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A ROMANIDADE FICIONALIZADA: INTERFACE ENTRE LITERATURA E DIREITO
EM UM DEUS PASSEANDO PELA BRISA DA TARDE.
Angélica Alves Ruchkys1
Resumo
Este artigo propõe uma reflexão, pelo viés literário, sobre valores da romanidade organizados
ficcionalmente no romance Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde do escritor português Mário
de Carvalho. A obra — ambientada no sec.II depois de Cristo — conta a história de um
magistrado romano, Lúcio Valério Quíncio, que vive afastado e isolado da cidade de Tarcisis
onde serviu como magistrado e líder político. O protagonista narra os fatos que o levaram a tal
isolamento, deixando entrever, nessa narrativa, cenas e aspectos da antigüidade romana. No
período em que Lúcio administrou a província, enfrentou três grandes pressões. Externamente,
havia o perigo iminente de uma investida moura contra a cidade. Internamente, imperava a
hostilidade de seus iguais que se agravava com sua impopularidade crescente. O cristianismo
avançava e, com ele, valores um tanto estranhos aos da romanidade tais como a solidariedade e a
igualdade. Subjacente a esse relato, manifestam-se os temas caros ao Direito tais como
civilização e barbárie, estoicismo e o formalismo dos atos jurídicos os quais este artigo objetiva
discutir.
Palavras-chave: Direito; Literatura; Romance histórico; Roma Antiga.
1. Introdução
O romance Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde situa-se entre as obras literárias
contemporâneas de cunho histórico. Embora tais obras trabalhem com conteúdos históricos por
meio de seus personagens e da localização espaço-temporal na qual se passam as tramas de suas
narrativas, seu objetivo central não é o de retratar fielmente a história oficial. Conforme Alves
(2005, p.37):
Uma das características observadas em obras literárias contemporâneas de cunho
histórico, como Evangelho Segundo Jesus Cristo e Que farei com este livro? de José
Saramago [...]é a ênfase dada ao caráter ficcional em detrimento do histórico.
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De fato, o romance histórico tradicional — do qual a obra em tela se afasta — mostra-se
geralmente submetido à “verdade histórica” e aos “grandes heróis” em nome dos quais sacrifica,
por vezes, a estética literária. Não é o que ocorre no romance de Mário de Carvalho. Nele, a
antigüidade romana é o pano de fundo da trajetória de Lúcio Valério Quíncio, seu narrador e
personagem principal. A narrativa se passa predominantemente em Tarcisis, uma cidade fictícia,
localizada numa área longínqua do império romano, mas situada em uma região que realmente
existiu: a Lusitânia. O único personagem histórico da trama é o imperador Marco Aurélio
Antonino, que viveu no século II depois de Cristo (121 – 180 d. C.). Esta primazia da ficção
sobre a história, em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, aparece também em uma nota
paratextual que antecede a narrativa: “Este não é um romance histórico. Tarcisis, ou, mais
apropriadamente, o município de Fortunata Ara Tulia Tarcisis, nunca existiu.” Nesta passagem,
especificamente, o romance brinca com sua externalidade: ao mesmo tempo em que ele se remete
à sua própria atividade enunciativa, ao seu “lado de fora”, ele também se remete ao seu interior.
O pronome demonstrativo “este” funciona como um dêitico2 que, ao referir-se ao romance,
reenvia o leitor para o contexto de produção da narrativa.
O entrelaçamento da história com o processo de narração ocorre em outro momento do
romance, mas de modo diferente, pois já inserido no próprio relato do protagonista Lúcio Valério
Quíncio. Mais uma vez, é estabelecida a primazia da ficção sobre a realidade:
Depois da visita de Proserpino, [...] resolvi escrever sobre os acontecimentos que
ocorreram em Tarcisis, durante a minha magistratura. O que não conseguir recordar,
comporei, sem qualquer escrúpulo. A imaginação também é amparo da verdade. (p.25)3
O uso literário do discurso permite essa “liberalidade”. É próprio do contrato literário essa
relação mais livre com a realidade, marcada pelo apelo declarado à fantasia. Em Um Deus
Passeando pela Brisa da Tarde, a história de Roma não é uma história explícita no romance.
Trata-se de um efeito criado pela enunciação, com o uso do pretérito perfeito pelo narradorpersonagem para contar sua história particular, contextualizada no momento histórico da
Antigüidade Romana.
1
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Estudos Lingüísticos pela UFMG.
2
Dêitico é todo elemento lingüístico que, num enunciado, faz referência: (1) à situação em que esse enunciado é produzido; (2) ao
momento do enunciado (tempo e aspecto do verbo); (3) ao falante (modalização). (DUBOIS, Jean et al. Dicionário de
Lingüística. São paulo: Cultrix, 8.ed, 2001, p.167.
3
Quando se tratar de citação da obra analisada neste trabalho, indicar-se-á apenas o número da página de onde ela foi
retirada.
3
O descompromisso explícito do romance de Mário de Carvalho com uma história oficial
coloca-o em uma perspectiva a partir da qual se pode vislumbrar a realidade de produção da obra
e a realidade histórica que esta reelabora: ambas leituras, construções do real. A fluidez do
ficcional na obra literária, em particular, em um romance de caráter histórico, evidencia o que há
de fabricação da realidade por trás da “realidade”. Por isso, a literatura é fonte de conhecimentos
para o Direito ou para qualquer outra área não tanto, ou não apenas, pelos conteúdos que retrata,
mas por essa peculiar forma de lidar com o real, tomando a relação realidade/ficção na mais
extrema radicalidade.
Embora não seja objetivo deste artigo discutir questões atinentes à filosofia, importa
esclarecer que o real é fabricado não só pela literatura, embora de forma especial pela mesma. É
também construído por outros sistemas de linguagem. Tudo o que o espírito humano consegue
conceber, construir através desses sistemas de linguagem é uma versão/ construção da realidade.
Da mesma forma que se deve relativizar o real, é preciso também fazê-lo com o ficcional.
A literatura não é o único lugar da ficção. A combinação do predomínio de uma visão demasiado
objetivista da ciência com uma concepção de ficcionalidade como mentira conduz, muitas vezes,
os Estudos Literários à marginalidade no quadro das Ciências Humanas.
Textos historiográficos mais recentes, ao abandonarem a perspectiva tradicional do relato
histórico como retrato neutro e incontestável de fatos reais, têm se apropriado de características
ficcionais para a constituição de seu discurso. Essas novas abordagens se inserem em um
movimento que se convenciou chamar de a Nova História, embora existam outras designações.
Segundo Burke (1992, p.11) a “base filosófica da nova história é a idéia de que a
realidade é social ou culturalmente constituída”. De qualquer forma, a literatura continua sendo
um “outro lugar” em relação à ciência, mesmo que esta — agora, de forma mais evidente —
esteja sob o signo do relativismo cultural. Como afirma Burke (1992) a história ainda trabalha
com evidências, embora relativizadas. Nesta concepção mais recente, evidências não são apenas
os documentos oficiais, mas também uma variedade de atividades humanas, que podem ser orais
ou escritas, dados comerciais ou populacionais etc.
A proposta deste artigo é observar a história pelo prisma da ficção literária. Far-se-á uma
seleção de cenas da romanidade que tematizam questões atinentes ao Direito. São elas: o
estoicismo, dicotomia civilização/barbárie e o formalismo dos atos jurídicos.
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2. Civilização e barbárie: realidades contrárias ou complementares?
A princípio, é necessário lembrar que o romance aqui focalizado, embora se ambiente na
antigüidade romana, é uma obra contemporânea. Sua narrativa reconstrói essa época histórica
plasmada por uma experiência atual de mundo. Assim, as questões que emergem do romance são
atuais, não tanto por si mesmas, mas por serem atualizadas pela abordagem moderna conferida
pela narrativa. Como se verá adiante, o personagem central da história, Lúcio Valério, mostra-se
um indivíduo marcado por conflitos éticos fortemente presentes na atualidade.
No início do romance, apresenta-se um narrador-personagem retirado à sua propriedade
particular. Operações descritivas criam um ambiente de tranqüilidade que destoa do íntimo
angustiado de Lúcio, para quem essa quietude se aproxima mais do tédio do que da paz:
Brilha o céu, tarda a noite, o tempo é lerdo, a vida baça, o gesto flácido. Debaixo de
sombras irisadas, leio e releio os meus livros, passeio, rememoro, devaneio, pasmo,
bocejo, dormito, deixo-me envelhecer. Não consigo comprazer-me desta mediocridade
dourada, pese o convite e o consolo do poeta que a acolheu. (p.11)
No trecho acima, a profusão de orações curtas e coordenadas entre si obriga a uma leitura
pausada que marca o próprio ritmo da vida do protagonista naquele momento de exílio: lento e
tedioso. É este Lúcio entendiado que, um pouco adiante, define-se como romano, amante das
letras e da lei:
Sou um senhor da terra, sou um romano, leio, cultivo-me, marco os tempos com o meu
porte, os meus gestos, os meus ditos, as minhas maneiras, a minha fleuma, o meu trajo
togado. Dignidade. Gravidade. Romanidade. Humanidade. Convulsos temores e
angústias resolvam-nos as legiões, e de rijo, que é o que lhes compete. A mim, agora, os
livros... (p.14)
Na passagem supracitada, os termos “dignidade”, “gravidade”, “romanidade” e
“humanidade” apresentam-se isolados em períodos distintos. Neste caso, o ponto4 é usado como
recurso estilístico para realçar cada um desses termos os quais expressam valores presentes no
relato que o narrador-personagem faz a partir do capítulo 2, a respeito de sua experiência como
magistrado máximo da cidade de Tarcisis de onde foi obrigado a exilar-se.
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“O ponto simples final, que é dos sinais o que denota maior pausa, serve para encerrar períodos que terminem por
qualquer tipo de oração que não seja a interrogativa direta, a exclamativa e as reticências.” (BECHARA, 2001, p.
606).
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Antes ainda de conferir uma coesão narrativa aos fatos que o conduziram ao exílio, Lúcio
expõe sua visão sobre a investida moura contra o império romano que, no início do romance, é
bastante dicotômica: de um lado, a barbárie dos mouros; do outro, a civilidade dos romanos.
Um exército conquistador pilha por turnos, poupa vencidos, reconstrói as cidades, cobra
o tributo, restabelece a ordem. Faz seu o subjugado, e como seu o preserva. Desfeito o
turbilhão, zelam as patrulhas pela aplicação de uma norma. Mas, quando passa uma
horda, deixa na terra a marca da pura irracionalidade, o restabelecimento do caos
original, que faz do engenho ameaça, do labor perversão, da beleza, monturo. Assim, as
colunas quebradas, as termas conspurcadas, os cadáveres esventrados, ao claror dos
incêndios. Não corre entre eles um único homem capaz de bradar: poupem, que o que
aqui está já nos pertence! A salteada demoníaca tudo faz raso, até que a detenham os
primeiros ferros duma legião. (p.15)
Essa dicotomia será amplamente relativizada no decorrer da narrativa. Há momentos em
que Lúcio passa a verificar a presença da barbárie na brutalidade de seus concidadãos quando
mostra, por exemplo, o seu horror aos jogos banhados em sangue, tão comuns na época em que
se ambienta o romance:
Repito que nunca fui amador de jogos, mesmo reduzidos às proporções mais modestas
do meu rincão da Hispânia.[...] Chego a pensar que há algo em mim de estranho, por não
conseguir aderir ao senso do comum dos meus concidadãos. (p.178)
Mais adiante, Lúcio descreve parte do que se passa nos jogos. Percebe-se que ele passa a
ver a barbárie não apenas do lado de fora da romanidade, mas também nos próprios costumes tão
amplamente aceitos pelos romanos da época:
O gladiador musculado que entrava de braços levantados, entre clamores, saía daí a
minutos arrastado pelos pés, depois de o crânio lhe ter sido rebentado com um malho
pelos oficiais da arena, travestidos de Caronte. Dentro em breve, nesta ou noutra hora, o
mesmo aconteceria ao que tinha derrubado. “Dá-lhe!”, “degola!”, berravam os lorários
saltitando em volta dos combatentes de chicote em riste. Hiante, a populaça
acompanhava em coro: “Derruba!”, “fere!”. (p.180)
A dicotomia entre a civilização e a barbárie se dissolve e se recompõe no decorrer do
romance. Em determinados momentos, a barbárie aparece assimilada à civilização, em particular,
à civilização romana, como na passagem supracitada. Em outros trechos, porém, tais noções
aparecem opostas. Emerge da narrativa, uma concepção de civilização pautada na
intelectualidade, no cultivo das letras, na moral, na ordem, na lei. Tais aspectos são englobados
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pela figura das termas. De fato, os banhos públicos eram comuns na antigüidade. No romance,
eles tematizam o alto grau de refinamento a que chegou a civilização romana:
—
Havia termas no tempo dos meus avós, há termas e balneários desde que Roma é
Roma... e sempre haverá. As termas são uma aquisição da romanidade. Uma das
fronteiras entre nós e a barbárie. (p.161)
Mas, conforme o próprio narrador, essa noção de civilidade fundamentada no refinamento
cultural se consubstancializa, por vezes, em uma vivência parcial e superficial da cidadania
romana. Por isso, Lúcio não poupa críticas ao identificar as termas públicas também como um
lugar de futilidade e promiscuidade:
Apenas meia dúzia de casas em Tarcisis dispunham de balneários privativos: a minha
própria, a de Calpúrnio, a de Máximo Cantaber e poucas mais. Havia quem, possuindo
balneário, nunca aquecesse as fornalhas do hipocausto e preferisse a promiscuidade das
termas públicas, ou por uma questão de avareza ou por apego à convivência. (p.80)
Mais adiante, o ambiente das termas é descrito com ironia, expressa com particular
virulência na hipérbole: “santos dos santos”, comentário atribuído aos banhos públicos:
Não se ouviam ali as apóstrofes grosseiras do fórum. Se bem que falasse alto e
jovialmente, os cidadãos continham-se nas palavras, como se freqüentassem um lugar
sagrado, o santo dos santos do grande templo que era a urbe. A exigüidade do espaço
havia reduzido a palestra exterior a uma colunata que corria sobre um estreito arrelvado.
A biblioteca, no piso superior, continuava vazia, desde a fundação, porque nenhum
benemérito tinha considerado prioritário fornecê-la de livros. (p.81)
Como se nota no trecho acima, a crítica de Lúcio recai sobre o desmazelo em relação ao
cultivo das letras em favor do entretenimento proporcionado pelo ambiente das termas.
O desenvolvimento intelectual — um dos pilares do processo civilizatório, de acordo com
o romance — é também aliado à idéia de superficialidade, ao ser caracterizado como objeto de
puro exibicionismo:
Mara admira-se de eu estar às voltas com Tyrrenika, infindável anedotário estrusco do
imperador Cláudio. Que proveito me trará o esforço, pergunta, se temos tão raros
convidados a quem deslumbrar?” (p.12)
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4. O estoicismo e os conflitos íntimos de Lúcio
Já apaixonado pela patrícia Iúnia Cantáber, recém convertida ao cristianismo, e diante de
um édito5 do imperador Marco Aurélio Antonino que manda perseguir os cristãos, Lúcio
questiona os métodos do imperador, defendendo a tolerância religiosa e cultural por meio de um
discurso fundamentado em uma cadeia de frases interrogativas as quais mostram —uma a uma —
a ausência de lógica no comportamento de Marco Aurélio:
Na minha frente, o busto de Marco Aurélio Antonino quase sorria, de olhos levantados
ao alto. Pedra, gelado mármore, a contemplar a posteridade, desatento de mim e das
minhas súplicas. Como poderia um homem tão clemente, tão ciente da relatividade das
coisas e das opiniões, publicar normas assim inflexíveis e arbitrárias? Por que perseguir
os cristãos, mais do que os mitraicos, os de Cibele, os de Ísis, os de Sóstrato, os judeus?
O que podia saber o imperador que eu próprio não tivesse presenciado com os meus
olhos? Que mal fazia o concurso daquele deus na multidão de divindades que pululam
no Império, ou acima dele? (p.286)
O racionalismo nesse discurso de Lúcio se explica por sua declarada simpatia pelo
estoicismo, corrente filosófica que, entre outras coisas, defende o autodomínio e o predomínio da
razão sobre a emoção. Incialmente, Lúcio vê em Marco Aurélio um modelo dessa doutrina,
nutrindo por ele um sentimento de admiração. Mas, como foi visto, tal sentimento se transforma
profundamente, ao final da narrativa, na ocasião do julgamento dos cristãos. O modelo de
conduta baseado no estoicismo pode ser observado, entre outras passagens, na cena em que Lúcio
faz um elogio ao imperador, ao repreender o comportamento de seu centurião:
Este é o divino Marco Aurélio Antonino, meu e teu senhor. Imaginas o Imperador a
perseguir os que lhe atiram epigramas, os que intrigam no Palácio, ou os que discordam
dele? Marco Aurélio é um filósofo e vive rodeado de filósofos, quando as circunstâncias
o não forçam a vestir o elmo e a couraça. O seu procedimento e a sua figura devem
iluminar os atos de todos os magistrados do Império, porque são a imagem da
moderação e da justiça. (p.100).
Assim, na forma de pensar de Lúcio, pesam a ponderação, a racionalidade, a moderação.
Ele procura, durante toda a narrativa, orientar sua conduta por esses princípios caros ao
estoicismo, embora nem sempre com sucesso. Em meio a conflitos éticos, aparece um Lúcio
muito mais identificado com o ideal humanitário cristão do que com uma visão racionalista e
5
Édito: ordem de autoridade superior ou judicial que se divulga através de anúncios ditos editais, afixados em locais públicos ou
publicados nos meios de comunicação de massa. (HOUAISS, 2001)
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estóica de justiça. A avaliação do sofrimento alheio é feito mais com base na sensibilidade de
Lúcio do que na sua racionalidade. É o que se observa, por exemplo, na cena em que ele se
condói de um escravo acorrentado na casa do magistrado Máximo Cantáber e no julgamento dos
cristãos, no final da narrativa.
Curiosamente, em Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, o estoicismo de Lúcio se
choca contra o senso de justiça cristão de Iúnia. Desde o primeiro contato entre os dois, o
cristianismo de um se confronta com o estoicismo do outro. Tais visões
de mundo —
experenciadas de modo particular pelos personagens — mostram-se contrapostos no romance.
Conforme Alves (2005, p. 85):
[...] o modo como se estabelece a relação entre paradigmas religiosos e filosóficos, em
Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde, e sua personificação em Iunia Cantaber,
embora mantenha, ainda, algum vínculo com pressupostos básicos do cristianismo e do
estoicismo, destaca, principalmente a grande discrepância entre os ideais utópicos das
doutrinas e as incoerências observadas em sua vivência pelos personagens.
De fato, observa-se em Iúnia uma leitura superficial do cristianismo. Ela não absorve o
ideal cristão de tolerância, mas um obstinado moralismo, conforme se observa, por exemplo,
quando Lúcio Valério, ao ver o escravo acorrentado na casa de Iúnia, pergunta a ela sobre a sorte
do mesmo. Ao que ela responde com irritação:
— Estava a falar-te de Salvação e atiras-me com particularidades domésticas. Serás tu
como os rústicos que só se interessam pelas pequenas aparências da vida? E que julgam
que seus deuses grosseiros habitam nos bosques? (p.136)
Lúcio, por sua vez, busca seguir o estoicismo na sua imperfectibilidade. Em seus muitos
dilemas éticos, ele mostra sua dificuldade em orientar sua conduta pautado nessa doutrina: “Iria
eu atraiçoar derradeiramente o lema de Epicteto que sempre quisera — com tanto insucesso —
adotar como norma de vida: ‘tem-te! Aguenta!’?” (p.288)
3. O formalismo nas relações jurídicas, espirituais e domésticas
Outro tema caro ao Direito presente no romance de Mário de Carvalho é o formalismo de
que se revestem praticamente todas as instâncias da vida na antigüidade romana, como se vê, por
exemplo nesta passagem em que Lúcio mostra-se avesso aos rituais que envolvem sangue:
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Nunca gostei de sangue. Cumpri sempre escrupulosa e minuciosamente, evitando o
mínimo erro ou o mínimo gesto falso, todas as prescrições dos ritos, quer os públicos,
quer os domésticos, quer os do Império, quer os da cidade. [...] Mais tarde, de cabeça
coberta, aproximar-me-ia do altar para a consulta ao deus, com o formulário próprio.
Como de habitual, o deus respondia, sempre pelas mesmas palavras, porque assim deve
ser. (p.44)
Observa-se na seleção lexical do trecho acima, uma constante referência ao universo da
ordem e do dever materializado nos termos: “cumprir”, “prescrições”, “formulário próprio”.
Como se pode verificar, até nas relações com as divindades, vê-se um arraigado prescritivismo a
regular os comportamentos.
A formalidade também aparece nos afazeres administrativos e tribunícios de Lúcio
Valério descritos como algo corriqueiro e enfadonho, às vezes, vistos como entraves à resolução
do mais grave problema da cidade: a ameaçada da invasão dos bárbaros.
Todas as responsabilidades da governação, não apenas o ramerrão costumeiro do
despacho, do tribunal e das cerimônias religiosas, mas as tarefas urgentes e multiplicadas
que a cidade ameaçada impunha, recaíam sobre mim. (p.69)
O estilo forense, qualificado por Lúcio, na página 21 do romance, de “rebuscado”,
“imagético” e “pomposo” é caracterizado pejorativamente como uma versão deturpada dessa
formalidade. Lúcio impacienta-se ao ver-se constrangido a escutar o discurso dos advogados que
se prolongam a respeito de causas que, na opinião dele, eram simples e que, por isso, teriam um
tratamento rápido (o caso de uma mulher acusada de difamar outra e o de um talhante que não
tinha mandado varrer a rua em frente da sua loja):
Enganei-me sobre a duração das causas, que os advogados tiveram arte de prolongar até
escurecer. (p.205)
Lúcio via determinadas formalidades como algo a que se sujeitava mais por conveniência
do que por vontade. Entretanto, quando as formalidades contribuíam para conferir legalidade às
suas funções administrativas e tribunícias, ele as considerava seriamente. A situação legal de seus
atos como homem público o obsedava. Na qualidade de magistrado, ele buscava a todo momento
orientar sua conduta pelo o que a lei determinava, como se observa em diversas passagens:
[...] eu era o magistrado máximo da cidade, e entendia levar essa circunstância muito a
peito. Havia deveres a cumprir, um direito a regular os meus actos, um vínculo de
lealdade ao Imperador, e ameaças a enfrentar. (p.38)
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— A lei é para se cumprir! (p.37)
O que me preocupava não era apenas a legalidade da situação, nem o acréscimo de
esforço e responsabilidades que ela me traria. Era que havia sido decidida pelos meus
pares por pura comodidade, num acesso de leviano egoísmo, a que os problemas da
cidade, os interesses de Roma eram completamente alheios. (p.41)
Neste último trecho, a ausência de legalidade na escolha de Lúcio como magistrado
máximo da cidade é vista por ele próprio como um dos entraves ao interesse público, aliado à má
vontade e ao comodismo.
Dessa forma, a crítica de Lúcio às formalidades recaíam mais sobre aquelas que se
relacionavam com a religião do que com as que se relacionavam com os afazeres administrativos.
Embora essa distinção entre religião e administração não fosse absolutamente clara na época em
que se ambienta o romance, o discurso de Lúcio mostra uma separação entre uma e outra.
4. Considerações finais
Buscou-se na análise de temas: o estoicismo, a controversa dicotomia civilização/barbárie
e o formalismo dos atos jurídicos, presentes no romance Um Deus Passeando pela Brisa da
Tarde, construir uma interface entre direito e literatura.
Na discussão de trechos do romance, considerados os dados lingüísticos e a noção de
ficcionalidade, a literatura mostrou ser um lugar profícuo na construção de objetos de
conhecimento, dentro do quadro mais amplo formado pelas Ciências Humanas.
Verificou-se que o romance elabora os temas citados colocando-os sob o signo da
relativização. A realidade criada pela obra literária em tela fornece mais um ponto de vista, entre
tantos outros que se possam criar legitimamente, para a reflexão sobre os conflitos do homem e
da sociedade atual.
ABSTRACT This article proposes, by means of a literary view, a reflection about the
importance of Romantiny fictionally organized in the novel “A God Strolling in the Cool of the
Evening” by the Portuguese writer Mario de Carvalho. The fictional time depicted in this
literary work is the 2nd century after Christ and it is the memoir of the main character Lucius
Valerius Quintius, a Roman magistrate who lives distant and isolated from the town of Tarcisis where he served as a magistrate and a politic leader. The protagonist not only narrates the facts
which led him to this solitude but also gives hints of the scenes and aspects of ancient Rome.
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During the time in which Lucius ruled the province he had faced three great struggles. The first
one was an external fact - a threat of an eminent attack by the Moors. Then, internally, there was
an opposition among his peers which became worse due the increase of Luciu’s unpopularity.
The third, was the spreading of Christianism which brought the idea of solidarity and equality,
such odd values to Romanity at the time. Subjacent to this account, this historical narrative
brings important themes relating to Law such as civilization and barbarity, stoicism and the
formalism of the judicial acts which this article aims to examine.
Key-words: Law; Literature; Historical Novel; Ancien Rome.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVES, Carla Carvalho. “Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde: vestígios de ficção, ruínas
da história”. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, 2005. Dissertação de Mestrado.
BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 37. ed. rev. e ampl. Rio de Janeiro:
Lucerna, 2001.
BURKE, Peter. Abertura: a Nova História, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (org.) A
escrita da história: novas perspectivas. Tradução de Magda Lopes. São Paulo: Editora da
Universidade Estadual Paulista, 1992, p.7-38.
CARVALHO, Mário de. Um Deus Passeando pela Brisa da Tarde. São Paulo: Companhia das
Letras, 2006, 319 p.
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A Romanidade Ficionalizada - Faculdade Mineira de Direito