A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE DE JOHN RAWLS: UMA REFUTAÇÃO
AO UTILITARISMO1
Marlon André Kamphorst 2
SUMÁRIO
1. Introdução 2. Ideias de justiça: o utilitarismo e o
comunitarismo 3. A critica do pluralismo agônico a teoria
da justiça de Rawls 4. A teoria da justiça como equidade 5.
A refutação de Rawls ao utilitarismo 6. Conclusão 10.
Referências
RESUMO
Essa pesquisa visa a investigar a teoria da justiça como equidade, que embora seja alvo de
censuras, como o pluralismo agônico de Chantal Mouffe, se impõem como teoria no tempo e na
história, supera as criticas e se posiciona como alternativa e refutação a teoria Utilitária. Para
tanto, inicialmente desvela-se a relação da visão comunitarista de justiça com o utilitarismo
clássico. A comunitária tem como preocupação central a comunidade e sua principal afirmação é
a relevância dela para a construção da boa sociedade, enquanto a utilitarista busca a
maximização da utilidade como norma de ação individual, das instituições e como critério de
justiça política baseada na utilidade. De cunho liberal, a teoria da justiça, espelhada nos
contratualistas estabelece como ponto de partida, a rejeição ao utilitarismo. Expressa que o
objetivo da teoria da justiça como equidade é fornecer um conjunto de princípios, que poderiam
ser utilizados para determinar se as instituições e as ações de uma sociedade são justas, e para
tanto, deveria postular princípios válidos para todos, independentemente da posição em que se
encontrem, pois entende que a cooperação social possibilita melhores condições de vida quando
comparadas a possibilidade de cada um viver e se organizar individualmente, segundo os seus
próprios interesses, e segundo o máximo de felicidade agregada. Assim, resultados com base
única na utilidade se chocam com os juízos sobre os direitos que os indivíduos possuem e que
não devem ser sacrificados no cálculo dos interesses sociais.
Palavras-chave: Justiça; Utilitarismo; Equidade.
ABSTRACT
1
2
Artigo produzido para submissão na MICIMED 2014.
Advogado. professor de filosofia. Mestrando em Direito pela IMED. E-mail – [email protected]
1
This research aims to investigate the theory of justice as fairness, that although the target of
censorship, as Chantal Mouffe's agonistic pluralism, impose themselves as theory in time and
history, overcome the criticism and is positioned as an alternative and refutation of Utilitarian
Theory. To do so, initially reveals the relation of the communitarian vision of justice with
classical utilitarianism. The Community has as its central concern the community and its main
claim is the relevance of it to build the good society, while the utilitarian search utility
maximization as a norm of individual action, institutions and as a criterion of political justice
based on usefulness. Liberal nature, the theory of justice, in the contractarian mirrored sets as a
starting point, the rejection of utilitarianism. Expressed that the goal of the theory of justice as
fairness is to provide a set of principles that could be used to determine if the institutions and
the actions of a society are fair, and both should postulate principles valid for all, regardless of
position they are, as it believes that social cooperation enables better living conditions
compared the ability of each individual to live and organize in their own interests, and second
maximum aggregate happiness. Thus, only results based on the usefulness clash with judgments
about the rights that individuals possess and that should not be sacrificed in the calculation of
social interests.
Keywords: Justice; Utilitarianism; Fairness.
1. Introdução
A principal dificuldade da filosofia política é saber como legitimar e justificar
moralmente um ordenamento político-jurídico. As concepções de justiça diante das
sociedades modernas ponderam entre os direitos humanos inalienáveis ao contrato
social, até um certo padrão de utilidade. Na presente pesquisa serão consideradas as
concepções de justiça baseadas no comunitarismo e no utilitarismo, este ultimo origem
do nascimento da teoria da justiça como equidade que propõe um novo modelo de
justiça que responda as iniquidades do ponto de vista moral, filosófico e religioso, com o
objetivo de orientar o funcionamento das instituições sociais de caráter público.
O problema a ser respondido no presente estudo é saber se a teoria da justiça
como equidade, apesar das criticas recebidas, vai se manter como teoria em si, e se sua
composição vai servir para superar a teoria utilitarista como teoria de justiça valida a
ordenar uma sociedade civil. Justifica-se a pretensão por entendermos que as criticas a
teoria da justiça como equidade não se sustentam de forma válida a lhe causar abalos,
que mesmo com incompletudes se apresenta como uma teoria completa. O que não se
verifica no utilitarismo, que após a teoria Rawlssiana perdeu muita força como teoria de
justiça, e não se presta a amparar as situações encontradas nas sociedades.
2
Para justificar essa posição, inicialmente verifica-se a existência de duas teorias
sociais consideráveis, a comunitária e a utilitária. O comunitarismo se firma como
contestação a insuficiência do liberalismo, e não como teoria política econômica, já que
não alcançaria os ideais da comunidade. Já o utilitarismo busca na maximização da
utilidade o critério de comportamento individual e político a ordenar a sociedade, mas
que, entrementes não se posta como teoria de justificação moral de um Estado, pela
impossibilidade de aferição e distribuição justa da felicidade na sociedade.
Nesse contexto, e considerando que em sociedade, muitas coisas podem ser
caracterizadas como justas e injustas, Rawls, para constituir sua teoria com o objetivo e
superar o utilitarismo, atem-se à justiça distributiva de direitos e deveres das
instituições sociais básicas, operando através de constituições políticas, acordos
econômicos e sociais. Expressada na universalização e no ordenamento por princípios
que regulam o agir humano e social, a teoria proposta por Rawls define uma espécie de
acordo hipotético entre as partes produzido por meio do acolhimento e escolha dos
princípios da justiça que devem ser vinculados às instituições sociais, que, por oportuno,
representam um sistema público de regras de conduta.
Rawls introduziu em sua reflexão um constrangimento adicional que define como
“véu da ignorância (veil os ignorance)”, que implica somente ser possível conceber
igualdade incondicional da situação inicial se os indivíduos desconhecerem totalmente
sua situação particular.
Criticando essa teoria, Mouffe apresenta o modelo agonístico de democracia, que
se diferencia pelo objetivo proposto que não pretende a superação total do modelo
anterior, mas criticar pontos que considera frágeis na teoria rawlsiana. Em suas
querelas, funda-se na constatação de que não devem ser eliminadas as pessoalidades em
função de um acordo hipotético, mas construir mecanismos que sejam capazes de
mobilizar, dar existência a tais paixões e interesses dentro dos princípios e regras
democráticas. Sua teoria do pluralismo agonístico se mostra na forma de transformar as
relações antagônicas em relações agônicas num contexto político democrático sempre
dominado pelas questões de poder e de antagonismo.
Diante desse antagonismo, podemos perceber que Rawls pretendeu oferecer um
modelo procedimental capaz de conciliar igualitarismo e individualismo, inferindo que
as pessoas possuem diferentes valores e formulam diferentes projetos, por vezes para
além da sua própria vida e experiência individual. Assim, uma sociedade, para ser
3
considerada justa, deveria superar as diferenças a que são submetidos seus membros.
Para tanto, deveria postular princípios válidos para todos, independentemente da
posição em que se encontrem, pois a cooperação social possibilita melhores condições
de vida, o que deve ser realizado através do contrato social objetivando viabilizar a
justiça de forma cooperativa entre os membros da sociedade.
Dessa forma, a Teoria da justiça como equidade demonstra que o utilitarismo
fracassa enquanto teoria moral, não somente pelas dificuldades inerentes à tentativa de
quantificação da felicidade e de hierarquização qualitativa dos prazeres, mas em outros
aspectos, em especial que a justificação esteja centrada na maximização do bem-estar
coletivo, às expensas dos direitos de cada indivíduo, gerando uma situação que teríamos
de classificar como profundamente injusta.
2 O utilitarismo e o comunitarismo
A doutrina utilitarista possui uma série de características e qualidades
intrínsecas que a tornam um importante objeto de investigação no campo da ética e da
filosofia política. Tais características e qualidades são devidas, talvez, ao fato de a
doutrina pretender abordar de forma sistemática e completa os diversos aspectos da
vida prática. Nesse terreno, o utilitarismo pretende que o conhecimento empírico
informe as suas posições normativas, assim, propõe uma teoria do valor e adota uma
concepção de natureza humana baseada num conjunto de pressupostos motivacionais
pelos quais pretende conciliar comportamento individual e comportamento político.
O caráter abrangente e a aplicabilidade do utilitarismo na resolução de
problemas práticos fazem dessa teoria um importante ponto de partida para a
teorização da justiça, pois buscava ser a teoria mais sistemática e abrangente para
fornecer uma base de comparação entre instituições e práticas sociais. Assim, expõe
uma concepção de racionalidade política, que quanto à forma de governo, proporciona
uma justificativa para a democracia representativa e combate à fundamentação
contratualista e à ideia de direitos naturais.
Postula a maximização da utilidade como norma de ação individual, e, como
forma de justificação das instituições e como critério de justiça política. Em sua analise o
valor moral de uma ação é uma função das consequências boas ou más, mais
4
exatamente, da felicidade ou infelicidade que ela produz ou tende a produzir. Aplicado à
teoria política, o princípio utilitarista reza que a limitação coercitiva das liberdades
individuais por parte do Estado pode ser considerada como justificada na medida em
que suas consequências são úteis, e na medida em que o Estado tende a promover o
maior bem-estar ou felicidade da coletividade a ele submetida.3
Principiado pelo pensador político Jeremy Bentham (1748-1832), desenvolveu as
bases da teoria utilitarista a partir de um cálculo a medir a felicidade, que seria aferida
pelo alcance de um maior número de beneficiados, ou de uma maior fruição de prazer
ou da maior felicidade da comunidade quando se tratasse da definição do interesse de
uma decisão política ou de uma legislação. Nesse contexto, a soberania do moderno
Estado nacional não é outra coisa senão a própria soberania da lei, a qual, em última
análise, significa a supremacia do princípio da utilidade.4
Bentham ao formular as definições para o princípio da utilidade e para a ideia de
interesse da comunidade, defende que a conduta humana é governada pela dor e pelo
prazer, e diante disso, sustenta a necessidade de que as medidas de governo devem ser
avaliadas à luz da utilidade. Afirma que a natureza colocou a humanidade sob o
comando de dois mestres soberanos, o prazer e a dor, apresentados como causas finais
3Pode-se
complementar predita premissa afirmando que ainda que a restrição coercitiva das liberdades
seja em si mesma um mal necessário, ela estará justificada na medida em que for compensada por um
máximo de bem-estar ou felicidade proporcionado para a coletividade. Assim, para o utilitarista, a única
razão plausível para justificar a restrição das liberdades, cobrar obediência às leis e sancionar coerções
diante de sua desobediência está em mostrar que isso é mais vantajoso e útil, porque torna a coletividade
mais feliz.
4 O jurista Jeremy Bentham preferiu o estudo da teoria do Direito em lugar de exercer a profissão de
advogado. Além disto, era economista e filósofo que chefiou um grupo de pensadores ingleses, entre os
séculos XVIII e XIX, que ficou conhecido como grupo de radicais filosóficos ou “utilitaristas”. Seus
componentes pregavam por reformas políticas e sociais, entre elas uma nova constituição para o país, que
foi alcançado no ano da morte de Bentham. Os membros desta corrente trabalhavam em vista do mesmo
fim, e assim seus componentes uniram-se na reverência a seu mestre: Jeremy Bentham. Estes “radicais”
propuseram uma modificação no panorama filosófico e científico. As teorias defendidas em comum e
aplicadas a vários campos, tanto no social como no humano formaram uma doutrina que se sobrepôs às
escolas cartesianas e kantianas, pensamento predominante na época. O ponto de partida de sua doutrina
foi seus estudos sobre a ciência do direito, concentrado no jusnaturalismo. Sua teoria dizia que o pacto
entre os membros de uma sociedade deveria necessariamente ser feito um contrato anterior (original).
Partindo desta premissa, sustenta que se a autoridade suprema não cumpre suas obrigações para com os
súditos, ainda assim a obediência deve prevalecer. O entendimento da teoria proferida por Bentham e
sustentada por seus seguidores era que para a interpretação da norma deveria levar em consideração os
efeitos reais produzidos. A qualificação dos efeitos teria como base a utilidade, sendo o bom aquilo que
traz prazer e mau, o que causa dor. Complementando esta afirmação, sob o prisma social bom e justo é
tudo aquilo que tende a aumentar a felicidade geral.
5
de uma ação, no sentido de que a natureza colocou como possibilidades para a ação
humana a geração desses dois produtos finais: o prazer e a dor.5
Sugere que, inevitavelmente, age-se movidos por percepções de prazer e dor e no
que se refere à esfera da moral, um ato não causa nada exceto percepções diretas ou
complexos de percepções de prazer e dor (impressões, paixões, satisfação, felicidade).
No plano da prática ou plano volitivo, o princípio da utilidade corresponde, de acordo
com Bentham, a um sentimento de aprovação do prazer e de desaprovação da dor que
inicia às operações mentais, e nos leva a aprovar um determinado tipo de ação.
Na definição do próprio Bentham (1988, p. 12), o princípio da utilidade é
o princípio que aprova ou desaprova toda ação qualquer que seja de acordo
com a tendência que ela parece ter a aumentar ou diminuir a felicidade da parte
cujo interesse está em questão, ou, que é a mesma coisa em outras palavras, a
tendência a promover ou opor-se a tal felicidade. Digo de toda ação, qualquer
que seja, e, portanto, não apenas toda ação de um indivíduo privado, mas
também toda medida de governo6
Quanto ao principio da utilidade, e da forma estabelecida por Bentham, a
felicidade ou o bem-estar se posta como a pedra de toque para o julgamento moral, que
se torna aqui um modo de avaliação instrumental, ou seja, os atos não são corretos ou
obrigatórios por causa de seu caráter inerente, de seus motivos inerentes ou por causa
de sua relação a comandos ou regras divinas ou sociais, e sim por causa do quanto de
prazer ou felicidade produz.
A grande força do utilitarismo como teoria ética reside na sua habilidade em
enfrentar a inconsistência das intuições morais do senso comum mediante a
estruturação de um sistema unificado de pensamento que trata todas as questões
morais num estilo uniforme e relacionado com um ideal de prazer ou felicidade que é
menos obscuro e mais atrativo que as demais alternativas, mas que inobstante, como
Segundo Freitas (1986, p. 44), “A primeira lei de natureza, para Bentham, consistiria em buscar o prazer
e evitar a dor, sendo necessário para alcançar tal escopo que a felicidade pessoal fosse alcançada pela
felicidade alheia. (...) A solução para encontrar a cooperação entre os homens, ele a aponta na identificação
de interesses, factível através da atividade legislativa do governo.”
6 Essa definição sobre o princípio da utilidade deve ser interpretada no sentido de que deve ser aplicado,
como principio a qualquer coisa que seja concebida para servir como o fundamento ou o início de uma
série de operações. Em alguns casos, de operações físicas, e também de operações mentais. O princípio
aqui em questão pode ser tomado como um ato da mente, como um sentimento de aprovação. Um
sentimento que, quando aplicado a uma ação, aprova a sua utilidade enquanto aquela qualidade pela qual
a medida da aprovação ou desaprovação conferida a ela deve ser governada.
5
6
principio não poderia dar conta da distribuição da felicidade, e sua maximização sem
denotar o modo como justo ou injusto que é distribuída socialmente, o que nos leva a
defender sua inaplicabilidade como teoria de justificação moral de um Estado. 7
Nessa linha, complementa Sen (2010, p. 84) que,
A base informacional do utilitarismo tradicional é o somatório das utilidades
dos estados de coisas. Na forma clássica do utilitarismo, a forma benthamista, a
“utilidade” de uma pessoa é representada por alguma medida de seu prazer ou
felicidade. A ideia é prestar atenção no bem–estar de cada pessoa e em
particular considerar o bem-estar uma característica essencialmente mental, ou
seja, considerar o prazer ou a felicidade gerada. [...] o utilitarismo foi a teoria
ética dominante - e inter alia, a teoria da justiça mais influente – há bem mais
de um século. A tradicional economia do bem-estar e das políticas públicas foi
durante muito tempo dominada por essa abordagem, iniciada em sua forma
moderna por Jeremy Bentham e adotada por economistas como John Stuart
Mill, William Stanley Jevons, Henry Sidwick, Francis Edgeworth, Alfred Marshall
e A. C. Pigou.
Portanto, a teoria segundo a qual a interpretação da norma deveria levar em
consideração os efeitos reais produzidos em determinadas situações, sendo esses
qualificados como base na utilidade, parecia a Rawls a teoria mais sistemática e
abrangente disponível para fornecer uma base de comparação entre instituições e
práticas sociais alternativas. Só que ao aprofundar o conhecimento sobre a teoria,
entendeu, por fim que o utilitarismo é insatisfatório e seu critério de justificação
desigual e injusto.
É importante referir que a escola utilitarista utiliza-se de condições de avaliação das escolhas pessoais,
como por exemplo, de ações, de regras, de instituições e de partidos político, sendo que os componentes
dessa avaliação do agir humano com os critérios utilitaristas se verificam conforme o enquadramento do
tipo de ação e de utilidade, e são divididos em consequencialismo, welfarismo e o ranking pela soma.
Esses, como componentes da avaliação utilitarista, podemos aferir no tocante ao consequencialismo que
todas as escolhas (de ações, regras, instituições) devem ser julgadas por suas consequências, ou pelos
resultados que geram. Assim, temos que a posição consequencialista de Bentham, Mill e Sidgwick, é uma
abordagem ética que trata do prazer ou satisfação dos desejos como o principal elemento do bem humano
e retrata a moralidade das ações como inteiramente dependente das consequências ou resultados para o
bem-estar do organismo. Quanto ao conquencialismo, Sen (2010, p. 84) refere que “Na verdade o enfoque
vai além de exigir apenas a sensibilidade para as consequências, pois determina que, em ultima analise,
nada a não ser as consequências pode ter importância.” Já o welfarismo, restringe os juízos sobre os
estados de coisas ás suas próprias utilidades, sem atentar diretamente para as coisas. Assim, a fruição ou a
violação de direitos e deveres, não é entendida como função apenas das informações sobre as utilidades
relativas a esse estado ou seja, o que importa para avaliação dos estados são as utilidades individuais
naqueles mesmos estados. E portanto, todas as escolhas devem ser julgadas em conformidade com as
respectivas utilidades que ela gera. E o ranking pela soma é o critério que requer que as utilidades de
diferentes pessoas sejam simplesmente somadas conjuntamente para se obter seu mérito agregado, sem
atentar para a distribuição desse total pelos indivíduos, ou seja, a soma de utilidades deve ser maximizada
sem levar em consideração o grau de desigualdade na distribuição das utilidades (ou seja, o que importa é
a soma: distribuição não importa)
7
7
Em relação a teoria do comunitarismo, esta pode ser entendida como uma
corrente de pensamento que essencialmente contesta a insuficiência da teoria e prática
liberal tanto econômica como política, sendo que, ao contrário do que sua designação
possa indicar, não é tanto a questão da comunidade que está em causa no centro da
controvérsia, mas a forma de entendimento do sujeito liberal e da justiça ligada à
distribuição de recursos sociais.8
A concepção comunitarista compreende um conjunto diversificado de
formulações filosóficas, sociológicas e políticas, presentes nas diferentes religiões de
uma teoria que faz nossa a pertença às comunidades como o seu ponto de partida.
Metodologicamente, os comunitários defendem que as premissas do individualismo,
como a do indivíduo racional capaz de escolher livremente o seu destino, não estão
corretas, e que a única maneira de entender a conduta humana é através de uma
referência aos indivíduos nos seus contextos sociais, culturais e históricos.
Importa referir que embora seja clara a importância da comunidade como
depositária de valores coletivos que deverão conduzir a vida humana, o que determina
os objetivos do pensamento comunitarista é, por um lado, uma questão epistemológica,
de saber se é possível defender uma concepção universalista, de princípios
deontológicos de justiça, sem pressupor um conceito substantivo de bem, situado
histórica e culturalmente, e, por outro, uma questão política, que é a de saber se o ponto
de partida para a liberdade devem ser os direitos individuais ou as normas partilhadas
da comunidade.
Em última análise, o comunitarismo eleva a solidariedade como centro e
considera como valor central os múltiplos vínculos comunitários. Para os comunitários,
as soluções devem ser encontradas nos recursos dados, nas práticas e tradições,
fundamentais para as associações, assim, descreve um eu integrado, e fruto de uma
construção social, em que todo o indivíduo possui uma pertença ético-política que o liga
a outros e o constitui individualmente. Os indivíduos estão situados num contexto social
8
A situar o contexto e a implicação e abrangência da teoria comunitarista, é de bom alvitre afirmar que a
definição do comunitarismo parece servir mais para reunir uma diversidade de estudos que se vinculam por
uma linha comum de críticas ao liberalismo. No entanto, podemos considerar que Michael Sandel congregou
os chamados ‘comunitários’, que além do próprio Sandel, podemos citar Michael Walzer, Charles Taylor, e
Alasdair MacIntyre. Conforme Avineri e De-Shalit (1992, p. 2-3) “Normativamente, os comunitários afirmam
que as premissas individualistas do liberalismo têm consequências morais pouco satisfatórias, redundando, por
exemplo, na impossibilidade de uma verdadeira comunidade, ou no abandono de algumas ideias da vida boa
defendidas pela comunidade.”
8
e histórico, responsáveis para com as comunidades que se mantêm juntas pelos valores
comuns e pelos ideais de uma vida humana boa.
Com isso, recuperando a tradição aristotélica que põe em xeque a pressuposição
de um sujeito universal e não situado historicamente, enfatiza a multiplicidade de
identidades sociais e culturais étnicas presentes na sociedade contemporânea e concebe
a virtude na aplicação de regras conforme as especificidades de cada meio ou ambiente
social.9 Apesar do panorama demonstrado, não se trata de transferir a um terceiro ente,
a comunidade, as tarefas políticas do Estado. O indivíduo e a conquista dos direitos
individuais mantêm-se como a base dos direitos humanos, para a qual é indispensável a
ação do Estado.
Mas, por outro lado, como Frazer e Lacey (1993, p. 137) acusam, os comunitários
não deram uma explicação adequada do poder de institucionalizar as compreensões da
comunidade, sendo que o problema está no entendimento do que é, como se verifica esta
comunidade, e quais os modelos em que se baseia, o que não restou bem definido e
consagrado para sua apresentação como teoria.
3 A critica do pluralismo agônico a teoria da justiça de Rawls
Inovadora e instigante, a teoria da justiça como equidade representa um marco
para filosofia política contemporânea. E, como toda publicação seminal, foi alvo de
censuras públicas. A crítica de Mouffe à obra de Rawls oferece uma censura aos meios
adotados para defender tal concepção, e para isso verifica a existência de “vícios
individualistas” a macular referida teoria da justiça.10
Macintyre (2001) contribui com a ideia de que não é a esperança da eliminação das diferenças que
sustenta a base da teoria social, que deve reconhecer que não precisamos ser todos iguais entre si (para
todos os fins morais e políticos importantes) quando ninguém possui nem controla os meios de
dominação. Mas esses meios têm constituições diferentes em cada sociedade. Linhagem e sangue,
latifúndio, capital, cultura, graça divina e poder do Estado, sendo que tudo isso serviu, numa outra época,
para que algumas pessoas dominassem outras. O domínio é sempre mediado por algum tipo de bem
social. Embora a experiência seja pessoal, nada nas próprias pessoas determina seu caráter. Donde,
novamente, a igualdade, conforme sonhamos, não exige a repressão de ninguém. Precisamos entender e
controlar os bens sociais; não temos de esticar nem encolher seres humanos.
10 Chantal Mouffe ([email protected]) é Professora de Teoria Política na Universidade de Westminster
(Inglaterra) e cientista política formada pelas universidades de Louvain, Paris e Essex. Lecionou em
diversas universidades da Europa, América do Norte e América Latina; organizou os livros Gramsci and
Marxist Theory, Dimensions of Radical Democracy, Deconstruction and Pragmatism e The Challenge of
Carl Schmitt; é co-autora (com Ernesto Laclau) de Hegemony and Socialist Strategy: Towards a Radical
9
9
A posição Mouffiana está voltada principalmente para os procedimentos
argumentativos adotados por Rawls na defesa da sua compreensão de justiça baseada
em direitos, uma concepção que, acredita, deveria ser defendida por outros meios. A
análise do pensamento político de Rawls o situa como um representante do novo
paradigma liberal.11
A mais contundente objeção do comunitarismo ao liberalismo consiste na crítica,
segundo Mouffe (1996, p. 44), da “concepção anti-histórica, associal e desintegrada de
sujeito implícita na ideia de um indivíduo dotado de direitos naturais prévios a
sociedade e na rejeição da prioridade do bem sobre o direito”. O pensamento de Rawls,
segundo Mouffe, conduz a uma concepção de justiça “empobrecida”, transformada em
mero acordo de interesses, e que não dá conta da experiência vivida no seio de uma
comunidade. É dessa experiência, afirmariam os comunitaristas, que se constituiria a
própria identidade moral, que brotariam noções como bem e mal, justiça e injustiça, não
havendo portanto nenhuma prioridade do direito sobre o bem.
A concepção de individualidade imanente a tal construtivismo moral sugere,
conforme afirmação de Mouffe (1996. P. 86), que:
nossa identidade moral é determinada pelo grupo ou grupos com os qual nos
identificamos – o tipo de grupo como qual não podemos ser desleais e ainda
assim ser nós mesmos. (...) A teoria de Rawls toma como certa a existência de
um interesse próprio racional comum sobre o qual os cidadãos, agindo como
pessoas morais livres e iguais podem concordar (...). 12
Democratic Politics (1985) e autora de The Return of the Political (1993), The Democratic Paradox (2000)
e On the Political (2005). Nos anos 60, participou das lutas anticapitalistas e libertárias de sua geração.
Teve destaque também como feminista. Passou pelo marxismo, sempre na vertente contrária ao
stalinismo, mas abandonou alguns dos pressupostos metafísicos do marxismo. Foi influenciada pela
psicanálise e por Nietzsche. É identificada como pós-marxistas.
11 A concepção política adotada pelo liberalismo Rawlsiano, enquanto base para o consenso é criticada por
Mouffe (1996, p. 184), ao referir que “Na realidade, a ambição do «liberalismo político» é formular uma
lista definitiva de direitos, princípios e acordos institucionais inatacáveis e que constituam a base de um
consenso simultaneamente moral e neutro. Para esse efeito, estes pensadores liberais propõem- se deixar
de lado as questões religiosas, filosóficas e metafísicas «controversas», limitando-se a uma compreensão
estritamente «política » do liberalismo. Segundo acreditam, isto poderia constituir o fundamento comum
que ainda pode ser obtido, quando já não existe a possibilidade de um bem comum.”
12 Nesse mesmo sentido, segue afirmando Mouffe (1996, p. 193-194) que: “Não é minha intenção defender
um pluralismo total e não acredito que seja possível evitar a exclusão de alguns pontos de vista. Nenhum
Estado ou ordem política, mesmo liberal, podem existir sem algumas formas de exclusão. O meu
argumento é diferente. Pretendo defender que é muito importante reconhecer essas formas de exclusão
pelo que são e pela violência que significam, em vez de as ocultar sob um véu de racionalidade. Mascarar a
verdadeira natureza das necessárias «fronteiras» e modos de exclusão exigidos por uma ordem
democrático-liberal, fundamentando-os no carácter supostamente neutro da «racionalidade», cria efeitos
de ocultação que põem em causa o correcto funcionamento da política democrática.”
10
Temos que uma democracia pluralista exige um certo volume de consenso e que
ela requer a lealdade aos valores que constituem seus princípios ético-políticos.
Entretanto, dado que tais princípios só podem existir por meio de muitas interpretações
diferentes e conflitantes, esse consenso está fadado a ser um “consenso conflituoso”.
Esse é, com efeito, o terreno privilegiado de confrontação agonística entre adversários. E
para alimentar a lealdade a suas instituições, o sistema democrático requer a
disponibilidade daquelas formas de identificação com a cidadania em disputa, e assim
elas proveem o terreno em que as paixões podem ser mobilizadas em torno de objetivos
democráticos e o antagonismo transformado em agonismo.
Muita ênfase no consenso e a recusa de confrontação levam à apatia e ao
desapreço pela participação política. Ainda pior, o resultado pode ser a cristalização de
paixões coletivas em torno de questões que não podem ser manejadas pelo processo
democrático e uma explosão de antagonismos que pode desfiar os próprios
fundamentos da civilidade. É por essa razão que o ideal de uma democracia pluralista
não se pode alcançar por meio de um consenso racional na esfera pública.13
Assim, segundo Mouffe, o que é central para a política democrática, tendo em
vista essa percepção ontológica do político, é a busca da construção de um modelo que
faça com que os inimigos deixem de ser percebidos como tais e, portanto, como aqueles
que devem ser suprimidos, eliminados. Um inimigo é alguém com quem se estabelece
uma relação antagônica no sentido mais estrito do termo. Um adversário, por outro lado,
é alguém com quem não concordamos em relação a ideias. Acerca dessa assertiva,
Mouffe (1996, p. 116) postula que:
Introduzir a categoria do adversário requer fazer mais completa a noção de
antagonismo e distinguir duas formas diferentes nas quais pode surgir esse
antagonismo, o antagonismo propriamente dito, e o agonismo. O antagonismo é
uma luta entre inimigos, já o agonismo é uma luta entre adversários. Por
conseguinte, podemos voltar a formular nosso problema dizendo que, visto da
perspectiva do ‘pluralismo agonistico’ o objetivo da política democrática é
transformar o antagonismo em agonismo.
Para Mouffe, esse consenso não pode existir, e devemos aceitar que cada consenso exista como
resultado temporário de uma hegemonia provisória, como estabilização do poder e que ele sempre
acarreta alguma forma de exclusão. Ideias de que o poder poderia ser dissolvido por meio de um debate
racional e de que a legitimidade poderia ser baseada na racionalidade pura são ilusões que podem colocar
em risco as instituições democráticas.
13
11
Uma diferença essencial apontada entre essa proposta e o modelo deliberativo de
Rawls é a de que, para o pluralismo agonístico, o objetivo da política democrática não é a
eliminação das paixões, dos próprios interesses da esfera pública, para aí se buscar um
consenso racional, mas justamente o contrário, é tarefa da democracia construir
mecanismos que sejam capazes de mobilizar, dar existência a tais paixões e interesses
dentro dos princípios e regras democráticos, ou seja, que se assegure a existência
conflitiva da dimensão humana, mas que transforme os inimigos em adversários dentro
das regras estabelecidas pelo jogo democrático.
Parece que a tarefa central do pluralismo agonístico de Mouffe é a de construir-se
de fato como um modelo teórico passível de ser testado. No entanto, restringe-se à
desconstrução do modelo deliberativo baseado no consenso. Não desenvolve
normativamente o pluralismo agonístico no sentido da proposição de instituições que
regulem e estabeleçam as diretrizes de convivência e de implementação do princípio
agônico.
Apesar de tendermos a concordar com alguns aspectos concernentes a posição
teórica de Mouffe, entende-se que é um tanto improvável considerar seu autodenominado “modelo” pluralista agonístico como tal, ainda mais se comparado com o
modelo deliberativo de Rawls, que apresenta o seu modelo de justiça como equidade
(justice as fairnes), em um nível altamente abstrato e de difícil possibilidade fática, mas
desenvolve-se a partir de uma série de condições e formas de execução. É realmente um
modelo político normativo, o que não se desvela no modelo apresentado por Mouffe.
Sendo uma alternativa a teoria da justiça de Rawls, uma abordagem “agonística”
reconhece os limites reais de tais fronteiras e as formas de exclusão que delas decorrem
em vez de tentar disfarçá-los sob o véu da racionalidade e da moralidade.
Compreendendo a natureza hegemônica das relações sociais e suas identidades,
percebe-se que, por essa razão, é mais receptivo do que o modelo deliberativo à
multiplicidade de vozes que as sociedades pluralistas contemporâneas abarcam e à
complexidade de sua estrutura de poder. Assim, conforme sustenta Mouffe, o objetivo da
democracia não deveria ser a busca de um consenso racional no âmbito de uma esfera
pública.
Como as relações antagônicas perpassam todas as relações humanas, a tarefa da
democracia contemporânea estaria em transformar as relações antagônicas, entre os
12
inimigos que querem se destruir, em relações agônicas, entre adversários que lutam
aceitando alguns parâmetros comuns na disputa. Essas ideias são realmente
interessantes para a ordem de uma sociedade que possui tanta diferença e que precisa
buscar o “grau zero do consenso” entre uma sociedade e entre os povos de forma geral
para, a partir daí, conviverem com mais harmonia e respeito.
Mas, como visto, Mouffe não apresenta um modelo teórico apto a superar o da
deliberação racional, se resumindo à desconstrução do modelo deliberativo baseado no
consenso. Não desenvolve normativamente o pluralismo agonístico, de forma a
promover sua aplicação em instituições que regulem e estabeleçam as disposições de
convivência e de implementação do principio agônico no contexto democrático.
O pluralismo agonístico se mostra na forma de transformar as relações
antagônicas em relações agônicas num contexto político democrático sempre dominado
pelas questões de poder e de antagonismo. Seu argumento desconstrutivista ao modelo
deliberativo é potente. Contudo, quando chega ao momento de exercer seu papel
normativo, não se sustenta. Assim, Mouffe não apresenta propriamente um modelo
teórico visando a superar o deliberacionismo, o qual considera como hegemônico no
atual contexto da teoria política, se resumindo a atacar a pontos específicos da teoria
Rawlssiana, e a repetir seu princípio agônico no contexto democrático. Trata-se portanto
de um modelo incompleto.
3 A teoria da justiça como equidade
Em sociedade, muitas coisas podem ser caracterizadas como justas e injustas.
Para a formulação de sua teoria, Rawls atem-se à justiça distributiva de direitos e
deveres das instituições sociais básicas, operando através de constituições políticas,
acordos econômicos e sociais.14 Sendo que a atuação dessas instituições influenciam e
John Rawls nasceu na cidade de Baltimore, Maryland, nos Estados Unidos da América (1921). Doutorouse em Filosofia e Letras na Universidade de Princeton (1950), na qual iniciou sua carreira acadêmica. Foi
professor da Universidade de CorneiI e da Universidade de Harvard (1962), pela qual foi nomeado
University Professor; título das mais altas congratulações acadêmicas, alcançadas por muito poucos
professores. Em Harvard, ocupou a cadeira de Filosofia Moral, disciplina que compreende as temáticas de
Ética, Política e Direito nos países de língua inglesa. Conferencista dos mais distintos em Universidades
dos Estados Unidos e outros países, especialmente Europa, elaborou suas obras a partir de suas
conferências e de seus artigos publicados em revistas de Filosofia, Política e Direito. Exímio conhecedor do
pensamento clássico, principalmente Platão e Aristóteles, e de Thomas Hobbes, John Locke e David Hume,
14
13
moldam todos os indivíduos desde o início de suas vidas, fato que, diante das
desigualdades de ingerência política, social e econômica, algumas pessoas têm melhores
oportunidades que outras, o que se traduz na questão da justiça social, que teria
justamente nessas desigualdades o lugar primário de atuação.15
Nesse contexto, a razão pública se posta como elemento essencial da equidade,
pois é característica de um povo democrático, é a razão de seus cidadãos, e daqueles que
compartilham o status de cidadania igual, em uma sociedade democrática liberal.
Oliveira (2003, p. 33) refere que a ”igual liberdade por todos reconhecida e almejada,
através de argumentos e critérios que possam ser pública e consensualmente
estabelecidos na elaboração de uma sociedade mais justa”. O objeto dessa razão é o bem
público: aquilo que a concepção política de justiça requer da estrutura básica das
instituições da sociedade e dos objetivos e fins a que devem servir.16
Expressada na universalização e no ordenamento por princípios que regulam o
agir humano e social, a teoria proposta por Rawls (2000, p. 56) traz a concepção em que
“os princípios da justiça identificam certas considerações como sendo moralmente
pertinentes e as regras de prioridade indicam a precedência apropriada quando elas
conflitam entre si, enquanto a concepção da posição original define a ideia subjacente
que devem informar as nossas ponderações.”
dedicou-se com maior atenção a Jeremias Bentham e John Stuart Mill, mas o pensador do liberalismo
clássico que maior influência exerceu sobre Rawls foi Imanuel Kant (1724-1804). Iniciou seus escritos em
1951, com a publicação de um artigo com o título Outline of a Decision Procedure for Ethics. Em 1955 e
1958 levou à publicação outros dois textos intitulados, respectivamente, Two Concepts of Rules e Justice
as Fairness. Com a publicação, em 1971, de Uma Teoria da Justiça, o então desconhecido John Rawls
ganhou notoriedade. Este livro, tido como a sua obra-prima, começou a ser escrito em 1966 no
Philosophical Institute de Boulder, Colorado, nos EUA. Em seguida, ganhou uma segunda versão, em 19671968, em Harvard, vindo a ser concluído em 1969-1970, no Center for Advanced Study da Universidade de
Stanford, Califórnia, nos EUA. Ele desenvolveu intensa atividade acadêmica e intelectual, especialmente na
década de 80 do século XX e primeira metade da década de 90 do mesmo século. Em 1993, ele reuniu no
livro O Liberalismo Político os seus principais escritos que se seguiram à publicação de Uma Teoria da
Justiça, por meio dos quais procurou esclarecer pontos da sua obra-prima, os quais foram objeto de
críticas ao longo de duas décadas, em alguns momentos chegando a ceder aos argumentos dos seus
interlocutores e revisar parte da sua teoria. Em 1999, Rawls publicou outro livro intitulado O Direito dos
Povos. Com um estilo de vida recluso, Rawls teve sua saúde debilitada a partir de 1995, quando sofreu o
primeiro de uma série de derrames que o atingiram. Ele morreu em 24 de novembro de 2002, aos 81 anos
de idade, em sua casa, em Lexington, Massachusetts, nos EUA.
15 Para Rawls (2002, p. 11), a Justiça se traduz na “atuação de seus princípios na atribuição de direitos e
deveres e na definição da divisão apropriada de vantagens sociais”. A teoria da justiça como equidade
estabelece que as instituições sociais básicas seriam responsáveis pela efetivação de direitos das pessoas
outorgantes ao pacto social concernente a escolher a aplicação dos princípios da justiça.
16 É uma maneira de raciocinar em que os cidadãos na democracia justifiquem suas decisões. A razão
pública é uma ideia política dirigida aos cidadãos, que devem conduzir as discussões dentro do que cada
um considera uma concepção de justiça, baseada em valores que se pode esperar que razoavelmente os
outros subscrevam.16
14
O acordo entre as partes produzido por meio do acolhimento e escolha dos
princípios da justiça deve ser vinculado às instituições sociais, que representam um
sistema público de regras de conduta. Refere Rawls que (2000, p. 58) “por instituição
entendo um sistema público de regras que define cargos e posições com seus direitos e
deveres, poderes e imunidades. Estas regras especificam certas formas de ação como
permissíveis, outras como proibidas, criam também certas penalidades e defesas (...)
quando ocorrem violações.” 17
A Posição original, elemento central da teoria, pode ser considerada uma escolha
racional, por onde em seu status quo inicial haveria uma deliberação racional na qual
necessariamente escolher-se-iam uns princípios antes de outros, ou seja, uma concepção
de justiça em vez de outra. São as realidades contextuais que determinarão as escolhas
nessa posição, através da incorporação de pressupostos aceitos. Todos poderiam
participar do processo da escolha dos princípios (propostas, razões), acreditando-se que
essa participação seria justamente a primazia da igualdade entre pessoas possuidoras
de senso comum. A solução adotada, e denominada de equilíbrio ponderado, como o
local hipotético, e ao mesmo tempo inalcançável, serve justamente para conduzir os
sujeitos ao consenso, ou ao menos para proporcionar o consenso pelo raciocínio
filosófico.
Rawls acrescenta o termo “artifício da representação” para esclarecer o
significado da posição original. Esta descreve as partes como representantes de pessoas
Para a realização de um acordo que seja considerado benéfico para todos, a concepção de equidade é
fundamental para o avanço da teoria da justiça de Rawls. Zambam (200, p. 63) esclarece que o “conceito
de equidade é fundamental, uma condição indispensável para se construir um acordo, pois situa as
pessoas em condições de igualdade, não permite privilégios oriundos de qualquer tipo de barganha. Entre
as conseqüências disso está a exclusão do uso de quaisquer formas arbitrárias que possam ameaçar as
partes ou o funcionamento das instituições.” Compreende-se como principal objetivo na teoria da justiça
como equidade (justice as fairness) ser base de sustentação para a sociedade, ordenando as instituições de
forma a cooperarem com as escolhas dos sujeitos pelos princípios da justiça. Nesse sentido, necessário
que as instituições públicas e privadas atuem na consecução das escolhas racionais operacionalizadas
pelas pessoas pelos princípios da justiça. Como infere Zambam (200, p. 68) “Viabilizar a teoria da justiça é
responsabilidade das instituições maiores da sociedade democrática, cujos princípios da igualdade e da
liberdade devem ter consideração prioritária.” Sonia Felipe (200, p. 149) define essas instituições básicas
da sociedade como “propriedade privada, constituição, mercado competitivo, família monogâmica,
organização e representação politico-partidária, liberdades civis, e outras, mais ou menos relevantes para
a justiça distributiva, dependendo do grau de desenvolvimento do sistema de cooperação social em
questão”.
17
15
livres e iguais e como estando situadas numa situação equitativa que permite que o
acordo se dê sob determinadas condições.18
As estipulações da posição original para Rawls (2002, p. 14) se baseiam em
“restrições amplamente aceitas e razoáveis.” E é a partir dessa ideia de razoável ou
razoabilidade que procurará justificar as estipulações da posição original. Na medida em
que são aceitas aquelas convicções morais básicas, que são sintetizadas nas concepçõesmodelo de pessoa e sociedade somos levados, a aceitar que a configuração da posição
original expressa adequadamente um ponto de vista moral que compartilhamos, e na
medida em que aceitamos isso e a posição original coloca um problema suficientemente
preciso de escolha racional, temos então uma base pública para a discussão e
argumentação no que se refere a questões de justiça básica.19
Como forma de garantir a equidade no momento da escolha racional pelos
princípios da justiça, as pessoas são sufragadas para estarem sob o véu de ignorância e,
nesse estado, de algum modo, anulam-se os efeitos das contingências específicas que
colocam os homens em posição de disputa, tentando-os a explorar as circunstâncias
naturais e sociais em seu próprio benefício. Em apertada síntese, o véu da ignorância
pode ser traduzido do seguinte modo: uma pessoa deve escolher os princípios que irão
governar uma nação, mas ela não sabe a respeito de si mesma, não podendo, portanto,
constatar quais dos princípios constitucionais à escolha que poderiam ser vantajosos
para ela, e portanto estará obrigada necessariamente a fazer sua escolha conforme
pontos de vista gerais. Nesse estado silencia-se a especial individualidade da pessoa, e
considerando-se que a textura do véu é tão compacta que se ouve somente ainda a voz
do geral.
Sobre a caracterização da posição original como um artifício da representação em Rawls, esclarece
Zambam (2012, p. 50) que “A posição original permite que a hipótese de igualdade seja construída. Por
isso é uma situação que deve ser considerada hipotética, não histórica, apenas como um artifício da
representação no qual as diversas partes são responsáveis pelos interesses essenciais dos cidadãos em
sua condição de livres e iguais” [...] “Sendo um artifício da representação a posição original representa as
condições equitativas essenciais com base nas quais os representantes dos cidadãos devem determinar os
termos para a cooperação social no interior da estrutura básica da sociedade.”
19 Sobre a consecução do acordo público estabelecido na posição original, Rawls, enaltece que (2002, p.19)
“Afirmei que a Posição Original é o status quo inicial apropriado para assegurar que os conceitos básicos
nele estipulados sejam equitativos.” Acerca disso, e na medida em que a posição original pode servir como
essa base pública, pode-se obter um acordo entre os cidadãos concretos, a partir do acordo hipotético das
partes contratantes. E Segue Rawls (2000, p. 66) referindo que “um ponto de vista apartado dessa
estrutura básica abrangente, não distorcido por suas características e circunstâncias particulares, um
ponto de vista a partir do qual um acordo equitativo entre pessoas consideradas livres e iguais possa ser
estabelecido”.
18
16
Assim, cada pessoa que vai fazer parte do acordo hipotético estabelecido deve se
situar somente na perspectiva geral do conhecimento, ou seja, deve estrategicamente
olvidar das contingências particulares que permitem a exploração de circunstâncias
naturais e sociais em benefício próprio.20 Estando em igualdade de posição, a escolha
racional pelos princípios de justiça vai ser isenta de arbitrariedades. Essa perspectiva
geral das pessoas é esclarecida por Rawls (2000, p. 147):
Supõe-se, então que as partes não conhecem certos tipos de fatos particulares.
Em primeiro lugar, ninguém sabe qual é o seu lugar na sociedade, a sua posição
de classe ou seu status social; além disso, ninguém conhece a sua sorte na
distribuição de dotes naturais e habilidades, sua inteligência e força, e assim
por diante. Também ninguém conhece a sua concepção de bem, as
particularidades de seu plano de vida racional, e nem mesmo os traços
característicos de sua psicologia [...] Mais ainda, admito que as partes não
conhecem as circunstancias particulares de sua sociedade. Ou seja, elas não
conhecem a posição econômica e política dessa sociedade, ou o nível de
civilização e cultura que ela foi capaz de atingir. As pessoas na posição original
não sabem a qual geração pertencem [...] a fim de levarem adiante a ideia da
posição original, as partes não devem conhecer as circunstancias que as
colocam em oposição.
Rawls considera dois princípios básicos de justiça para a efetivação da
distribuição equitativa dos bens primários (liberdades básicas, rendas e direitos aos
recursos sociais) para todas as pessoas independentemente das particularidades de vida
de cada uma. O papel dos princípios da justiça na sociedade seria um empreendimento
cooperativo que visa ao atendimento de necessidades mútuas como forma de combater
as desigualdades sociais. Caracteriza-se, quanto aos interesses, pela sua identidade
(seria melhor viver em conjunto que solitariamente) e pelo seu conflito (os interesses
gerais contrapõem-se na busca de vantagens pessoais). Da forma como são analisados,
Para suprir as contingencias especificas do ser humano, Rawls, estabelece que racionalmente cada parte
do acordo social, renunciaria essas mesmas condições particulares em beneficio do coletivo. Essa renuncia
se daria quando as partes recebessem e reconhecessem o véu da ignorância como recurso para a
igualdade social. Quando as pessoas estão sob o manto desse véu elas possuem o conhecimento das coisas
e da justiça, mas o deixam de lado para o fim de promover a escolha dos princípios da justiça de forma
isenta e equânime. Acerca disso, Zambam (2004, p. 56) refere que “as partes mantêm suas características
específicas, tais como convicções partidárias, religiosas, morais, éticas, enquanto procuram realizar seu
projeto de vida seguindo suas concepções de bem”. Nesta mesma linha Segue afirmando Zambam (2004,
p. 56) “Rawls introduziu o conceito de véu da ignorância, como um artifício capaz de proteger as
circunstancias particulares de cada um dos participantes do acordo e de alcançar a igualdade pretendida.”
Acerca desse ponto de vista, José Nedel esclarece (2000, p. 58) que “O véu de ignorância – veil of ignorance
- põe entre parênteses o conhecimento das circunstancias particulares dos participantes do acordo, das
‘desigualdades de nascimento e dons naturais [...] imerecidos’, das contingências arbitrárias que
estabelecem desigualdade entre os homens, razão por que seus efeitos devem ser anulados. De fato deve
ser excluído qualquer conhecimento que tenda a dar origem ao preconceito, à distorção e à confrontação
dos homens entre si.”
20
17
os princípios da justiça possuem quatro características principais básicas: são
universais, gerais, irrecorríveis e públicos.21
A solução para equalizar as desigualdades partiria dos princípios da justiça social,
que, segundo Rawls (2000, p. 345) são:
(a) Toda pessoa tem um direito igual a um sistema plenamente adequado de
liberdades fundamentais iguais que seja compatível com um sistema similar de
liberdades para todos; (b)As desigualdades sociais e econômicas devem
satisfazer duas condições. A primeira é que devem estar vinculadas a cargos e a
posições abertos a todos em condições de igualdade equitativa de
oportunidades; e a segunda é que devem redundar no maior benefício possível
para os membros menos privilegiados da sociedade.
O princípio da igual liberdade para todos tem como característica marcante a
configuração de um sistema de liberdade para todos, dada a posição de cidadania igual,
os direitos e as liberdades básicas, por ele expressos, devem ser iguais para todos.22
Acerca do primeiro princípio, afirma Rawls (2002, p.68) que ele “simplesmente
exige que certos tipos de regras, aquelas que definem as liberdades básicas, se apliquem
igualmente a todos e permitam a mais abrangente liberdade, compatível com uma
liberdade igual para todos.” Podemos inferir que isso significa que não se deve fazer
distinções arbitrárias entre os cidadãos, posições de classe, cor, raça, credo ou riqueza,
sendo que essas particularidades não servem de critério para a atribuição ou para a
supressão de direitos e de liberdades básicas, assim como de vantagens econômicas e de
postos políticos.
Acerca dessas características, Zambam as esclarece (2004, p. 73), “são gerais porque expressam
características e relações que são de todos, universais porque devem ser aplicados de forma igualitária a
todos os participantes da sociedade, não podem ser objeto de recurso por ser esta a instancia ultima de
decisão publica de justiça, e são públicos porque devem ser conhecidos e acessíveis as pessoas de todas as
gerações”.
22Mesmo que um ideário social, a consagração de liberdades iguais a todas as pessoas, e sua inoperância e
inaplicabilidade possível, é verificada quando Zambam (2004, p. 69) afirma que “Embora Rawls reconheça
ser impossível relacionar a totalidade das liberdades.” as elenca, ao menos aquelas que são fundamentais
ao sistema político e social e indispensáveis para a teoria da justiça, Rawls (2000, p. 52) expressa que “A
liberdade política (o direito de votar e ocupar cargo público) e a liberdade de expressão e reunião, a
liberdade de consciência e de pensamento, as liberdades da pessoa, que incluem a proteção contra a
prisão e detenção arbitrárias, de acordo com o conceito de estado de direito.” Nesse mesmo sentido, mais
amplificado por José Nedel, as liberdades abrangem ainda (2000, p. 199) as "De palavra, de consciência, de
religião, de possuir (direito de propriedade), de habeas corpus, de reunião, de participação política,
mesmo que na forma de desobediência civil e de recusa por motivo de consciência.” E, arremata Rawls
(2000, p. 345) “assim como as liberdades especificadas pela liberdade e integridade da pessoa, e
finalmente, os direitos e liberdades abarcados pelo império da lei.”
21
18
A ideia fundamental do segundo princípio é a de que, em todos os setores da
sociedade, deveria haver, de forma geral, iguais oportunidades de cultura e de realização
para todos os que são dotados e motivados de forma semelhante, e justamente acerca da
extensão da compreensão do que seja igualdade equitativa de oportunidades, esclarece
Rawls (1998, p. 61):
Trata-se de uma noção difícil e não totalmente clara (...) ela é introduzida para
corrigir os defeitos de igualdade formal de oportunidades (...) Para tanto, diz-se
que a igualdade equitativa de oportunidades exige não só que cargos públicos e
posições sociais estejam abertos no sentido formal, mas que todos tenham uma
chance equitativa de ter acesso a eles. Para especificar a ideia de chance
equitativa dizemos que supondo que haja uma distribuição de dons naturais,
aqueles que tem o mesmo nível de talento e habilidade e a mesma disposição
para usar esses dons deveriam ter as mesmas perspectivas de sucesso,
independentemente de sua classe social de origem, (...)
Por oportuno, que a fim de reparar essas desigualdades (merecidas ou
imerecidas), maiores recursos são destinados aos menos favorecidos, pois a sociedade
ordena o funcionamento que os diversos setores, e, assim, dadas as contingências,
trabalha em benefício dos menos favorecidos. Nesse sentido expressa Zambam (2004, p.
81) que “o princípio da diferença supera a concepção igualitária ao propor uma
distribuição que melhore a situação de todos segundo esse princípio, não há
possibilidade de ganho sem a condicionante de que outro também seja beneficiado.”23
O princípio da diferença garante os meios polivalentes gerais de que
necessitamos para desenvolver nossas potencialidades e para tirar vantagem de nossas
liberdades. Assevera Rawls (2002, p. 80) que “a ideia intuitiva é que a ordem social não
deve estabelecer e assegurar as perspectivas mais atraentes dos que estão em melhores
condições a não ser que, fazendo isso, também traga vantagens para os menos
afortunados”.
O respeito pelo princípio da diferença compreende a preocupação com o agir social, derivando
consequências, conforme Zambam (200, p. 81) “sobre a responsabilidade no processo produtivo e a
consequente contribuição para a viabilidade da justiça como equidade, todos tem responsabilidade
social.” E segue analisando, com exemplos de nossa atualidade “Um exemplo no qual se pode verificar esta
co-responsabilidade é o pagamento de impostos, visto que a riqueza de que cada um é portador tem uma
função social. Concluindo, os impostos arrecadados dos mais privilegiados são utilizados para a promoção
das necessidades básicas dos menos favorecidos, que não possuem bens primários e possibilidades de
atender as suas próprias carências. Podemos, igualmente citar impostos diretos, tais como o IPVA
(Imposto sobre Veículos Automotores), que são cobrados das pessoas que possuem veículos próprios e
utilizados para a manutenção das estradas e rodovias, onde transitam também os menos favorecidos.
23
19
Com o objetivo de garantir a justiça e a estabilidade numa sociedade pluralista,
Rawls propõe a ideia de um consenso sobreposto, o que certifica a unidade numa
sociedade democrática bem ordenada, constituída por doutrinas filosóficas, religiosas e
morais abrangentes e, por isso, divergentes e contraditórias. Para isso, é necessário que
as instituições sejam reconhecidamente justas e que os cidadãos estabelçam com elas
uma relação de fidelidade, de tal forma que ajam de acordo com a justiça, com a certeza
de que os demais agirão da mesma forma.
O consenso sobreposto procura garantir e dar sustentação a sociedade
democrática almejada pela teoria da justiça como equidade. A construção de um
consenso sobreposto é fruto da razão exercida em condições de liberdade, pois é a
obtenção do ajuste entre as pessoas que justifica uma concepção de justiça. Desse modo,
não é a posição original que justifica os princípios de justiça, mas sim o consenso
sobreposto que se pode obter a partir dela. Seu papel fundamental é o de alcançar o
equilíbrio reflexivo geral e amplo na afirmação da concepção política sobre a base de
suas diversas doutrinas abrangentes razoáveis, estabelecendo a justificação a partir de
um consenso razoável.
A teoria da justiça de Rawls, através de seus meios e imposições, propõe um novo
modelo de contrato social objetando viabilizar a justiça de forma cooperativa entre os
membros da sociedade e também desses com as futuras gerações. Já o liberalismo
político é o modelo em torno do qual se organizam as diversas instituições que
sustentam a sociedade democrática, sendo esse modelo uma referência básica para
serem discutidas as questões que envolvem a justiça social, a estabilidade, as
deficiências enfrentadas pelas sociedades democrática, as reações entre os povos e o
aprimoramento do exercício democrático.
Rawls parte do fato concreto e põe a mão na ferida aberta da realidade com
coragem de assumir uma posição arriscada (teoria dos dois princípios). Consciente em
aceitar certas críticas e melhorar sua teoria, procurou sempre, sem abandonar sua
originalidade, buscar o melhor modo para trazer soluções a uma cultura necessitada de
justiça. A justiça como equidade não tem a pretensão de conduzir a estrutura social de
forma igualitária, pois a assunção de um critério de equidade não abandona o
reconhecimento das desigualdades, mas intenta um direcionamento sinérgico que deve
beneficiar a todos.
20
5 A refutação de Rawls ao utilitarismo
A teoria de Rawls constitui, em grande parte, uma reação ao utilitarismo clássico.
De acordo com esta teoria, se uma acção maximiza a felicidade, não importa se a
felicidade é distribuída de maneira igual ou desigual, assim, grandes desníveis entre
ricos e pobres parecem em princípio justificados. Deste modo, uma determinada
quantidade de riqueza produzirá mais felicidade do que infelicidade se for retirada dos
ricos para dar aos pobres.
Tudo isto parece muito sensato, mas deixa Rawls insatisfeito. Ainda que o
utilitarismo conduza a juízos correctos acerca da igualdade, comete o erro de não
atribuir valor intrínseco à igualdade, mas apenas valor instrumental. Isto quer dizer que
a igualdade não é boa em si, é boa apenas porque produz a maior felicidade total.
Por consequência, o ponto de partida de Rawls, a superar a teoria utilitária terá
de ser bastante diferente. Então parte de uma concepção geral de justiça que se baseia
na seguinte ideia, de que todos os bens sociais primários (liberdades, oportunidades,
riqueza, rendimento e as bases sociais da auto-estima), devem ser distribuídos de
maneira igual a menos que uma distribuição desigual de alguns ou de todos estes bens
beneficie aos menos favorecidos. Se dar mais dinheiro a uma pessoa do que a outra
promove mais os interesses de ambas do que simplesmente dar-lhes a mesma
quantidade de dinheiro, então uma consideração igualitária dos interesses não proíbe
essa desigualdade.
Em primeiro lugar e de acordo com a sua avaliação da teoria utilitarista, esta
falha por não concordar com os nossos juízos ponderados sobre o fato de os direitos
individuais não deverem estar sujeitos ao cálculo dos interesses sociais. A proposição
central do utilitarismo, pelo menos na sua forma clássica, é o princípio da maior
felicidade. De acordo com este princípio, o melhor resultado é aquele que maximiza a
felicidade agregada dos membros de uma sociedade tomada como um todo.
Todavia, em algumas circunstâncias plausíveis pode acontecer que a maneira de
maximizar a felicidade agregada signifique impor um sofrimento considerável a um ou a
alguns membros de uma sociedade. Suponhamos que duas pessoas pertencem a uma
sociedade de cem pessoas, e dentre elas, noventa e cinco de nós podem ficar mais felizes
21
escravizando os restantes cinco, forçando-os a realizar tarefas que a nossa sociedade
considera desagradáveis e aviltantes, mas que nos libertam para realizar tarefas mais
agradáveis e recompensadoras. Pode acontecer que este curso de ação venha a produzir
mais felicidade agregada do que a alternativa de não escravizar ninguém, mesmo
considerando a miséria dos infelizes escravizados.
Assim, de acordo com o utilitarismo clássico, o melhor resultado é aquele que
maximiza a felicidade agregada. Se o máximo de felicidade agregada pode ser alcançado
através do curso de ação que implica a escravização de alguns para produzir a maior
felicidade para a maioria, então o utilitarismo clássico defenderá que esse curso de ação
é o melhor.
Rawls defende que resultados deste tipo chocam com os nossos juízos
ponderados sobre os direitos que os indivíduos possuem e que não devem ser
sacrificados no cálculo dos interesses sociais. As pessoas possuem diferentes valores e
formulam diferentes projetos de vida, sendo que alguns destes valores e projetos
estendem-se para além da sua própria vida e experiência individual. Então o ponto de
partida da teoria Rawlssiana da justiça é esta rejeição ao utilitarismo, que remete ao
objetivo da teoria da justiça como equidade que é o de fornecer um conjunto de
princípios, que poderíamos usar para determinar se as instituições e as ações de uma
sociedade são justas.
6 Conclusão
O conceito de justiça se define pela atuação de seus princípios na atribuição de
direitos, deveres e na definição da divisão apropriada de vantagens sociais. Atento aos
conflitos gerados pelas noções tradicionais de justiça Rawls, partindo dos
contratualistas, aprofundou e inovou, através de uma sistematização, desenvolvendo
uma teoria normativa completa, que se consagra como mais vantajosa em relação a uma
postulação menos pretensiosa por conter aspectos normativos e factuais que preservam
a identidade de uma sociedade em sua totalidade, e não em aspectos particulares.
Presentes as ideias de justiça, temo que o comunitarismo se afeiçoa como uma
teoria que implica como nossa a pertença às comunidades como o seu ponto de partida,
no entanto, temos necessariamente de perguntar, sendo certo que os comunitários não o
22
fazem, quem é o ‘nós’ da comunidade. Os comunitários não deram uma explicação
adequada do poder de institucionalizar as compreensões da comunidade. O problema
está no entendimento do que é esta comunidade, quais os modelos em que se baseia e
quem fica dentro ou fora dela, assim, entendemos que não pode o comunitariasmo ser
considerada teoria de justiça.
Só que, antes, e com maior força teórica, parecia que o utilitarismo era a teoria
mais sistemática e abrangente disponível para fornecer uma base de comparação entre
instituições e práticas sociais alternativas. Mas Rawls passou a considerar o utilitarismo
insatisfatório, a começar pelas dificuldades implicadas nessa ideia da maximização da
felicidade. Com efeito, entende não ser possível calcular e comparar a proporção de
felicidade produzida pelos diferentes ordenamentos político-jurídicos.
Além disso, a felicidade foi interpretada por seus defensores geralmente em
termos hedonistas, ou seja, da maximização do prazer, o que gerou a objeção segundo a
qual, se o homem não tivesse objetivo mais nobre na vida do que a busca da
maximização do prazer, em nada diferiria dos animais. Ou seja, o problema com o
utilitarismo é que ele toma a felicidade como bem supremo e incondicionado, em nome
da qual tudo mais poderia ser negociado e sacrificado.
Ao passo que a nossa concepção de justiça parece tomar a liberdade como sendo
o bem maior, incondicional e irrenunciável, pois em uma sociedade justa as liberdades
da cidadania igual são consideradas invioláveis e os direitos assegurados pela justiça
não estão sujeitos à negociação política ou ao cálculo dos interesses sociais. Logo, a
qualificação da ação pelo critério da felicidade não pode ser considerado justo e
autêntico.
Atento a isso, e formado no interior da própria tradição utilitarista de língua
inglesa, Rawls acabou desenvolvendo a mais bem conceituada crítica a essa tradição,
afirma que o utilitarismo fracassa enquanto teoria moral, não somente pelas
dificuldades inerentes à tentativa de quantificação da felicidade e de hierarquização
qualitativa dos prazeres, mas em outros aspectos, em especial que a justificação esteja
centrada na maximização do bem-estar coletivo, às expensas dos direitos de cada
indivíduo, gerando uma situação que teríamos de classificar como profundamente
injusta.
23
Diante disso, Rawls pretendeu oferecer um modelo procedimental capaz de
conciliar igualitarismo e individualismo. A justiça como equidade aproximar-se-ia mais
do ideal filosófico, mesmo sem atingi-lo, pois, na posição original, os juízos ponderados
(juízos em que as qualidades morais sofreriam menor distorção) e o equilíbrio refletido
(senso de justiça que corresponderia aos juízos ponderados na posição original)
prevaleceriam diante de outras concepções tradicionais de justiça. Assim, se uma
concepção de justiça for comumente aceita e essa mesma for satisfeita pelas instituições
sociais básicas, a ideia de justiça seria como que uma carta fundamental para a
sociedade.
Uma sociedade, para ser considerada justa, deveria superar as diferenças a que
são submetidos seus membros. Para tanto, deveria postular princípios válidos para
todos, independentemente da posição em que se encontrem, pois a cooperação social
possibilita melhores condições de vida quando comparadas a possibilidade de cada um
viver e se organizar individualmente, segundo os seus próprios interesses.
Essa concepção de justiça como equidade deve ser adotada como fundamento da
cooperação social, e os princípios escolhidos devem ser incorporados à estrutura básica
da sociedade, onde as pessoas devem instrumentalizar seu senso de justiça ao agir
básico em sociedade, para que se produza igualdade equitativa a todos.
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