RAÍZES DO BRASIL: O BRASIL NO MUNDO – E VICE VERSA*
Luiz Feldman
Resumo: O propósito do trabalho é pesquisar a constituição do objeto “Brasil” em Raízes do Brasil, de Sérgio
Buarque de Holanda. Para tanto, uma perspectiva que conjuga a análise do pensamento social brasileiro à
disciplina de Relações Internacionais será avançada. Por um lado, entende-se que o estudo do ensaísmo
nacional clássico tenha a ganhar com o desvendamento das sombras do pensamento social brasileiro, ou seja,
o internacional. Por outro lado, espera-se que esses mesmos ensaios iluminem o estudo de Relações
Internacionais, especificamente no tocante ao emprego do conceito de Estado em contextos em que a
definição clássica da disciplina como o estudo de relações interestatais é problematizado. Raízes do Brasil
será então lido com vistas a uma elucidação da trama que compõe a obra a partir dos dois parâmetros
norteadores da soberania: as distinções entre interior e exterior e entre passado e presente.
Palavras-chave: Estado – Pensamento Social Brasileiro – Sérgio Buarque de Holanda – Teoria de Relações
Internacionais
Introdução
A viabilidade da “idéia de Brasil” tem sido colocada em questão em tempos
recentes. Para tomar alguns exemplos à década corrente, fala-se do infactível ideal
formativo da geração de 1950 (Ramos apud Moura, 2004), da hora histórica em que o país
do futuro parece não ter mais qualquer futuro (Arantes, 2004), da paisagem de ruínas do
modernismo brasileiro (Mammì, 2005), da construção de uma imagem nacional travada e
espinhosa (Naves, 2007) e ainda do futebol como um sucesso brasileiro que só é atingido
quando se cruza o avesso da experiência nacional (Wisnik, 2008).
Esses diagnósticos sugerem que se vive um momento posterior à “consciência
catastrófica do atraso”, expressão pela qual Antonio Candido (2006a) designa a sofreguidão
modernizadora que marcou o ensaísmo brasileiro a partir da década de 1930. Esse
questionamento enseja uma pergunta mais elementar: qual é a idéia de Brasil cuja
instabilidade ora se constata? A seguir Candido, em seu conhecido prefácio de 1967 a
Raízes do Brasil, no mínimo três versões da mesma são fundamentais. “Os homens que
estão hoje um pouco para cá ou um pouco para lá dos cinqüenta anos aprenderam a refletir
*
Artigo apresentado ao V Simpósio dos Pós-Graduandos do Departamento de Ciência Política da Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 11-13 de agosto de 2008. Salvo
quando indicado, as expressões entre aspas e as citações acompanhadas apenas de número de página são
retiradas de Holanda (2006).
2
e a se interessar pelo Brasil sobretudo em termos de passado e em função de três
livros” (Candido, 2006b, p.235), quais sejam Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre,
Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, e Formação do Brasil contemporâneo, de
Caio Prado Júnior.
Este trabalho se deterá na obra de Sérgio Buarque de Holanda, tendo por objetivo
investigar as articulações constitutivas da idéia de Brasil em Raízes do Brasil (RB).
Aceitando o prefácio de Candido por seu valor de face, busca-se compreender como um
tempo e um espaço brasileiro – hoje ditos fragmentários – foram constituídos em um ponto
nodal de discurso sobre o Brasil. Tal objetivo demanda um excurso metodológico a respeito
do pensamento social brasileiro e de sua conexão com a disciplina de Relações
Internacionais. Em seguida, feita a definição dos parâmetros para a leitura de RB, o
trabalho poderá voltar seu foco para a investigação proposta.
Pensamento Social Brasileiro e Relações Internacionais
De acordo com Paulo Arantes, o traço mais pronunciado da lógica de formação que
permeia os principais textos do pensamento social brasileiro a partir da década de 1930 é a
“figuração paulatina de uma sociedade deprimida pela própria imagem” (1997, p.41). Para
Raymundo Faoro, “[s]e há um pensamento político brasileiro, há um quadro cultural
autônomo, moldado sobre uma realidade social capaz de gerá-lo ou de com ele se
soldar” (1988, p.9). Essas passagens denotam uma disposição conceitual elementar: há uma
pré-figuração do pensamento em tela como brasileiro, que depende da demarcação de um
espaço de particularidade, societário ou cultural. Esse breve apanhado evidencia a
existência de uma sombra do pensamento social ou político brasileiro que funciona como
pólo oposto e implícito ao Brasil – o internacional.1
Veja-se a provisão metodológica de que “[é] assumindo como específico, portanto,
determinado corpo de tradições, que uma sociedade qualquer busca definir e tornar
1
A imagem da sombra é tomada de empréstimo a Carl Jung, a título de metáfora. Escrevia o psiquiatra: “How
else could it have occurred to man to divide the cosmos, on the analogy of day and night, summer and winter,
into a bright day-world and a dark night-world peopled with fabulous monsters, unless he had the prototype of
such a division in himself, in the polarity between the conscious and the invisible and unknowable
unconscious?” (Jung, 1939, p.187).
3
especifica sua própria identidade: busca criar uma identidade nacional” (Souza, 2007, p.
23). Por um lado, aceita-se tacitamente que as fronteiras da sociedade não são passíveis de
escrutínio (e que este não é necessário). Por outro lado, privilegia-se o âmbito interno na
produção da identidade nacional (na verdade, o silêncio sobre o externo faz crer que o
processo identitário cabe apenas ao doméstico). A lógica da formação, lembra Arantes
(1997), rege-se pela organicidade cultural como ideal civilizatório. No entanto, para que se
estude o pensamento político brasileiro ou a identidade nacional do país não é
imprescindível que se pressuponha aquela organicidade. Cumpre recusar “a idéia de um
Brasil ‘profundo’, anterior às explicações que procuram construí-lo” (Rocha, 2003, p.22).
Uma “obsessão com a identidade nacional”, percebida por João Cezar de Castro
Rocha (2003), pode induzir a um compromisso metodológico com uma visão constituída da
autoridade que barra, com uma tautologia, análises alternativas da idéia de Brasil.2 Em
outras palavras, desvendar as sombras da dimensão externa ao objeto de estudo permite a
valorosa apreensão dos fenômenos internacionais que contribuem para sua formação. Uma
maneira mais precisa de se indagar sobre a articulação da idéia de Brasil é, no contexto
deste trabalho, indagar sobre as condições de emergência de um objeto do discurso. Nesse
sentido, dois esclarecimentos metodológicos são necessários.
Em primeiro lugar, como proposto por Michel Foucault (2005), um grupo de signos
irrompe pelo ato individual de formulação de um autor, e na seqüência dessa ação esse
grupo pode ser efetivamente produzido e adquirir uma modalidade específica de existência,
tornando-se, sucessivamente, uma performance verbal e um enunciado. Composto por uma
estrutura gramatical, uma configuração retórica e um conjunto de conotações, tais
performances têm a estrutura de um ato de fala. Isso porque elas se autonomizam ao serem
aprovadas em testes institucionais como a confirmação empírica ou as regras da
argumentação dialética, e a partir daí “os enunciados poderão ser entendidos como
2
“When authority is posited as constituting, authority is seen as without foundation outside itself: it is nothing
but an unfounded act which has itself been rendered foundational by the imposition of a certain forgetfulness
as to its divine or violent origin. Constituting authority is thus prior to and constitutive of a political
community correlated to it in time and space, and also of the specific legal and political expressions of
authority within that community. When authority is viewed as constituted, however, its presence is explained
and justified by showing how it is based on the imagined will and identity of a given political community,
which effectively precedes and constitutes authority by virtue of being itself posited as a constituting
force” (Bartelson, 2001, p.7).
4
verdadeiros por um ouvinte [ou leitor] informado, de uma forma que não precisa fazer
referência ao contexto cotidiano em que o enunciado foi proferido [ou redigido]” (Dreyfus
& Rabinow, 1983, p.48). No que se refere a RB, vale notar que Holanda escrevia, já em
prefácio à segunda edição, ter “a pretensão de julgar que a análise aqui esboçada de nossa
vida social e política do passado e do presente não necessitaria ser reformada à luz dos
aludidos sucessos” (p.13), referindo-se às cambiadas circunstâncias desde a primeira edição
do livro. O fato de que, em pesquisa recente, Holanda tenha sido considerado um dos três
autores mais influentes das ciências sociais brasileiras atesta a remanência de seus
enunciados. Como explica Simon Schwartzman (2003), apesar de que as teorias esposadas
pelos autores clássicos do pensamento social brasileiro são hoje antiquadas, permanecem as
grandes questões que colocaram e as tentativas de resposta de esboçaram.
O enunciado, cuja expressão generalizada são as formações discursivas, está
relacionado a um campo de emergência dos objetos, chamado referencial. Nele, uma grade
de especificação composta por sistemas de oposições, associações, derivações e
classificações, entre outros, definem a diferença e a irredutibilidade de um objeto. À
diferença de um nível gramatical ou lógico, o referencial torna possível “definir esses
objetos sem referência ao fundo das coisas, mas relacionando-os ao conjunto de regras que
permitem formá-los como objetos de um discurso e que constituem, assim, suas condições
de aparecimento histórico” (Foucault, 2005, p. 53, grifos suprimidos). Isso importa na
rejeição de uma retórica da contextualização que subordina o texto ao contexto (LaCapra,
1983) e a enfatização da produtividade dos textos em virtude de sua capacidade geradora de
sentido (Shapiro, 2004). Isso é verdadeiro no caso em questão porque, “como o objeto não
provê uma referência estável, cabe à linguagem recobrir sua insuficiência com um número
sem-fim de interpretações daquilo que deveria fazer do brasil, Brasil” (Rocha, 2003, p.23).
Como fica claro nesse jogo de minúsculas e maiúsculas originalmente proposto por Roberto
DaMatta (1986), uma importante característica dos objetos é a sua (professada) unidade.
Esta, como figura de conjunto, é predicada em regras imanentes à prática (cf. Foucault,
2005, p.143-144).
Uma segunda nota sobre o método apresenta o conjunto de regras que governam o
objeto de estudo, concomitantemente situando este trabalho na disciplina de Relações
5
Internacionais. Caso se aceite uma definição de corte clássico sobre a disciplina, tem-se que
seu centro “está situado no que chamamos de ‘relações interestatais’, as que engajam as
unidades políticas” (Aron, 2002, p.52). Dessa forma, o referencial dos enunciados relativos
a um país traz à baila uma série de diferenças que “se manifestam como fronteiras que
condicionam a possibilidade do moderno conceito de Estado na medida em que cumprem
os requisitos necessários para o seu emprego significativo no discurso político” (Bartelson,
2001, p.12). Essas diferenças, como aponta Jens Bartelson, baseiam a harmonia entre
autoridade e comunidade em duas distinções cruciais: a distinção entre a ordem política
dentro do Estado e aquela em seu exterior e a distinção entre o Estado e sua respectiva
sociedade doméstica. Em termos arqueológicos (Foucault, 2005), esses ideais derivam um
modo de opor e associar objetos, funcionando como uma arquitetura de conceitos dispostos
com coerência regional em temas e teorias.
Este trabalho pesquisará os traços dessa arquitetura em RB. Mas ao menos duas
objeções podem ser levantadas relativamente ao emprego significativo do conceito de
Estado e distinções associadas em RB. Em primeiro lugar, a conseqüência de se prescindir
do privilégio da organicidade cultural (leia-se: da autoridade constituída) é o
reconhecimento da negociação necessária e fundacional entre o sistema de Estados e um
Estado individual para que o exercício da soberania deste seja autorizada (Walker, 2002).
Ademais, essa negociação pode ocorrer sob condições igualmente fundacionais de
superposição da lógica do colonialismo na lógica do sistema de Estados (Keene, 2002). A
demarcação arbitrária de um centro soberano é portanto sujeita aos imperativos do sistema
de Estados e do colonialismo. Nesse sentido, pode-se indagar em RB em a medida em que
o “doméstico já carrega as marcas do que chamamos o internacional” (Zehfuss & Edkins,
2005, p.466). Em segundo lugar, a referência a um ideal civilizatório subjacente à
organicidade cultural lança um telos de progresso histórico dentro do Estado. Isso significa
que a soberania de um Estado poderia não existir “se seus habitantes não tivessem a
habilidade de mudarem curso de ação adotado por seus antepassados, ou mesmo um com o
qual eles se tenham comprometido (...) a soberania e a cidadania, portanto, requerem não
apenas fronteiras no espaço como também fronteiras no tempo” (Fasolt, 2004, p.7). A
autonomia moral de um cidadão não constrangido por nenhuma tradição – que é oferecida
6
como uma base para a legitimação do Estado –, torna necessárias “fundações
transcendentais do uso livre, público e universalizante da razão pelo homem” (Ashley,
1995, p.107). É plausível, no entanto, suspeitar do alcance universal da episteme moderna,
ao menos à proporção em que a aplicação universal do raciocínio baseado na autonomia
moral não for autorizada pela dicotomia passado-presente, o que ocorre caso ela não possa
ser claramente delineada.
Esquematicamente, dois parâmetros guiarão a pesquisa sobre a emergência do
objeto “Brasil” em RB:
a) (como) o interior é distinguido do exterior; e
b) (como) o passado é distinguido do presente.
Uma Sintaxe da Ausência: o Mundo no Brasil
Arantes (2004) caracteriza o momento histórico do fracasso da crença no futuro do
Brasil com uma expressão de Anatol Rosenfeld: a sintaxe da frustração, em que uma
enxurrada de subjuntivos e condicionais qualifica asserções de esperança. Os quatro
primeiros capítulos de RB podem ser lidos como a área preferencial de outra sintaxe, a da
ausência: ausências regulativas – o exterior – ditam o ordenamento ideal do objeto. Com
efeito, usando uma expressão fora de seu contexto original, pode-se dizer que há um “jogo
de alianças de geometria variável” (Lafer, 2004) na forma pela qual o interior e o exterior
do objeto são produzidos em seu campo de emergência. Ao menos sete associações e
oposições são realizadas na trama textual: (i) o Brasil como uma natureza estranha,
contraposto à cultura européia; (ii) o Brasil como uma das nações hispânicas, contraposto à
nações protestantes; (iii) o Brasil como o lugar da ética adequada para a colonização
tropical, contraposto à Holanda; (iv) o Brasil como o lugar desprovido da ética adequada
para a auto-organização política, contraposto às sociedades racionalmente organizadas; (v)
o Brasil como uma ditadura dos domínios rurais, contraposto a todo o mundo em todo o
tempo; (vi) o Brasil como uma colônia litorânea construída com desleixo, constraposta à
colonização espanhola altamente discipinada e interiorana; (vii) o Brasil como uma
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comunidade nacional em formação e dirigida a sua porção interior, contraposto à sua
metropole.
No primeiro alinhamento do objeto, encontrado no parágrafo inicial do primeiro
capítulo de RB (Fronteiras da Europa), a sociedade brasileira pode ser compreendida de
uma oposição como natureza e cultura no momento de sua gênese. A cultura tem uma
posição privilegiada sobre a natureza pois apenas ela está associada a propriedades
proposicionais, das quais são derivadas a exclusiva capacidade de configurar a ordem social
no espaço. São européias as formas de convívio, instituições e idéias “trazidas” e
“implantadas” no Brasil, enquanto a natureza passivamente as resiste. O caráter não
coextensivo, embora combinado, da cultura estrangeira e do clima e da paisagem brasileira
tornam indiscerníveis o interior do exterior. Por certo, há uma diferenciação geográfica do
“vasto território” versus “países distantes”, mas o resultado do implante é um impasse tal,
que se diz que “somos ainda hoje uns desterrados em nossa terra” (p.19). Não há conexão
romântica direta entre o homem e sua terra; apenas, talvez, o lamento pela disjunção
constitutiva que cifra o Brasil desde sua emergência como uma sociedade – e não como um
Estado, note-se.
No segundo alinhamento, encontrado no decorrer do primeiro capítulo, o Brasil é
reordenado em contiguidade a alguns objetos – Portugal e Espanha –, vindo a dividir sua
história, e simultaneamente contraposto a uma série adjacente de objetos, os países da
Europa protestante. Os atributos do grupo ibérico são definidos em termos da ausência ou
do desvio daqueles que singularizam o grupo protestante – centrados na racionalização da
vida. A solidariedade social baseada em interesses, ligada à associação voluntária, “nunca
se naturalizou” na Ibéria, onde a organização política se tornou “artificial”. Essa nova
ordem difere daquela descrita previamente, já que àquela altura o Brasil, como resultado de
uma composição incomum de natureza e cultura, dificilmente poderia ter a mesma
“originalidade” que as nações ibéricas marcadas pela cultura da personalidade. A superação
dessa diferença é atingida pelo reconhecimento de que “a forma atual de nossa cultura veio
de lá [da Península Ibérica]” (p.30), o que possibilita uma “possibilidade de ajuste” entre as
culturas.
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No terceiro alinhamento, presente no segundo capítulo (Trabalho & Aventura) o
objeto – indistingüível do colonizador português – é alinhado contra o tipo ideal do
trabalhador encarnado pelos holandeses. O ulterior debacle da Nova Holanda fortalece a
superposição do tipo ideal aventureiro à “figura de conjunto” brasileira, contribuindo para a
integridade do objeto em seu campo de exterioridade. Dessa forma, uma distinção é
proposta com base no critério do aparato ético adequado para a empreitada colonial. Isso
explica o bem sucedido contraste brasileiro com a Nova Holanda, embora o “esplendor de
Recife” seja contrastado pela “miséria americana”.
No quarto alinhamento, o sucesso anterior é invalidado por um novo critério. O fato
de que os portugueses tivessem a mentalidade adequada para a “conquista do trópico para a
civilização” deixa de ser uma vantagem tão logo o segundo capítulo investiga sobre se essa
herança ética – a ética da aventura – contribui para a organização política de um povo.
Enquanto os holandeses não tinham os atributos adequados para o sucesso em Pernambuco,
o legado colonial do Brasil fornecia o “exato contrário” do que era necessário para a
racionalização economica e social. Da ampla difusão da ética da aventura deriva-se uma
sociedade “amorfa e incoerente”. A sintaxe da ausência, momentaneamente revertida, volta
a conformar as performances lingüísticas sobre o Brasil. A enunciação de uma progressão
temporal (contida na locução sobre “uma população em vias de organizar-se
politicamente”) distingue incipientemente o Brasil de Portugal, além de opô-lo ao processo
de racionalização. Formulada sob a égide das relações coloniais, a auto-organização
política é considerada problemática porque a ética da aventura alija o Brasil do “espírito do
capitalismo”. É importante notar que a racionalidade ausente na história das nações
hispânicas se torna um problema exclusivo do Brasil, dado que a metrópole já se havia
organizado politicamente. Finalmente, a progressão temporal constitui a colônia como um
passado e a auto-organização política como o (ambicionado) presente.
No quinto alinhamento, encontrado no terceiro capítulo (Herança Rural) a relação
passado-presente estabelecida pela asserção de que a abolição da escravatura em 1888 é um
“marco dividindo duas épocas” aparece como uma condição para o bom governo no Brasil.
Ela depende da reversão de uma forma espacial de organização – a “ditadura dos domínios
rurais” – que distingue o Brasil de objetos adjacentes. O Brasil é, mais uma vez, figurado
9
pelo que não tem, uma terra em que “andam as coisas trocadas, porque toda ela não é
república, sendo-o cada casa” (apud p.79), no dizer do Bispo de Tucuman (citado por Frei
Vicente do Salvador). O mote da constituição de uma res publica surge pela primeira vez,
mas é logo contrarestado pela prosperidade das áreas rurais brasileiras como uma
peculiaridade “em todo o mundo e em todas as épocas” no tempo e no espaço, confirmada
pelo cotejo com os exemplos da história européia arrolados por Max Weber em Economia
e Sociedade. Fundou-se, no Brasil, uma sociedade sem Estado cujos habitantes não
compreendiam a realidade social senão pessoalmente, faccionalmente, aventureiramente e
patriarcalmente – ou, dito de outra maneira, contrariamente à mediação essencial que a
ordem pública ou urbana estabelecia como ideal regulativo (cf Lefebvre, 2004, p.24).
Assim, a distinção entre o interior e o exterior baseia-se no critério do papel social das áreas
urbanas.
No sexto alinhamento, encontrado no quarto capítulo (O Semeador e o Ladrilhador),
pela última vez RB trata Portugal e o Brasil com um grau de miscibilidade: se a empresa
portuguesa (ilustrada pelo semeador) – e portanto o Brasil – é diferente da empresa
espanhola (ilustrada pelo ladrilhador), há pouca evidência sobre como se separam
colonizador e colônia. A única diferença seria de que, ao contrário de suas colônias
vizinhas, o Brasil representa um hiato com a ordem do Velho Mundo construída sob os
desígnios da vontade humana. Isso está implícito na reclamação do padre Manuel da
Nóbrega, para quem se espera que do Brasil saiam mais navios carregados de ouro do que
almas para o Céu. O responsável por esse hiato é o semeador anárquico (cf. Santiago,
2006). No segundo capítulo, a ética da aventura não distingüia o interior do objeto “Brasil”
de Portugal até que este interior fosse contemplado por via da auto-organização política. Na
discussão do quarto capítulo (O Semeador e o Ladrilhador) sobre o semeador, o objeto é
distingüido da Espanha pelo critério da atitude-padrão do colonizador frente à empresa
colonial.
No sétimo alinhamento, uma mitigação do tipo ideal do semeador é avançada com a
apresentação das bandeiras. A noção de que estas representam um “destacamento” em
relação a Portugal enseja uma separação entre ambos os objetos no campo de emergência,
com base no critério de autonomia. Abre-se espaço para que a história brasileira desenvolva
10
a “incerteza agonística contida na incompatibilidade entre império e nação” (Bhabha, 2005,
p.16). A asserção das bandeiras “como um empreendimento que encontra em si mesmo sua
explicação” (p.105) é um recurso claro e até então não utilizado a um procedimento
tautológico, em conexão com a asserção sobre o “nascimento” de “nossa história nacional”.
A afinidade eletiva entre a argumentação permeada pela lógica da autonomia e a
constituição da “silhueta geográfica” do Brasil pelos bandeirantes aparece como um claro
postulado da aptidão brasileira para realizar a requerida distinção entre o dentro e o fora.
Está-se mais próximo de um emprego significativo do conceito de Estado. A passagem de
uma “inércia difusa” a uma “forma definida” e uma “voz articulada” torna coerente o status
conceitual da população colonial em face da postulação de um novo Estado. O “desleixo” é
substituído por um “ato definido da vontade humana”. Uma semelhança familiar com o
modo ideal-típico espanhol de conduzir seus assuntos na América pode ser apontada na
mudança representada pelas bandeiras. Exacerbar a dicotomia entre o império e a nação
com o propósito de promover esta última enceta abrir mão da peculiaridade gerada pelo
império, isto é, o semeador anarquista. A metáfora sobre “raízes do outro lado do oceano”
revela o ideal regulativo de raízes do lado certo do oceano – as bandeiras paulistas –, o que
remonta à disjunção inicial entre natureza e cultura, potencialmente harmonizando-a.
A aplicação recorrente da ética da aventura também vale para a mineração em
Minas Gerais no Setecentos. A “intervenção enérgica” e a criação de um espaço altamente
ordenado por Portugal, lê-se ainda no quarto capítulo, foram artificiais e visavam
unicamente à mobilização das forças econômicas para que a metropole desfrutasse dos
ganhos sem precisar adotar uma ética do trabalho. A mitigação do tipo do semeador, apesar
de sugerir novas formas de ordenamento social no Brasil, ainda se relaciona de maneira
consistente com a sintaxe da ausência.
Uma Cordialidade de Vocabulário: o Brasil no Mundo
Machado de Assis (1997), em conhecido texto de 1873, critica poetas brasileiros
que almejam o caráter nacional pela citação de nomes de pássaros e de plantas: não logram
mais que uma “nacionalidade de vocabulário”, avalia. A partir do quinto capítulo de RB (O
11
Homem Cordial), a sintaxe da ausência cede espaço para uma complexa forma nacional, a
cordialidade de vocabulário. As alianças variáveis às quais o objeto vinha sendo submetido
são suspensas, ao passo que a dimensão temporal ganha destaque – e será por meio dela
que se poderá doravante pensar o interior e o exterior. Perfaz-se a distinção entre o passado
e o presente do objeto pela distinção entre dois modos de pensamento: o “realismo
fundamental” herdado dos portugueses e a abstração intrínseca às leis da Cidade, que
remonta a Sófocles. A lei geral é contraposta à lei particular, e as recorrentes dificuldades
para a consolidação do geral sobre o particular caracterizam uma “imaturidade”. Esta, no
entanto, é relativa, visto que o texto é ambíguo frente à desejabilidade de uma
modernização irrestrita. Enquanto o povo e o Estado se demoram em implantar
definitivamente “bons princípios” na ordem social, o homem cordial encabeça o esforço de
reprodução – e, ao mesmo tempo, de emancipação – de seu passado. Com o objeto situado
em um imprevisto meio termo entre passado e presente, os alinhamentos variáveis vistos
anteriormente são reformulados, passando o Brasil a ser comparado com dois exteriores, o
regressivo (ibérico) e o – agora regulador – progressivo (americano).
Enquanto o segundo e o quarto capítulos anunciam, respectivamente, um futuro
estatal e um interior distinto do exterior, o quinto capítulo enuncia o Estado no Brasil.
Como se sabe, “[t]odo enunciado (...) constitui seu passado, define, naquilo que o precede,
sua própria filiação, redesenha o que o torna possível ou necessário, exclui o que não pode
ser compatível com ele” (Foucault, 2005, p.141). O interior e o presente serão, agora, o
espaço e o tempo de distinções fundacionais. O quinto capítulo começa com a seguinte
performance lingüística:
O Estado não é uma ampliação do círculo familiar e, ainda menos, uma integração de certos
agrupamentos, de certas vontades particularistas, de que a família é o melhor exemplo. Não
existe, entre o círculo familiar e o Estado, uma gradação, mas antes uma descontinuidade e
até uma oposição. A indistinção fundamental entre as duas formas é prejuízo romântico que
teve os seus adeptos mais entusiastas durante o século XIX (...) Só pela transgressão da
ordem domestica e familiar é que nasce o Estado e que o simples indivíduo se faz cidadão,
contribuinte, eleitor, elegível, recrutável e responsável, ante as leis da Cidade. Há nesse fato
um triunfo do geral sobre o particular, do intelectual sobre o material, do abstrato sobre o
corporeo (...) a ordem familiar, em sua forma pura é abolida por uma transcendência (p.
153).
12
Três notas sobre essa passagem são cabíveis. Em primeiro lugar, ela se liga às
performances lingüísticas relativas às bandeiras, estabelecendo com elas laços de filiação.
O modelo patriarcal de relação entre governantes e governados implícito na frase do
visconde de Cairu – “o primeiro princípio da economia política é que o soberano de cada
nação deve considerar-se como chefe ou cabeça de uma vasta família” (apud p.84) – é,
dessa forma, um “prejuízo romântico”. Ademais, é um precedente incompatível, oriundo de
um tempo tornado passado pela enunciação do futuro estatal do Brasil. Um passado ora
sujeito a uma necessária “transgressão”, a mesma requerida a Antígona na peça de
Sófocles.
Em segundo lugar, “a descontinuidade” e a “oposição” entre a ordem familiar e
doméstica e o Estado é de natureza temporal. Os objetos não podem mais ser distinguidos
de seu exterior com facilidade, permeabilidade e permutabilidade. Uma ruptura fundacional
com o passado deve ser acompanhada de uma nova forma de demarcação do interno frente
ao externo. A discussão não se centra mais em uma mera sociedade, e tanto menos em uma
sociedade colonial. A suspensão do jogo de alianças de geometria variável entre Brasil e
objetos adjacentes resulta em um cenário de fixidez espacial. Graças ao tirocínio
tautológico posto em vigor anteriormente, a “silhueta geográfica” do Estado passa a prover
uma referência estável sobre o que está dentro e o que está fora. Qualquer que fosse o
aspecto do passado, com seus implantes e suas heranças, agora o mundo não mais pode ser
encontrado dentro do Brasil, embora a recíproca passe a ser verdadeira. Apenas por meio
dessa mediação fundadora poderão se relacionar o interior e o exterior, independentemente
do nível de intmidade mútua.
Em terceiro lugar, essa transgressão é complicada pela recalcitrância do passado. Na
transição rural-urbano, por exemplo, RB registra a resiliência da ética da aventura e sua
reprodução nas cidades, gradativamente restringindo a ação de “espíritos iluminados” como
o barão de Mauá. Deriva-se “a imaturidade do Brasil escravocrata para transformações que
lhe alterassem profundamente a fisionomia” (p.76). A imaturidade é o problema diante da
sociedade e do Estado brasileiro em RB. É revelador que o “marco divisor de duas épocas”
da história brasileira seja a abolição da escravatura (1888) e não a independência de
Portugal (1822). A independência está mais relacionada à superação do passado rural do
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que à separação do exterior colonial. Os problemas ligados ao progresso temporal são
encontrados do quinto capítulo em diante, quando as aludidas ausências regulativas são
postas à prova da auto-organização política. Essa quatão pode ser mais bem compreendida
pela oposição de fundo entre a supra-citada definição do Estado e a definição do semeador.
O “realismo fundamental” decorrente da primeva afirmação da soberania
portuguesa é a razão última da “aversão congênita a ordens impessoais de existência” que
caracteriza o semeador e seu desleixo.3 Transplantada para a colônia, essa visão de mundo
antecede a soberania brasileira. O pouco desenvolvimento da abstração e da formalidade,
bem como o descuro com a faculdade da transcendência, que resultam da história soberana
de Portugal, se transformam nas fontes da imaturidade brasileira. Elas não são
simplesmente a herança de um colonizador estrangeiro, pois também são uma herança do
passado colonial. Por isso, o passado está imbricado na recém-fundada ordem urbana,
sendo o pólo elementarmente contraposto a essa mesma ordem no campo de emergência.
“Para que uma ordem legal faça sentido, uma situação normal precisa existir”, explica Carl
Schmitt, acrescentando que “o soberano produz e garante essa situação em sua
totalidade” (2005, p.13). O Estado é sujeito, no Brasil, às rivalidades entre campo e cidade
que deveriam ser a ele submetidas (cf. Lefebvre, 2004, p.24). O desafio, portanto, é a
projeção da racionalidade intrínseca ao modelo da cidade (cf. Foucault, 1984, p.241) à
totalidade do território brasileiro. O primeiro passo nessa direção será dado no nível
rudimentar da produção ab ovo da normalidade que sustenta a vigência da lei. Superar os
traços de semeador significa menos se aproximar dos traços do ladrilhador do que afirmar
seu domínio soberano sobre o território. Esse requisito marca a diferença entre o
reconhecimento da soberania brasilera pelo sistema de Estados em 1822 e a gradual
consubstanciação dessa capacidade, que atinge sua fase de maturação em 1888. Na
verdade, a oposição se dá entre o Estado (a lei geral) e a expressão historicamente
atualizada da aversão congênita aos ordenamentos impessoais – o patrimonialismo (a lei
3
Sobre Portugal, diz-se que “Sua unidade política, realizara-a desde o século XIII, antes de qualquer outro
Estado europeu moderno, e em virtude da colonização das terras meridionais, libertas enfim do sarraceno,
fora-lhe possível alcançar apreciável homogeneidade étnica. A essa precoce satisfação de um impulso capaz
de congregar todas as energias em vista de um objetivo que transcendia a realidade presente, permitindo que
certas regiões mais elevadas da abstração e da formalidade cedessem o primeiro plano às situações concretas
e individuais – as “árvores que não deixam ver a floresta”, segundo o velho rifão –, cabe talvez relacionar o
‘realismo’, o ‘naturalismo’ de que deram tamanhas provas os portugueses no curso de sua história” (p.124).
14
particular). Passado e presente são, portanto, envolvidos em uma prolongada crise,
“especialmente sensível no nosso tempo devido ao decisivo triunfo de certas virtutes
antifamiliares por excelência” (p.157, grifo suprimido).
Adiante, RB define o homem cordial, equiparando o “Brasil” aos “brasileiros”: o
homem cordial é um produto de seu ambiente. Como herdeiro da tradição rural fadada a
desaparecer com a crescente centralidade da ordem urbana, esse homem ideal-típico
também deverá esvair-se. Entretanto, “o cosmopolitismo dos nossos dias” “ainda” não
apagou a memória do ambiente rural e patriarcal. A própria existência do patrimonialismo
simboliza a reprodução da ordem familiar em um contexto especificamente urbano.4
O tipo ideal do homem cordial faz mais do que fornecer um dispositivo heurístico:
ele recobre o objeto com um significado estável. Em vez de ser regulativamente oposto ao
exterior, o Brasil é fundacionalmente associado aos brasileiros. A cordialidade é um insumo
central para esse procedimento tautológico. Com esse ato de fala, privilegia-se o interior e
aloca-se ao exterior uma dimensão residual, enquanto a equação de passado e presente é
deixada em aberto. Esse é o passo conceitual (trazido para o processo enunciativo) de uma
importante locução: a cordalidade é a “contribuição” brasileira para o mundo. Dizê-lo é
adotar uma ordem de precedência diferente daquela encontrada no início do primeiro
capítulo, quando um implante era considerado o “fato dominante” na gênese do Brasil. As
origens do Estado brasileiro diferem das origens da sociedade brasileira. Estas se ressentem
da ausência das propriedades proposicionais possuídas por aquelas.
A cordialidade de vocabulário é uma forma ambígua de expressão. A contribuição
brasileira, feita à “civilização”, não é de “civilidade”. Se a cordialidade satisfaz aos
visitantes estrangeiros, ela é de outra maneira inextricavel da estrutura social anárquica.
Essa tomada perspectivista, sugere Robert Wegner, significa que
4
Dado que o contrato social implica em um contrato sexual (Pateman, 1988), a afirmação de RB de que as
mulheres foram, no Brasil como alhures, “o elemento conservador por excelência, o grande custódio da
tradição doméstica” (p.132), convida a uma possível discussão mais cuidadosa sobre o papel das mulheres em
uma sociedade que se deveria marcar crescentemente pela distinção entre o público e o privado. Uma primeira
sugestão nesse sentido poderia ser encontrada na própria referência ideal de Sérgio Buarque para essa
distinção: no Prólogo de Antígona, lê-se Ismene ponderar com a aguerrida irmã: Põe na cabeça isso,
mulheres / somos, não podemos lutar com os homens. / Há mais, somos dirigidas por mais fortes, / temos que
obedecer a estas leis e a leis ainda mais [duras (Sófocles, 1999, p.11).
15
Ao contrário de constituir uma narração do suplantar da tradição e do alvorecer e consolidar
do moderno no país – ou da substituição da cordialidade pela civilidade –, o ensaio [RB] é
constituído por uma constante oscilação entre olhar para trás, enxergando a tradição viva, e
olhar para a frente, apontando as virtualidades da modernização (2006, p.350).
Ou a cordialidade é um atributo essencial dos brasileiros ou ela precisa desaparecer com o
declínio de suas bases sociais. Wegner assinala que essa dualidade, que informou a crítica a
RB ao longo do tempo, não se aplica à análise do livro, de vez que o texto opta por
“movimento” entre os dois polos. Não há dúvida de que o homem cordial ilustra a
impassível reprodução da “tradição viva” no presente do Brasil, mas um pequeno adendo
pode ser feito ao juízo de Wegner. Embora a essência do homem cordial possa ser fugidia e
fundada em uma ambigüidade que resiste um enquadramento, cabe notar que para que
pudesse ter qualquer essência foi necessário conferir-lhe um fundamento espacial a partir
do qual o objeto pudesse ser distiguido de outros objetos. Ambíguo quanto seja a respeito
de suas condições temporais de emergência – o que de fato é – a contribuição brasileira ao
mundo é antes de mais nada brasileira. Apenas com esse irredutível adjetivo se pode dar
um contexto lógico para que se afirme qualquer essência. Pode-se, portanto, acrescentar a
Rocha (2003) que a linguagem só pode lidar (através de interpretações) com a estabilidade
da referência do objeto se ela primeiramente pressupuser alguma figura de conjunto que
corresponda a esse objeto. O Estado, lançado ao proscênio da trama no quinto capítulo de
RB, avaliza esse movimento.
O sexto capítulo (Novos Tempos) apresenta o regime intelectual duplamente
disfuncional instaurado no Brasil dezenovesco como consequência da baixa coesão e pouca
disciplina que conformam a psicologia do homem cordial. Por um lado, o brasileiro é
incapaz de lastrear seu sistema de crenças em um modo sólido e laborioso de pensamento,
por falta de uma devoção de estilo religioso ao trabalho (o ideal externo aqui é o
protestantismo). Agradam-lhe leis genéricas que tornam inteligível um mundo complexo
com umas poucas disposições gerais, do que decorre sua visão de um “poder mágico” das
idéias na consecução de mudanças em uma “triste” e “dura” realidade, vista com
desencanto desde que ganhou crescente importância o mundo urbano. Por outro lado, o
brasileiro deve dar precedência aos “lemas da época”. A contrapartida de se manter o ritmo
das tendências regulativas que vêm do exterior (como por exemplo a ideologia impessoal
16
do liberalismo que grassou no século XIX) é uma aplicação equivocada dos sistemas
conceituas importados, de resto reforçando a ordem tradicional. Em seu campo de
emergência, o interior não pode efetuar sua libertação do passado, preso que é pelo exterior.
Nesse sentido, a imaturidade é o status retardatário do Brasil no que Weber
denominou o “longo processo educacional” (2004, p.54) rumo à aquisição da ética
apropriada para o mundo moderno. Esse movimento em RB é estruturado por uma retórica
temporal no processo enunciativo: ele afirma a existência de uma “dupla temporalidade”
nas relações internacionais, por meio da qual países ou regiões situados no mesmo tempo
cronológico vivem diversos tempos sociais e axiológicos (cf. Inayatullah & Blaney, 2004).
A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Weber, posiciona-se como o próprio
exterior do Brasil, do qual se pode mensurar a maturidade do país. Conforme Wegner
(2006) observou, RB até mesmo avalia se a religião é uma via para infundir mudanças na
relação dos brasileiros com o trabalho, à maneira de Weber em seu livro, mas conclui que a
religiosidade “se perdia e se confundia num mundo sem forma e que, por isso mesmo, não
tinha forças para lhe impor sua ordem” (p.165). O influxo do exterior na formação do
interior brasileiro está ligado a uma diferença temporal entre Estados, que redunda em um
desequilíbrio intelectual entre dentro e fora do Brasil. A crise sofrida pelo país, como se
recorda, é feita “especialmente sensível” porque, em “nosso tempo”, justamente os lemas
antifamiliares opostos ao ordenamento que o Brasil desenvolveu em sua trajetória histórica
tiveram um “triunfo decisivo”. Pode-se recorrer ainda uma vez a Machado de Assis, que se
referiu àquele desequilíbrio: “[t]ais são as cousas deste mundo! Tal é a desigualdade dos
destinos!” (1997, p.616).
Como se viu acima, 1888 merece tamanha importância na história brasileira em
virtude de sua associação com uma possibilidade real de mudança estrutural na sociedade.
Determinando o crescente domínio da soberania sobre o território, a abolição da
escravatura é crucial para que se eroda o ciclo de influências ibéricas no Brasil,
assegurando-se assim um “estatuto de país independente”. Todavia, uma tensão na
arquitetura de coerência da teoria do Estado pode ser logo reconhecida no fato de que a
teleologia revolucionária indicada no sétimo capítulo de RB (Nossa Revolução) se coaduna
com o novo ciclo de influências que ganha o hemisfério. Com efeito, lê-se que, entre outros
17
fatores, a convergência do Brasil com a democracia deverá ser bem-sucedida em razão da
“impossibilidade de uma resistência eficaz à certas influências novas” (p.204),
precisamente a primazia da vida urbana. Essa desigualdade dos destinos repaginada
convida a um questionamento sobre qual tipo de independência pode ocorrer no Brasil. O
peculiar balanço entre americanismo e iberismo dá uma resposta tácita a essa questão. De
um lado, a importação dos ideais da Revolução Francesa e a tentativa de sua adaptação aos
respectivos contextos têm sido uma característica da vida nacional dos países íberoamericanos recém-descolonizados. Igualmente, o americanismo não é imanente ao objeto,
suas versões sendo “estrangeiras” e “impostas”, mas é desejável caso desenvolvido
internamente. De outro lado, a revolução nacional é definida como a “aniquilação” das
raízes ibéricas da cultura brasileira, a se seguir por uma maior vazão da espontaneidade
nacional – a qual, por sua vez, é logicamente derivada das raízes ibéricas da cultura do país.
Essa oscilação entre tradição e modernidade é bem exemplificada pela avaliação de que a
cordialidade, a despeito de seu previsível e almejado declínio, é um fator que contribui para
a democracia no Brasil. Cumpre observar o papel atribuído ao Estado nesse processo: sua
“maturidade precoce” contrasta abertamente (ou: “estranhamente”) com a imaturidade
nacional. Não obstante sua ação como um inibidor da “espontaneidade nacional”, ele é
visto como um dos poucos loci de onde difundir os – ausentes – “bons princípios” de
organização social. A ordem tirânica pressuposta por esta última previsão faz lembrar que
“todas as organizações políticas hispânicas”, por se erguerem na movediça base da cultura
da personalidade, são mantidas por meio de uma “força exterior” (esta, uma das qualidades
comuns da história das nações ibéricas relacionadas no primeiro capítulo). Assim, uma
política do esquecimento (dos maus princípios socias) começaria por uma política de
lembrança (de práticas da mesma história que gerou aqueles princípios).
Se o moderno é americano e o tradicional é ibérico, “Holanda quer os dois ao
mesmo tempo, embora a contraface disso seja a identificação entre espontaneidade e atraso
e entre racionalização/abstração e o elemento externo” (Piva, 1998, p.55). Contudo, esse
movimento expressa a crença modernista na possibilidade de se seguir um caminho de
modernização diferente daquele das nações civilizadas, “de forma que o desenvolvimento
econômico, social e político se faça sem a esterilização das relações sociais” (Avelino
18
Filho, 1987, p.40). De fato, Wegner (2006) chama a atenção para o sombrio juízo feito na
discussão de RB sobre a mudança social da lei particular para a lei geral. No moderno
sistema industrial, “a relação humana [entre empregador e empregado] desapareceu” (p.
155). Dessa forma, a formação nacional no campo de emergência do capítulo é amparada
em uma peculiar enunciação das distinções constitutivas do objeto. O exterior detém uma
posição regulativa na oferta de conteúdo ideológico para a ordem doméstica. Mesmo se o
americanismo não for desenvolvido internamente pelo consmopolitismo, na esteira do
declínio da cordialidade e de seu regime intelectual correlato, o interior está fadado a ser
ordenado pela sombra de um internacional que se faz irresistível.
Nesse sentido, a independência não é uma ausência de influências estrangeiras
regulativas, mas sim o juízo referente a qual tipo de influência é desejável, e bem assim a
consecução de meios internos para reformular (antropofagicamente?) essa influência. A
tentativa de emergir da própria imaturidade combina a rejeição da “falta de resolução”, para
usar as palavras de Kant (1983), com qualidades próprias do passado ibérico “guardião”,
que deve ser suplantado. O exterior pode portanto ser dividido em regressivo e progressivo,
ibérico e americano: uma parte pertence ao passado e a outra ao presente. Internamente,
segue a contínua oscilação entre a tradição viva e as virtualidades da modernização. A
gradual influência da racionalização não passa de uma promessa do futuro uso livre,
público e universalizante da razão. Alocando-lhe o papel provável – embora precário – de
mediador de todas essas negociações, “é necessário tratar o Estado moderno não apenas
com base em suas exclusões soberanas ou externas, mas também como um conjunto de
práticas homogeneizadoras dentro” (Shapiro, 2004, p.19, grifo original).
Conclusão
Discutir o pensamento clássico sobre a evolução nacional brasileira no marco da
soberania estatal e do colonialismo, binômio expressivo da emergência e expansão do
moderno internacional, foi um propósito a animar este trabalho. Enquanto uma
recapitulação dos ganhos pontuais que a leitura do pensamento social brasileiro à luz das
Relações Internacionais excederia seus limites e seu objetivo, uma nota final no sentido
19
inverso parece válida. Trata-se de uma rápida apreciação do modo pelo qual a leitura do
ensaísmo brasileiro ilumina o emprego do conceito de Estado no discurso sobre as Relações
Internacionais.
A organização conceitual da disciplina ao redor do conceito de Estado é bastante
conhecido. Steve Smith assinala que uma conseqüência do foco nas relações interestatais é
a grande importância atribuída ao problema da guerra, em um processo de “disciplinamento
da disciplina”. Para o autor, “as abordagens que não partam tanto de relações interestatais
quanto da guerra são axiomaticamente colocadas na posição defensiva com respeito a sua
adequação dentro da disciplina” (2000, p.4).
Acompanhe-se, em um entreato, a seguinte análise que RB oferece sobre a política
externa brasileira. A imagem que se criou para prestígio brasileiro no exterior, aduz-se no
sétimo capítulo, é a de um
gigante cheio de bonomia superior para com todas as nações do mundo. Aqui,
principalmente, o segundo reinado antecipou, tanto quanto lhe foi possível, tal idéia, e sua
política entre os países platinos dirigiu-se insistentemente nesse rumo. Queria impor-se
apenas pela grandeza da imagem que criara de si, e só recorreu à guerra para se fazer
respeitar, não por ambição de conquista. Se lhe sobrava, por vezes, certo espírito combativo,
faltava-lhe espírito militar (...) Não ambicionamos o prestígio de país conquistador e
detestamos notoriamente as soluções violentas (...) Modelamos a norma de nossa conduta
entre os povos pela que seguem ou parecem seguir os países mais cultos, e então nos
envaidecemos da ótima companhia (p.194-195).
RB leva às raias internacionais as conseqüências do tipo ideal brasileiro que
compõe. Aparentemente, a própria análise de RB que não poderia distar mais da temática
central de Relações Internacionais. Coteja-se, por exemplo, com esta explicação de
Raymond Aron: “[f]ormalmente, a conduta de todos os diplomatas apresenta pontos de
semelhança. Todos os estadistas procuram recrutar aliados e reduzir o número dos
inimigos” (2002, p.151). O tipo ideal do diplomata divisado pelo pensador francês vai
diretamente de encontro ao tipo ideal do brasileiro concebido por Sergio Buarque.
A ausência de espírito militar, a ojeriza pela violência e a formulação da norma de
conduta com base em uma cópia da norma aparentemente defendida pelos países mais
cultos parece contradizer um a um dos ditames para o sucesso na política internacional.
Para além disso, a cordialidade, explica-se em nota de rodapé baseada em Schmitt (cf p.
20
218n), pertence à esfera privada, onde a amizade e a inimizade podem ser sentidas. Na
esfera pública ou política, ambos os sentimentos são transformados em benevolência ou
hostilidade. Nem mesmo o passo elementar para a ação pública estaria consolidado no
Brasil, o que precluiria a inclusão do país no grupo de “nações cultas” partícipes da
diplomacia moderna.
Esse entrechoque de tipos ideais reforçaria a idéia de que RB – e, tomando-se a
liberdade da generalização, o pensamento social brasileiro – nem estaria na defensiva em se
tratando da já afastada disciplina de RI. Mais que isso: seria desabridamente irrelevante
para o estudo sobre a política mundial.
Um segundo e último propósito que animou este trabalho foi justamente o de negar
essa conclusão. Sem adentrar os méritos da questão, devido à limitação de espaço e
objetivo que já restringia acima o escopo dessas considerações finais, cabe sugerir um traço
elementar da questão. O que a leitura de RB esclarece é que o “contexto enunciativo” – e
aqui não se quer exceder o âmbito das performances lingüísticas de RB, quando muito do
ensaísmo clássico brasileiro – é de grande importância para a análise do emprego do
conceito de Estado no discurso. As alianças variáveis da sociedade colonial brasileira no
marco das relações entre o sistema de Estados europeu e sua periferia americana e
movimento fundacionais como a passagem entre a implantação da cultura européia e a
contribuição da cordialidade ao longo da história brasileira são processos instrutivos sobre
os desígnios da soberania – e das Relações Internacionais – fora de seu centro tradicional.
21
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raízes do brasil: brasil no mundo – e vice versa