Projecto: Aprender com as dificuldades
© Mª Dulce Gonçalves, 2009
No nosso dia a dia, todas aquelas pequenas ou grandes coisas a que chamamos
dificuldades, não são necessariamente distúrbios, nem patologias, nem perturbações,
nem doenças. São apenas dificuldades. Pequenas ou grandes dificuldades. Coisas em
que experimentamos ou sentimos maior ou menor dificuldade, por alguns momentos ou
de forma persistente, uma única vez na vida ou, nalguns casos, de forma repetida e
recorrente. Dificuldades são uma das características da vida de todos os nós. O pão
nosso de cada dia. Qualquer que seja a nossa idade, o nosso contexto, o nosso modo de
ser ou os nossos objectivos. Se por vezes nos surpreendem, não podemos dizer que
sejam uma surpresa. Se nos queixamos uns mais do que os outros, não significa que
sejam exclusivamente de alguns. Podemos reagir e responder de forma diferente mas, de
uma forma ou de outra, dificuldades todos temos, sentimos, vivemos. Passam por nós
ou nós por elas, com maior ou menor aparato, com maior ou menor tomada de
consciência. Lidamos com elas, com maior ou menor eficiência e qualidade. Com maior
ou menor responsabilidade e controlo. E isso é o que nos distingue, a nós e às
dificuldades1: a forma como reagimos e respondemos perante as dificuldades que
encontramos. As pessoas não se distinguem por ter ou não ter dificuldades . O que nos
distingue é o modo como lidamos e nos confrontamos com as dificuldades, o que nos
distingue é o modo como as procuramos ou as evitamos, como lhes sorrimos ou nos
condenamos…
“Life is difficult.2”
E esta não é a apologia do pessimismo. É apenas uma constatação simples. Toda a gente
encontra, sente, tem dificuldades, com maior ou menor frequência com maior ou menor
gravidade.
Identificamos essas situações com expressões simples: “é uma dificuldade”, “tenho uma
dificuldade”, “estou com dificuldade”. Ser, estar ou ter uma dificuldade não acontece só
a alguns nem caracteriza apenas alguns seres difíceis, diferentes dos outros, dos bons,
dos bem sucedidos, dos que vencem e conseguem. Pelo contrário, sabemos que quase
todos os êxitos e finais felizes passam por momentos ou processos mais ou menos
dificultados, por obstáculos ou impedimentos, por erros ou insuficiências. E, como
sabemos, em muitos casos nem sucesso haveria, não tivesse havido dificuldades...
É assim na vida. Então, porque será que na escola, sendo parte da vida de todos nós,
tendemos a falar e a sentir de forma diferente? Talvez porque na escola como na vida,
tendemos a acreditar que, por via de regra, tudo deve ser fácil e escorreito, que tudo
corre bem quando “é fácil!”. Que a dificuldade é a excepção, que sentir dificuldades é
estar “tudo a correr mal…”
Na escola, falamos de dificuldades de aprendizagem como se de doenças ou anomalias
se tratasse. Falamos de dificuldades como se nos surpreendessem e chocassem. Como
se dificuldades fossem perturbações ou patologias, apenas de alguns ou do próprio
sistema.
1
2
Gonçalves, 2002.
M. Scott Peck from The Road Less Traveled
Ora se há domínio da vida humana em que é razoável, inevitável, esperar dificuldades, é
no domínio da aprendizagem. Em qualquer momento da vida humana, em qualquer
contexto ou ambiente, o que é mais provável é que aprender seja difícil. As dificuldades
são inerentes (e mesmo necessárias) ao processo de aprendizagem. Se tudo for e parecer
fácil, escorreito e linear, será que efectivamente estamos a aprender algo de novo, algo
de sólido…? Quem aprende encontra dificuldades, porque encontra obstáculos, dúvidas,
desafios, perplexidades, novidades, incongruências, resistências… Aprender é difícil
porque aprender é construir, não tanto a partir do nada, do vazio, tabula rasa em que o
saber se insere, mas sempre a partir do que anteriormente se aprendeu. E por isso,
aprender é muitas vezes reconstruir, refazer, repensar, reorganizar. Desfazer para
refazer… desequilibrar, para reequilibrar, substituir estruturas, reformular esquemas.
Numa perspectiva construtivista, aprender é um processo activo de construção de
conhecimento e isso requer o aparecimento e a solução de dificuldades. Neste sentido,
as dificuldades dizem-se processuais e funcionais. Inserem-se e fazem parte do
processo, potenciam a adaptação e a adequação pessoal a situações de aprendizagem.
Isto é, os problemas e os desafios da aprendizagem podem favorecer e contribuir para
aprendizagens mais profundas e de maior qualidade. Neste sentido, as dificuldades
podem até ser geradas, introduzidas de forma consciente pelo professor ou pelo
formador, pelo próprio aluno ou pelos outros, para assegurar mais e melhor
aprendizagem. Os problemas (“problem-based learning”) ou os conflitos cognitivos, as
questões ou as incongruências, são procedimentos comuns no ensino e na avaliação das
aprendizagens, justamente porque incentivam, motivam, qualificam e melhoram o
processo de construção do conhecimento, o processo educativo.
Então, porque falamos de dificuldades de aprendizagem como falamos? Surpreendidos
ou chocados, como característica de alguns e defeito de outros…?
Porque associamos as dificuldades aos distúrbios, a doenças, a deficiências ou
insuficiências. Porque as concebemos como especiais e não como específicas. Porque as
diagnosticamos e classificamos mais do que as resolvemos e ultrapassamos. Porque as
diferenciamos (e aqueles as “têm”) muito mais do que as normalizamos e integramos
num esforço de melhoria contínua das nossas escolas e das nossas aprendizagens.
Este projecto é sobre dificuldades. Funcionais e disfuncionais. Alguns alunos aprendem
algumas coisas com mais dificuldade do que outros, ou com mais dificuldade do que
seria de esperar (por exemplo, em função das suas aptidões). E sobre essas dificuldades
dizemos geralmente muito pouco. Dizemos que o aluno “tem dificuldades”, procuramos
um nome, rótulo ou diagnóstico, procuramos causas e justificações, e até parece que
está tudo dito. Sobre as dificuldades e sobre os alunos que as sentem, dizemos
geralmente muito pouco que seja realmente útil e funcional, facilitador e real. Integral e
autêntico.
Este projecto é sobre dificuldades. Dificuldades na aprendizagem e na vida. E sobre o
modo como alguma legislação recente, na sua superior intenção de ajudar, pode
dificultar (e muito) o muito pouco que até agora (apesar de tudo) se fazia.
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Um Outro Olhar