A VERDADE É UMA TERRA SEM CAMINHOS
Jiddu Krishnamurti
O Acampamento de Ommen em 1929 iniciou seus trabalhos no dia 2 de agosto numa
atmosfera de tensão e expectativa,
quando a maioria das pessoas ali presentes compreendia o que ia acontecer. Na manhã
seguinte, em presença da Sra. Besant, de mais de três mil membros da Estrela, e com muitos
milhares de holandeses ouvindo pelo rádio, K. fez o discurso em que dissolveu a Ordem da
Estrela:
Vamos discutir hoje a dissolução da Ordem da Estrela. Muitos ficarão encantados, tristes.
Não se trata, porém, de uma questão de regozijo nem tristeza, porque é inevitável, como
passarei explicar...
Sustento que a Verdade é uma terra sem caminhos, e vós não podeis aproximar-vos dela
por nenhum caminho, por nenhuma seita. Esse é o meu ponto de vista e eu o sigo de modo
absoluto e incondicional. Não tendo limites, não sendo condicionada e não sendo acessível
por nenhuma espécie de caminho, a Verdade não pode ser organizada; nem se deve formar
nenhuma organização para levar ou forçar as pessoas a enveredar por determinado
caminho. Se compreendeis isso em primeiro lugar, vereis que é impossível organizar a
crença. A crença é uma questão puramente individual, e não podeis nem deveis organizála. Se o fizerdes, ela morrerá cristalizar-se-á; tornar-se-á um credo, uma seita, uma religião,
para ser imposta a outros.
Isso ó o que toda a gente, no mundo inteiro, está tentando fazer. Acanha-se a Verdade e
transforma-se em brinquedo para os fracos, para os momentaneamente insatisfeitos. A
Verdade não pode ser trazida cá para baixo, o indivíduo é que deve fazer um esforço para
subir até ele. Não podeis trazer o topo da montanha ao vale...
Portanto, esta é a primeira razão, do meu ponto de vista, pela qual a Ordem da Estrela deve
ser dissolvida. Apesar disso, formareis provavelmente outras Ordens, continuareis a
pertencer a outras organizações à procura da Verdade. Não quero pertencer a nenhuma
organização espiritual; compreendei-me isso, por favor...
Se se criar uma organização com esse propósito, ela se tornará uma muleta, uma fraqueza,
uma servidão, estropiará o indivíduo e o impedirá de crescer, de firmar sua unicidade, que
reside no descobrimento, para si mesmo, da Verdade absoluta, não-condicionada. Portanto,
essa é outra razão que me leva, como chefe da Ordem, a querer dissolvê-la.
Não se trata de um feito magnífico, porque não quero seguidores, e estou falando sério. A
partir do momento em que seguirdes alguém deixareis de seguir a Verdade. Não me
preocupa saber se prestais ou não atenção ao que digo. Quero fazer certa coisa no mundo
e vou fazê-la com pertinaz concentração. Só me preocupa uma coisa essencial: libertar o
homem. Desejo libertá-lo de todas as gaiolas, de todos os temores, e não fundar religiões,
novas seitas, nem estabelecer novas teorias e novas filosofias. Diante disso, perguntar-meeis, naturalmente, por que percorro o mundo todo, falando sem parar. Eu vos direi por que o
faço; não o faço por desejar um séquito, não o faço por almejar um grupo especial de
discípulos especiais. (Os homens gostam de ser diferentes dos seus semelhantes, por mais
ridículas, absurdas e triviais que possam ser as distinções! Não quero estimular essa
absurdeza.) Não tenho discípulos, nem apóstolos, nem na terra nem no reino da
espiritualidade.
Tampouco me atrai o fascínio do dinheiro ou o desejo de levar urna vida confortável. Se eu
quisesse levar uma vida confortável, não viria a um Acampamento nem viveria num país
úmido! Estou falando com franqueza porque pretendo deixar isto resolvido de uma vez por
todas. Não quero saber dessas discussões infantis ano após ano.
Um repórter de jornal, que me entrevistou, considerou um ato magnífico dissolver uma
organização que possuía milhares e milhares de membros. No seu entender foi um grande
ato porque ele disse: "Que fará o senhor depois disso? Como viverá? Não terá quem o siga,
ninguém mais lhe dará atenção.” Bastará que haja cinco pessoas desejosas de prestar
atenção, desejosas de viver, com o rosto voltado para a eternidade! Que adianta ter
milhares que não compreendem, que estão totalmente embalsamados em preconceitos, que
só querem o novo para traduzi-lo e, assim, adequá-lo aos seus próprios egos estéreis e
estagnados?...
Porque sou livre, não-condicionado, total, não a parte, não o relativo, mas a Verdade total,
que é eterna, desejo que os que procuram compreender-me sejam livres, não me sigam,
não façam de mim a gaiola que se converterá em religião, em Seita. Desejo que sejam livres
de todos os medos – do medo da religião, do medo da salvação, do medo da espiritualidade, do medo do amor, do medo da morte, do medo da própria vida. Assim como o
artista pinta um quadro por encontrar deleite na pintura, por ser ela a expressão de si
mesmo, sua glória, seu bem-estar, assim não faço isto por desejar alguma coisa de alguém.
Estais acostumados à autoridade, ou à atmosfera da autoridade que, cuidais, vos levará à
espiritualidade. Pensais e esperais que outra pessoa, por seus poderes extraordinários – um
milagre – possa transportar-vos ao reino da liberdade eterna que é a Felicidade. Toda a
vossa maneira de encarar a vida se baseia nessa autoridade.
Faz hoje três anos que me ouvis, sem que nenhuma alteração se tenha verificado, a não ser
em poucos. Analisai agora o que estou dizendo, sede críticos, para poderdes compreender
cabalmente, fundamentalmente...
Há dezoito anos que vos preparais para este acontecimento, para o Advento do Mestre
Universal. Durante dezoito anos organizastes alguém capaz de proporcionar um novo
deleite aos vossos corações e às vossas mentes, de transformar a vossa vida, de dar-vos
uma nova compreensão; alguém que vos elevasse a um novo plano de vida, que vos desse
um novo incentivo, que vos libertasse – e vede agora o que está acontecendo! Considerai,
raciocinai e descobri como foi que essa crença vos tornou diferentes – não com a diferença
superficial do uso de uma insígnia, que e' trivial, absurda. Como foi que essa crença varreu
para longe todas as coisas não-essenciais da vida? Esta é a única maneira de julgar: como
foi que vos tornastes mais livres, maiores, mais perigosos para toda sociedade que se
baseia no falso e no não-essencial? Como foi que se tornaram diferentes os membros desta
organização da Estrela?...
Todos dependeis, para a vossa espiritualidade, de outra pessoa; para a vossa felicidade, de
outra pessoa; para a vossa iluminação, de outra pessoa... Quando digo buscai dentro de vós
a iluminação, a glória, a purificação e a incorruptibilidade do ego, nenhum de vós se dispõe
a fazê-lo. Talvez haja uns poucos, mas são muito, muito poucos. Assim sendo, por que ter
uma organização?...
Nenhum homem de fora pode libertar-vos; nem o culto organizado, nem a vossa imolação
por uma causa poderão libertar-vos; como também não poderá libertar-vos o ingresso numa
organização, o envolvimento no trabalho. Usais uma máquina de escrever para redigir
cartas, porém não a colocais num altar e não a adorais. Mas é isso o que fazeis quando as
organizações passam a ser vossa principal preocupação. "Quantos membros há nela?" É a
primeira pergunta que me formulam todos os repórteres de jornais. "Quantos seguidores tem
o senhor? Pelo número deles julgaremos se o que diz é' verdadeiro ou falso." Não sei
quantos há. Não me preocupo com isso. Se houvesse apenas um homem que se tivesse
libertado, este já seria o suficiente.
Além disso, tendes a idéia de que somente certas pessoas tem a chave do Reino da
Felicidade. Ninguém a tem. Ninguém tem autoridade para trazê-la consigo. Essa chave é o
vosso eu, e só no desenvolvimento, na purificação e na incorruptibilidade desse eu se
encontra o Reino da Eternidade...
Estais acostumados a que vos digam até onde chegou o vosso progresso, qual o vosso
status espiritual. Quanta infantilidade! Quem, se não vós mesmos, podeis dizer se sois ou
não incorruptíveis?...
Mas os que realmente desejam compreender, que estão buscando o eterno, o sem começo
e sem fim, caminharão juntos com maior intensidade, serão um perigo para tudo o que não
é essencial, as irrealidades e as sombras. E eles se concentrarão, tornar-se-ão a chama,
porque compreendem. Tal é o corpo que precisamos criar e tal é o meu propósito. Por
causa dessa amizade verdadeira – que pareceis não conhecer – haverá uma cooperação
verdadeira da parte de cada um. Não em virtude da autoridade, não em virtude da salvação,
mas porque compreendeis realmente e, portanto, sois capazes de viver no eterno. Isto, sim,
é maior do que todo o prazer, do que todo o sacrifício.
Eis aí, portanto, algumas das razões por que, depois de dois anos de cuidadosa
consideração, tomei essa decisão. Ela não partiu de um impulso momentâneo. Ninguém me
persuadiu a tomá-la – ninguém me persuade a fazer essas coisas. Por dois anos venho
pensando nisso, lenta, cuidadosa, pacientemente, e agora decidi dissolver a Ordem, visto
que sou o Chefe. Podereis formar outras organizações e esperar outra pessoa. Isso não me
interessa, como também não me interessa a criação de novas gaiolas e novas decorações
para as gaiolas. Minha preocupação é formar homens absoluta e incondicionalmente livres.
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