A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ
NA
Artigo
TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009)
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO:
O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE
SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO
MUNICIPAL (2008/2009)
1
Josie de Menezes Barros2
RESUMO: Partindo da categoria de esfera pública habermasiana e de sua tradução ao contexto
de construção do Estado Democrático de Direito
brasileiro, este trabalho objetiva, por meio do estudo do Conselho Municipal de Cultura de Santo
André (CMC/SA), desvendar as potencialidades
e entraves desse espaço institucionalizado de
participação da sociedade civil na Administração
Pública. Nestes termos, investiga o perfil dos
conselheiros que integram o CMC e o padrão das
deliberações no período de transição do governo
municipal (2008-2009). Como fatores norteadores dessa investigação, adotou-se a noção de
cultura política da sociedade civil e a de projeto
político da gestão municipal, entendidos como
elementos capazes de indicar as razões para a
sua efetividade ou inaptidão para democratizar
as decisões sobre políticas públicas e para o
exercício de controle social.
Palavras-chave: Conselho de política. Mudança
de gestão. Projeto político. Cultura política.
ABSTRACT: Based on the Habermasian category of public sphere and its translation into the
context of building the democratic rule-of-law
State of Brazil, this paper aims at revealing the
potentialities and the barriers of that institutionalized space for civil society participation in
public administration through the study of the
Municipal Council for Culture of Santo André
(CMC / SA). Accordingly, this paper investigates
Este artigo se origina de monografia apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como trabalho de conclusão do curso de Direito
nesta instituição, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo da Costa Pinto Neves.
2
Advogada formada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo.
1
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
81
BARROS, J. M.
the backgrounds of the advisers who are part of
the CMC and the standard of the deliberations
during the transitional period of the municipal
government (2008-2009). As factors guiding
this research, the concept of political culture of
civil society and the political project of municipal management have been adopted, defined as
any evidence that is able to indicate the reasons
for its effectiveness or inability to democratize
the public policy decisions and the exercise of
social control.
Keywords: Policy Council. Change of government. Policy design. Political culture.
1. Democracia Deliberativa,
Participação social no Brasil e os
conselhos de políticas públicas
Instalou-se no Brasil além de em vários
países da América Latina, com maior intensidade na década de 1970, um sério debate sobre
as limitações do modelo democrático liberal3,
partindo dos movimentos sociais o anseio de
reverter o velho padrão oligárquico alojado na
política e conquistar maior espaço na gestão da
coisa pública.
No campo teórico, esse movimento dá
força às teorias não-hegemônicas que entendem a democracia como uma nova gramática
social e cultural e não meramente como obra
de engenharia institucional (Santos; Avritzer,
2003, p. 51). Dentre elas, destaca-se a teoria
discursiva da democracia, contribuição ao debate
promovida por Jürgen Habermas, na qual é dada
relevância primordial à ideia de esfera pública,
estrutura de comunicação enraizada no mundo da
vida (Habermas, 2003, v. II, p. 91) responsável
por levar ao centro político opiniões, problemas e pautas originadas na esfera privada e nas
esferas informais da sociedade civil. A esfera
pública constitui-se, assim, como uma “caixa
de ressonância” dotada de sensores capazes de
detectar os fluxos comunicacionais existentes em
toda a sociedade e filtrá-los, a fim de influir nos
problemas, temas e questões a serem assumidos
e elaborados pelo sistema político (Habermas,
idem, caps. 7-8). Com efeito, a categoria pro82
posta por Habermas caracteriza-se como espaço
irrestrito de comunicação realizado por formas
não institucionalizadas no qual atores da sociedade civil não exercem poder político, mas apenas
influência (Habermas, idem, p. 95).
Esse conceito, todavia, não é afastado de
críticas. Teóricos latinos, além de outros autores
que pensam a democracia “pós-terceira onda”,
identificam no conceito de esfera pública habermasiana uma resposta parcial à tensão entre
complexidade e soberania popular, posto que,
para eles, as decisões comunicativamente acordadas não podem ser meramente traduzidas em
influência política, mas sim em decisões políticas
propriamente ditas. Dentre as traduções da idéia
de esfera pública ao contexto político vivido
no Brasil, destaca-se a noção de p­ articipatory
publics, desenvolvida por Leonardo Avritzer.
De acordo com Avritzer e Costa (2004), a
pulverização dos deliberative ou participatory
publics no Brasil delineia-se como meio indispensável para que a esfera pública apresente posições, temas e argumentos ao sistema político,
pois, diferentemente dos Estados que foram a
base empírica para a formulação habermasiana
de espaço público, nos quais existem estruturas
eficientes de intermediação entre a sociedade
civil e o sistema político, na América Latina,
os partidos não representam a diversidade encontrada na sociedade, mas historicamente se
apropriam do público, travando relações insistentemente clientelistas e privatistas no interior
do sistema político4. Daí a necessidade de uma
ênfase distinta no modo de os atores civis se relacionarem aos processos de tomada de decisões
políticas. Somente a institucionalização do debate travado na esfera pública política garantiria a
penetração do Estado para democratizá-lo e nele
exercer controle social com eficiência (Avritzer; Costa, idem, p. 723). Para Avritzer (2002),
portanto, a esfera pública se tornar ofensiva no
momento em que se torna deliberativa e produz
decisões no interior do sistema político, condição
que só se viabiliza por meio de métodos institucionais que não reduzam o consenso público a
uma mera influência política. É proposta então
uma “forma intermediária de desenho” entre a
esfera pública e o sistema político a fim de ofe-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA
TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009)
recer uma dimensão institucional ao processo de
deliberação pública. Esse espaço seria capaz de
compatibilizar as demandas participativas com
a racionalidade administrativa.
Tendo em vista essa construção teórica,
este trabalho busca apresentar uma breve contribuição a já rica e abrangente literatura que
cuida dos “públicos participativos” no Brasil,
mais especificamente, dos conselhos gestores
de políticas públicas.
A forma conselhista é uma experiência
recente no país, construída a partir dos conselhos
populares e das comissões de fábrica criados no
fim da década de 70 para atuar junto à gestão
municipal, dentre os quais se destacaram os
Conselhos Populares de Campinas, que deram
gênese ao movimento “assembleia do povo”,
e o Conselho de Saúde da Zona Leste de São
Paulo, criado em 1976, a partir do trabalho de
sanitaristas que trabalhavam nos postos de saúde
desta localidade (Gohn, 2000, p. 175).
Assim como outras experiências participativas surgidas no Brasil, os conselhos resultaram
de uma intensa transformação da sociedade civil,
fator que dentre outros relevantes determinou a
derrocada do regime militar e conferiu especificidades ao processo de democratização brasileiro. O amadurecimento destes movimentos
populares, cada vez mais reconhecidos como
interlocutores válidos frente ao poder público,
foi consagrada pela Assembleia Constituinte,
por meio das chamadas “emendas populares”,
experiência que resultou na absorção pelo sistema jurídico de reivindicações da sociedade
civil, a teor do parágrafo único do artigo 1° da
Constituição de 19885-6.
Neste quadro, já na década de 80 e, principalmente nos anos 90, pulverizaram-se pelo
país e em todos os níveis de governo um número
significativo de conselhos, conferências, fóruns e
ouvidorias voltados a diversos setores da atuação
estatal, sendo ampliado de modo inédito o número de intervenientes na discussão de políticas.
Os conselhos de políticas públicas, objeto
dessa pesquisa, podem ser entendidos como
desenhos institucionais de partilha do poder e
são constituídos pelo próprio Estado, com re-
presentação mista de atores da sociedade civil e
atores estatais (Avritzer, 2008, p. 44).
Em sintonia com os apontamentos de estudos empíricos anteriores voltados à análise de
conselhos gestores, parte-se da constatação de
que tais arranjos não vêm atendendo às expectativas de formular políticas públicas em parceria
com a Administração Pública, ainda havendo
um importante descompasso entre a retórica
participacionista e o que realmente é concretizado (Tatagiba, 2003, 2008; Fuks, 2004, Faria;
2005; Baquero, 2008). De um lado, verifica-se
que a operalização incompleta dessas novas
instâncias, implicativa na permanência de uma
relação assimétrica entre Estado e sociedade
civil, ocorre, dentre outros fatores, pela falta de
experiência da população em espaços de gestão
pública (Gohn, idem, p. 180). Explanando sobre
o tema, Tatagiba (2003) aponta ainda outros
fatores: a) o protagonismo que o Estado assume
na elaboração da pauta de discussão das reuniões, impondo unilateralmente os seus interesses
temáticos7, b) a falta de capacitação e déficit de
representatividade dos conselheiros civis, c)
a dificuldade de lidar com a multiplicidade de
atores e d) a manutenção de padrões clientelistas,
fatores que, unidos, representam ainda uma falta
de amadurecimento da cultura política.
Os problemas apontados variam de natureza e extensão de acordo com o conselho gestor
estudado. Para essa pesquisa importa, porém,
duas variáveis fundamentais: o caráter do projeto
político da gestão municipal e o perfil da sociedade civil quanto à sua maior ou menor capacidade
de mobilização e cultura política.
Nesse prisma, vale destacar que o caráter
da administração municipal é fundamental para
que os conselhos não sejam meros aparelhos
paralelos à burocracia, legitimadores de decisões
tomadas de modo verticalizado (top-down).
Faz-se necessária a superação do antagonismo
entre sociedade civil/Estado, devendo este
relacionamento se dar “em termos de sinergia,
complementaridade e conflituosidade animadas
pela lógica política do governo da ocasião, e
não pelas características estruturais do Estado”
(Lavalle, 2004, p. 109).
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
83
BARROS, J. M.
Essa sinergia exige a um só tempo a capacidade de mobilização dos atores civis - que devem
levar ao conselho as demandas apresentadas pela
rede social que lhes dão base e legitimidade - e
a presença de gestores públicos comprometidos
com o projeto de partilha de poder de decisão
e sujeitos ao controle social na implementação
das políticas. Importa, portanto, que governos e
secretários tenham na formulação de seu projeto
político e em sua agenda a visão dos conselhos
como espaços efetivos de participação. Compromisso, no sentido ora empregado, não significa a
mera adesão discursiva à participação. O governo
deve ter uma prática condizente com seu discurso
democratizante e isso se faz através do efetivo
respeito às deliberações resultantes do processo
participativo. É relevante também que a gestão
tenha competência institucional para viabilizar
esses processos, vale dizer, que não apenas tenha
um arcabouço jurídico sólido e bem determinado, como também recursos orçamentários e
materiais aptos a viabilizar as determinações e
políticas tomadas no âmbito do conselho.
Com o exposto pretende-se declarar que o
projeto político adotado pela gestão, em outros
termos, a orientação política tomada pela Administração em seu relacionamento com os demais
atores que participam do conselho, é relevante
para determinar qual o papel atribuído a essa
institucionalidade, de forma mediata quando
analisadas as diretrizes gerais da gestão (“projeto
político macro”) e, de modo imediato, no que se
refere às decisões tomadas pelo secretário (“projeto político micro”). Como uma moeda com
duas faces, objetiva-se também reafirmar que o
perfil da sociedade civil, vale dizer, a cultura participativa da sociedade e, mais especificamente,
de seus representantes eleitos para integrarem
o conselho, terá maior impacto na dinâmica de
formulação de políticas públicas quanto mais
apresentarem autonomia e poder de mobilização.
A cidadania que se requer desses atores é
a cidadania ativa (Dagnino, 1994), aquela que
se apropria dos espaços institucionalizados com
a consciência de ter direito a ter direitos, como
agentes dispostos a construir uma nova gramática
social e não a manter o status quo. Esse caráter
deve sobrepor-se às intrínsecas ambiguidades
84
e contradições da sociedade civil, complexa e
diversificada, que “convive com uma incivilidade cotidiana feita de violência, preconceitos
e discriminações; em que existe uma espantosa
confusão entre direitos e privilégios (...); em que
a demanda por direitos se faz muitas vezes numa
combinação aberta ou encoberta com práticas
renovadas de clientelismo e favoritismo que
repõem diferenças onde deveriam prevalecer critérios públicos igualitários.” (Telles, p. 93, 1994).
Há sem dúvida um sem número de clivagens e questões transversais que circundam e
determinam o grau de institucionalidade de um
conselho de políticas, entende-se, porém que a
existência do binômio projeto político/cultura
política é o alicerce para a construção de um
diálogo construtivo, verdadeiro pressuposto para
a construção de um agir comunicativo.
2. Santo André e o projeto político
pós-Constituição de 1988
O município de Santo André está localizado na Região Metropolitana de São Paulo
(RMSP) e possui uma população estimada de
673.234 mil habitantes (IBGE, 2006), que vive
em uma área de 174,38 km² (IBGE, Censo 2000).
O município possui uma taxa de natalidade de
13,83/mil habitantes, considerada baixa para
os padrões nacionais, havendo um progressivo
envelhecimento da população. É o 22º PIB do
país (IBGE, 2005).
A partir dos anos 1950, fomentada pela
inserção de dinheiro público e capitais estrangeiros, a industrialização da região do ABC e
também a de Santo André, é intensificada pela
instalação do setor automobilístico, e, por conseqüência, de empresas fornecedoras de autopeças,
responsáveis por dar nova característica ao seu
parque industrial. No período compreendido
entre 1978 e 1989 – contemporâneo à luta pela
(re)democratização do país – o Sindicato dos
Metalúrgicos de São Bernardo se destaca por
defender a liberdade e autonomia sindical (Rodrigues, 2002, p. 142). Neste momento é inserida
na esfera pública novos padrões de fala, pois a
classe proletária antes atuante de forma defensiva
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA
TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009)
passa para uma ação de caráter amplo, influindo
fortemente o sistema político, principalmente
nos anos 1980, quando a ditadura já apresentava
sérios sintomas de derrocada.
A influência desse movimento sindical sobre o sistema político não foi apenas regional. A
eclosão do movimento grevista no ano de 1978,
resultado de um novo movimento sindical organizado desde o início da década, espalhou-se do
ABC para o país inteiro, denunciando as difíceis
condições de vida e de trabalho a que as camadas
assalariadas foram submetidas no regime militar.
Nesse período é eleito o primeiro governo petista (1989-1992), com uma postura
de governo próxima da concepção do projeto
“democrático-participativo” (Dagnino, Olvera
e Panfichi, 2006)8. Já no primeiro mandato a
participação popular foi implementada através
de diversas políticas municipais, entre as quais
o processo de orçamento participativo (OP). Tal
projeto foi retomado pelo segundo mandato do
mesmo prefeito petista (1997-2000), após a derrota nas eleições de 1992 para a gestão petebista
de Brandão. Em estudo sobre o tema, Carvalho
e Felgueiras (2000) destacam que a experiência
do governo na primeira gestão foi utilizada para
aperfeiçoar os mecanismos do OP, agora mais
dinâmico e inclusivo, além de haver sido criado
o Núcleo de Participação Popular (NPP), ponte
necessária para o diálogo e convergência entre
as diversas experiências participativas criadas
no município.
O Partido dos Trabalhadores (PT) permanece à frente da prefeitura municipal até o ano
de 2008, momento em que assume o governo
o então vereador Aidan Ravin (PTB), médico,
numa surpreendente conquista no segundo turno
das eleições9. Dentre as principais plataformas
do governo petebista está a reforma administrativa, marco importante para desenhar-se o novo
projeto político macro instalado na cidade10,
indicador de uma menor disposição da gestão
em viabilizar uma participação popular ativa.
Cuida-se da reforma administrativa proposta
pelo Executivo municipal que, além da criação
de três novas secretarias (Áreas de Mananciais,
Planejamento e Segurança Pública e Trânsito)
e do Fundo Social de Solidariedade, previu a
criação de dois conselhos gestores – o de trânsito
e o de transporte (responsáveis pela gestão dos
respectivos fundos), com representação exclusiva da Administração Municipal, com membros
a serem indicados pela Prefeitura. Outra modificação que importa para o objeto dessa pesquisa
foi a empreendida nas competências do Conselho
Municipal de Orçamento (CMO). Nos termos
da Lei n° 9.126, de 26 de maio de 2009, o orçamento participativo, base fundamental para todo
o projeto participativo pretérito, perde espaço na
gestão e passa a ter função meramente opinativa,
de modo que toda a dotação orçamentária municipal passa a ser do arbítrio exclusivo do Poder
Executivo e Legislativo.
É este momento político-institucional que
serve de pano de fundo para a presente discussão
e importa do ponto de vista de nosso argumento
em dois sentidos básicos. Por primeiro, destacase a importância, no município de Santo André,
do projeto democrático-participativo de gestão
como modelo que viabilizou a institucionalização de diversos canais de participação; por
outro lado, ao se apresentar o histórico de lutas
sociais, representado sobretudo pelo novo sindicalismo, buscou-se demonstrar a existência de
uma mobilização da sociedade civil, responsável
por dar os contornos de uma esfera pública forte
ou que tinha o potencial de sê-lo. A ideia de
corresponsabilidade permeou o período compreendido pelas duas primeiras gestões petistas,
embora certamente acompanhada por obstáculos
e ambiguidades, mas responsável por determinar
uma “infraestrutura” de participação, que perdeu
muito de seus matizes ao curso das novas gestões petistas e hoje, com o governo petebista, já
apresenta pontos de tensão e possibilidade de
modificações restritivas.
3. O Conselho Municipal de Cultura
de Santo André (CMC/SA)
3.1 Metodologia
Importa para essa pesquisa determinar
em que medida o projeto político adotado pelo
governo e a cultura política da sociedade civil
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
85
BARROS, J. M.
determina o grau de institucionalidade de um
conselho gestor, aqui estudado com especificidade o Conselho Municipal de Cultura de
Santo André (CMC/SA). Com este objetivo esta
pesquisa focaliza a dinâmica de tal instância no
período de mudança da gestão municipal ocorrida em janeiro de 2009.
Para dar maior verossimilhança aos resultados apresentados, foi relevante analisar não só
o padrão de relacionamento entre a sociedade
civil e a nova gestão petebista (fev/dez 2009),
como também o relacionamento dos mesmos
atores civis com os antigos gestores presentes
no conselho (maio/dez 2008), traçando-se um
paralelo comparativo entre os dois momentos.
A análise documental foi composta pela
consulta às atas das reuniões mensais do CMC/
SA. Embora este material não represente toda a
riqueza da reunião, apontando eventuais discórdias mais incisivas, subentendidos etc., é um documento legitimado pelo assentimento de todos
os participantes da discussão. Em consonância
com a problemática trazida por essa pesquisa, foi
destacado o estudo das atas a partir de maio de
2008, mês em que foram eleitos os conselheiros
da sociedade civil e ainda membros do CMC/
SA. A segunda abordagem documental foi sobre
os diplomas jurídicos que tornaram possível a
existência do CMC/SA.
A observação participante (Haguette,
1994), foi instrumento de coleta de dados indispensável para a compreensão da dinâmica interna
do conselho. As entrevistas foram o último
referencial empírico utilizado11. Em virtude do
reduzido número de membros do conselho e da
natureza deste estudo, escolheu-se a entrevista
qualitativa em detrimento do survey. Dividida em
dois blocos, a entrevista pretendeu diagnosticar
primeiramente qual o perfil dos conselheiros em
seu aspecto objetivo (dados etários, econômicos, de gênero etc.) e subjetivo (engajamento)
por meio de alternativas fixas, e, num segundo
momento, através de um roteiro estruturado,
descobrir a impressão pessoal de cada um deles
sobre aspectos previamente determinados, a
chamada entrevista focalizada.
86
3.2 Histórico e atribuições do CMC/SA
A Lei Orgânica do município de Santo
André, em seu artigo 270 previu, já em 1988, a
criação de um Conselho Municipal de Cultura
(CMC/SA)12, entretanto, sua concretização contou com uma importante mobilização social. De
acordo com documentação histórica, foi no âmbito da segunda plenária temática do Orçamento
Participativo (OP) da cidade, responsável pela
discussão do orçamento municipal de 1999, que
foi definida como prioridade para a área cultural
a criação do CMC/SA. De fato, a gênese do
CMC/SA foi estabelecida num ambiente político
muito favorável: de um lado, um governo com
um projeto político permeável à participação
popular e, no outro polo, uma sociedade civil
organizada em torno de um projeto de partilha
do poder.
Após esse processo de construção coletiva
do novo órgão, criou-se o Conselho Provisório e,
em 2000 o Conselho, agora com a lei aprovada,
passa a ter existência e formato definitivos.
O CMC/SA é órgão colegiado, criado pela
Lei Municipal n° 7905, de 13 de outubro de 1999
(regulamentada pelo Decreto 14.485/00 e alterações), com a participação paritária sociedade
civil e do poder público, em um total de doze
conselheiros titulares e doze conselheiros suplentes – doze representantes do governo e doze
representantes da sociedade civil. Dentre os 24
conselheiros do CMC/SA, os 12 representantes
do governo são escolhidos pelo Secretário de
Cultura13.
Como instância permanente de diálogo
entre sociedade civil e governo, o CMC/SA tem
por finalidade institucionalizar a relação entre
a Administração Municipal e os seis setores
ligados à cultura na cidade, a fim de que eles,
conjuntamente, elaborem a política cultural de
Santo André. Nota-se das competências atribuídas ao CMC/SA atividades que podem se
adequar a todas as fases de uma política pública,
indo desde a formulação de estudos e pesquisas
na área de cultura, passando pela tomada de decisões, sua implementação, até posterior controle
dos resultados.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA
TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009)
3.3 Quem são os conselheiros: aspectos
objetivos e subjetivos
Vários trabalhos empíricos destacam a
importância de determinar a cultura política dos
conselheiros, dentre os quais a pesquisa de Fuks
(2005) que analisa o conselho municipal de saúde de Curitiba. O universo de estudo escolhido
conta com o total de 24 conselheiros dos quais
23 foram entrevistados14, portanto, 95,83% dos
conselheiros que ocupavam essa função em
fevereiro de 2009, mês da eleição dos novos
conselheiros do governo.
Tratemos dos aspectos objetivos. Dos dados coletados, os resultados para a faixa etária
dos conselheiros demonstram que há pouca participação dos jovens, havendo uma concentração
do número de conselheiros na faixa entre 31 e
50 anos, quase dois terços do conselho. Quanto
ao sexo, verifica-se que a presença masculina
equivale ao dobro da participação feminina.
Essa mesma característica é diagnosticada por
Carvalho e Felgueiras (2000) na participação de
gênero no Conselho Municipal de Orçamento de
Santo André.
Relativamente à escolaridade, os dados
colhidos indicam que os participantes do CMC/
SA possuem maior estudo em relação à média
da população brasileira, sendo que 56,5% dos
conselheiros possuem ensino superior completo
e 17,3%, pós-graduação. Também esse número
é expressivamente superior à média municipal.
Segundo dados da Fundação SEADE (2000),
os responsáveis pelos lares andreenses tinham
em 2000, em média, 7,4 anos de estudo, 50,0%
deles completaram o ensino fundamental, e 5,2%
eram analfabetos. No CMC/SA, os conselheiros
da sociedade civil e do governo têm perfil escolar
próximo, predominando em ambos os segmentos
os membros com ensino superior completo –
41,7% da sociedade civil e 72,7% do governo.
Todavia, enquanto 91% dos conselheiros do
governo ficam na faixa entre ensino superior
completo e pós-graduação, somente 58,3% dos
representantes da sociedade civil ficam neste
patamar.
De acordo com dados da Fundação SEADE (2000), o estudo das condições de vida
dos habitantes de Santo André demonstra que
os responsáveis pelos domicílios auferiam, em
média, no ano 2000, R$ 1.091,00/mês, sendo
que 36,8% ganhavam no máximo três salários
mínimos. Esses dados, novamente, colidem com
os rendimentos dos conselheiros do CMC/SA,
pois 52,3% de seus membros possuem renda
individual superior a cinco salários mínimos.
Ao analisar os dados em segmentos, verifica-se
que os conselheiros representantes da sociedade
civil possuem renda mais próxima da média
municipal. Dentre eles, um aufere renda menor
que dois salários mínimos (8,3%) e há outros que
possuem renda oscilante, variável mensalmente
na casa entre dois e cinco salários mínimos.
Vê-se que os conselheiros da sociedade civil se
concentram na faixa de rendimento entre dois a
cinco salários mínimos (66,7%) e nenhum deles
aufere mais que dez salários mínimos. Quanto
aos conselheiros do governo, estes se concentram na faixa entre cinco e dez salários mínimos
(60%) e 30% têm renda acima de dez salários.
Os dados até aqui apresentados, permitem
diagnosticar um problema na distribuição da
cultura política no município, posto que os conselheiros ainda possuem como perfil alta escolaridade e rendimentos muito acima da média municipal. Há também uma desigualdade no perfil
socioeconômico intra CMC/SA, destacando-se
os membros do governo, como sujeitos com alta
escolaridade e renda - 90% possuí renda superior
a cinco salários mínimos e 91% possuí ensino
superior completo e pós-graduação -, enquanto
os membros da sociedade civil, embora estejam
acima da média municipal, apresentam menor
grau de escolaridade e de rendimentos.
Agora, verifiquemos os aspectos subjetivos. Ao traçar alguns aspectos da participação
social no ABC paulista, adiantou-se um panorama mais abrangente de qual espécie de arenas
públicas podem ser localizadas nesta região e,
reflexivamente, em Santo André. Entretanto, analisar um conselho específico demanda descobrir
qual o poder de mobilização dos representantes
dessa mesma sociedade civil, buscando por meio
de sua rede de filiação a movimentos associati-
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
87
BARROS, J. M.
vos, diagnosticar qual o seu grau de habilitação
para participar do CMC/SA. Mapear o grau de
associativismo do conselheiro, aqui adotado de
modo amplo, significa, portanto, descobrir em
quais bases se funda a sua representação no conselho e sua capacidade de traduzir nesta instância
as questões, anseios e pleitos de uma coletividade
organizada de modo formal ou informal.
De acordo com os dados coletados, os
aspectos socioeconômicos e subjetivos se distribuem de modo distinto. Dentre os conselheiros
governamentais, 25% são sindicalizados – dois
são membros do sindicato de servidores públicos e um membro do sindicato de professores
- e somente um conselheiro participa de outro
espaço coletivo – atividades ligadas ao teatro.
Quanto aos conselheiros civis, estes apresentam
um grau maior de engajamento, concentrando
suas atividades em associações (58,5%), dentre
as quais associações de bairro, profissional e
cultural; 25% dos conselheiros civis participam
de organizações não-governamentais e o mesmo
percentual é engajado em outro espaço participativo – cooperativa profissional e movimentos
artísticos.
A análise preliminar dos dados demonstra
um baixo grau de engajamento dos conselheiros
governamentais. Dados da pesquisa IBGE realizada em 199615, apontaram que 31% das 22,5
milhões de pessoas pesquisadas, com 18 anos ou
mais, tinham vínculo associativo na proporção de
31%, dos quais 53% eram sindicalizados, 39%
eram membros de órgãos comunitários e 8%
eram filiados a órgãos de classe. Tal pesquisa,
portanto, indicou um baixo grau de associativismo do brasileiro, pois somente 31% da
população participa ao menos formalmente das
atividades associativas tipificadas pela pesquisa. Todavia, se comparados estes números aos
vínculos associativos dos gestores no CMC/SA,
tem-se que estes possuem engajamento menor do
que a população nacional.
Dos onze conselheiros entrevistados, sete
(63,6%) não possuem no presente participação
em nenhuma esfera coletiva, quer sindicato,
associação filantrópica, religiosa, cultural ou
social, ONG ou partido político. Se, em princípio, o baixo pertencimento dos gestores a
88
outras esferas públicas pode ser encarada com
naturalidade, já que os mesmos não são eleitos,
mas nomeados pelo secretário de cultura, por
outro lado, pode indicar a burocratização de sua
participação no CMC/SA que, em detrimento
de ser um local de diálogo entre atores políticos, passa a ser encarado pelos conselheiros do
governo como mais um de seus encargos como
servidor público.
Quanto à sociedade civil, existe um grau
maior de associativismo em relação à população
brasileira. Dentre os conselheiros entrevistados,
somente uma não possui no presente qualquer
envolvimento com outras instâncias coletivas,
prevalecendo no grupo a participação em associações de diversos matizes, dentre as quais de
difusão literária; profissional (os dois membros
da comissão de artesanato), de bairro, ligada ao
movimento LGBT, além de cooperativa profissional (de teatro), sindicato e em organizações
não-governamentais. Tais dados demonstram
que hoje, além de integrarem o CMC/SA e as
respectivas comissões temáticas, os conselheiros
civis têm pouca ligação com espaços associativos, revelando um engajamento fraco, ao inverso
de outras pesquisas realizadas, que apontam
para um alto índice de vínculo associativo dos
membros não-governamentais (Almeida, 2007;
Fuks, 2005; Fuks, Perissinoto e Ribeiro, 2003;
Tonella, 2004).
Isso pode demonstrar, em termos ainda não
conclusivos, o pouco poder de articulação e de
mobilização constatado durante a observação
participante. Entretanto, embora estes indicadores sejam reveladores, não dão conta de toda
a dinâmica de relações que circundam os conselheiros. Como apontam Carvalho e Felgueiras
(2000), no ano de 1999, dentre os participantes
das plenárias do Orçamento Participativo em
Santo André, 70% não eram filiados a entidades,
11% eram ligados a associação de moradores,
9% a sindicatos, 3% a associação religiosa e
somente 1% tinha ligação com partido político.
Ao invés de apontar como negativo o baixo grau
de engajamento dos participantes do OP, as autoras destacam que eles indicam, com efeito, a
capacidade de este espaço atrair a participação
do cidadão comum, independentemente de sua
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA
TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009)
experiência pretérita. Portanto, é necessário observar com parcimônia a deficiência nas redes
sociais apresentadas pelos representantes da
sociedade civil.
Isso porque se as comissões temáticas, âmbitos criados para fazer ressoar a comunicação de
uma pluralidade importante de atores, possuírem
efetividade e forem de fato locus de formulação
de pautas e debates, relativiza-se a importância
do grau de associativismo dos conselheiros. Vale
dizer, se as comissões são sensíveis aos fluxos comunicacionais que partem da periferia da esfera
pública e os transformam em pauta para o CMC/
SA, não existiria um déficit dos conselheiros
com pouco grau de associativismo, já que eles
se comunicariam diretamente com atores plurais
em suas comissões.
Entretanto, no que toca às comissões
temáticas - artesanato, artes visuais, artes cênicas, audiovisual, literatura, música – do CMC/
SA, diagnostica-se um sério abstencionismo da
sociedade civil nas reuniões. Salvo as comissões
de artes cênicas, que conseguiu concretizar a
única deliberação do CMC/SA e possibilitar, em
conjunto com a Administração, a sua viabilidade,
as demais comissões enfrentam hoje uma procura
débil dos movimentos sociais e agentes culturais
ligados à cultura. Comissões como as de artes
visuais e música não se reúnem desde fevereiro
de 2009. Os conselheiros não-governamentais
reconhecem este “desinteresse” como problemático. De acordo com vários deles, os membros
das comissões ainda encaram os conselheiros
como seus representantes dotados de capacidade
para determinar melhorias e mudanças nos moldes como eles determinaram, ou, ainda, encaram
com desconfiança o papel desses sujeitos, muitas
vezes vistos como pessoas cooptadas pela Administração e, portanto, ilegítimos para defenderem
suas demandas.
Pelo depoimento dado pelos conselheiros
da sociedade civil, ainda existe entre os artistas e
produtores da cidade a falta de noção do coletivo
e dos constantes revezes do jogo democrático
que muitas vezes determinam a consecução de
resultados a longo prazo. Espera-se a solução
imediata de demandas e mesmo de interesses
egoísticos e, tomada ciência de que este locus
não se propõe a tutelar tais interesses, há o afastamento e esvaziamento das comissões.
Esse é só um aspecto dentre outros que
podem ser apontados. Observou-se no estudo de
campo uma séria vinculação das comissões às escolas livres da cidade, sendo este fórum ocupado
em grande número pelos corpo discente desses
aparelhos culturais locais, situados no centro da
cidade e muitas vezes ocupado por integrantes
não munícipes. Há, portanto, um grave problema
de integração e dificuldade de os conselheiros
buscarem a aproximação das esferas públicas
mais afastadas, localizadas na periferia ou mesmo que morem no centro da cidade mas que
não frequentem esses equipamentos. O perigo
de tal conduta é o esvaziamento da legitimidade
dos conselheiros civis e a prática de políticas
sistematicamente autorreferentes.
3.4 Entre as duas gestões: quadro
comparativo das reuniões e deliberações
do CMC/SA no período de maio de 2008 a
setembro de 2009
Nesta fase, com base nas atas do conselho
e pretende-se conhecer com especificidade as
reuniões do CMC/SA desde maio de 2008, mês
em que tomaram posse os conselheiros da sociedade civil e, de modo comparativo, observar a
relação desses atores com as duas gestões com
as quais dialogaram – a petista entre maio de
2008 e dezembro de 2008 – e a petebista, entre os
meses de fevereiro de 2009 e setembro de 2009.
Afinal, quando muda a gestão, muda também o
padrão das deliberações? Se houve modificação,
foi de caráter ampliativo ou restritivo? Em que
medida um governo comprometido ou não com
ideário participacionista influencia o real papel
de um conselho? São essas questões-base dessa
pesquisa.
O primeiro ponto será investigar o conteúdo das reuniões com a gestão anterior. Entre os
meses de maio de 2008 a dezembro do mesmo
ano, houve um total de onze reuniões do CMC/
SA – duas assembléias gerais (AG), duas reuniões extraordinárias (RE) e sete reuniões ordinárias (RO). Durante todo o período, há expressiva
presença dos gestores e da sociedade civil nas
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
89
BARROS, J. M.
reuniões, estando a secretária de cultura, como
presidente do CMC/SA, presente em todas as
oportunidades. Sublinha-se este aspecto em
razão de o mesmo não ocorrer nas formações
anteriores do conselho, oportunidades nas quais,
embora a gestão fosse do mesmo partido (PT),
havia uma grande abstenção dos secretários de
cultura que raramente disponibilizavam tempo
para frequentar as reuniões.
Conforme o Gráfico 1, verifica-se que a
assiduidade dos conselheiros variou para menos
nas duas reuniões extraordinárias realizadas nos
meses de julho e outubro. Houve variação também a partir de novembro, com uma progressiva
queda na participação dos conselheiros do governo. Pode-se apontar como fator justificador desse
fenômeno o resultado das eleições municipais e
o processo de transmissão dos trabalhos ao novo
secretariado.
Gráfico 2: Número de conselheiros presentes nas reuniões de Maio
2008/Dezembro2008
N úm e ro de P res e nt es
14
12
10
8
6
4
2
0
AG (M)
1a RO
2a RO
1a RE
3a RO
4a RO
Sociedade Civil
5a RO
2a RE
6a RO
7a RO
˙˛˙
˙˙˙
No que tange à participação dos conselheiros nos debates promovidos nas reuniões, nota-se
um equilíbrio quantitativo entre conselheiros da
sociedade civil e do governo. Contabilizando o
número de “atos de fala”, vale dizer, de intervenção no debate em algum dos pontos da pauta,
verifica-se que em média 67,4% dos conselheiros
não-governamentais presentes à reunião participaram do debate. Há picos de participação nas
1ª, 3ª, 5ª reuniões ordinárias, com atos de fala
de mais de 80% dos presentes e de 100% na 2ª
reunião extraordinária, ocasião em que somente
50% dos conselheiros civis estiveram presentes. Quanto aos atos de fala do governo estes
ocorreram em menor número em relação aos
conselheiros da sociedade civil, havendo no todo
participação de 64% dos conselheiros presentes.
No geral, vê-se que em média 60% dos presentes
participam com atos de fala na reunião.
90
Quanto à pauta do CMC/SA no período, a
Tabela 1 demonstra que a atividade dos conselheiros se concentrou nos planos da “construção
da agenda” (34,5%) e das “questões procedimentais” (42%). Verificou-se que o período é
propositivo; durante as reuniões existe a formulação de propostas e ideias e a discussão das
mesmas, a fim de criar-se a agenda de políticas
públicas para a cidade. No nível da construção
da agenda também está a articulação com os
aparelhos ligados à secretaria de cultura e com
outros espaços participativos como os conselhos
de comunicação e de educação. Durante os primeiros meses da nova formação, os conselheiros
visitaram os CESAS (Centro de Educação de
Santo André) e ouviram durante as reuniões
sujeitos responsáveis pela estrutura de cultura
da cidade,. Nota-se que o objetivo desse conjunto de ações é integrar a sociedade civil aos
assuntos e estruturas que envolvem a secretaria
de cultura e, ao mesmo tempo, articular estes
espaços com o CMC/SA, a fim de criar-se uma
pauta coerente com as necessidades da cidade.
Também este período é marcado pelas questões
procedimentais, entendidas como o estabelecimento de regras internas, tais como datas de
reuniões, horário, formação de comissões para
a delegação de tarefas, esclarecimentos sobre as
regras já estipuladas na lei e no regulamento ou
quanto às questões do cotidiano da secretaria.
Classificou-se também como procedimental a
atividade de os conselheiros prestarem contas
aos seus pares sobre atividades realizadas e
compromissos assumidos.
Com menor destaque quantitativo, apresenta-se o plano de “formulação de políticas”,
porém, esta é uma fase que demanda maiores
cuidados, é o momento de maturar e tornar exequível a política pública proposta anteriormente.
Esta atividade, junto à de “tomada de decisão”
teve destaque na primeira reunião extraordinária
do conselho convocada para a aprovação da 1ª
Mostra de Artes Cênicas de Santo André, idealizada pela comissão de artes cênicas. Tal mostra,
que tomou o nome de “EnCASA”, é objeto da
primeira deliberação do CMC/SA em toda a
sua história. Além do EnCASA foi objeto de
deliberação no CMC/SA a criação de unidades
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA
TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009)
administrativas, proposta que tinha por finalidade
perenizar as escolas livres, com a contratação de
um funcionalismo especificamente escalonado
para cada unidade de cultura da cidade, além de
outras medidas, a fim de distanciar essas estruturas de possíveis ingerências governamentais.
Ainda no plano da formulação de políticas, é
interessante a discussão entre os conselheiros das
ações que poderiam ser tomadas em uma política
pública já consolidada na cidade, o chamado
“Canja com Canja”, evento mensal agregador
de músicos da região em que costumeiramente
é servido um prato de canja aos participantes.
Tabela 1: Perfil da Pauta na etapa maio 2008/dezembro 2008
ATRIBUIÇÕES
1. Construção da
Agenda
- propor políticas
- incentivar estudos, eventos e atividades
permanentes
- estudar e sugerir medidas para a expansão e
aperfeiçoamento das atividades da SCEL
- buscar articulação com outros conselhos gestores e
entidades afins
2. Formulação de - analisar políticas de geração, captação e alocação
de recursos
Políticas
- colaborar na articulação público-˙˙˙
- definir diretrizes
- emitir e analisar pareceres sobre questões culturais
3. Tomada de
Decisões
- deliberações
- aprovação de políticas da gestão pública
Quant.
37
%
34,5%
13,2%
14
03
2,8%
4. Implementação - definir critérios para estabelecimento de convênios
entre administração e organizações públicas ou
de Políticas
privadas, no âmbito da implementação de políticas
- definir a política pública proposta
- executar da política pública
- avaliar e fiscalizar ações de políticas
5. Avaliação de
Políticas
- ouvidoria e conferências de cultura
- Regimento Interno e Lei
6. Outras
- solução de dúvidas/esclarecimentos
- Prestação de Contas da gestão municipal
- Informes
_
_
08
7,5%
45
42%
Total
107
100%
Quanto à “avaliação de políticas”, incluiuse nessa categoria o processo de fiscalização
do CMC/SA sobre as atividades da secretaria
de cultura, a avaliação de políticas públicas
já executadas e a formulação de seminários e
conferências, eventos preordenados a permitir
a avaliação e fiscalização das políticas culturais
implementadas pela administração pública e
pelo próprio CMC/SA. Nessa etapa destaca-se,
sobretudo, a Assembleia Geral promovida em
dezembro de 2008, já no contexto de mudança
de gestão, com a finalidade de analisar as atividades realizadas pelo CMC/SA desde a eleição
dos conselheiros, apontando de modo plural as
suas realizações e falhas.
Em fevereiro de 2009, na oitava reunião
ordinária do conselho tomam posse os novos
conselheiros do governo, escolhidos pelo secretário de cultura. Há uma grande platéia nessa
oportunidade, cerca de setenta pessoas entre
produtores culturais, artistas, aprendizes das
escolas livres e ex-conselheiros; entre todos há
a expectativa de conhecer o projeto de governo
proposto pelo novo secretário e as possíveis
conseqüências sobre as suas atividades. Nesta
reunião, o novo projeto político para a cultura
é apresentado, pautado pela manutenção das
políticas culturais bem sucedidas já implementadas pela gestão anterior e pela política de
visibilidade, entendida como a aproximação da
iniciativa privada (para o aporte de recursos em
regime de parceria) e a promoção de eventos
atrativos de toda a população andreense. Esses
esclarecimentos oferecidos pelo secretário de
cultura, além de publicizar as novas diretrizes da
gestão cultural da cidade, é espécie de “ato convalidador” de reuniões anteriormente feitas com
os conselheiros da sociedade civil que tinham
por papel proeminente o exercício do controle
social, no sentido de persuadir a nova secretaria
a continuar políticas e programas da gestão anterior, e evitar que as novas metas e racionalidade
tivessem por decorrência a descontinuidade
de progressos feitos anteriormente. No gráfico
2, nota-se que esta reunião teve a participação
massiva da sociedade civil. Exceto pela ausência
de um conselheiro, todos se dirigiram para esta
que seria a consolidação de conversas já anteriormente feitas entre sociedade civil e o novo
secretário. Apesar do clima de tensão, já que
mudanças sempre quebram a previsibilidade das
ações, existia a crença de que a nova gestão da
secretaria seria permeável à participação popular.
Essa participação expressiva da sociedade
civil foi vista até abril de 2009, quando sua a
participação progressivamente decaiu, agora sem
mais representatividade nas comissões de música
e de artes visuais – sem conselheiros titulares ou
suplentes -, que acabaram por ser desligados do
CMC/SA em razão de suas ausências constantes.
A partir de maio, frente a esse enfraquecimento
quantitativo, os conselheiros da sociedade civil
decidem reunirem-se em reuniões prévias como
estratégia para afinar o discurso e superar os
entraves no debate ocorrido no âmbito do CMC.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
91
Núm ero de P res ent es
BARROS, J. M.
Gráfico 2: Número de conselheiros presentes nas
reuniões de Fevereiro 2009/Setembro 2009
14
12
10
8
6
4
2
0
8º RO
(F)
9º RO
(M)
10º RO
(A)
11º RO
(M)
Sociedade Civil
12º RO
(J)
13º RO
(J)
14º RO
(A)
˙˙˙
Nota-se que em todas as reuniões do período há a maior freqüência dos representantes
do governo em relação a participação dos conselheiros da sociedade civil, fenômeno diferente
do visualizado no Gráfico 2. O secretário de
cultura, como presidente do CMC/SA, é assíduo
às reuniões, ausentando-se, porém, nas reuniões
de julho e setembro, sendo que neste último não
houve reunião do CMC/SA em razão da falta de
quórum para abertura.
Este esvaziamento do CMC/SA tem
reflexos também nas dinâmicas das reuniões.
Conforme a Tabela 2, vê-se que o perfil da
pauta passa de propositiva, concentrada na
construção da agenda, para a implementação
de políticas (executiva) e, principalmente, para
a discussão de questões internas ao conselho.
Quanto à discussão sobre “tomada de decisão”
e “implementação de políticas”, diz ela respeito
ao compromisso assumido pelo novo secretário
de dar prosseguimento às deliberações anteriormente feitas no âmbito do CMC/SA. Nesse período, como já apontado, o CMC/SA funcionou
como espaço estabilizador da cultura da cidade,
vale dizer, como fórum que ajudou a garantir a
permanência da estrutura cultural da cidade no
momento de transição política. As discussões
sobre a execução do EnCASA passam a tomar
grande espaço nas reuniões, entre elas a formação de comissão eleitoral, espaços que receberão
o evento, divulgação à população do projeto etc.
Quanto ao momento de “construção da
agenda”, a proposição de políticas é verificada
principalmente nas primeiras reuniões do CMC/
SA e cuidam basicamente da criação de conselhos gestores nas unidades administrativas e a
criação de um comitê de ética interno. Ambas
as propostas não foram acatadas pelo conselho.
Neste ponto, é oportuno apontar que nestas discussões as divergências apresentam-se latentes.
92
Há um debate/discussão sobre a impossibilidade
da implementação de tais medidas com uma
tendência à polarização do debate, vale dizer, divisa de opiniões entre conselheiros da sociedade
civil e do poder público. E isso é apontado pelos
conselheiros nas entrevistas realizadas.
A atividade de fiscalização da sociedade
civil/ prestação de contas da gestão, por sua vez,
é pauta quantitativamente relevante nas reuniões.
Não se cuida da fiscalização quanto ao emprego
de verbas ou alocação de recursos – atividade
esta que, por sinal, foi pouquíssimo exercida pela
sociedade civil no período de análise -, mas sim
quanto à questões pontuais, como a segurança
nos equipamentos – principalmente nas feiras
de artesanato ocorridas em parques da cidade,
Teatro Conchita de Moraes e Casa da Palavra.
Há um alto grau de eficiência nestes debates, pois
há de fato a realização das medidas necessárias
para a superação das dificuldades apontadas.
Tabela 2: Perfil da Pauta na etapa fevereiro 2009/setembro
2009
ATRIBUIÇÕES
˙˙˙
%
1. Construção da Agenda
07
13%
2. Formulação de Políticas
03
5,5%
3. Tomada de Decisões
01
1,8%
4. Implementação de Políticas
05
9,2%
5. Avaliação de Políticas
09
16,7%
6. Outras
29
53,7%
Total
54
100%
Essas questões também se refletem na disposição da sociedade civil em debater questões
no âmbito do CMC/SA. Quantificando-se os
“atos de fala” dos conselheiros não-governamentais, verifica-se que em média, durante o período
de fevereiro2009/ setembro2009, 57% participou
das discussões propostas. Esse número é inferior
ao número de intervenções feitas no período
anteriormente estudado (no qual a média era de
67,4%), com o agravante de que durante essa
fase houve a presença de um número inferior de
conselheiros nas reuniões (a média de 10 conselheiros passou para a de 7). Quanto ao governo,
por sua vez, há uma média geral (conselheiros
presentes X conselheiros que debatem) de atos
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA
TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009)
de fala na faixa de 48% (contra 64% no período
anterior), embora o número de presentes (11
conselheiros/reunião) seja superior à do período
anterior, quando em média 8 conselheiros governamentais estavam presentes na reunião. Desses
dados já é possível inferir da análise quantitativa
dos “atos de fala” que houve a intervenção de
menos conselheiros nas reuniões da nova gestão
municipal, logo, menor número de intervenientes
nos debates que se sucederam no período.
4. Análise Conclusiva
Os dados analisados permitem apontar
para o baixo grau de institucionalidade do CMC/
SA, vale dizer, para a sua baixa efetividade na
construção de políticas culturais locais e na
construção do controle social sobre as decisões
administrativas.
Por primeiro, vê que o CMC/SA congrega,
na mesma linha de conselhos antes analisados
pela literatura, uma parcela minoritária da população andreense dotada de condições econômicas
e educacionais superiores aos de grande parcela
dos munícipes. Quanto à cultura política, os
conselheiros civis sofrem com o abstencionismo
nas comissões, além de terem baixo engajamento
em associações, sindicatos e outros espaços de
participação social, o que justifica o seu menor
grau de mobilização.
O projeto político foi crucial nessa análise.
Todavia, não se aderiu à ideia de que os governos
são monolíticos e, portanto, todas as diretrizes
tomadas pelo chefe do executivo repercutem
diretamente no comportamento do secretariado e
dos conselheiros integrantes do conselho. Para a
tomada de conclusões é necessário distinguir um
projeto político “macro” com relevância mediata
sobre os rumos do conselho e um projeto levado
a cabo de modo específico em cada secretaria e
que dá as características da participação governamental de modo direto no conselho – o projeto
político “micro”.
Se tomado todo o histórico do CMC, o
projeto petista apregoado foi o democráticoparticipativo. Esse discurso foi práxis no período
de implementação do conselho, entretanto, entre
o ano de 2000, quando de fato foi dada existência
legal ao CMC e o ano de 2008, todo esse período foi marcado pela administração petista, mas
com um grau distinto de diálogo dentro dessa
instância.
Daí também porque afirmar-se que o papel
do secretário e a sua capacidade de escolher bons
conselheiros governamentais é fundamental para
o sucesso do CMC. Dos dados examinados acima, vê-se que o CMC/SA no período de maio
2008/dezembro 2008, com relação ao governo,
este é ativo no debate, tanto por meio dos conselheiros quanto pela participação de outros
agentes culturais, que durante as reuniões fazem
a apresentação da estrutura da cultura na cidade
e permitem a formação de um debate mais consciente sobre a formulação de políticas públicas.
Há um enriquecimento progressivo da cultura
política dos membros integrantes da sociedade
civil e uma posição institucional voltada para o
debate. Isso se reflete no número de presentes
nas reuniões do CMC/SA.
Adequando tal fenômeno à tipologia de
conselhos proposta por Draibe (1998, p. 14)16,
pode-se dizer que o conselho apresenta uma
postura pautada pela negociação, cujas características são o diálogo e a prática de aprovação
por consenso. Há um progressivo crescimento do
poder de fala de ambos os lados, a prática da comunicação produtiva. O projeto político “micro”
é, no período, fator crucial para dar seguimento
às atividades do conselho e a sociedade civil
responde a isto com uma participação constante
e importante em todas as reuniões realizadas.
Todavia, com a mudança de gestão há uma
mudança no padrão de relacionamento entre a
sociedade civil e o governo, o que diminui grandemente este caráter propositivo das reuniões.
Embora o secretário apresente um discurso de
continuidade dos bons projetos e da legitimidade do conselho como fórum para a formulação
de políticas culturais, falta ao gestor a mesma
habilidade para articular áreas ligadas à cultura
e dialogar com a sociedade civil. Por essa razão,
há um progressivo esvaziamento do conselho.
Quanto à pauta, na opinião da maioria dos
conselheiros da sociedade civil e do governo,
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
93
BARROS, J. M.
o CMC/SA é pautado por “questões pontuais”,
que não alcançam a verdadeira tarefa de planejar
políticas macro para a cidade, há também um
papel deficiente de controle social e fiscalizador da sociedade civil. As reuniões do CMC/
SA passam a apresentar um quorum reduzido,
e essa é a resposta da sociedade civil, já sem
a presença de representantes das comissões de
música e de artes visuais, e com a pauta voltada
para questões procedimentais e para a execução
da política pública deliberada na gestão anterior.
Na tipologia proposta por Draibe, pode-se
dizer que o CMC/SA passa a se pautar pelo conflito, pela desconfiança mútua entre a sociedade
e o governo. Tal quadro tem por conseqüência a
paralisia. O debate em torno das poucas propostas trazidas ao CMC neste período é em alguns
momentos tenso – com forte polarização entre
membros da sociedade civil e do governo – e,
em outras ocasiões, apresenta um “marasmo”
definido pela solução de questões pontuais e
que não geram discussões. Para somar a isso,
ao longo do período foram sendo manifestados
pontos de tensão entre a secretaria de cultura e
coletividades de equipamentos públicos.
Assim, chegou-se à conclusão que de fato
essa institucionalidade ainda possui um potencial relevante de democratização das decisões
políticas ainda não utilizados pelos atores que
a compõe, seja pela inexperiência da gestão no
compartilhamento de decisões políticas, seja
pela falta de mobilização da sociedade civil que
não se apropriou devidamente deste canal. Nota
na discussão dos dados analisados que, com a
eleição do novo governo e a nova composição
governamental do CMC/SA, houve uma sensível diminuição no poder de articulação entre
os conselheiros, em razão da formação de uma
relação receosa mútua. Verifica-se, da análise
das atas anteriores, sobretudo a partir de maio
de 2008, quando foram eleitos os conselheiros
civis, um esfriamento no debate, no sentido de
serem postos em pauta temas pontuais, mais
relacionados à preocupação da manutenção dos
aparelhos culturais já existentes na cidade do que
de fato a procura por tomar novas decisões no
sentido de ampliar a cultura local. Há em ambos
os lados uma falta de entendimento, não por um
94
abafamento da voz, mas, em certa medida, pela
ideia dos próprios conselheiros de que o CMC/
SA não é apto a formar uma relação de parceria
entre a sociedade civil e os novos atores estatais.
Essa constatação, porém, não pode ser interpretada como conservadora, ou apontar para
a deslegitimação do CMC/SA como um espaço
de disputa e discussão entre os dois setores. O
CMC/SA, assim como os demais conselhos
gestores locais, tem o mérito histórico de dar
maior transparência às decisões tomadas pelo
governo bem como caminha para a formulação
conjunta de decisões para a cultura da cidade,
a exemplo do EnCasa, política voltada às artes
cênicas debatida nessa pesquisa. Falta, porém,
a compreensão de que a mera criação desse
espaço institucionalizado não democratiza a
gestão, nem a participação é uma finalidade
em si mesma. A mobilização da sociedade é o
motor capaz de garantir que este espaço passe
efetivamente a exercer controle social, sua faceta
mais importante, e induzir o Estado a realmente
pensar a alocação dos recursos públicos em ações
socialmente relevantes.
Notas
3
4
O chamado “modelo liberal” é integrado por teorias da
democracia que guardam como característica comum a
ideia de que a representação política é a solução adequada
para responder à tensão entre a complexidade social e a
soberania popular. Destacam-se nessa categoria as teorias
de Schumpeter, que entende a democracia como “um
método político, isto é, certo arranjo institucional para se
chegar a decisões políticas e administrativas”, atribuindo
ao povo o papel de formar um governo (1961, p. 328);
Bobbio, para quem a democracia se constitui como um
conjunto de regras para a formação de maiorias e Dahl,
para quem o tamanho da unidade – número de pessoas
e espaço físico - e o tempo são fatores que determinam
a limitação dos mecanismos participativos, devendo a
inclusão política realizar-se mediante a representação
política qualificada por um processo eleitoral livre, justo
e habitual (Santos; Avritzer, 2002).
Fazendo uma referência à experiência brasileira como
Estado Democrático de Direito, Marcelo Neves aponta o
caráter instrumental do direito no país, que abre margem
à restrições complexas “’à ‘autonomia privada’ e à ‘autonomia pública’ no sentido habermasiano, ou seja, não se
desenvolvem, respectivamente, os direitos humanos e a soberania do povo (...). Na medida em que os direitos humanos constitucionalmente estabelecidos como fundamentais
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA
TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009)
não se concretizam, fortifica-se o significado dos favores e
do clientelismo. Com esse problema relaciona-se a fragilidade dos procedimentos constitucionais de legitimação
das decisões políticas e da produção normativo-jurídica.
No lugar da legitimação por procedimentos democráticos,
em torno dos quais se estruturaria uma esfera pública
pluralista, verifica-se uma tendência à ‘privatização’ do
Estado”’. (Neves, 2008, p. 247).
5
Art. 1°, parágrafo único. “Todo o poder emana do povo, que
o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente,
nos termos desta Constituição”.
6
A participação popular como elemento da organização da
Administração Pública, também influiu na estruturação
da máquina administrativa e na divisão de competências
decisórias, por meio da institucionalização de diversos
canais de participação direta da sociedade civil na tomada
de decisões e na divisão de tarefas. Sua concretização se
encontra em diversas regras do texto constitucional, dentre
as quais: i) o art. 14 que legitima a iniciativa popular como
provocadora do processo legislativo; ii) a definição da
obrigatoriedade da participação popular na elaboração de
diversas políticas sociais, tais como as de seguridade social
(que engloba as ações da assistência social, previdência
social e saúde - artigo 194, VII), educação (206, VI),
de comunicação social (224) e de criança e adolescente
(227, caput). Regulamentados por leis ordinárias, esses
dispositivos constitucionais deram gênese aos conselhos
de políticas.
7
Em muitos casos a paridade entre os membros da sociedade civil e do governo representa uma mera igualdade
numérica e não em uma igualdade política, vale dizer,
não há equilíbrio na disposição dos interesses em conflito.
Tal desigualdade pode estar relacionada à assimetria na
obtenção de informações dos órgãos públicos, poucos recursos subjetivos dos conselheiros – engajamento -, pouca
capacidade de mobilização que insula os conselheiros
civis, formadores de poucas redes sociais, dificuldade
de a sociedade civil se dedicar com tempo e recursos
financeiros aos projetos e atribuições desse espaço ou de
os conselheiros do governo encararem tal espaço como de
partilha de poder e não mais uma de seus encargos como
servidor público.
8
Este projeto político tem por núcleo a radicalização e o
aprofundamento da democracia por meio da emergência de
democracia participativa, utilizada para superar as lacunas
e fragilidades das modalidades de democracia liberal.
9
Aidan Ravin (PTB) conquistou 214.810 votos (55%),
contra 175.513 votos (44%) de seu adversário, Vanderlei
Siraque (PT). No primeiro turno, o petebista havia somado
21% dos votos válidos, contra 48,9% do candidato petista.
10
Em seu discurso de posse, Aidan Ravin indica a vontade
de mudança do projeto: “Não foi fácil chegar aqui. Quem
votou em mim queria mudança e nós estamos aqui para
virar a página e começar uma nova história”
11
As entrevistas foram feitas entre os dias 03.07.2009 e
10.08.2009.
12
“Art. 270 – Será criado o Conselho Municipal de Cultura
com composição, funcionamento e competência regulados
na forma da lei”.
13
A representação da sociedade civil, por sua vez, se dá por
meio da eleição dos conselheiros dentro das comissões temáticas nas quais se subdivide o CMC/SA e é considerada
serviço público relevante. Esses membros são eleitos para
um mandato de dois anos, sendo possível uma recondução
na hipótese de haver a renovação de pelo menos 30% dos
conselheiros. A escolha do conselheiro ocorre por votação
direta em Assembleia Geral especialmente convocada para
esta finalidade. De acordo com o artigo 4° da Lei, são as
comissões temáticas: artes cênicas, audiovisual, música,
artes visuais, literatura e artesanato.
14
Não foi possível a entrevista de uma das conselheiras,
pois, ao tempo da execução dessa etapa do projeto, a
mesma se encontrava em licença da Secretaria de Cultura,
Lazer e Turismo.
15
Tal pesquisa foi realizada pelo IBGE no suplemento da
Pesquisa Mensal de Emprego (suppme) de abril de 1996,
que abrangeu seis das dez áreas metropolitanas do país:
Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São
Paulo e Porto Alegre, cidades que, somadas, possuem 25%
da população brasileira.
16
Pesquisando sete conselhos de políticas sociais em âmbito
federal, a autora mapeou quatro padrões de relacionamento
entre sociedade civil/governo: negociação, conflito, cooperação e burocrático. Os conselhos pautados pela negociação são caracterizados pela construção do consenso por
meio do debate, em uma dinâmica dialógica de avaliação
e difusão do impasse, resultando em um processo de produção de políticas produtivo e autônomo e num exercício
de efetiva partilha de poder. Nas instâncias orientadas
pelo conflito, por sua vez, embora haja tensão entre os
atores, há a possibilidade de formarem-se consensos por
meio do debate mais enérgico, viabilizado pela ênfase no
esclarecimento quanto às regras internas, embora conviva
com indefinições e concorrência com funções do órgão ao
qual é vinculado; é um conselho igualmente produtivo e
propositivo. Pode ocorrer, entretanto, que desse quadro
resulte uma situação de mútua desconfiança, gerando a
paralisia e a pouca influência nas decisões. Nos conselhos
com padrão de cooperação, existe uma baixa ou nula divergência interna, com forte autoridade moral, resultando
em um conselho relativamente produtivo. Finalmente,
nos conselhos com padrão de interação burocrática, esta
instância carece de mecanismos de negociação, há um forte
abstencionismo do governo e isso gera como resultado o
seu pouco poder de influência, sendo pouco propositivo,
tendo apenas vida formal.
Referências
AVRITZER, Leonardo. 2002. Democracy and
the public space in Latin America. Princeton,
New Jersey: Princeton University Press.
AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. 2004.
Teoria crítica, democracia e esfera pública:
concepções e usos na América Latina. Rio de
Janeiro: Revista Dados. Vol. 47, nº 4.
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
95
BARROS, J. M.
BAQUERO, Marcello (2208). Quando a instabilidade se torna estável: poliarquia, desigualdade
social e cultura política na América Latina. In:
Revista Debates. Porto Alegre, v. 2, n. 2, jul.-dez.
2008, pp. 48-69
DAGNINO, Evelina (1994). Os movimentos
sociais e a emergência de uma nova noção de
cidadania. In: ___ (org.). Anos 90: política e sociedade no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1994.
DRAIBE, Sônia Maria (1998). A nova institucionalidade do sistema brasileiro de políticas
sociais: os conselhos nacionais de políticas
setoriais. In: Cadernos de Pesquisa do NEPP
(n. 35). Campinas: NEPP-Unicamp
FUKS, Mário, PERISSINOTTO, Renato &
RIBEIRO, Ednaldo Aparecido. (2003). Cultura
política e desigualdade: o caso dos conselhos
municipais de Curitiba. Curitiba: Revista Sociologia e Política, nº 21, novembro.
FUNDAÇÃO SEADE (2000). Perfil do Município de Santo André:2000. Disponível em: http://
www.seade.gov.br/produtos/perfil/perfil.php.
Acessado em: 10/07/2009.
GOHN, Maria da Glória (2000). O papel dos
conselhos gestores na gestão urbana. In: RIBEIRO, Ana C. T. R. (org.). Repensando a Experiência da América Latina: Questões, conceitos e
valores. Buenos Aires: CLACSO.
LAVALLE, Adrian G (2003). Sem pena nem
glória: o debate sobre a sociedade civil nos anos
1990. In: Novos Estudos. São Paulo: CEBRAP.
jun. 2003, pp. 91-109.
MINISTÉRIO DO PLANEJAMENTO, ORÇAMENTO E GESTÃO (2007). Instituto Brasileiro
de Geografia e Estatística – IBGE. Perfil dos Municípios Brasileiros Cultura 2006: Pesquisa de
Informações Básicas Municipais. Rio de Janeiro.
NEVES, Marcelo (208). Entre a Têmis e o Leviatã: uma relação difícil: O Estado Democrático de
Direito a partir e além de Luhmann e Habermas.
2ª edição. São Paulo: Martins Fontes.
RODRIGUES, Iram Jácome (1995). O sindicalismo brasileiro: da confrontação à cooperação
conflituosa. In: São Paulo em Perspectiva. São
Paulo, v. 9, n. 3.
SANTOS, Boaventura de Sousa (2003). Democratizar a democracia: os caminhos da democracia participativa. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira.
TATAGIBA, Luciana Ferreira. Participação, cultura política e Modelos de Gestão: A democracia
gerencial e as suas ambivalências (2003). Tese
de Doutorado defendida no curso de Doutorado
em Ciências Humanas: Sociologia e Política da
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
HABERMAS, Jürgen. 2003. Direito e democracia: entre facticidade e validade. Volumes I e II,
2ª edição. Tradução: Flávio Beno Siebeneichler.
Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.
96
Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010
Download

a institucionalização da participação