dirigir a filial do Rio de
Janeiro. Seu marido é bancário. Em sua casa, o carro é comprado inteiramente por ela, que
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usa o veículo para os passeios de final de semana da família. O marido tem uma motocicleta
para seus deslocamentos. Ao descrever o seu consumo de automóveis, Karla apresenta uma
primeira visão mais pragmática, de um uso racionalizado e funcional do carro.
“Quando eu tinha 18 anos eu morria de vontade de ter um carro, para sair
com as amigas, significaria sinônimo de status. Agora, nessa minha idade é conforto,
porque você perde dinheiro. Hoje para mim carro é um utensílio, ele fica na garagem.
Eu uso metrô para trabalhar. Eu uso carro no final de semana para passeios.”
“Eu não sou individualista, mas como ele não contribui muito, ele não dá
muito palpite. Ele falou: você que vai pagar, você resolve.”
Há três anos, Karla conta que se “apaixonou” pelo Sentra através da propaganda de
televisão. Seus primeiros meses de satisfação com o carro são abalados pela experiência com
a primeira revisão. A concessionária lhe apresenta uma conta de oito mil reais na revisão em
seu primeiro ano de uso. Karla resolve então vender o carro e se surpreende com o preço de
revenda oferecido pela própria Nissan: um terço do valor original. A consumidora recorre
então ao vendedor da Honda que havia lhe vendido um Honda Fit anos antes. Combina a
venda do Sentra e a compra de outro Honda por telefone, sem nenhuma participação ou
comunicação com o marido:
“Eu comprei o meu carro quase por telefone. Estou indo ai, quero um carro
assim, assim e assim, eu fui para comprar outro Fit, mas como eu gostei do Sedan, eu
vi o City e gostei.”
Ao descrever seus carros, Karla faz também um paralelo com as diversas fases vividas
em sua vida. O carro sedan representa um estágio mais maduro em seu ciclo de vida pessoal e
familiar. Além disso, o carro cumpre uma função de apresentação profissional, seguindo, no
entanto, um parâmetro aceitável de gasto. É um modelo com um luxo que “dá conta do
recado” sem precisar comprar o modelo mais caro da linha. Ela explica que depois da
experiência do Sentra, opta por não realizar mais compras emocionais e busca um equilíbrio
racional no seu consumo de carro:
“A coisa da idade, virei “tiazona”, não sou mais adolescente, eu sou mãe,
profissional, é outro estagio da vida, você amadurece, é o perfil que me encontro hoje.
Essa é a prioridade, por que optei? Por isso, pela questão profissional, você precisa
ter um carro apresentável, que é superior aos demais. O City é o mais simples dessa
linha. É o mais simples, que dá conta do recado.”
Fernando e a paixão racional
Fernando é um engenheiro de trinta e dois anos, brasiliense que se mudou para o Rio
de Janeiro a trabalho e acabou conhecendo a namorada, Isa, uma curitibana de trinta anos com
quem mora há seis meses, depois de dois anos de namoro. No começo do relacionamento,
Fernando tinha um Corolla e Isa um Idea, mas quando decidiram morar juntos, Fernando
optou por vender seu carro:
“Resolvi ficar com um carro só, não era muito racional. Aí vendi o Corolla, porque
ela tinha garagem e eu não tinha. Eu fui para o apartamento dela, pela questão da
garagem.”
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Ao descrever seu processo de decisão, Fernando inicia com uma longa descrição dos
modelos considerados, comparados em planilhas, mas por fim, ao longo da entrevista, mostra
que deixa de lado os argumentos racionais de conforto e segurança que havia estipulado para
si mesmo e parece tomar uma decisão mais emocional:
“Eu pelo menos não presto atenção, se eu estou procurando para comprar, fico
olhando carro na rua, senão eu desligo. Aí achei este carro bonito, fui na Mitsubishi,
fiz o testdrive, fiquei num dilema, porque não era o melhor custo / benefício,
comparado com o Renault Fluence que é um carro de 80 mil, mas que tem tudo. Tinha
um carro compatível com os mesmos acessórios, mesma segurança, mesmo conforto,
perdia na questão design, mas a diferença de preço era muito grande.”
O trecho abaixo nos dá um indício importante do que estaria por trás do processo de
decisão de Fernando ao comprar o ASX da Mitsubishi:
“A Nissan tem um convênio com a Petrobrás e tem desconto, mas aí fiz o testdrive e
não achei nada demais assim. Não era um carro que iria me dar prazer. Se eu
quisesse um meio de transporte, acho que era ele, mas queria prazer.”
Isa, a namorada de Fernando, parece ter bastante influência no processo de decisão da
compra do carro do casal, inclusive fazendo Fernando considerar uma nova categoria de
veículo.
“A Isa não gosta (de Sedan), ela fala que é carro de velho. Ela queria um
carro mais alto. Cheguei a olhar aquele da Ford, é bonito para caramba, o Fusion. Aí
ela: “um carro mais alto”. Na verdade, mulher é difícil saber o que elas querem, cada
hora elas querem uma coisa. No começo ela queria um carro barato, não vai gastar
dinheiro com carro que não vale a pena. E ela está certa. Mas, depois ela falou, já
que você vai gastar, que compre um carro alto. Aí eu vi que (o SUV) é um carro que
tem mais a ver com a gente.”
Contudo, apesar de tentar escutar e respeitar o ponto de vista da namorada, ele parece
hesitante entre os desejos dele e as ponderações dela, tentando encontrar um equilíbrio entre o
que ambos procuram: ele “prazer” e ela “transporte”. No fim, mesmo cedendo um pouco na
escolha entre Sedan e SUV, Fernando parece ter a palavra final na decisão, insistindo na
compra de um carro mais caro e com aparência mais masculina, que pudesse lhe dar o prazer
que ele buscava.
“Ela queria um meio de transporte, mas viu que não ia me demover da ideia...
A gente viu o Sportage e o Kia Soul, ela até gostou, mas eu achei carro de menina,
feminino. E agora ela está feliz da vida com o carro.”
A DISCUSSÃO COM O GRUPO
Ao encerrar sua leitura, Fantini pensava o quanto havia a discutir no workshop do dia
seguinte. Enquanto saía do escritório, procurava listar os pontos que seriam centrais e
precisam ser amadurecidos pelo grupo. Mulheres estavam liderando a decisão? Ou os homens
ainda são os capitães deste mercado? Ou ainda haveria uma negociação democrática entre os
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dois lados? Seria tão democrática assim? O crescimento da participação das mulheres no
mercado consumidor de automóveis não podia ser ignorado, mas como aproveitar essa
oportunidade sem fazer com que os homens se sentissem deixados de lado? Além disso, qual
seria o equilíbrio estratégico ideal?
Mais do que um debate sobre consumo de homens e mulheres, Fantini sabia que no
dia seguinte o grupo se depararia com uma questão particular. No consumo de automóvel,
homens e mulheres se encontravam, atravessavam fronteiras de territórios de gênero,
realizavam movimentos de imitação e de diferenciação uns dos outros. O processo de decisão
da compra do automóvel parecia ser o palco de intensas negociações de papéis e significados
sociais, compondo uma intricada trama, de limites frágeis. Uma boa estratégia precisava
entender os dois lados, mas acima de tudo, era essencial aprender a navegar nas fronteiras.
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NOTAS DE ENSINO
Resumo
O caso descreve a véspera de um importante workshop de estratégia da FIAT, em que
o gerente de pesquisa reúne resultados das pesquisas sobre consumo feminino e masculino,
para apresentar aos demais executivos. Ele opta por levar trechos de entrevistas em
profundidade, para fornecer uma leitura mais próxima da voz dos consumidores. As
estatísticas da indústria apontam para uma crescente participação feminina na compra do
automóvel familiar, porém este é um território historicamente masculino. As entrevistas
desenham um quadro de consumo de gênero ainda mais complexo. O caso discute a relação
gênero / consumo, e seus desafios e potencialidades estratégicos.
Objetivos educacionais
Este caso pode ser usado em cursos de mestrado e programas executivos, em
disciplinas como comportamento do consumidor, pesquisa de marketing, ou gerência de
marketing. Ele tem como objetivo suscitar uma discussão sobre gênero e consumo, através da
exposição dos alunos a resultados de pesquisas que apontam para um cenário de
ambiguidades e conflitos. Sua utilidade está em aproximar a agenda estratégica da empresa de
questões contemporâneas e estruturais do comportamento do consumidor. Neste sentido, os
objetivos específicos de ensino do caso incluem:
•
Explorar o efeito das transformações da estrutura de gênero ao longo das
últimas décadas e seu impacto na revisão das práticas de posicionamento e
segmentação da indústria automobilística.
•
Estimular a postura crítica sobre a questão de gênero, através da substituição
de uma visão essencialista e universalista do conceito, por uma abordagem
relativista, que permita enxergar a complexidade do fenômeno.
•
Introduzir conceitos que permitam pensar como inserir a questão de gênero
dentro do processo de marketing, como o trickle-down (McCracken, 2003) e a
noção de negociação de fronteiras (Avery, 2012).
•
Familiarizar os alunos com o universo das pesquisas qualitativas através do
exercício analítico de trechos de entrevistas em profundidade.
Fonte de informações
As informações utilizadas para a elaboração deste caso de ensino foram obtidas de fontes
primárias e secundárias. Entre as fontes primárias estão entrevistas com os executivos
Marcelo Fantini e Cely Cordeiro, do departamento de pesquisa de mercado da FIAT, e de
entrevistas feitas com consumidores de carros entre os meses de Janeiro e Julho de 2012. As
fontes secundárias incluíram websites de revistas, artigos acadêmicos e outras fontes de
informações sobre o comportamento do consumidor de carros e em geral.
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Temas centrais para discussão
1. Que características, atitudes e normas são tradicionalmente associadas ao
comportamento masculino? E ao feminino?
2. Que papéis são usualmente associados aos homens? Que papéis estão relacionados ao
feminino?
3. De que maneira os aspectos relacionados ao gênero influenciam o consumo em geral?
E o consumo de automóveis? Homens e mulheres são diferentes nos seus processos de
consumo?
4. De que maneira as mudanças culturais sofridas nos últimos cinquenta anos afetam as
categorias de gênero na nossa sociedade?
5. Como os desafios contemporâneos relacionados a gênero afetam a categoria de
automóvel? Que estratégias de marketing vêm sendo desenvolvidas por montadoras
para lidar com as questões de gênero?
Plano de ensino sugerido
Gênero é um dos mais importantes critérios de segmentação em marketing. Assim,
para a abertura do caso, o professor deve levar os alunos a pensar, a partir da prática das
empresas, o que constitui a segmentação por gênero e suas implicações. Ao elencar diferentes
produtos que tendem a se especializar em função dos gêneros (por exemplo, nutrição, saúde,
cuidado pessoal e estética), o professor deve estimular os alunos a compreender que mais do
que em aspectos biológicos, a questão de gênero está centrada em definições culturais e que
podem variar de categoria para categoria.
A) Estruturando diferenças: A turma pode caminhar a partir de uma discussão
inicialmente polarizada, estabelecer diferenças em atitudes, normas, papéis e processos de
consumo que estejam presentes em uma abordagem tradicional de gênero. Que características,
atitudes e normas são tradicionalmente associadas ao comportamento masculino? E ao
feminino? Que papéis são usualmente associados aos homens? Que papéis estão relacionados
ao feminino? Homens e mulheres seriam diferentes nos seus processos de consumo? A
discussão pode levar o professor a construir um quadro similar ao apresentado abaixo:
Masculino
Feminino
Identidade de gênero
Independência, assertividade,
orientação para objetivos
competitividade,
controle,
força, razão, materialismo,
orientação instrumental.
Interdependência,
compreensão,
cuidado,
orientação para processos e
relacionamentos, integração
social,
alimentação,
consideração, intuição.
Papéis de gênero
Protagonista no consumo de Protagonista no consumo de
tecnologias e bens duráveis.
beleza, lazer e de presentear.
Processo de Consumo
Busca de informação mais Diversidade de critérios e
objetiva (centrada em poucos aspectos
analisados
no
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critérios e pistas).
processo de escolha.
B) Relativizando a visão universal de gênero: Depois de construir essas visões
baseadas no ponto de vista dos alunos, o professor deve servir como elemento de
questionamento das visões estruturadas de gênero, levando os alunos a refletirem sobre
mudanças, novas fronteiras e “apropriação” de significados de outros grupos (momentos em
que mulheres buscam se apropriar dos significados masculinos e vice-versa).
C) Categorias marcadoras de gênero e iniciativas de travessia de gênero: O professor
pode ainda realizar uma discussão sobre as categorias que são tradicionalmente utilizadas
pelos atores marcadores de gênero, como moda e beleza para mulheres e automóveis para
homens. Este levantamento pode conduzir a uma reflexão sobre exemplos de empresas que
posicionaram suas marcas e produtos para o gênero oposto, por exemplo, marcas de
cosméticos para homens ou marcas de cervejas femininas. Ou ainda grupos de consumidores
do sexo oposto que passam a consumir categorias marcadoras do gênero oposto. O professor
pode buscar comparar essas iniciativas de travessia de gênero pelas marcas e consumidores e
discutir suas especificidades. Existem diferenças entre marcas masculinas que se feminizam e
marcas femininas que se masculinizam? Que efeito essas práticas exercem sobre as marcas?
D) Estratégia e gênero: Por fim, os alunos devem ser levados a relacionar as questões
de gênero e as iniciativas estratégicas empresariais, refletindo sobre como as estratégias de
marketing devem lidar com as nuances da questão de gênero contemporânea. O professor
deve levar os alunos a refletirem particularmente dentro do contexto específico da indústria
automobilística, identificando de que forma a questão de gênero pode exercer um papel chave
para a definição estratégica da empresa.
Análise do caso com suporte da literatura
Questão 1. Diferenças e semelhanças do significado do automóvel para homens e mulheres
O movimento feminista e as revisões dos significados de gênero em nossa sociedade
nas últimas décadas têm feito os papéis de homens e mulheres convergirem em muitas
esferas, e assim como os homens estão conhecendo mais os produtos domésticos, as mulheres
estão aprendendo a comprar carros, aparelhos eletrônicos e ferramentas elétricas (Crispell,
1992). Nessa busca por igualdade de sexos, o consumo parece exercer um papel fundamental,
não apenas psicologicamente, mas socialmente. Histórica e culturalmente, a categoria de
automóveis tem sido dominada pelos homens, que apresentam um envolvimento emocional
com essa categoria bastante acima da média. Existem poucas posses tão importantes para um
homem adulto quanto seu carro (Belk, 2004).
Nesse sentido, os homens ainda detém grande parte do interesse e conhecimento sobre
a categoria, o que os torna uma referência na compra para grande parte das mulheres. Belk
(2004) afirma que o sexo masculino em geral apresenta uma identificação extrema com
automóveis, e isso faz com que muitos utilizem o consumo da categoria como uma forma de
expressão pessoal. Muitos homens tratam seus carros como se fossem seres vivos, como se
fossem uma amante ou criança, e ao contrário da maioria das mulheres, para os homens a
categoria de automóveis funciona também como ferramenta de socialização (Belk, 2004).
Dessa maneira, podemos afirmar que a relação do sexo masculino com seus carros parece ser
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muito mais próxima, relevante e emocional do que para o sexo feminino (Avery, 2012).
O professor deve abrir a discussão buscando elencar com os alunos os significados do
automóvel para os diferentes entrevistados, buscando estabelecer os limites entre os
significados para homens e mulheres. Há especificidades, semelhanças, diferenças na maneira
dos entrevistados de verem seus carros em particular e a categoria em geral? O entrevistado
Fernando, por exemplo, apresenta uma postura racional de decisão, e ao longo da entrevista,
parece se apaixonar pelo seu veículo, ao contrário de sua esposa. Para Roberto, o automóvel é
a realização de um sonho, a compra de um objeto de desejo. Lara, por outro lado, sonha, mas
espera os cálculos indicarem que é o momento de comprar. Karla encara o carro de maneira
utilitária, como veículo de status profissional, mas ao reconhecer que esse status é mais para
os outros do que para ela, a consumidora opta por um carro intermediário, deixando seu
dinheiro livre para outros consumos percebidos por ele como mais relevantes.
Questão 2. Que categorias e princípios culturais regem o consumo de gênero na categoria
de automóveis? O que podemos dizer que é específico de homens e de mulheres a partir das
entrevistas?
Segundo McCracken (2003), a cultura, como sistema classificatório da realidade,
ordena a experiência humana segundo sistemas de valores específicos a cada grupo
sociocultural. As categorias culturais são coordenadas fundamentais de significado, que
apresentam as distinções básicas utilizadas pela cultura para organizar a realidade. Por
exemplo, cada cultura constrói suas próprias categorias culturais para organizar, por exemplo,
o tempo, status social, gênero, idade e ocupação. Apesar de invisíveis, as categorias culturais
são estruturantes para a organização das práticas humanas. Os princípios culturais são as
idéias organizadoras segundo as quais as categorias culturais são constituídas. É através dos
princípios que os fenômenos podem ser classificados, comparados e organizados. Assim,
quando o vestuário apresenta uma diferenciação homem / mulher (duas categorias culturais
distintas), ele traz também elementos da natureza desta distinção (delicadeza / força), que são
os princípios culturais.
Tomando as noções de categorias e princípios culturais, o professor deve convidar os
alunos a construírem um sistema classificatório do gênero masculino e feminino, a partir das
entrevistas, seja com base no exemplo do próprio entrevistado ou de pessoas que ele descreve
(esposa, pai, namorado). Assim, em um primeiro momento, o grupo passa a discutir
características específicas e pontos de diferenciação para homens e mulheres, chegando aos
princípios culturais mais gerais. Possivelmente, os alunos trarão exemplos que logo serão
confrontados a contraexemplos (Ex: a mulher é mais voltada para a família / Karla é uma alta
executiva e o seu carro é um símbolo de boa advogada).
Esse movimento abre a discussão para um segundo momento do exercício, em que os
alunos podem construir categorias e princípios dos diferentes tipos de feminino e masculino.
A ideia com esse exercício é construir um sistema de gênero com mais nuances que a simples
distinção homem / mulher, mostrando que há maneiras diferentes de ser mulher e de ser
homem. Um caminho de análise para as categorias de feminino, como exemplo, pode se
inspirar no quadro abaixo, e o mesmo exercício pode ser realizada para as categorias de
masculino:
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Categorias
culturais de
feminino
Princípios
culturais
ordenadores do
feminino
Mulher
totalmente
independente
Responsável por
seu próprio
sustento, que
tem um projeto
de consumo
individual.
Mulher aprendiz
Exemplo nas
entrevistas
Karla
Lara
Responsável
pela compra,
mas toma a
decisão
amparada no
aconselhamento
masculino.
Mulher
negociadora
Mulher
dependente
Mulher
Mulher
autônoma
dependente
financeiramente, financeiramente,
mas que
que vive uma
constrói
relação onde o
patrimônio de
marido toma
maneira
sozinho as
coletiva.
decisões.
Esposa de
Esposa de
Fernando
Roberto
Essa discussão pode buscar retornar, a partir da construção de categorias de feminino e
de masculino, ao debate das categorias de gênero mais amplas. Há elementos específicos das
mulheres e dos homens em geral? Elementos como a função do aconselhamento, a relação
entre sustento financeiro e liderança da discussão, a função de provedor podem ser trazidas a
tona para serem pensadas. Essa discussão pode conduzir ainda a uma discussão de categorias
culturais de casais, pois as categorias femininas e masculinas dialogam em uma negociação
familiar específica. Dessa maneira, a discussão se adensa ao incluir uma reflexão sobre os
processos de negociação entre homens e mulheres.
Categorias
culturais de
casais
Princípios
culturais
ordenadores
Exemplo nas
entrevistas
Interação
democrática
Decisão
compartilhada
no casal, com
pesos
equivalentes
para a voz
masculina e
feminina.
O sustento
financeiro da
casa também é
compartilhado.
Fernando e
esposa
Lara e namorado
Interação
unilateral
masculina
O homem
conduz o
processo de
consumo dos
carros do casal.
O homem é o
responsável pelo
sustento
financeiro do
domicílio.
Roberto e
esposa
Interação
demarcada
A mulher
conduz o
processo de
consumo do
carro familiar,
sem escutar o
marido por este
não participar
financeiramente
da compra do
carro. Cada um
tem um terreno
próprio.
Karla e esposo
Por fim, os alunos podem ser convidados a pensar a categorização dos espaços de
compra e consumo de automóvel (a concessionária, o trânsito, a internet, a oficina mecânica)
e buscar responder, para encerrar esse bloco, que valores de gênero são predominantes nestes
espaços. Ou seja, mesmo que as mulheres se façam cada vez mais presentes durante a compra,
em espaços como o trânsito, elas precisam se disfarçar em carros grandes para passarem por
homens e serem respeitadas.
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Questão 3. O que poderia explicar a dinâmica da interação entre homens e mulheres no
ambiente de consumo?
A literatura de gênero oferece algumas chaves de leitura para discutir os espaços de
encontro e negociação entre categorias de gênero. As dinâmicas apresentadas por estes
conceitos podem nos auxiliar a projetar a dinâmica que pode estar em operação no mercado
de automóveis. O primeiro destes conceitos é a noção de trickle-down (McCracken, 2003) que
surge para descrever a dinâmica presente no mercado de moda, mas que pode ser usado para
pensar interações de consumo entre categorias culturais. O conceito parte da existência de
dois grupos que se encontram em diferentes níveis de legitimidade na hierarquia social: um
grupo superordenado (maior legitimidade) e o grupo subordinado. Enquanto o grupo
subordinado tenta imitar o grupo superordenado, buscando apagar as diferenças e propiciando
a aproximação de uma posição culturalmente mais valorizada, o grupo superordenado tenta se
diferenciar, buscando manter a diferenciação e sua posição mais valorizada. McCracken
(2003) afirma que em ambientes com mais de dois grupos interagindo, muitas vezes um grupo
pode atuar ao mesmo tempo como subordinado, em relação a grupos de status mais elevado, e
superordenado, em relação a grupos de menor status.
O próprio McCracken (2003) ilustra a aplicação do modelo no contexto da diferença
de gênero, quando analisa o consumo de vestuário para o espaço profissional. O vestiário
feminino vai imitar elementos da roupa masculina, buscando introduzir traços de autoridade
na apresentação do grupo subordinado, as mulheres. Linhas retas, cores neutras, ausência de
estampas e volumes. A roupa feminina gradativamente perde traços que poderiam significar
frivolidade e despreparo (estampas, volumes, cores fortes) para imitar, na cultura material do
vestiário, os elementos simbólicos projetados pelo grupo masculino, associados a seriedade.
Por outro lado, os homens buscarão reforçar sua diferenciação através de um esforço de
masculinização de suas roupas, incorporando traços de arquétipos como o caçador ou o
cowboy.
O conceito de trickle-down, aplicado ao universo de consumo do automóvel, pode
descrever movimentos de imitação e diferenciação entre categorias culturais diversas, como
classes sociais (“carro de rico”), gênero (“carro de mulherzinha”), idade (“carro de tiozão”) e
status marital (“carro de garotão”), entre outros. Para discutir a questão de gênero dentro da
lógica do trickle-down, o professor pode convidar os alunos a identificarem grupos
superordenados e subordinados, justificando os elementos que os levam a fazer essa escolha.
Em seguida, os alunos podem ser convidados a identificar estratégias de imitação e de
diferenciação, apresentadas nas entrevistas, como a opção das mulheres por carros grandes
para se passarem por homens no trânsito (imitação) e a busca por modelos de design sempre
mais moderno pelos homens (diferenciação).
Após realizar o exercício, o professor pode discutir com os alunos se existem outros
grupos que não se inserem na dinâmica do trickle-down ou se outras dinâmicas de trickledown podem estar em operação, com mais de dois grupos em interação. O aprofundamento do
exercício e do debate pode ser útil para pensar os espaços do consumo de automóveis onde o
consumo é movido por uma lógica de imitação / diferenciação, e os espaços onde outras
lógicas podem estar em operação. O consumo pode ser motivado pelo cumprimento de papéis
sociais específicos (mãe) e não estar necessariamente submetido à lógica de imitação social.
Questão 4. A empresa deveria fazer alguma mudança para atender o público feminino?
Quais?
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Aqui entramos em uma discussão mais prática, onde o aluno deve refletir sobre tudo o
que foi discutido no caso e quais suas consequências. Se por um lado, pudemos identificar
espaços femininos e masculinos específicos, por outro, também foram identificadas as
dinâmicas de negociação e tensão entre gêneros. Segmentar por gênero não é apenas uma
questão de escolher homens ou mulheres como público-alvo. Como sustenta Avery (2012), a
escolha de um pode excluir, afastar ou redefinir os termos da relação com o outro grupo.
Neste momento, a questão que se coloca a ser discutida com os alunos é a dos caminhos
estratégicos de posicionamento e de comunicação com esses dois segmentos para a marca
FIAT.
Em primeiro lugar, a função do automóvel como marcador de gênero masculino
associado ao envolvimento dos homens com a categoria (Belk, 2004) torna-os defensivos a
estratégias de aproximação de público feminino. Avery (2012) defende que o homem
contemporâneo adota uma postura protecionista em relação às suas marcas, e rejeita quaisquer
esforços de feminilizá-las. A autora alerta que antes de desenhar estratégias híbridas em
termos de posicionamento de gênero, os gerentes precisam avaliar o grau de identificação da
sua marca com significados específicos de gênero. Em outras palavras, tornar feminina uma
marca vista por seus consumidores como ferramenta de identificação masculina pode
desagradar seus consumidores principais (os homens) e gerar não apenas um esvaziamento da
marca em termos de significância, mas também perdas em vendas consideráveis nos casos
mais graves. Essa reflexão pode sugerir um exercício de identificação das marcas mais ou
menos identificadas a gêneros específicos, e as marcas de posicionamento mais geral.
Contudo, isso não quer dizer que não seja possível explorar a crescente participação
feminina no mercado, fazendo mudanças e adaptações em seus produtos e serviços para
atender esse público. O professor pode convidar os alunos a pensarem iniciativas gerenciais
que possam atender, incluir e satisfazer o público feminino, sem que sejam percebidas como
ameaçadoras ao revestimento simbólico masculino. Segundo Sheth, Mittal e Newman (2001),
a Chrysler criou um comitê de aconselhamento específico para o mercado automobilístico
feminino. Portas e outras partes que abrem mais facilmente, porta traseira fácil de levantar nas
minivans, bancos integrados para crianças e um suporte para bolsa são algumas das pequenas
modificações que a empresa fez em alguns de seus produtos para melhorar a experiência de
uso por parte das mulheres sem descaracterizar demais os carros e manter o apelo também
entre os homens. Além disso, algumas concessionárias construíram áreas de recreação para
crianças e fraldários nos banheiros, e muitos vendedores foram treinados a atender mulheres
de forma diferenciada.
Por fim, o professor pode levar os alunos a refletirem sobre os espaços de
convergência de gênero, onde homens e mulheres apresentam semelhanças e identificações, e
possam receber e consumir ofertas similares. Neste lugar, os executivos podem encontrar
inspiração para o desenvolvimento de estratégias de comunicação mais neutras, mas que ainda
encontrem ressonância em ambos os grupos. A questão que se coloca para os alunos, portanto,
seria: o que podemos identificar de semelhante entre homens e mulheres que pode ser usado
como fio condutor da comunicação? Uma primeira resposta pode ser a questão da progressão
profissional. Tanto para homens quanto para mulheres que trabalham, o carro cumpre uma
função de sinalizador do sucesso profissional, ainda que de forma específica para homens e
mulheres. Lara e Karla descrevem seu consumo, estabelecendo paralelos com as exigências
de suas carreiras. O marido de Karla, por outro lado, é “punido” por uma trajetória
profissional menos valorizada (“bancário”), ao ser excluído da compra do automóvel familiar.
Assim, nas entrevistas, vemos que com a entrada da mulher no mercado de trabalho,
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chegamos a um momento, em que a questão da progressão profissional torna-se um ponto de
diálogo e convergência entre homens e mulheres. Existiriam outros pontos de convergência a
explorar?
Encerramento da Discussão do Caso
Neste caso, apresentamos situações reais do processo de decisão e compra de
automóveis retiradas das entrevistas com consumidores, e introduzimos a discussão de
gêneros e suas diferenças de consumo. Para encerrar a discussão, o professor poderia inverter
a situação demonstrada, usando exemplos de categorias femininas cada vez mais consumidas
por homens e como as empresas e os profissionais de marketing estão lidando com essa
situação. Como exemplo temos a marca Dove, tradicionalmente feminina, que vem lançando
uma linha de produtos para homens. Quais as diferenças de produto e de comunicação entre
as duas linhas (masculina e feminina)? O que a empresa está fazendo para conquistar o
público masculino sem perder seu apelo e identificação com as mulheres? Haveria no
consumo de categorias femininas algum risco para as estratégias de masculinização da oferta
ou da comunicação?
Referências
Alves, Zélia M. M. (2000). Continuidades e Rupturas no Papel da Mulher Brasileira no
Século XX. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 16(3), 233-239.
Avery, Jill (2012). Defending the markers of masculinity: Consumers resistance to brand
gender-bending. International Journal of Research in Marketing, 29(4), 322-336.
Belk, Russell W. (2004). Men and Their Machines. Advances in Consumer Research, 31,
273-278.
Crispell, Diane (1992). The Brave New World of Men. American Demographics, 14(1),
38-43.
G1 (2008). Mulheres exercem influência em até 80% das vendas de carro,
http://g1.globo.com/Noticias/Carros/0,,MUL341258-9658,00MULHERES+EXERCEM+INFLUENCIA+EM+ATE+DAS+VENDAS+DE+CARRO.html
Infomoney (2011). Influência feminina no orçamento é admitida por 82% dos homens.
Disponível: http://www.infomoney.com.br/minhas-financas/noticia/2180518/influenciafeminina-orcamento-admitida-por-dos-homens
McCracken, Grant (2003). Cultura e Consumo: Novas Abordagens ao Caráter Simbólico dos
Bens e das Atividades de Consumo. Rio de Janeiro: MAUAD.
Sheth, Jagdish N., Mittal, Banwari, & Newman, Bruce I. (2001). Comportamento do
Cliente: Indo Além do Comportamento do Consumidor. São Paulo: Atlas.
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Adão, Eva e seu Carro: as Diferenças entre Homens e