MEU SÃO JOSÉ DE GESSO
José Mario Rodrigues
As primeiras lembranças nem sei, devem ter sido levadas pelas águas
do Rio Pajeú na cidade de Flores. Outras, bem que poderiam ser como
fumaça de queimadas passando na estrada: uma rua que ficou na
imaginação, as cajaranas dizimadas pelo progresso e, sobretudo, a
hecatombe de l952, em que morreram um cabo, quatro soldados e um
médico.
Na saída para o catecismo ouvimos tiros pro lado do centro da cidade.
Corremos para dentro de casa. Alguém gritou: “levem as crianças para o
quarto”. Pelas frestas da janela, pouco tempo depois, vi um carro de boi
levando dois homens mortos. Eis o meu primeiro encontro com a tragédia.
Germinava a consciência da vida que esta exposta à morte. E veio o medo,
incertezas, expectativas e tudo o que reage imprevisível por excesso de
espanto.
Mas porque estou lembrando tudo isto? Serão tristezas que já
concluíram o seu círculo e voltam para me atazanar? Não é agora “um
retrato na parede?” Ah, já sei, é mesmo de minha natureza a longa ausência
de alegria. Tem razão Hélio Pelegrino que em conversa com Clarice
Lispector, definiu: “Viver é consumir-se, é queimar o carvão do tempo que
nos constitui”.
Quando criança gostava muito de santos, de festa religiosa, de
procissão. Vendo na missa de canonização do Frei Galvão o menino Enso,
lembrei-me da minha primeira comunhão. Meu pai era muito religioso e
me deu de presente um São José e logo fiz um altar no meu quarto. Depois
que cresci perdi o interesse por assuntos de religião e voltei-me para coisas
sem nenhuma transcendência. Imaginem, quase me filiei ao partido
Comunista. Felizmente não concretizei essa bobeira nem levarei pelo resto
dos meus dias tamanho arrependimento. Assim mesmo, estão no meu
currículo duas prisões: uma em l964, em frente ao Colégio Diocesano de
Garanhuns. A outra já no Recife, no primeiro ano de Universidade, por ter
participado do Diretório Estudantil.
Volto à imagem do meu São José. Na mesa onde estava o santo,
depositei uma caixinha de papelão para que meus pais e os familiares
visitantes colocassem moedas. Religião, dinheiro e poder se entrelaçam per
omnia sécula seculorum.
Ainda não tinha seis anos de idade. Meu irmão, quatro anos mais
velho, não dava nenhuma importância à minha carolice infantil, pois já
entendia que santo não precisava de dinheiro. Ele esperou que a caixa
ficasse mais pesada e fugiu para a mercearia onde fez uma baita farra de
chocolate, confeitos e refrigerantes.
Ao perceber a falta do dinheiro, desabei no choro e logo descobri
o verdadeiro responsável. O pior estava para acontecer. Peguei um cabo de
vassoura e fiquei na tocaia, preparando atrás da porta a cacetada da
vingança. Ao fazer força em direção a cabeça do meu irmão, acertei à
imagem do santo que se espatifou no chão. Matei, assim, meu São José de
Gesso.
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