MARCELLE FIGUEIREDO DA CUNHA
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CLÁUSULSAS EXORBITANTES NOS CONTRATOS ADMINISTRATIVOS:
CONCILIANDO INTERESSE PÚBLICO E EFICIÊNCIA
RIO DE JANEIRO
2013
2
CLÁUSULSAS EXORBITANTES NOS CONTRATOS
ADMINISTRATIVOS: CONCILIANDO INTERESSE PÚBLICO E
EFICIÊNCIA
1. Introdução. 2. O modelo de contrato administrativo: por que ter
cláusulas
exorbitantes?
3.
Novos
paradigmas
do
Direito
Administrativo também em matéria de contratação. 4. Novas
exigências para a previsão e a aplicação de cláusulas exorbitantes.
5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Desde o final dos anos 80 e, principalmente, nesta primeira década do século XXI,
vários conceitos e institutos do Direito Administrativo vêm sendo revisitados, a fim de suprimir
deste ramo do Direito qualquer resquício autoritário e conferir-lhe um cunho mais democrático,
de modo a aproximar a Administração dos administrados. Foi assim que se passou com o
princípio da supremacia do interesse público, a discricionariedade e os serviços públicos.
Esta nova perspectiva, porém, passou ao largo dos contratos administrativos, com
sua disciplina rígida, suas cláusulas exorbitantes e sua realização nem sempre eficiente. Na
verdade, por ser uma matéria legislada nos mínimos detalhes – de modo geral pela Lei
no 8.666/93, mas também por diversas leis esparsas – pouco se questionou sobre os fundamentos
para a adoção de uma postura tão autoritária para um instrumento que em sua origem é
consensual. A discussão vem se limitando muito mais à aplicação da lei, tal como ela é posta, o
que acaba por ignorar as razões de direito que autorizam as prerrogativas da Administração.
Ainda assim, a justificativa tradicional para o regime dos contratos administrativos
se pautava, de forma acrítica, no princípio da supremacia do interesse público. Entretanto, se tal
princípio não é mais a panaceia que fundamenta qualquer hierarquização entre a Administração
3
Pública e os entes privados, outros princípios de caráter constitucional devem ser buscados, sob
pena de esvaziar a legitimidade do instituto.
Uma das possíveis razões de justificação para os contratos administrativos poderia
ser o princípio da eficiência, incluído no rol de princípios norteadores da atividade administrativa
pela Emenda Constitucional no 19/98 que alterou o caput do artigo 37 da Constituição Federal.
Mas, muito embora alguns instrumentos legais tenham claramente se inspirado em tal orientação,
tais como a Lei no 11.079/2005 (Lei das parcerias público-privadas) e a Lei no 11.107/2005 (Lei
dos consórcios públicos), os contratos administrativos ainda constituem um campo praticamente
alheio à exigência de eficiência.
Há, assim, um déficit de legitimidade, cada vez mais crescente, na utilização de
contratos tão assimétricos, como aqueles que adotam cláusulas exorbitantes. E isso gera diversas
decorrências, tais como o distanciamento entre a Administração e os administrados, a falta de
interesse dos entes privados em participar nas atividades administrativas e a diminuição de
financiamento privado para serviços públicos. Este problema também é constatado por Marcos
Juruena Villela Souto:
Do embate entre a sociedade civil e Estado se percebe (pelo pouco estímulo à
participação) que o distanciamento entre os objetivos constitucionais e os
resultados efetivamente oferecidos cria um cenário pouco atrativo aos
investimentos. Dispara-se o círculo vicioso, com menos negócios, menos
desenvolvimento, menos empregos, menos consumo e menos tributos que fazem
funcionar a máquina estatal. 1
Um caminho para diminuir os problemas de falta de eficiência e ausência de
justificativas aptas para o uso do regime dos contratos administrativos é a aproximação entre
estes e os contratos privados, com a neutralização da principal fonte de burocracia e de custos
elevados: as cláusulas exorbitantes. Ainda que outras características dos contratos administrativos
também promovam uma assimetria entre as partes, tais como a ausência de tratativas entre os
contratantes acerca das cláusulas contratuais e a rigidez da forma de pagamento, as maiores
1
Direito Administrativo das parcerias. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 270.
4
responsáveis por tal desequilíbrio são as cláusulas que conferem prerrogativas à Administração
Pública, razão pela qual serão o foco deste trabalho.
Nesse sentido, este estudo tem por finalidade fazer uma análise das vantagens e
desvantagens da disciplina das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos e atualizar o
seu desenho à luz dos novos paradigmas do Direito Administrativo. Por fim, será proposto um
novo modelo para a adoção de cláusulas exorbitantes, mesmo diante de um regime legislativo
rigoroso, tal como o adotado na legislação brasileira. O objetivo último é trazer reflexões
alternativas para o modelo rígido e estático dos contratos administrativos. Se ele for capaz de
estimular o debate e a formulação de novas propostas, já terá atingido parte de seu escopo
principal.
2. O MODELO DE CONTRATO ADMINISTRATIVO: POR QUE TER CLÁUSULAS
EXORBITANTES?
Existe razão para diferenciar contratos administrativos de contratos privados?
Numa perspectiva de direito comparado, nota-se que tal distinção não é comumente praticada em
outros países. Na verdade, estes dois institutos estão apartados apenas na França, Espanha,
Bélgica, países de língua francesa e alguns países latino-americanos, como o Brasil. A origem
mais remota desta diferenciação está na definição da competência do contencioso administrativo,
que só poderia apreciar os contratos ditos administrativos, cabendo ao contencioso comum julgar
os contratos ditos privados 2.
No entanto, muito além de estabelecer a competência num ordenamento no qual
existe jurisdição dual, os contratos administrativos se distinguiam dos contratos privados em
razão de seu conteúdo, sobretudo na previsão, naqueles, das chamadas cláusulas exorbitantes.
Assim, em um Estado autoritário ou mesmo em um Estado social inchado de tarefas, era possível
extrair ao menos duas vantagens decorrentes destas cláusulas.
2
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. “O futuro das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos”. In:
ARAGÃO, Alexandre Santos de; MARQUES NETO, Floriano de Azevedo (coord.). Direito Administrativo e seus
novos paradigmas. Belo Horizonte: Fórum, 2008, p. 577.
5
O primeiro benefício que poderia ser vislumbrado com a previsão de
prerrogativas contratuais à Administração Pública seria permitir-lhe deter a palavra final para
ditar o interesse público prevalente. Mesmo nas suas relações negociais, de caráter
predominantemente privado, o poder público não se despia em momento algum do monopólio de
determinar o que constitui o interesse público, entrincheirando poder nas suas próprias mãos.
A segunda vantagem estaria mais relacionada ao princípio da supremacia do
interesse público, o qual deveria prevalecer, mesmo diante de outros direitos ou interesses em
jogo. Dessa forma, as prerrogativas da Administração Pública se justificam para fazer
preponderar o interesse público sobre os interesses privados, ainda que isso representasse um
sacrifício à eficiência, à economicidade e à rapidez na atividade administrativa.
Essa dupla vantagem ainda é defendida e louvada por alguns doutrinadores, tal
como leciona Márcia Walquiria Batista dos Santos:
Tais prerrogativas decorrem da própria postura assumida pela Administração
Pública, no sentido de defender o interesse público e de buscar na prática de
todos os seus atos, o exercício da finalidade pública e, de forma indireta,
garantir a igualdade e isonomia entre os particulares. Na realidade, a
Administração não tem escolha; sua atuação é guiada pela prática do interesse
público, não se levando em conta a vontade do administrador e, na maioria das
vezes, eventuais interesses privados. 3
Apesar de ser possível destacar estes benefícios, ainda que questionáveis, não há
como ignorar o sem-número de desvantagens decorrentes da previsão de cláusulas exorbitantes
nos contratos administrativos. Tal como outros institutos do Direito Administrativo, como a
discricionariedade e o princípio da legalidade, as prerrogativas contratuais da Administração não
foram capazes de atender as novas demandas do Estado pós-moderno.
Em primeiro lugar, percebeu-se que o Estado não deve mais atuar como executor
de prestações materiais aos administrados, mas deve ter o papel de regulador e fomentador de
atividades prestacionais que possam atender aos interesses privados. Neste contexto, as cláusulas
3
“Cláusulas exorbitantes: da teoria à prática”. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius
Alves (coord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do direito administrativo. São Paulo:
Atlas, 2010, p. 389.
6
exorbitantes seriam contraditórias com o novo ideal do Direito Administrativo, pois os interesses
da Administração não são mais contrapostos aos dos entes privados. Os interesses de ambos
devem agora ser vistos como comuns.
Outro problema que decorre do uso de prerrogativas administrativas é a
insegurança jurídica que injetam no âmbito dos contratos administrativos. Diante da constante
incerteza na aplicação ou não dessas cláusulas, no caso concreto, o equilíbrio entre as partes
contratantes está em constante tensão, vez que o contratado pode ser surpreendido a qualquer
tempo pela imposição de alguma alteração pela Administração Pública. O ente privado nunca
pode esperar a estabilidade da relação jurídica formalizada com o poder público. 4
Nesse sentido, disposições contratuais assimétricas minam a confiança legítima do
particular na firmeza e seriedade do negócio jurídico firmado com o administrador público. Isso
porque nem sempre será possível distinguir as hipóteses em que a Administração se vale de suas
prerrogativas de forma legítima das situações em que age com arbitrariedade. A atribuição de tais
poderes aos entes públicos, cujo exercício não está sujeito nem ao menos à exposição de
motivação – diz-se que a justificação é retirada da própria lei – pode, no extremo, gerar abusos e
corrupções sistemáticas.
Outra desvantagem intimamente relacionada à pouca segurança jurídica e
confiança do ente privado na gestão do contrato administrativo é a ausência de transparência na
aplicação de prerrogativas administrativas a este instituto. De forma geral, as razões que
justificam o seu exercício não são explicitadas caso a caso, o que reforça o caráter nebuloso da
sua implementação, incoerente com o princípio da publicidade que norteia a atividade pública
transparente.
4
Para uma relação entre segurança jurídica e atividade econômica, vale conferir BAPTISTA, Patrícia Ferreira.
Segurança jurídica e proteção da confiança legítima no direito administrativo: análise sistemática e critérios de
aplicação no direito administrativo brasileiro. 2006. 374f. Tese (Doutorado em Direito) – Faculdade de Direito,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006, p. 13: As preocupações de ordem econômica, assim, se acham na
origem mesma da tutela da segurança jurídica. A existência de certeza jurídica constitui um pressuposto para o
desenvolvimento das relações econômicas e essa necessidade de certeza não foi satisfeita pelo Estado de Direito;
antes, aumentou com o passar do tempo. Ainda hoje os fatores econômicos estão por trás de grande parte das
demandas por uma maior estabilidade e previsibilidade das normas e decisões judiciais.
7
Mesmo que todas estas desvantagens não fossem suficientes para repensar a
aplicação de cláusulas exorbitantes aos contratos administrativos, há ainda um último problema
que põe uma pá de cal na discussão: o déficit de eficiência gerado. Os contratados, cientes da
possibilidade de a Administração unilateralmente rescindir ou modificar os termos do contrato,
bem como aplicar sanções e ocupar os bens necessários à sua execução, embutem nos preços
cobrados o custo que o risco da aplicação dessas cláusulas gera.
Assim, o Estado, em regra, paga mais por bens ou serviços, se comparados com o
custo dessas mesmas prestações quando arcado por um particular, muito em razão dos riscos
administrativos. A Lei no 8.666/93, ao permitir que o administrador público se valha de cláusulas
exorbitantes, já impõe, de forma geral e genérica, o risco da incerteza a todo e qualquer contrato
da Administração, elevando irrestritamente os valores de todos os negócios firmados.
Não bastasse isso, há ainda um elemento que agrava a pouca eficiência contratual:
a Administração nem sempre aplica as cláusulas exorbitantes, já que apenas eventualmente elas
são necessárias ao cumprimento do contrato. Tais disposições são repetidas irrefletidamente nos
instrumentos firmados e, muitas vezes, elas são ignoradas na gestão contratual pela
Administração, que se vale de meios consensuais para atingir seus objetivos, ou são
simplesmente irrelevantes para a prestação do objeto contratual, por ser de menor porte ou por se
aproximar muito do que é oferecido pelo mercado. Em síntese, o administrador público despende
mais recursos por uma prerrogativa que exerce tão somente em situações pontuais.
Nesse sentido, vale destacar a preocupação de Marçal Justen Filho com a elevação
dos custos de transação em um ambiente de incerteza e insegurança:
Um ponto de grande relevância reside no reconhecimento de que a incerteza e a
insegurança quanto aos efetivos custos de transação produzem a elevação dos
preços. Em outras palavras, o agente econômico “precifica” sua própria
insegurança. A elevação da margem de risco reflete-se no aumento dos preços
praticados por um agente econômico, até atingir o ponto em que o risco é tão
elevado que o sujeito prefere evitar a realização do negócio.
A Economia reconhece que os custos de transação são reduzidos na medida em
que uma contratação é completa e dispensa inovações posteriores. A exaustão da
disciplina contratual no momento da avença gera a redução da incerteza e da
insegurança – logo, a diminuição dos custos de transação. Isso permite ampliar o
8
número de agentes econômicos interessados em participar da contratação e a
prática de preços mais convidativos. 5
Se não é possível exaurir a disciplina contratual quando se fala em contratos a
serem celebrados com a Administração Pública, a fim de diminuir ao máximo os custos de
transação com o particular, claro está que as cláusulas exorbitantes vão de encontro a tal
propósito. A previsão legal de tais prerrogativas, que, por si só, já eleva os preços na partida, em
razão da institucionalização do risco para os contratados, bem como a insegurança na sua
aplicação, elevam sobremaneira os custos na realização de tais contratos. Assim, a eficiência, na
sua faceta de vantajosidade econômico-financeira, é gravemente abalada.
Em síntese, os problemas decorrentes do uso de cláusulas exorbitantes no âmbito
dos contratos administrativos são bem destacados por Diogo de Figueiredo Moreira Neto:
Assim, podem ser sintetizadas algumas desvantagens decorrentes desse novo
contexto: 1o. a imprecisão e a insegurança de direitos resultantes do manejo
público das prerrogativas da Administração nas transações, pela ambivalência de
sua origem e justificativa, ou seja, o fato de decorrerem ou da natureza dos
contratos (relativas) ou da natureza da própria administração pública (absolutas);
2o. o agravamento dos custos de transação pelo aumento do risco, enquanto a
redução e a abolição dessas cláusulas minimiza o chamado risco soberano; 3o. o
déficit de transparência da transação, pois as prerrogativas são genericamente
estabelecidas nas leis, sem evidente relação com as situações fáticas específicas e
as peculiaridades de cada contrato; e 4o. o sacrifício da confiança legítima do
administrado na transação, pois as prerrogativas tanto podem servir a propósitos
legítimos como disfarçar intenções ilegítimas, como a difundida e gravosa
corrupção pelo temor. (grifos no original) 6
Tendo em vista a análise dos riscos e benefícios do instituto das cláusulas
exorbitantes nos contratos administrativos, percebe-se que o arcabouço teórico tradicional do
tema deve ser revisitado. Dessa forma, é possível direcionar a aplicação dos novos paradigmas do
Direito Administrativo também à disciplina dos contratos da Administração Pública.
5
“Concessões de rodovias – a experiência brasileira”. In: SUNDFELD, Carlos Ari (org.). Parcerias públicoprivadas. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 234.
6
Op. cit., p. 582.
9
3. NOVOS PARADIGMAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO TAMBÉM EM MATÉRIA
DE CONTRATAÇÃO
Diante deste cenário, as novas perspectivas do Direito Administrativo vêm
procurando incrementar a atividade administrativa na busca por menos imperatividade e mais
democracia nas relações jurídicas entre administrador e particulares. Há diversas exigências que
permitem identificar essa mudança de paradigmas para a Administração e que também podem ser
aplicáveis à disciplina dos contratos administrativos: mais que interesse público, deve-se realizar
direitos fundamentais; mais que segurança jurídica, deve ser assegurada a proteção da confiança
legítima; mais que eficácia, deve-se promover a eficiência; mais que publicidade, deve ser
garantida transparência; mais que legalidade, deve-se buscar legitimidade.
Em primeiro lugar, o paradigma do princípio da supremacia do interesse público
sobre o interesse privado caiu por terra diante da percepção de que os direitos fundamentais são o
cerne axiológico do sistema constitucional 7. Se fosse possível admitir um princípio de
supremacia, abstraindo-se todos os problemas metodológicos que isso implicaria, a preferência
recairia sobre os direitos fundamentais, privilegiando a centralidade do princípio da dignidade da
pessoa humana em detrimento de concepções utilitaristas de Estado, pautadas em um interesse
público interesse público genérico.
Nesse sentido, vale conferir as razões, expostas por Gustavo Binenbojm, que
desconstroem o princípio da supremacia do interesse público no ordenamento jurídico brasileiro,
principalmente à luz da Constituição Federal de 1988:
Na esteira da incompatibilidade conceitual, cumpre ressaltar que o “princípio da
supremacia do interesse público” também não encontra respaldo normativo, por
três razões tratadas pelo autor: primeira, por não decorrer da análise
sistemática do ordenamento jurídico; segunda, por não admitir a dissociação do
interesse privado, colocando-se em cheque o conflito pressuposto pelo
7
Para um aprofundamento maior sobre o tema, remete-se ao estudo realizado por SARMENTO, Daniel (coord.).
Interesses públicos vs. Interesses privados: desconstruindo o princípio da supremacia do interesse público. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005.
10
“princípio”; e terceira, por demonstrar-se incompatível com os preceitos
normativos erigidos pela ordem constitucional. 8
Assim, se não mais se concebe a supremacia do interesse público como norte da
atividade administrativa, substituída pelo paradigma da ponderação entre interesses da
coletividade e interesses privados, ela não pode mais servir como fundamento único de validade
para a previsão de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. Por isso, outras
justificativas de caráter constitucional devem sustentar a aplicação de disposições contratuais
assimétricas em prol dos entes públicos.
Na verdade, o interesse público ainda é elemento importante para a aplicação das
prerrogativas da Administração 9, mas fatores como segurança jurídica, eficiência e
consensualidade também devem ser levados em conta para a aferição da sua legitimidade.
O paradigma da segurança jurídica, como decorrência do Estado de Direito,
também sofreu algumas mutações, com o desenvolvimento de seu âmbito subjetivo para a tutela
de direitos dos particulares. Enquanto o ideal de rule of Law pautava-se apenas em exigências
objetivas para garantir um ordenamento jurídico claro, público e estável, a evolução do conceito
permitiu a admissão de um direito subjetivo à segurança jurídica 10.
Com essa vertente subjetiva, é possível ampliar o espaço de controle dos atos
estatais, de modo a garantir a proteção da confiança legítima dos particulares na atuação da
8
BINENBOJM, Gustavo. Uma teoria do direito administrativo: direitos fundamentais, democracia e
constitucionalização. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 95.
9
Op. cit., p. 105: Note-se bem: não se nega a existência de um conceito de interesse público, como conjunto de
“interesses gerais que a sociedade comete ao Estado para que ele os satisfaça, através de ação política
juridicamente embasada (a dicção do Direito) e através de ação juridicamente fundada (a execução administrativa
ou judiciária do Direito). O que se está a afirmar é que o interesse público comporta, desde a sua configuração
constitucional, uma imbricação entre interesses difusos da coletividade e interesses individuais e particulares, não
se podendo estabelecer a prevalência teórica e antecipada de uns sobre os outros. Com efeito, a aferição do
interesse prevalente em um dado confronto de interesses é procedimento que reconduz o administrador público à
interpretação do sistema de ponderações estabelecido na Constituição e na lei, e, via de regra, obriga-o a realizar
seu próprio juízo ponderativo, guiado pelo dever de proporcionalidade. (grifos no original)
10
BAPTISTA, Patrícia Ferreira. Op. cit., p. 40: A positivação da segurança jurídica como princípio constitucional
autônomo autoriza a afirmação da existência de um autêntico direito à segurança jurídica. Conforme acima se
adiantou, por sua natureza normativa, os princípios constitucionais, ainda que implícitos, possuem eficácia jurídica.
Por isso, a despeito da grande abstração a priori de seu conteúdo, é possível cogitar da existência de um direito
subjetivo à segurança jurídica.
11
Administração Pública. No mesmo sentido, cabe transcrever trecho da profícua tese de doutorado
defendida por Patrícia Ferreira Baptista:
De fato, embora o princípio da proteção da confiança legítima não tutele um
valor desconhecido ao direito administrativo, ele possibilita uma proteção mais
ampla à confiança dos cidadãos nas condutas estatais do que aquela até então
conferida pelo ordenamento. Em alguns casos, essa ampliação importará apenas
na extensão de certas garantias já existentes. Em outros, porém, (...) o princípio
limitará determinados comportamentos do Poder Público que nem sequer eram
juridicamente censuráveis. 11
Ainda, a autora indica os méritos de uma doutrina da confiança legítima aplicável
ao Direito Administrativo brasileiro:
No que diz respeito à teoria geral do direito administrativo, o princípio da
proteção da confiança legítima tem o mérito de lançar luzes sobre a relação
jurídico-administrativa. A relação jurídico-administrativa representa uma
mudança de paradigma nas relações entre a Administração e os administrados,
reforçando a posição dos administrados como titulares de direitos perante a
Administração e diminuindo o vezo autoritário da disciplina. A aplicação do
princípio da proteção da confiança legítima impõe o exame recíproco dos dois
lados dessa relação: de um lado, a conduta da Administração e, de outro, a
conduta do administrado destinatário da ação administrativa. Fosse analisado
isoladamente o ato administrativo, considerando-se apenas os seus elementos e
seus vícios, nada se concluiria quanto à presença de uma situação de confiança
legítima suscetível de proteção. O abandono da análise isolada do ato
administrativo em favor do exame da relação jurídico-administrativa é
indispensável para a tutela da confiança. 12
Esta nova aplicação da segurança jurídica também pode pautar o exame da
legitimidade da adoção de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos. Isso porque a
conduta da Administração Pública deve servir de base para a confiança do administrado, o que
exige que todas as suas atividades, principalmente aquelas nas quais o particular encontra-se no
polo oposto da relação jurídica, sejam motivadas e aspirem à estabilidade. Assim, a confiança
alimentada pelo ente privado será legítima, quando este razoavelmente acreditar na conduta
administrativa e for surpreendido pela mudança de orientação da Administração. Presentes estes
fatores, quais sejam, base firme de conduta administrativa e confiança legítima do particular, a
11
12
Op. cit., p. 79.
Op. cit., p. 128-129.
12
ponderação deve tender à proteção desta confiança (interesse particular) em detrimento da sua
frustração (interesse público) 13.
Outro princípio no qual se deve sustentar a atividade administrativa, diante da
nova sociedade pós-moderna, é a eficiência. A doutrina já relacionou os muitos conteúdos que
integram este o conceito, analisado sobre a ótica de dever da Administração Pública:
1) eficiência como economicidade – significado mais usual que é dado ao
conceito, principalmente em razão da análise que a Economia faz sobre o tema
–, que indica que o administrador deve fazer um juízo de custo-benefício entre
os meios e o fim pretendido;
2) eficiência como análise de resultado, que significa que o administrador deve
utilizar os meios adequados para atingir os fins buscados;
3) eficiência como atendimento satisfatório dos resultados, sinalizando que os
fins devem ser atingidos acima de um patamar considerado suficiente; e
4) eficiência como atendimento máximo do fim buscado, que determina que a
maximização do fim pretendido deve se dar da melhor forma possível 14.
13
Op. cit., p. 130 e seguintes.
LEAL, Fernando. “Propostas metodológicas para uma abordagem teórico-metodológica do dever constitucional de
eficiência”. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico (REDAE), Salvador: Instituto Brasileiro de
agosto/setembro/outubro
de
2008.
Disponível
em
Direito
Público,
no 15,
<http://www.direitodoestado.com/revista/REDAE-15-AGOSTO-2008-FERNANDO%20LEAL.pdf>. Acesso em
15.04.2012, p. 4-5: Trabalharemos, sem prejuízo de outros, com quatro desses conteúdos, informando um conceito
de eficiência que pode ser chamado de substantivo, que também pode ser visto como um sobreconceito (Oberbegriff)
abarcador de quatro distintas dimensões. A mais tradicional visão de eficiência (oriunda da economia) preocupa-se
sobretudo com os custos relacionados aos meios utilizados para o alcance de um resultado. Nesse sentido, a
presente perspectiva identifica eficiência com economicidade, que impõe ao administrador o dever indeclinável de
buscar a melhor combinação de inputs a menor custo. O melhor resultado depende diretamente da distribuição de
recursos, é uma consequência direta da disposição dos elementos. Outra dimensão do conceito de eficiência que se
pode retirar da práxis jurídica privilegia a análise do resultado. Eficiente é a conduta que permite o alcance dos fins
buscados pelo agente. (...) Sem embargo, o certo é que, analisando com rigor, o presente conteúdo não se refere
especificamente à eficiência, mas ao conceito econômico fundamental de maximização (maximization). (...) O
conceito anterior admite duas especificidades. Por um lado, pode exigir que o agente público vise não somente ao
alcance das finalidades, mas ao atendimento satisfatório dos resultados. Há um patamar de qualidade atado à
finalidade que impede o agente de buscar qualquer nível de satisfação dos fins. Eficiente, assim, é o produto que está
além de determinado ponto na direção do fim objetivado. E, por outro, o conceito de eficiência também poderia
estar vinculado ao dever de atingir o fim ao máximo (...). (grifos no original)
14
13
Considerando todas essas dimensões do princípio da eficiência, deve-se ter em
conta, na análise das cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, que não basta apenas
um exame econômico-financeiro da disciplina contratual, mas também é necessário identificar os
objetivos buscados pela Administração, bem como os parâmetros mínimos de resultados que se
pretende alcançar.
Por fim, se a imperatividade e a unilateralidade do Estado devem ser deixadas de
lado em prol da consensualidade, nada mais consentâneo com esta ideia que permitir algum nível
de negociação no âmbito dos contratos da Administração. É possível destacar diversas vantagens
que uma relação jurídica consensual pode trazer para a atividade administrativa:
Algumas razões podem ser apontadas em favor do consenso como meio de
desenvolvimento da atividade administrativa. A primeira é a constatação de que
o interesse público tem condições de ser realizado com maior eficiência em um
contexto de harmonia e, simultaneamente, com a satisfação de interesses
privados. (...) A atividade consensual contribui, ainda, para aumentar a
transparência das atividades administrativas. (...) Nessa perspectiva, o consenso
se apresenta como instrumento moralizador e de imparcialidade da
Administração Pública. Além disso, o consenso confere maior lastro à autoridade
que nele busca o seu fundamento, colaborando para a construção de uma nova
legitimação da Administração Pública. E, finalmente, na medida em que permite
a superação dos conflitos, assegura uma maior estabilidade nas relações
administrativas, aumentando o grau de segurança jurídica das partes
envolvidas. 15
Nesse sentido, a busca por relações jurídicas mais consensuais é desejável, porque
permite que a atividade administrativa seja mais permeável a novas ideias dos entes privados,
possibilita a economicidade das prestações, desburocratiza a Administração e induz uma nova
configuração dos limites, cada vez mais tênues, entre as tarefas dos entes públicos e dos entes
particulares. Assim, as prerrogativas contratuais do poder público, se animadas e atenuadas pela
consensualidade, ganhariam novo grau de legitimidade.
15
BAPTISTA. Patrícia Ferreira. Transformações do Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 266267.
14
Em razão de todos esses novos paradigmas formulados para um Direito
Administrativo compatível com as demandas de um Estado pós-moderno, devem se impor alguns
critérios para previsão e aplicação de cláusulas exorbitantes aos contratos administrativos.
4. NOVAS
EXIGÊNCIAS
PARA
PREVISÃO
E
APLICAÇÃO
DE
CLÁUSULAS
EXORBITANTES
Considerando
a
reformulação
dos
institutos
tradicionais
do
Direito
Administrativo, que passou a ser inspirado por ponderação entre interesse da coletividade e
interesses privados, princípio da proteção da confiança legítima, dever de eficiência
administrativa e consensualidade das relações entre os particulares e os entes públicos, não se
pode mais admitir a reprodução acrítica de cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos.
A Administração Pública terá que arcar com um ônus argumentativo maior para fazer valer as
suas prerrogativas.
Para tanto, caberá ao administrador afastar, no caso concreto, a padronização dos
contratos administrativos, avaliando, motivadamente e pautado por um juízo de ponderação, a
medida necessária de flexibilização que deve tomar para uma gestão pública eficiente. Por mais
que haja previsão em lei de cláusulas exorbitantes, a Administração não deve se ater a uma
vinculação rígida aos parâmetros legais, estando no âmbito de seus poderes-deveres verificar
casuisticamente a legitimidade da adoção de tais prerrogativas 16.
Na verdade, numa interpretação mais progressista da Lei no 8.666/93, é possível
sustentar que a Administração não está sempre obrigada a se valer de cláusulas exorbitantes em
todos os contratos administrativos por ela firmados. Pelo contrário. A Lei no 8.666/93 estabelece
16
Diogo de Figueiredo Moreira Neto considera que a concepção tradicional de contratos administrativos não admite
qualquer flexibilização. No entanto, o autor sustenta a possibilidade de uma dupla motivação para avaliar a previsão
e aplicação em concreto das cláusulas exorbitantes. A meu ver, entretanto, mais que uma dupla motivação, o
administrador público deve se valer de um duplo juízo de ponderação. Nesse sentido, vale conferir MOREIRA
NETO, Diogo de Figueiredo. Op. cit., p. 582: Ora, no modelo tradicional de contratos administrativos – com
prerrogativas legais estandartizadas – há total impossibilidade de ponderar casuisticamente essas vantagens e
desvantagens considerando as características de cada contrato que deva realizar a Administração Pública (juízos de
oportunidade e de conveniência), assim se explicando a superioridade que vem sendo reconhecida à opção
flexibilizante, que, em acréscimo, para maior garantia recíproca das partes pública e privada, ainda se pode valer
da saudável teoria da dupla motivação, como se examinará adiante. (grifos no original)
15
em seu artigo 58 que constitui prerrogativa administrativa a previsão de tais cláusulas, não
estando elas no rol de cláusulas que necessariamente devem estar previstas nos contratos,
detalhado no artigo 55 da referida lei.
Ressalte-se que não está a se negar que a Administração deve poder fazer uso de
disposições exorbitantes em seus contratos. Defende-se aqui a faculdade de afastá-las quando
outros interesses também estiverem em jogo. Se a Constituição Federal não impõe a
obrigatoriedade de pactuação dessas cláusulas, cabe ao administrador prescindir de sua previsão
contratual. As cláusulas exorbitantes parecem ser uma possibilidade prevista em lei e não uma
exigência legal, a fim de permitir maior flexibilidade da Administração Pública para atingir a
eficiência e outros interesses relevantes em relações contratuais.
Diante da ideia de que as prerrogativas contratuais do poder público constituem
uma faculdade admitida pelo legislador, não procede o argumento de que as cláusulas
exorbitantes se aplicam por força de lei, mesmo na ausência de previsão no edital de licitação ou
no contrato. 17 A própria literalidade da Lei no 8.666/93, não aceita essa interpretação. De
qualquer forma, ainda que a doutrina nesse sentido – predominante em matéria de contratos
administrativos – não acolha esse entendimento, nada obsta que o administrador público afaste a
aplicação de prerrogativas no caso concreto, com cláusula expressa nesse sentido.
Por conseguinte, para verificar a necessidade de previsão ou não de cláusulas
exorbitantes, o administrador deve considerar as características específicas de cada contrato para
realizar uma ponderação entre os interesses conflitantes no caso concreto 18: de um lado estará o
17
A doutrina, de forma geral, defende que as cláusulas exorbitantes se aplicam por força de lei, mesmo que não
estejam previstas contratualmente. Ver, por todos, GARCIA, Flavio Amaral. Licitações e Contratos (casos
polêmicos). 2a edição, Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 230: Justificam-se em razão de a Administração atuar
em nome do interesse geral, sendo mera decorrência do basilar princípio da supremacia do interesse público sobre
o interesse privado, que informa e norteia todos os institutos do Direito Administrativo. Ainda que não escritas nos
contratos, são plenamente aplicáveis.
18
Admitindo o uso da proporcionalidade para verificar a aplicação ou não de cláusulas exorbitantes aos contratos
administrativos, mas apenas em hipóteses excepcionais, vale conferir SANTOS, Márcia Walquiria Batista dos. Op.
cit., p. 395: Anotamos que a aplicação do princípio da proporcionalidade tem lugar no momento da interpretação
dos princípios e valores envolvidos na situação posta, no caso concreto. Mas, como regra, para a atuação
corriqueira da Administração Pública, vale a observância de regras e parâmetros fixados pela legislação pertinente
ao contrato que se pretende ajustar. Em outras palavras, o Poder Público, ao instaurar um processo licitatório,
divulgará um edital contendo como anexo a minuta de contrato a ser celebrado futuramente com a empresa
16
interesse da coletividade em atingir um determinado fim público, mesmo que isso implique a
manutenção a qualquer custo ou a rescisão do contrato; no lado oposto, estarão outros princípios,
tais como eficiência, economicidade, segurança jurídica e consensualidade. Caberá à
Administração avaliar o peso desses interesses em cada caso, identificando se a balança pende
mais para o afastamento ou para a adoção de prerrogativas nos contratos.
No mais, outros parâmetros também podem ser utilizados nesta ponderação:
(i) quanto mais o contrato administrativo se aproximar de uma relação privada, menor será a
possibilidade de previsão de cláusulas exorbitantes; (ii) quanto menor for o poder de negociação
da Administração naquele contrato, menor será o âmbito de exercício de suas prerrogativas.
Assim, por exemplo, num contrato de seguro, de compra e venda ou mesmo de fornecimento de
energia elétrica com fornecedor único, o administrador estará mais propício a se despir de sua
imperatividade do que em um contrato para realização de uma obra pública, como a construção
de uma rodovia 19.
Por outro lado, mesmo que a ponderação aponte para a previsão de cláusulas
exorbitantes em determinados contratos, a aplicação destas cláusulas também estará submetida ao
mesmo escrutínio. Assim, caberá ao administrador, quando pretender se valer de tais
prerrogativas no âmbito de um contrato específico, ponderar os interesses em jogo para avaliar a
legitimidade do uso em concreto destes dispositivos contratuais.
Neste caso, deverão ser sopesados, principalmente, o interesse público que
demanda a aplicação da prerrogativa administrativa e a confiança depositada pelo particular na
adjudicatória, valendo-se das cláusulas exorbitantes e necessárias que se encontram arroladas na Lei no 8.666/93.
Na hipótese de se colocar, ao longo do certame, algum embate entre os direitos das partes envolvidas, recorrer-se-á
ao princípio da proporcionalidade para se decidir, no caso concreto, e diante dos valores envolvidos, de que forma
o interesse público e os interesses individuais poderão conviver.
19
Em sentido contrário, entendendo que a Administração Pública nunca se despe das suas prerrogativas DI PIETRO,
Maria Sylvia Zanella. “Ainda existem os chamados contratos administrativos?”. In: DI PIETRO, Maria Sylvia
Zanella; RIBEIRO, Carlos Vinícius Alves (coord.). Supremacia do interesse público e outros temas relevantes do
direito administrativo. São Paulo: Atlas, 2010, p. 408-409: Outro aspecto relevante a realçar ainda quanto à
igualdade das partes nos contratos diz respeito à impossibilidade de se igualar a Administração Pública (como
parte nos contratos) ao particular. A Administração Pública age em nome de entes políticos e exerce poderes
irrenunciáveis que a ele são inerentes. Por isso mesmo, ainda quando se utiliza de institutos do direito privado, a
Administração nunca se iguala ao particular. Ficamos com a lição de Seabra Fagundes, quando afirma que “nunca
a atividade (do Estado) pode ser perfeitamente assemelhada à do indivíduo, quer na forma por que se exerce, quer
na sua finalidade. Ainda quando ao revestir o caráter da chamada atividade de gestão”.
17
continuidade e seriedade do instrumento contratual firmado. Dessa forma, a exigência de um
ônus argumentativo mais elevado no momento em que o poder público se vale das cláusulas
exorbitantes permitirá uma maior segurança para os entes privados na estabilidade das relações
jurídicas com a Administração, já que será possível acreditar que as alterações não se deram por
mera arbitrariedade, mas por razões legitimamente impositivas.
Com efeito, em ambos os momentos em que a Administração realizará a
ponderação para avaliar a previsão contratual e a aplicação em concreto das prerrogativas que a
lei lhe faculta 20, caberá, primordialmente, uma análise de custo-benefício 21. O administrador
público, de forma motivada e pautado por elementos pragmáticos, examinará probabilidades e
prognósticos, a fim de avaliar as vantagens e desvantagens de se valer, em abstrato ou em
concreto, de cláusulas exorbitantes.
Juntamente com estes elementos fáticos decorrentes da avaliação de custos e de
benefícios, o princípio da eficiência também será colocado em um dos “pratos da balança” da
ponderação, para a atribuição de pesos entre os interesses em jogo. Para tanto, a eficiência deve
ser entendida como:
20
Não é nova esta ideia de aplicação de um juízo de ponderação para a verificação da legitimidade de adoção de
prerrogativas pela Administração. Vale conferir o magistério de BINENBOJM, Gustavo. Op. cit., p. 113-114: As
chamadas cláusulas exorbitantes, v.g., elevadas à condição de elementos identificadores dos contratos
administrativos, sempre foram justificadas com fulcro na verticalidade das relações travadas entre Estado e
particular, em oposição à horizontalidade das relações estabelecidas entre partes privadas. (...) [P]ara que um
privilégio instituído em favor da Administração Pública seja constitucionalmente legítimo, é mister que: (I) a
compressão do princípio da isonomia (isto é, a discriminação criada em desfavor dos particulares) seja apta a
viabilizar o cumprimento, pelo Estado, dos fins que lhe foram cometidos pela Constituição ou pela lei; (II) o grau ou
medida da compressão da isonomia (isto é, a extensão da discriminação criada em desfavor dos particulares) deve
observar o limite do estritamente necessário e exigível para viabilizar o cumprimento, pelo Estado, dos fins que lhe
foram cometidos pela Constituição ou pela lei; (III) por fim, o grau ou medida do sacrifício imposto à isonomia deve
ser compensado pela importância da utilidade gerada, numa análise prognóstica de custos para os particulares e
benefícios para a coletividade como um todo. (grifos no original)
21
Argumento análogo é admitido na análise da regulação por RAGAZZO, Carlos Emmanuel Joppert. Regulação
jurídica, racionalidade econômica e saneamento básico. Rio de Janeiro: Renovar, 2011, p. 212-213: É importante
avaliar que o Estado de Custo e Benefício, ainda inexistente no Brasil (salvo por iniciativas isoladas), assume
também que os riscos fazem parte dos sistemas. A velha lei da física (toda ação provoca uma reação) se aplica às
escolhas regulatórias, uma vez que qualquer medida implementada poderá ter uma série de consequências, algumas
das quais não pretendidas. Para tornar esse paradigma uma realidade no Brasil, será preciso ultrapassar a
primeira etapa, qual seja, uma presunção em favor da elaboração de análises de custo e benefício. Só aí é que será
possível discutir como essa análise deverá ser programada e isso não será fácil. (...) Juristas costumam resistir a
pensamentos prognósticos ou probabilísticos, não auxiliando a concretização desse paradigma.
18
(...) um fim externo à realização de qualquer finalidade que envolva (também)
decisões de caráter econômico ou orçamentário. Não estaria este “princípio da
eficiência” atado às características dos sujeitos ou objetos atingidos, mas seria
uma finalidade inerente ao próprio Estado, que tem de alocar recursos, prestar
serviços públicos e garantir condições materiais e instrumentais para a fruição
de direitos. (...) Por tais razões, a eficiência seria, a bem dizer, um princípio,
porquanto subscreve (meta-)finalidades. Seria a versão nacional, como princípio
setorial voltado à Administração Pública, para o “dever de boa administração”
dos italianos. (grifos no original) 22
Assim sendo, toda a aplicação do Direito que envolva riscos futuros e possíveis,
tal como a previsão e aplicação de prerrogativas contratuais ao poder público, deve ser precedida
de uma análise de custo-benefício para o levantamento de fatores pragmáticos relacionados à
matéria. Da mesma forma, quando se trata de alocação de recursos públicos para a realização de
atividades administrativas, o que é inerente aos contratos administrativos, não há como afastar
um exame de eficiência.
Por fim, ressalte-se que o legislador, pelo menos em uma hipótese, trouxe para a
Administração a faculdade de afastar as cláusulas exorbitantes num tipo de contrato específico.
Na lei que disciplina as parcerias público-privadas, Lei no 11.079/2004, há previsão expressa de
mitigação das prerrogativas administrativas. Seu artigo 5o, inciso III, traz a possibilidade de
“repartição de riscos entre as partes, inclusive os referentes a caso fortuito, força maior, fato do
príncipe e álea econômica extraordinária”. 23
Em virtude dessa nova disciplina legal, é possível sustentar que os contratos
elaborados no âmbito das parcerias público-privadas se aproximam de contratos privados, nos
quais também há a distribuição entre os contratantes dos riscos decorrentes da contratação. Claro
está que o objetivo principal desse regime de repartição de riscos é a diminuição dos custos de
22
LEAL, Fernando. Op. cit., p. 10-11.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia,
terceirização, parceria público-privada e outras formas. 5a edição, 2a reimpressão, São Paulo: Atlas, 2006, p. 171:
Só que, como o dispositivo, no inciso III, fala em “repartição de riscos entre as partes”, isto significa que, em caso
de ocorrência de desequilíbrio econômico-financeiro do contrato, a Administração Pública não tem que arcar
sozinha com os prejuízos sofridos pelo parceiro privado. Ao contrário do que ocorre com os contratos
administrativos em geral, cada parceiro deverá assumir uma parte do prejuízo, devendo essa repartição de riscos
ser disciplinada no contrato. Por outras palavras, os prejuízos se repartem entre os parceiros público e privado. A
mesma ideia consta do artigo 4o, inciso VI, que inclui entre as diretrizes a serem observadas na contratação de
parceria público-privada a “repartição objetiva de riscos entre as partes”.
23
19
transação e, consequentemente, a redução dos custos arcados pelo poder público com a prestação
de serviços. 24
25
Nesse sentido, vale destacar o quadro comparativo entre os regimes de repartição
de riscos na Lei no 8.666/93, na Lei no 8.987/95 e na Lei no 11.079/2005, descrito por Marcos
Juruena Villela Souto:
Importante evolução veio com o art. 5o, III, que torna o parceiro privado também
responsável pelos riscos referentes a “caso fortuito, força maior, fato do príncipe
e álea econômica extraordinária”. No regime da Lei no 8.666/1993, os arts. 78,
XVII, e 79, § 2o, obrigavam a Administração a indenizar o contratado nestas
situações, pelo fato de não haver culpa do contratado. Ainda que se pudesse
questionar a constitucionalidade do dispositivo – já que não havia ação ou
omissão imputável à Administração pelo art. 37, § 6o, CF – o certo é que se
entendia que o princípio da solidariedade resolvia a matéria, obrigando a
sociedade a assumir o risco do contratado. Num regime de repartição de riscos a
situação se corrige.
(...)
Vale frisar que o sistema de contratações pela Lei no 8.666/93 não transfere
riscos para o contratado, ficando sempre o risco garantido pelo pagamento à
custa de dotações orçamentárias que devem, obrigatoriamente, ser previstas no
contrato – art. 55, V da Lei no 8.666/93; de outro lado, no sistema da Lei no
8.987/95, os riscos são totalmente transferidos para os concessionários e
permissionários – art. 2o – tendo sido vetado o dispositivo que lhes garantia uma
renda mínima, sob o argumento de que tal renda retiraria o risco inerente ao
contrato. (grifos no original) 26
Em síntese, tanto a previsão contratual quanto a aplicação em concreto de
cláusulas exorbitantes demandarão do administrador público um juízo de ponderação – dupla
ponderação – entre as razões de interesse público que exigem a assunção de riscos mais elevados
aos contratados e os argumentos que clamam pela segurança jurídica, consensualidade e
24
GARCIA, Flavio Amaral. Op. cit., p. 370: Essa repartição de riscos é também elemento fundamental dessas
parcerias, porque é a partir dela que se conseguirá diminuir o valor do contrato, sob a lógica econômica de que
quanto menor o risco menor o valor. E já num primeiro momento isso é fundamental, ou seja, no planejamento da
PPP, porque é preciso identificar quais são os riscos. É preciso, antes de partilhar o risco, saber de quais riscos se
está tratando, e cada contrato, cada objeto contratual vai ter um risco diferente do outro. Então será preciso fazer
um planejamento muito adequado, muito específico ao caso concreto.
25
A possibilidade de uma repartição de riscos entre o parceiro público e o parceiro privado já foi objeto de análise
pelo Tribunal de Contas da União. No acórdão proferido nos autos do acompanhamento do processo licitatório da
parceria público-privada para a implantação do Consórcio Datacenter, composto pelo Banco do Brasil S.A. e Caixa
Econômica Federal, o Tribunal de Contas da União sinalizou pela inexistência de óbice jurídico para tal. Vale
conferir Acórdão 851/2009 – TCU – Plenário.
26
Op. cit., p. 39 e 41.
20
eficiência dos contratos administrativos. Também serão necessárias uma exposição de motivos e
uma análise casuística de custo-benefício, a fim de pautar o sopesamento dos interesses em jogo.
5. CONCLUSÃO
O presente estudo tem como objetivo propor uma releitura da aplicação das
cláusulas exorbitantes nos contratos administrativos, por meio de uma análise das vantagens e
desvantagens da adoção de prerrogativas contratuais pela Administração, bem como da injeção
dos novos paradigmas do Direito Administrativo no exame do tema.
Em primeiro lugar, verificou-se que são duas as principais vantagens que tais
cláusulas geram para o poder público: (i) confere-lhe a palavra final para ditar o interesse público
prevalente; (ii) permite-lhe fazer prevalecer o interesse público, mesmo diante de outros direitos
ou interesses em jogo. Ambos os benefícios só se legitimam diante do princípio da supremacia do
interesse público sobre o interesse privado.
Em contraposição, várias são as desvantagens do instituto: (i) impede que a
Administração trate seus interesses como complementares e não contrapostos aos interesses dos
entes privados; (ii) intensifica a insegurança jurídica; (iii) restringe a confiança legítima do
particular na firmeza da orientação administrativa; (iv) limita a transparência na aplicação das
prerrogativas administrativas; e (v) estimula um déficit de eficiência, com o aumento dos custos
de transação dos contratos administrativos.
Em seguida, analisou-se os novos paradigmas do Direito Administrativo,
demandados por uma sociedade que busca relações jurídicas mais consensuais e democráticas.
Neste sentido, novos argumentos foram apresentados para o exame das cláusulas exorbitantes,
tais como: (i) a necessidade de ponderação entre interesses da coletividade e interesses privados
(superando o princípio da supremacia do interesse público); (ii) as exigências de proteção da
confiança jurídica dos particulares frente à atuação administrativa (evolução da concepção
objetiva de segurança jurídica); (iii) o conteúdo concreto do dever de eficiência para a
Administração Pública (deixando de lado a ideia de que seria um princípio vazio); (iv) as
21
vantagens
da consensualidade das
relações
jurídico-administrativas
(em
oposição
à
imperatividade).
Por fim, foi proposta a exigência de um parâmetro para a adoção de cláusulas
exorbitantes nos contratos com a Administração Pública: a dupla ponderação. Nesse sentido,
tanto a previsão contratual quanto a aplicação em concreto de cláusulas exorbitantes demandarão
do poder público um juízo de ponderação, no qual, de um lado estará o interesse público que
justifica a elevação dos riscos para o ente privado e, de outro, as razões de segurança jurídica,
consensualidade e eficiência dos contratos administrativos. No mais, à Administração Pública
também caberá expor os argumentos para a adoção ou não de tais prerrogativas, bem como
analisar casuisticamente os custos e benefícios possíveis, capazes de permitir o sopesamento dos
interesses em jogo.
Resta, ainda, uma última ressalva. O estudo apresentado pretende muito mais
lançar luz sobre alguns aspectos que envolvem a aplicação de cláusulas exorbitantes aos contratos
administrativos que ser um trabalho definitivo sobre o assunto. O objetivo principal foi trazer à
baila a discussão sobre o tema, estimulando, principalmente, que soluções alternativas sejam
propostas.
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MARCELLE FIGUEIREDO DA CUNHA marcelledir