Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região Nordeste – João Pessoa - PB – 15 a
17/05/2014
Recôncavo da Bahia: A festa da Boa Morte através de registros fotográficos1
Murilo de Jesus Santana2
Juciara Maria Nogueira Barbosa3
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, Cachoeira, BA
Resumo
O objetivo deste artigo é apresentar alguns aspectos históricos sobre a Irmandade da Boa
Morte e averiguar, em fotografias sobre a festa da Boa Morte produzidas por Pierre
Verger, Adenor Gondim e Pedro Archanjo, as contribuições desses fotógrafos para a
afirmação de aspectos da tradição através de registros fotográficos bem como investigar
as semelhanças e diferenças na produção de imagens da festa.
Palavras-chave: Irmandade da Boa Morte. Fotografia. Recôncavo da Bahia.
Durante o mês de agosto a cidade de Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, a 110
km da capital (Salvador), é cenário para a festa da Boa Morte4. O evento apresenta
aspectos do culto a Nossa Senhora aliados a influências africanas, trazidas para o Brasil
no período colonial. De forte tradição portuguesa, as festividades de Nossa Senhora da
Boa Morte vêm sendo organizadas em Cachoeira pela Irmandade da Boa Morte, que é
uma confraria religiosa fundada no século XIX e formada por mulheres negras, com idade
superior a 50 anos, pertencentes ao candomblé e devotas de Nossa Senhora. A Irmandade
reúne-se regularmente em sua sede, na Rua 13 de maio, no centro histórico de Cachoeira.
Por sua importância histórica e cultural, a Irmandade da Boa Morte já foi tema de
importantes estudos, que têm contribuído para elucidar sua trajetória e registrar variados
aspectos de suas contribuições para a cultura baiana.
No entanto, ainda que seja possível encontrar diversas pesquisas sobre a Boa
Morte realizadas por prestigiados autores, a exemplo de Pierre Verger (2002), Renato da
Silveira (2006) e João José Reis (1991), é importante ressaltar que por sua dinâmica e
riqueza, a festa desperta o interesse para outros olhares, que tratem de novos ângulos
dessa importante tradição que tem sido registrada em imagens por muitos fotógrafos. Por
esse viés, cumpre observar que as imagens são, indubitavelmente, materiais de suma
importância para evidenciar feições da festa e a comparação de imagens de diferentes
– Comunicação Audiovisual do XVI Congresso de Ciências da Comunicação na Região
Nordeste realizado de 15 a 17 de maio de 2014.
1 Trabalho apresentado no DT 4
2
Estudante de Graduação 4º. semestre do Curso de Jornalismo da UFRB. Bolsista PROPAAE, e-mail:
[email protected]
3
Orientadora do trabalho. Professora do Curso de Jornalismo da UFRB, e-mail: [email protected]
4
A festa de Nossa Senhora da Boa Morte passou a ser patrimônio imaterial da Bahia a partir do Decreto
de número 12.277, de 01 de julho de 2010.
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períodos poderá trazer algumas contribuições sobre como se dá a afirmação desta
tradição, também, a partir de fotografias. Assim, o presente artigo tem como propósito
apresentar alguns aspectos históricos sobre a Irmandade da Boa Morte e averiguar, em
fotografias sobre a festa produzidas por Pierre Verger, Adenor Gondim e Pedro Archanjo,
as contribuições desses fotógrafos para a afirmação da tradição da referida festa, bem
como investigar as semelhanças e diferenças entre as imagens selecionadas 5. O presente
estudo foi desenvolvido entre 2012 e 2013 como parte do projeto de pesquisa Recôncavo
da Bahia: tradição e contemporaneidade, do grupo de estudos ARCCO – Arte, Cultura
e Comunicação, vinculado à Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB).
1. ASPECTOS HISTÓRICOS
No início da era cristã o culto a imagens não era apropriado, mas, a partir da Idade
Média, a utilização destas passou a ser importante para auxiliar na propagação da religião
católica. Conforme assinala Silveira (2006), este foi um recurso usado pelo Papa Gregório
I, a partir do século VII, com o intuito de evangelizar o rebanho (fiéis). Neste sentido,
estabelecia-se um programa de comunicação social no qual a imagem tinha a função de
desempenhar um papel crucial na educação das populações iletradas. Diante da
conjuntura religiosa daquele período, o Papa Gregório se apropriou de elementos do culto
pagão, dentre eles a utilização das imagens, e incorporou-os ao culto católico. Ainda
assim, as imagens não deveriam ser adoradas como os pagãos o faziam, mas serviriam
para adorar aquilo que evocavam, significando um meio de estreitar a relação com Deus,
pois o escrito oferece aos leitores aquilo que a pintura oferece aos simples que a
olham: nela os ignorantes vêem aquilo que eles devem imitar, nela lêem os
analfabetos; por este motivo, para os bárbaros, sobretudo, a pintura toma lugar da
leitura [...] Não sem razão o costume admitiu que sejam pintados nos lugares
sagrados narrativas das histórias dos santos (SILVEIRA, 2006, p. 132).
Em vista disso, Silveira (2006) relata que as imagens exercem função eficaz no
processo de educação e evangelização, desempenhando, também, um papel psicológico
relevante no dispositivo colonizador – ao contribuir para a formação da mentalidade
submissa, e sociológico – representando o ponto de atração para a reunião do “rebanho
disperso” na confraria:
5
Agradeço à Fundação Pierre Verger por ter disponibilizado para pesquisa e reprodução o exemplar da
revista O Cruzeiro que se encontra em sua biblioteca. Agradeço aos fotógrafos Adenor Gondim e Pedro
Archanjo por terem concedido entrevistas e cedido algumas imagens que ilustram este artigo.
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[...] a imagem é a única possibilidade de reunir e de instruir em um meio rústico:
quando auxiliada ao verbo, pelo aroma inebriante do incenso e outros recursos
cenográficos, a Igreja passa a dispor de um poderoso recurso multimidiático que
propicia o controle do imaginário, da ideologia e dos afetos (SILVEIRA, 2006, p.
134).
Neste sentido, o culto aos santos se tornou carro-chefe do projeto de evangelização
do Papa Gregório I, e a imagem passou a fazer parte da vida cotidiana das pessoas, que
estabeleciam com o ícone sagrado um vínculo perene de devoção através do qual era
impossível dissolver os ideais de fé consolidados com a doutrina religiosa. Ainda
conforme assinala Renato da Silveira (2006, p. 127-454), as mais antigas irmandades
cristãs de leigos foram fundadas desde o início da era cristã, no Império Romano e a
primeira irmandade negra foi constituída em Portugal, no ano de 1229, formada por
ferreiros e profissionais afins, com o intuito de prestar o culto, promover assistência social
e funerária.
No século XVI, após a Reforma Protestante, as irmandades surgiram como uma
estratégia, tendo em vista que “para defender seus dogmas, a Igreja Católica reforçou o
papel do clero e o poder dos intercessores, representados pela Virgem e pelos santos
venerados em suas imagens e relíquias. Tais entidades se tornaram as protetoras de
inúmeras irmandades no Velho Mundo” (ISHAQ, 2006, p. 67). Essas entidades passaram
a desenvolver diversas atividades junto à sociedade. Um exemplo destacado por Vivien
Ishaq (2006, p. 67) é a Irmandade da Misericórdia de Portugal, fundada pela rainha d.
Leonor em 1498: a ela cabia o privilégio de enterrar os mortos e tinha tão destacado papel
que a partir de 1593 passou a estender o monopólio de funerais que detinha para vilas e
cidades coloniais, espalhando-se a partir de então por vários territórios sob o domínio de
Portugal, a exemplo de Luanda, Macau, Salvador, Rio de Janeiro, Nagasaki e Goa.
Constata-se portanto que, no Brasil, as duas mais importantes cidades do período colonial
já abrigavam essa devoção.
1.1 UM POUCO DA HISTÓRIA DAS IRMANDADES NO BRASIL E NA BAHIA
No Brasil, a organização católica se impôs pela ação das ordens (a exemplo da
dos franciscanos e da dos jesuítas), pela construção, organização e administração de
igrejas e conventos e, ainda, pelas ações desenvolvidas sistematicamente em conjunto
com entidades associativas leigas, tais como as das ordens terceiras6, confrarias e
6
As ordens terceiras são ordens religiosas destinadas a leigos, agregadas a uma grande ordem monástica.
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irmandades. Conforme observou Vivien Ishaq (2006, p. 66-70), assim como ocorria em
Portugal, nas colônias as irmandades eram administradas por pessoas leigas e as
autoridades eclesiásticas eram orientadas para permitir e estimular o surgimento e
organização dessas associações. “Toda irmandade era regida por um ‘Compromisso’,
como era denominado o estatuto interno. Este tinha que ser submetido à aprovação da
Igreja e da administração colonial, para que a associação obtivesse licença para
funcionar” (ISHAQ, 2006, p. 68).
Enquanto as grandes ordens religiosas se impuseram no litoral brasileiro desde o
século XVI, por interesse econômico, no século XVIII em Minas Gerais houve um
acentuado incentivo para a instalação das irmandades. Em estudos realizados sobre
aspectos da vida político-religiosa de irmandades mineiras, Maria do Rosário Gregolim e
Fábio César Montanheiro (2001, p. 200-208), apresentaram interessantes aspectos
históricos acerca das relações entre política e religião no referido período. De acordo com
os citados autores, pelo Padroado Régio7 na qualidade de grão-mestre da Ordem de Cristo,
ao rei português caberia a responsabilidade de construir e ornamentar as igrejas, bem
como manter o culto e o clero. Desse modo, bispos e párocos faziam parte da folha de
pagamento da Coroa e a religião tinha um aspecto “estatal”, servindo tanto como modo
de controle quanto para a demarcação de território, através, por exemplo, da instalação
de sedes episcopais. Neste período, o dinheiro arrecadado com a cobrança de dízimos ia
para os cofres régios, mas depois não era adequadamente destinado aos objetivos
religiosos. Procurando meios para não arcar com os onerosos encargos exigidos para a
manutenção da esfera religiosa, em Minas Gerais não se estimulou a instalação das
grandes ordens religiosas, tais como as dos jesuítas, franciscanos, carmelitas e
beneditinos. Ao invés disso a Coroa incentivou a instalação das irmandades, que deveriam
construir suas próprias igrejas e arcar com os custos de seus eventos: “os complexos e
caros cerimoniais do culto religioso eram, desta forma, transferidos à população. Em
virtude disso, tanto à coroa quanto ao clero interessava muito o desenvolvimento das
ordens terceiras e confrarias” (SALLES, 1963, p. 27 apud GREGORIM;
MONTANHEIRO, 2001, p. 203).
Organizadas por diferentes grupos sociais, as irmandades em muito contribuíram
para construir e consolidar a hierarquização da sociedade colonial e, bem distante da
homogeneidade que o termo ‘irmandade’ pudesse sugerir, essas entidades eram
7
Padroado seria o direito adquirido por quem fundou ou adotou uma igreja.
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sistematicamente ordenadas por diferentes grupos, embora deva-se observar que tais
organizações procuravam contemplar desde os mais ricos proprietários de terra até os
escravos ou egressos da escravidão. Conforme observou Afonso Ávila (1999-2000, p. 95104), no século XVIII, em Minas Gerais, eram várias as agremiações religiosas existentes.
Organizadas desde o início do povoamento, as primeiras a se constituírem foram a do
Santíssimo Sacramento e a do Rosário. Da primeira, faziam parte os irmãos brancos; da
segunda, os pretos. Mais tarde, no período entre 1720-1740, em razão da mestiçagem
entre os elementos branco e negro, surgem irmandades de pardos, que passam a agregar
esse novo tipo, fruto da miscigenação racial que em Minas ocorreu em larga escala.
A organização por posição social e distinção de cor era uma realidade. Em
Salvador, as irmandades do Santíssimo Sacramento e de Nossa Senhora da Conceição da
Praia reuniam os homens mais ricos da cidade e os naturais de Portugal (SANTOS, 2002,
p. 83-96). Em meados do século XVIII eles reergueram, em dimensões colossais, a Igreja
de Nossa Senhora da Conceição no mesmo local onde Tomé de Souza fez construir uma
capela sob a invocação de Nossa Senhora da Conceição, ainda em 1549, quando chegou
à Bahia com o objetivo de fundar a cidade de Salvador. Embora criada e dirigida pela
elite da época, como era de praxe, a Igreja abrigava outras confrarias de leigos, tais como
a Irmandade de São Benedito e a do Rosário dos Pretos (SANTOS, 2002, p. 89). Cabe
lembrar que cada entidade tinha seus estatutos e os compromissos assumidos deixavam
claros os deveres e direitos dos associados, mas para manter o culto ao santo de sua
devoção era preciso ter, ao menos, uma capela ou altar lateral em uma igreja cuja
irmandade fundadora ou responsável, aceitasse abrigar em sua estrutura altares de outras
irmandades, visando colaborar para a plena aceitação da religião católica.
É relevante registrar também que, segundo Caio Boschi (2005, p. 62-66), fazer
parte de uma ou mais irmandades era necessário tanto para a vida como para a morte,
visto que não aderindo a elas, as pessoas se viam desamparadas. Essas associações se
organizavam com objetivos diversos, não apenas para atender aos seus ante às
dificuldades, mas quanto a um sepultamento digno e a celebração de missas pela salvação
das almas. Era confortável ter essa confiança em ser amparado tanto na vida como na
morte, por isso a participação nas irmandades – principalmente para os negros – tinha
especial importância e congregava tanto homens livres quanto escravos, sendo este um
importante espaço de convívio que possibilitava o encontro, diálogo e fortalecimento de
laços para além do limitado ambiente de domínio em que viviam.
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As irmandades tinham certa autonomia mas estavam atreladas às diretrizes da
Igreja e, por mais que houvesse o desejo de se tornarem independentes elas recorriam
constantemente, em suas deliberações, às instâncias superiores. Sobre este aspecto, Pierre
Verger citou como exemplo um episódio ocorrido com uma das mais antigas confrarias,8
a Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora das Portas do Carmo, que foi
“[...] uma associação religiosa de católicos dos dois sexos, de cor preta, de vida exemplar,
tendo meios honestos de subsistência e praticando como bons cristãos os mandamentos
de Deus e da Igreja” (VERGER, 2002, p. 555). Em 1786 esta confraria, notadamente
frequentada por negros angolanos, recorreu à rainha de Portugal para que ela lhe
concedesse a permissão para realizar suas festas:
Dizem os negros, devotos da Gloriosa Senhora do Rosário, da cidade da Bahia, que
antigamente lhes era permitido, para o maior e geral contentamento e felicidade da
festa da mesma Senhora, usarem máscaras e dançarem cantando em idioma
angolano, com acompanhamento dos instrumentos para as cantigas e louvações;
porque estão privados e que em outros países da cristandade isto se pratica, eles
solicitam à Vossa Majestade pela sua alta piedade e real grandeza, para serviço de
Deus e da mesma Senhora, que se digne conceder a permissão aos suplicantes de
realizarem suas festividades, pois parece agradar muito à sempre gloriosa Mãe de
Deus (VERGER, 2002, p. 555).
A norma era de obediência e submissão às diretrizes da Coroa e da Igreja, que
vigiavam de perto seus súditos e fiéis.
2. O SURGIMENTO DA IRMANDADE DA BOA MORTE
Convém destacar a presença do negro no âmago das confrarias entre os séculos
XVIII e XIX, levando-se em consideração que isto denotava prestígio, possibilitava a
preservação, difusão de valores étnicos e de resistência cultural, e permitia relativa
autonomia em uma colônia marada pelo regime escravocrata. Nesse cenário surgiu na
velha cidade da Bahia, na Igreja Barroquinha, por volta de 1820, a Devoção de Nossa
Senhora da Boa Morte – que mais tarde se tornou Irmandade de Nossa Senhora da Boa
Morte, formada por mulheres de idade avançada, negras libertas, devotas de Nossa
Senhora e que realizavam práticas religiosas de matriz africana. Segundo Cecília Soares
(1996, p. 57-71), essas mulheres desempenharam papel econômico fundamental, pois
vendendo produtos alimentícios tais como quitutes, acarajés e doces, passaram a obter
fundos para o sustento delas e se organizaram economicamente para comprar a própria
8
Esta confraria foi fundada na Igreja de Nossa Senhora do Rosário do Pelourinho.
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liberdade e a de alguns escravos, fato que se configurava como uma intervenção social e
política em uma sociedade onde essas mulheres - especialmente as já livres da escravidão
– passaram a usufruir de prestígio e a ter posição destacada em virtude da condição
econômica e da autonomia que conquistaram, sustentando a si e a seus filhos.
Com a liberdade, além de exercerem importante papel socioeconômico naquele
período, as mulheres contribuíram notadamente para a difusão de costumes religiosos
africanos. Embora tivessem a necessidade de expressar suas crenças, a sociedade da
época, sob as diretrizes religiosas da Igreja Católica, repelia a religiosidade africana.
Fosse por ignorância, preconceito ou por outros interesses, os que não seguiam o
catolicismo podiam ser vítimas de discriminação e perseguição. Desta forma, a maneira
encontrada pelas mulheres negras integrantes da Devoção a Nossa Senhora da Boa Morte
para manifestar o culto africano, foi incorporá-lo ao catolicismo. Sobre este aspecto
histórico, Pierre Verger (2002) registrou:
As mulheres nagô-iorubás da nação Queto reuniam-se na Igreja da Barroquinha e
haviam formado a confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, que saía em procissão
sempre a 15 de agosto. Foi à sombra desta igreja que se reuniram os primeiros
participantes nos cultos dos deuses africanos desta nação Queto (VERGER, 2002, p.
555).
Tratando da devoção a Nossa Senhora da Boa Morte e suas relações com a
religiosidade trazida da África, Renato da Silveira observou que
[...] a devoção nos seus primórdios era uma fachada para mascarar o culto dos orixás
ligados à fertilidade, à terra e às águas, jamais possuiu um compromisso, nem se
vinculou a nenhuma igreja, tendo sido, desde sua origem, uma entidade
exclusivamente feminina [...] (SILVEIRA, 2006, p. 447-448).
Na festa da Boa Morte, as devotas se apresentavam com pompa, vigor e
animação. O culto à Santa e aos Orixás se unificava, revelando uma expressão sincrética
que retratava veneração, respeito e entrega das irmãs. Todavia, apesar de demonstrarem,
de forma evidente, real dedicação ao catolicismo, Silveira (2006) averiguou que o culto
africano das devotas da Boa Morte e dos irmãos dos Martírios9, não foi tolerado. Por ter
sido realizado em um candomblé situado na Barroquinha,10 representando incômodo aos
habitantes das imediações e às autoridades que se opunham a tal prática religiosa, em
9
A Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Martírios funcionou na Igreja da Barroquinha, desde 1764, e
contribuiu para a formação do candomblé da Barroquinha, também composto, posteriormente, por
devotas da Boa Morte.
10
O terreiro na Barroquinha estava próximo a residências senhoriais, igrejas, palácios e mosteiros.
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1850 ocorreu “[...] a expulsão do Candomblé da Barroquinha daquela área urbana, uma
iniciativa do grupo chefiado por outro déspota baiano, Francisco Gonçalves Martins, o
Visconde de São Lourenço, um dos líderes locais do Partido Conservador, presidente da
província entre 1848 e 1852 [...]” (SILVEIRA, 2006, p. 269). Ainda por volta de 1850
as mulheres da Devoção de Nossa Senhora da Boa Morte, transferiram-se para
Cachoeira11 – que foi a vila mais rica e populosa da Bahia durante o século XVIII e a
primeira metade do século XIX devido à larga produção do açúcar e ao fato de o porto de
Cachoeira ser importante via para o escoamento de produtos da região:
Além do porto, a movimentação na cidade rumo às estradas era constante durante o
século XVIII, visto que a economia do açúcar estava no auge do seu preço e a
abundância de ouro nas Minas do Rio de Contas se fazia presente. Açúcar, fumo,
ouro e diamantes, descobertos em Mucugê e em Lençóis, no início do século XIX,
eram escoados no porto de Cachoeira (BARBOSA, 2010, p. 18).
O fato das mulheres terem escolhido Cachoeira, no Recôncavo da Bahia, e não
outro lugar, consiste, segundo Barbosa (2010),
[...] nas tensões sociais desenroladas com o fim do tráfico de escravos e o
consequente tráfico ilegal, iniciado em 1850, somado às inúmeras rebeliões escravas,
forte indício para uma desestruturação social que motivou trânsitos entre a capital e
seu Recôncavo. Além disso, as relações dialógicas entre estes dois territórios eram
constantes. Estavam em curso intercâmbios comerciais, econômicos, políticos,
culturais e religiosos (BARBOSA, 2010, p. 46-47).
A Devoção instalou-se no Recôncavo de forma diferenciada: “[...] no passado, ao
chegar em Cachoeira, não procurou se instalar em dependências de nenhuma igreja, assim
como ter seus estatutos aprovados pelas autoridades religiosas, atitude esta que conota
considerável ousadia e coragem” (CASTRO, 2005, p. 46). A primeira sede da Devoção,
em Cachoeira, foi a casa nº 41, chamada Casa Estrela,12 situada na Rua da Matriz, atual
Rua Ana Nery. Foi através de Júlia Gomes, moradora da Casa Estrela e provavelmente a
primeira juíza perpétua da Irmandade, que a devoção teve início em Cachoeira: “Júlia
Gomes fora precursora do culto, juntamente com suas filhas, Julieta Nascimento
(Santinha), que também foi Irmã Perpétua [...]” (BARBOSA, 2010, p. 48).
11
A vila se tornou cidade por meio do decreto imperial de 13 de março de 1837. Sendo tombada pelo
Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, passou a ser considerada Cidade Heroica e
Monumento Nacional através do Decreto nº 68.045, de 18/01/1971. Também é a segunda capital do
estado, de acordo como a Lei Estadual 10.695/07. Todos os anos, no dia 25 de junho, o governo estadual
é transferido para Cachoeira, em reconhecimento pelos feitos da cidade em prol do País.
12
A casa recebe este nome por ter, na calçada em frente a sua fachada, uma estrela de granito de cinco
pontas.
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A partir daí a Devoção passou a se firmar na imponente cidade do Recôncavo,
assumindo a forma de uma Irmandade independente, sem precisar se submeter à
fiscalização das autoridades coloniais. Apesar dessa notável e peculiar independência, a
irmandade manteve cargos semelhantes às demais, com mesa administrativa formada por
provedora, procuradora-geral, escrivã e tesoureira, eleitas segundo o sistema vigente nas
irmandades, com a participação de todos os membros, escrutínio com favas brancas e
pretas, e mandato de um ano. Perdurou comandada por mulheres negras autônomas que
trabalhavam para seu sustento, de sua família e da entidade, exercendo funções como a
de vendedoras de quitutes ou atuando na indústria fumageira – onde a mão-de-obra
utilizada no fabrico do charuto era exclusivamente feminina.
Mantendo os laços com a tradição, ainda hoje a Irmandade reúne-se regularmente
em sua sede atual, na Rua 13 de maio, no centro histórico de Cachoeira, e celebra, de 13
a 15 de agosto, a festa da sua padroeira, Nossa Senhora da Boa Morte, além de prestar
culto aos orixás. O primeiro dia da festa é dedicado à procissão com a imagem de Nossa
Senhora da Boa Morte percorrendo as principais ruas. Em seguida ocorre a missa pelas
almas das irmãs falecidas. Depois, as devotas se reúnem com familiares e convidados
para a Ceia Branca, que consiste em um cardápio à base de frutos do mar e sem azeite de
dendê. No segundo dia é celebrada na Igreja Matriz a missa simbólica para o corpo
presente de Nossa Senhora, seguida pela procissão do enterro. No último dia ocorre a
festa de Nossa Senhora da Glória, as irmãs comemoram a assunção de Maria e saem em
cortejo até a Matriz, onde há missa seguida de procissão. Depois, as irmãs dançam valsa
e é servido almoço para todos os presentes. Nos dois dias subsequentes aos da festa, elas
realizam um samba de roda e distribuem cozido, caruru, mugunzá e pipoca. Assim, a festa
da Boa Morte é uma manifestação que alia à devoção os ideais de resistência sustentados
pelas irmãs que têm sido capazes de, através da preservação do culto sincrético, atrair
muitas pessoas para a festa de sua patrona.
Por sua importância cultural, por sua tradição, beleza e exuberância, a festa da
Boa Morte também se distingue pela singular capacidade de abarcar grande variedade de
referências visuais de forma complexa, rica e sincrética. Talvez por estes motivos tenha
sido, ao longo do tempo, uma manifestação regularmente registrada por diversos
fotógrafos que, através de suas imagens publicadas em jornais, revistas, livros, catálogos,
exposições e, mais recentemente, também na internet, vêm contribuindo para divulgar,
através de imagens, esta singular manifestação cultural. Levando-se em conta a
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importância das imagens como registro, pretende-se destacar as contribuições de Pierre
Verger, Adenor Gondim e Pedro Archanjo para a afirmação de aspectos da tradição
através da fotografia, tratando ainda das semelhanças e diferenças na produção de
imagens da festa.
3. PIERRE VERGER E OS REGISTROS DA BOA MORTE PARA O
CRUZEIRO
Pierre Edouard Léopold Verger (1902-1996) foi um fotógrafo, etnólogo,
antropólogo e pesquisador francês que viveu parte de sua vida em Salvador (Bahia). Ao
longo da vida viajou pelos cinco continentes e realizou um trabalho fotográfico de grande
relevância, registrando aspectos do cotidiano de pessoas diversas. Pierre Verger também
realizou pesquisas de referência sobre a cultura afro-baiana e sobre a diáspora, voltando
seu olhar de pesquisador para aspectos religiosos do candomblé, que tornou-se seu
principal foco de interesse. No Brasil, Verger passou a trabalhar como fotógrafo em
Salvador, contratado pela empresa Diários Associados. Entre 1946 e 1951 realizou
fotografias para a revista O Cruzeiro, veículo de comunicação impressa de maior
circulação nacional naquele período. Em um desses trabalhos, realizado em parceria com
o representante dos Diários Associados na Bahia, Odorico Tavares, teve publicadas 16
fotografias em preto e branco na reportagem N. S. da Boa-Morte das Mulheres Negras de
Cachoeira, publicada na revista O Cruzeiro em 13 de janeiro de 1951.
Figura 1 - Vigília ocorrida no primeiro dia da festa, 13 de agosto. Foto: Pierre Verger (1950).
A fotografia que abre a forreportagem na página 50 (Figura 1) apresenta em
primeiro plano uma imagem de Nossa Senhora deitada no esquife, com o rosto coberto
por um véu e envolta em roupas claras. No canto esquerdo superior destaca-se um ramo
de flores de aparência artificial. No segundo plano, duas mulheres negras usando as vestes
do primeiro dia da festa aparecem de pefil, contemplando a imagem da santa em gesto de
veneração. O registro retrata a dualidade vida e morte, e a escultura da santa representada
como se estivesse morta e admirada pelas devotas, reforça a reflexão sobre o tema.
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Embora o plano fechado limite a visão dos adornos utilizados pelas irmãs, é possível
perceber as argolas e colares que as enfeitam.
Figura 2 – No terceiro dia da festa celebra-se a assunção de Nossa Senhora. Foto: Pierre Verger (1950).
No final da página 52, nos três retratos produzidos por Verger (Figura 2), as irmãs
estão vestidas com traje de gala composto por beca, lenço e pano da costa (originalmente
na cor vermelha) e muitas adereços especialmente ostentados para festejar a ascensão de
Maria ao céu. A luz natural realçou as expressões faciais, e o brilho das volumosas joias
conferiu um forte contraste entre os tecidos escuros e os de cor branca. Especialmente
nesses retratos, Verger destacou os detalhes presentes em cada cena e as fotos valorizam
os ornamentos, vestimentas e símbolos. Além de expressar a religiosidade das irmãs nas
fotografias da Boa Morte, nesses três retratos Verger destacou, através do ângulo contreplongée (de baixo para cima), o queixo erguido das mulheres, demonstrando orgulho,
confiança, destemor, força e resistência.
De modo geral, nota-se que nas fotografias que Verger fez da Irmandade para a
revista O Cruzeiro, predominou a naturalidade nas expressões das irmãs: é como se elas
não se dessem conta de que estavam sendo fotografadas. Pesquisando sobre as fotografias
que Pierre Verger realizou em Salvador no período em que trabalhou para os Diários
Associados, Juciara Nogueira Barbosa (2005, p. 69) destacou a importância do uso da
câmera Rolleiflex para conseguir tal espontaneidade, já que esta câmera não é de visor
direto13. No entanto, observou que o equipamento utilizado, de modo algum diminui ou
desmerece seu talento e profissionalismo, já que “Verger lançou um olhar pessoal,
intimista, cúmplice sobre os que fotografou. Algumas vezes assumiu uma posição de
reverência e respeito, especialmente ao fotografar pessoas ligadas ao candomblé e seus
rituais” (BARBOSA, 2005, p. 69). Certamente nas fotos da Boa Morte que realizou,
13
Mesmo chamando a atenção por ser estrangeiro, Verger não precisava levar a câmera para perto dos
olhos e apontá-la para alguém quando desejava fotografar, mas poderia manusear o equipamento, focar e
disparar de modo discreto, até mesmo sem que a pessoa percebesse que estava sendo retratada
(BARBOSA, 2005).
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sobretudo nos retratos aqui brevemente comentados, pode-se notar reverência e respeito,
tanto nos enquadramentos que privilegiou quanto no próprio tema desta fotorreportagem
que ainda carece de um estudo mais apurado.
4. ADENOR GONDIM E OS RETRATOS DAS IRMÃS DA BOA MORTE
Adenor Queiroz Gondim nasceu em 1950, em Rui Barbosa (Bahia), onde
começou a trabalhar como fotógrafo com o pai, tirando retratos 3x4. Viveu algum tempo
em Itabuna e a partir de 1972 mudou-se em Salvador, onde se formou em Biologia. Desde
a década de 1980 fotografa aspectos do catolicismo popular, candomblé e práticas
sincréticas, festas populares e aspectos do cotidiano. Entre esses trabalhos destaca-se a
festa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, que registra desde a década de 1980.
Curiosamente, seu vínculo com a Irmandade teve início em 1990, ao ser convidado para
fotografar as irmãs e participar da confecção do panfleto Eu vi Boa Morte chorar, que
deveria servir como meio de protesto contra a intolerância religiosa do então Arcebispo
de Salvador, Dom Lucas Moreira Neves. Após essa aproximação, Gondim foi convidado
pelas irmãs para criar um cartaz que contasse a história da Irmandade e, a partir daí, já
são mais de 25 anos fotografando a Boa Morte. Nesse período, ele publicou fotos, textos
e disponibilizou seu acervo como forma de divulgar a Boa Morte por todo o mundo.
Figura 3 - No primeiro dia da festa da Boa Morte ocorre a celebração da dormição de Maria e são lembradas as irmãs
falecidas. Foto: Adenor Gondim (1995).
Nesta imagem são plenamente valorizados os aspectos sincréticos da Irmandade.
Gondim privilegiou um ângulo plongée (de cima para baixo), possibilitando uma visão
do interior da Igreja onde é realizada a celebração da dormição de Maria, no primeiro dia
da festa. A imagem da santa no centro da foto – com suas vestes em azul e branca – é
venerada pelas irmãs que circundam o esquife, caracterizadas com os trajes do primeiro
dia, que segundo Gondim são roupas oriundas das tradições africanas. É perceptível a
ausência de joias, porém, parte delas trazem no pescoço colares do candomblé. Nota-se
ainda que cada mulher segura um cajado com uma vela acesa, simbolizando a luz da vida.
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Figura 4 - Estelita Souza Santana. Anália da Paz dos Santos Leite. Fotos: Adenor Gondim.
Entre os muitos retratos que Gondim realizou da Boa Morte, os das irmãs Estelita
e Anália (Figura 4) foram aqui destacados. Para produzi-los o fotógrafo posicionou as
mulheres contra fundos escuros, contrastando com as cores das vestes e adereços. No
retrato de Estelita ficou também registrada a simplicidade das vestes do primeiro dia da
festa. Já Anália posou para o fotógrafo com as vestes do terceiro dia, 15 de agosto, dia
em que Maria teria subido aos céus de corpo e alma, em uma espécie de triunfo e milagre.
A força e alegria que o dia representa foram realçados também por seu porte forte e altivo,
adornado pela opulência dos adereços. Gondim optou por compor retratos de modo –
sempre que possível – pensado e organizado para alcançar determinado objetivo. Sobre
esta prática, Norbert Schneider (1997, p. 20) observou “[...] os retratos são sempre o
produto de uma composição. São o resultado de um pacto entre o artista e o modelo [...]”.
5
PEDRO ARCHANJO: RETRATOS DE FÉ
Pedro Archanjo da Silva é natural de Maragogipe (Bahia). É sociólogo, fotógrafo
premiado e Mestre em Artes Visuais pela UFBA. Já realizou exposições no Brasil e
exterior e é diretor do Centro Cultural Dannemann onde coordena a Bienal do Recôncavo.
Desenvolve pesquisas sobre arte contemporânea e realiza ensaios fotográficos nos
terreiros de candomblé da Bahia. Archanjo fotografa a Boa Morte desde 1987, com o
objetivo de retratar a importância histórica da expressão estética que a Irmandade traduz,
contribuindo também para a difusão do aspecto mais reflexivo e introspectivo peculiar às
mulheres em determinados momentos da festa da Boa Morte. Tais características podem
ser observadas nas fotografias de sua autoria aqui apresentadas (Figura 5).
3
Figura 5 - Dagmar Bonfim Barbosa dos Santos. Almerinda Pereira dos Santos. Dalva Damiana de Freitas. Fotos:
Pedro Archanjo (Década de 1990).
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Nota-se que nos registros das irmãs Dagmar Bonfim Barbosa dos Santos, Almerinda
Pereira dos Santos e Dalva Damiana de Freitas, Archanjo conferiu uma imponência aos
retratos ao colocá-los em molduras ovais de acabamento dourado. Além destes aspectos,
os retratos valorizam os trajes e o abundante uso de adereços. Para que fosse possível
fotografar as irmãs em momento de concentração e reflexão, ressaltando a entrega aos
princípios religiosos, Archanjo informou que precisou de tempo e paciência, já que no
momento em que fotografava teve de esperar para registar as expressões que buscava.
Além disso, havia muitos fotógrafos ao redor e muita gente acompanhando os festejos,
mas apesar das dificuldades o objetivo foi alcançado. Com esse tipo de registro ele
privilegiou aspectos que contribuem para a afirmação da religiosidade e valorização da
dimensão estética que a Irmandade resguarda.
Cabe observar que através das vestes e adornos, a irmandade evoca a esfera do
sagrado e estabelece a importância do aspecto estético da festa. Sobre esta perspectiva,
Renata Pitombo Cidreira (2013, p. 8) ressaltou que “a roupa, compreendida na sua
dimensão simbólica, é um elemento importante na constituição cultural; reforça mitos e
signos, reestrutura valores e tradições”. Investigando as semelhanças e diferenças nas
imagens da festa da Boa Morte produzidas por Pierre Verger, Adenor Gondim e Pedro
Archanjo, pode-se notar que em todas as vestimentas e adornos têm papel de destaque,
podendo-se, inclusive, identificar o dia em que as fotos foram tiradas pelo tipo de roupa
que as irmãs trajam e pelo modo como se adornam14. Nesse aspecto, constata-se que esse
ar de semelhança contribui para a conservação de valores religiosos, sociais, culturais,
sendo assim de suma importância para a memória e história.
Por outro lado, investigando as diferenças entre as fotografias apresentadas, podese deduzir que elas se dão a partir dos modos próprios de fotografar. As fotos de Verger
têm como traço principal a espontaneidade: parece que as pessoas retratadas nem se
aperceberam que os registros foram feitos. Adenor Gondim, por opção, prefere compor
seus retratos de modo planejado, destacando os aspectos que considera mais importantes
na construção de suas imagens. Já Pedro Archanjo procurou captar momentos de profunda
entrega religiosa, de fé, reflexão e concentração, esperando pacientemente para capturar
seus retratos.
Referências:
14
Apesar de, na atualidade, as joias de ouro não serem mais evidentes em meio aos adereços que as
mulheres usam, as bijuterias realçam a imagem e conferem destaque ao luxo das irmãs.
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