VEREDAS
Revista da Associação Internacional de Lusitanistas
VOLUME 12
SANTIAGO DE COMPOSTELA
2009
A AIL – Associação Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o
fomento dos estudos de língua, literatura e cultura dos países de língua
portuguesa. Organiza congressos trienais dos sócios e participantes
interessados, bem como co-patrocina eventos científicos em escala local.
Publica a revista Veredas e colabora com instituições nacionais e
internacionais vinculadas à lusofonia. A sua sede localiza-se na Faculdade
de Letras da Universidade de Coimbra, em Portugal, e seus órgãos
directivos são a Assembleia Geral dos sócios, um Conselho Directivo e um
Conselho Fiscal, com mandato de três anos. O seu patrimônio é formado
pelas quotas dos associados e subsídios, doações e patrocínios de entidades
nacionais ou estrangeiras, públicas, privadas ou cooperativas. Podem ser
membros da AIL docentes universitários, pesquisadores e estudiosos
aceitos polo Conselho Directivo e cuja admissão seja ratificada pela
Assembleia Geral.
Conselho Directivo
Presidente: Elias Torres Feijó, Univ. de Santiago de Compostela
[email protected]
1.ª Vice-Presidente: Cristina Robalo Cordeiro, Univ. de Coimbra
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2.ª Vice-Presidente: Regina Zilberman, UFRGS; FAPA; CNPQ
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Secretária-Geral: M. Carmen Villarino Pardo
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Vogais: Anna Maria Kalewska (Univ. de Varsóvia); Benjamin Abdala Junior
(Univ. São Paulo); Claudius Armbruster (Univ. Colónia); Helena Rebelo (Univ. da
Madeira); Mirella Márcia Longo Vieira de Lima (Univ. Federal da Bahia);
Onésimo Teotónio de Almeida (Univ. Brown); Petar Petrov (Univ. Algarve);
Raquel Bello Vázquez (Univ. Santiago de Compostela); Sebastião Tavares de
Pinho (Univ. Coimbra); Teresa Cristina Cerdeira da Silva (Univ. Fed. do Rio de
Janeiro); Thomas Earle (Univ. Oxford).
Conselho Fiscal
Fátima Viegas Brauer-Figueiredo (Univ. Hamburgo); Isabel Pires de Lima (Univ.
Porto); Laura Calcavante Padilha (Univ. Fed. Fluminense).
Associe-se pela homepage da
AIL: www.lusitanistasail.net
Informações pelos e-mails:
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Veredas
Revista de publicação semestral
Volume 12 – Dezembro de 2009
Diretor:
Elias J. Torres Feijó
Diretora Executiva:
Raquel Bello Vázquez
Conselho Redatorial:
Aníbal Pinto de Castro, Axel Schönberger, Cleonice Berardinelli, Fernando Gil,
Francisco Bethencourt, Helder Macedo, J. Romero de Magalhães, Jorge Couto,
Maria Alzira Seixo, Marie-Hélène Piwnick, Ria Lemaire. Por inerência: Anna
Maria Kalewska, Benjamin Abdala Junior, Claudius Armbruster, Cristina Robalo
Cordeiro, Fátima Viegas Brauer-Figueiredo, Helena Rebelo, Isabel Pires de Lima,
Laura Cavalcante Padilha, M. Carmen Villarino Pardo, Mirella Márcia Longo
Vieira de Lima, Onésimo Teotónio de Almeida, Petar Petrov, Regina Zilberman,
Sebastião Tavares de Pinho, Teresa Cristina Cerdeira da Silva, Thomas Earle.
Redação:
VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas
Endereço eletrónico: [email protected]
Realização:
Revisão: Laura Blanco de la Barrera
Desenho da Capa: Atelier Henrique Cayatte – Lisboa, Portugal
Impressão e acabamento:
Unidixital, Santiago de Compostela, Galiza
ISSN 0874-5102
AS ATIVIDADES DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS
TÊM O APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMÕES E DA
CONSELHARIA DA CULTURA DA JUNTA DA GALIZA
SUMÁRIO
NOTA DA REDAÇÃO...........................................................................................7
LEONOR MARTINS COELHO
Irene Lucília Andrade: regate(s) do passado para um questionamento
do presente...............................................................................................................9
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
Madeira: reflexões à margem do sistema cultural portugûes................................27
MARCO LIVRAMENTO
Virado do avesso ou a polifonia da verdade.........................................................43
JURACY ASSMANN SARAIVA
Memorial de Aires: autorreferencialidade e denúncia da utopia realista..............67
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
Critérios canonizadores num sistema literário deficitário
(o caso galego para 1974-1978)............................................................................81
REGINA ZILBERMAN
Narrativas da infidelidade em Sagarana, de Guimarães Rosa............................107
NOTA DA REDAÇÃO
Tal e como foi anunciado no número anterior, a revista Veredas
começa uma nova etapa caraterizada pela sua transformação ao
suporte exclusivamente eletrônico, e também por assumir o sistema de
avaliação por pares para a seleção dos trabalhos para a publicação. Isto
significa que os artigos aqui recolhidos foram em todos os casos
enviados pelas suas autoras e autores para serem apreciados por
especialistas, e que só os 6 efetivamente publicados cumpriam os
requisitos de qualidade que a revista da Associação Internacional de
Lusitanistas requer.
Queremos agradecer desde a direção da revista, em primeiro lugar, a
preferência que as investigadoras e investigadores responsáveis tanto
dos trabalhos que agora apresentamos como dos que ficaram fora,
mostraram pela nossa publicação. Igualmente, queremos agradecer o
trabalho generoso de avaliadoras e avaliadores que se prestaram a
colaborar com a direção da Veredas não apenas na aceitação ou não
dos trabalhos recebidos, mas também na leitura enriquecedora dos
artigos que beneficiaram em diferentes medidas dos seus informes.
Este número 12 tem um teor fundamentalmente literário, e apresenta
uma alargada panorâmica das literaturas lusófonas em boa parte das
suas coordenadas geográficas: de visões sobre clássicos portugueses e
brasileiros até a abordagem de questões sobre identidades literárias em
espaços insulares, passando pelos processos canonizadores no sistema
galego ou pela análise de uma produtora absolutamente
contemporânea.
A produção literária da ilha da Madeira é analisada nos artigos de
Leonor Martins Coelho e de Thierry Proença dos Santos. No primeiro
caso com a apresentação da obra de Irene Lucília Andrade, focando a
relação que se estabelece entre passado e presente, memória e
identidade em dous textos recentes desta escritora com longa trajetória
desde a publicação em 1968 de Hora Imóvel, e presença recorrente em
antologias que recolhem tanto poesia como narrativa madeirense.
Proença dos Santos, por seu turno, reflete no seu trabalho sobre o
8
processo de elaboração de uma identidade literária madeirense e as
relações desta com a literatura portuguesa em que se enquadra e com
as literaturas “insulares”.
Através dum estudo de caso da literatura galega na década de 70,
Roberto Samartim analisa os processos canonizadores entendidos
como dinâmicos, mostrando os diferentes fatores que explicam tanto o
funcionamento do sistema nesse período como a construção posterior
do conhecimento sobre este.
Três dos vultos centrais das literaturas em língua portuguesa são
trazidos a estas Veredas por meio das pesquisas de Juracy Assmann
Saraiva, Regina Zilberman e Marco Livramento. No primeiro caso, a
prof. Saraiva achega uma interpretação em chave da pós-modernidade
da abordagem paradoxal que Machado de Assis faz da escrita literária
no seu último texto publicado –Memorial de Aires. A prof. Zilberman
revisa as personagens femininas mais conhecidas da produção clássica
do século XIX brasileiro sob a luz da dicotomia entre Helenas e
Penélopes para se centrar na análise destas personagens em Sagarana
de Guimarães Rosa. Finalmente, Marcos Livramento oferece uma
nova visão do fingimento pessoano, procurando nos seus textos uma
arte poética modernista que ilumine a compreensão destes.
A iminente posta em andamento do novo sítio web da Associação
permitirá a partir do próximo número um contato mais direto e ágil da
revista com as investigadoras e investigadores que queiram contribuir
com as suas pesquisas, e dará uma nova e maior difusão aos nossos
trabalhos. Confiamos em que isto contribua para a satisfação tanto das
pessoas que leem Veredas à procura das novidades mais importantes
na pesquisa em língua portuguesa sobre assuntos da produção cultural
da Lusofonia, como daquelas que procuram um lugar onde publicar
estas pesquisas em português e com garantias de difusão e de rigorosa
avaliação.
Elias J. Torres Feijó
Diretor
Raquel Bello Vázquez
Diretora Executiva
VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009), pp. 9-27
Irene Lucília Andrade: resgate(s) do
passado para um questionamento do
presente
LEONOR MARTINS COELHO
Universidade da Madeira - Centro de Estudos Comparatistas da
Faculdade de Letras de Lisboa
Cremos encontrar na obra de Irene Lucília Andrade, num resgate constante de
um tempo findo, a exaltação das relações afetivas que a era da globalização
tende a apagar. Com efeito, a escrita desta autora nascida na ilha da Madeira tece
uma crítica ao presente da cultura da ostentação, apelando, a voz do texto, à
cultura pretérita do afeto.
Por razões de ordem prática, percorrer-se-á de uma forma necessariamente
sumária dois textos da referida escritora: um livro de poemas e uma compilação
de narrativas breves. Por um lado, Água de Mel e Manacá (2002), por outro, A
Penteada ou o Fim do Caminho (2004), uma vez que ambos os livros apelam à
preservação de vivências de outrora, alicerçadas no reconhecimento de laços
fraternos, por oposição a uma cultura da indiferença e do provento fácil que
parece vir, paulatinamente, a caraterizar a sociedade atual.
Nessa cultura da memória que tem vindo a marcar quer a poesia, quer a
narrativa, a sua produção surge como um testemunho de uma consciência crítica,
nascida de um sentimento de perda da cultura da fraternidade e da humildade. A
10
LEONOR MARTINS COELHO
memória do tempo pretérito não somente recupera a existência do passado como
permite pensar o presente, perspetivando, ainda, o futuro desejado. Assim, o
poder construtivo da recordação abre um espaço de questionamento e revelam
novas convergências numa completude que se alicerce nos valores da
consolidação da amizade, no reatar de laços sociais, para poder voltar,
novamente, a recuperar o que foi desaparecendo ao sabor da megalomania do
homem moderno.
Palavras-chave: memória, vivência, afeto, distopia, identidade.
In the work of Irene Lucília Andrade, one is believed to encounter, in a constant
redemption of times gone by, the exaltation of the affective relationships that the
era of globalization tends to delete. In effect, the writing of this author, born on
the Island of Madeira, criticizes the present culture of ostentation and,
throughout the voice of the text, calls out to the past culture of affection.
For practical reasons, two texts of the said writer win be briefly analysed: a book
of poems, Água de Mel e Manacá (2002) and a compilation of brief narratives, A
Penteada ou O Fim do Caminho (2004), since both books appeal to the
preservation of past experiences, set in the recognition of fraternal ties, in
opposition to a culture of indifference and easy gains, which seems to have
gradually come to characterize today's society.
This culture of memory, which has marked both the author's poetry and
narrative, emerges as testimony of a critical conscience, born of a sense of loss
of the culture of fraternity and humility. The memory of times gone by, not only
recovers the existence of the past, but also allows us to foresee a desired future.
Thus, the constructive power of memory opens a place of questioning and
reveals new convergences in a completion which is set on the values of
consolidation of friendship and re-establishment of social ties, in order to once
again recover what disappeared at the mercy of the megalomania of modern
Man.
Key words: memories, affection, dystopia, identity.
A leitura que aqui propomos incidirá em dois livros da
escritora madeirense,1 Irene Lucília Andrade, que, embora distintos
1
Irene Lucília Andrade publicou o seu primeiro livro de poesia, Hora imóvel, em
1968. Nesse género literário, deu ainda a lume: O pé dentro de água (1980), Ilha que é
gente (1986), A mão que amansa os frutos (1991), Estrada de um dia só (1995,) Protesto e
canto de Atena (2002) e Água de Mel e Manacá (2002). No que concerne à ficção
narrativa, são de referir os romances, Angélica e a sua espécie (1993) e Porque me
IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO
11
quanto ao seu género literário, foram plasmados no mesmo binómio
ideário/imaginário, como uma variação do mesmo tema desdobrado
em dois impulsos de escrita, podendo falar-se aqui de recriação da
mesma obra. Com efeito, impelida pela necessidade de evocar a
infância, desse «tempo mágico [que] não estagnasse na crónica, mas
permanecesse habitável e circular, [com ela] no centro, para que
[se] pudesse envolver fortemente na amplitude que dele [a] separa»
(Andrade, 2004: 11), a escritora desenvolveu um projecto de
reescrita e de prolongamento de um tema, ao retomar o universo do
livro de poesia Água de Mel e Manacá (2002) para transferi-lo
noutro género literário, o da narrativa, concretizado com o livro A
Penteada ou o Fim do Caminho (2004).2 Há, com efeito, entre
ambas as obras um elo íntimo e solidário, uma assumida relação
intratextual, anunciada pela “missiva” de abertura dirigida, no livro
de poesia, ao João, o amigo de infância, e, no livro de narrativas, à
avó paterna. Em ambos os casos há uma urgência catártica em falar
do passado, uma necessidade visceral de regresso à infância para
estar em sintonia «com outro tempo e outras referências», um
desejo de «imersão num tempo […] numa circunstância de
comunicabilidade» (Andrade, 2004: 207).3
Esta atenção prestada ao mundo envolvente de uma voz que
conjuga o lirismo memorialista com o discurso testemunhal, é
traduzida por uma escrita poética e ficcional que assenta num modo
Lembrei dos Cisnes (2000); entre a crónica e a narrativa breve, lançou A Penteada ou o
Fim do Caminho (2004), , Crónica da Cidade Anónima. À Hora do Tordo (2008). Para
mais informação sobre a autora e a sua obra, o leitor poderá consultar o número especial
da revista Margem 2, subordinada ao tema “Irene Lucília Andrade: uma voz na margem”,
Leonor Martins Coelho (coord. ), Funchal: Câmara Municipal – Departamento da Cultura,
2009.
2
O livro de poesia Água de Mel e Manacá apresenta-se segmentado da seguinte
forma: “A Cidade – 1º dia”, “O Subúrbio – 2º dia”, “O Retrato – 3º dia”, “As Águas – 4º
dia”, “A Casa – 5º dia”, “O Canto – 6º dia” e “O Círculo – 7º dia”. Por sua vez, A
Penteada ou o Fim do Caminho contém quarenta e uma narrativas breves em torno do
lugar da Penteada onde se encontra, actualmente, a Universidade da Madeira e o Pólo
Tecnológico, seguidas de seis textos-testemunhos de académicos, inseridos na secção final
do livro intitulada “Salve-se o olhar”.
3
São afirmações da instância autoral em “Salve-se o olhar”, apenso ao livro
Penteada ou o Fim do Caminho.
12
LEONOR MARTINS COELHO
de olhar de artista –a lembrar um Cesário Verde ou um António
Nobre–, fixadora de paisagens, espaços e vivências do seu meio
insular. Não queremos com isto afirmar que esta autora não dialoga
com o Outro, no vasto cenário de intercâmbios culturais, vivenciais
e identitários que caracteriza o mundo contemporâneo. Tal como
Sophia de Mello Breyner Andresen, Irene Lucília reivindica a sua
cidadania num universo que se abre aos valores eternos da
humanidade, valores que sabem olhar para o passado para melhor
(se) situar (n)o presente.4
Nos livros em análise, a escrita permite a preservação de
vivências de outrora, alicerçadas no reconhecimento de laços
fraternos, por oposição a uma cultura da indiferença e do provento
fácil que parece vir, paulatinamente, a caraterizar a sociedade atual.
Com efeito, cremos encontrar na sua obra, na recordação
constante de um tempo findo, a exaltação das relações afetivas que
a era da globalização tende a apagar. Nessa “cultura da memória”
que tem vindo a marcar, sobretudo, as últimas publicações, a escrita
da autora configura-se como um testemunho de uma “consciência
crítica”, nascida de um sentimento de perda da cultura da
fraternidade e da humildade, bem como uma “vontade de
construção” de uma sociedade que não esquece o passado na
realização do seu presente, e, de certo modo, na perspetivação do
futuro.
Se a nossa vida fica conservada nos mais ínfimos detalhes
das nossas lembranças, como referiu Henri Bergson, no seu ensaio
Matière et Mémoire (Bergson, 1939: 168), se considerarmos, de
igual modo, a proposta de Helena Carvalhão Buescu, para quem a
memória é a «condição de transmissibilidade interpessoal e
4
Na sua Crónica Breve da Cidade Anónima – À Hora do Tordo, a voz do texto
afirma: «Percebi muito cedo quanto inermes se tornam alguns obstáculos, incluindo
fronteiras, quanto estulto é pensar-se ser daqui por redução de espaço, por atavismos às
pedras do calhau ovaladas, cor de cinza arrefecida, ou por um cabo que monta esta baía e
memoriza o voo há muito tempo estagnado de um qualquer garajau morto em viagem. Não
preciso que me digam de onde sou, mas não me construam paredes à frente dos olhos nem
me tirem a varanda onde ensaio ao longo da tarde uma experiência sedutora do mundo»
(Andrade 2008: 16).
IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO
13
cultural» (Buescu, 2001: 87), a memória que armazena
representações mentais do passado é, efetivamente, uma das chaves
essenciais para se compreender o universo poético e o espaço
ficcional de Irene Lucília Andrade. A esse respeito, Manuel Frias
Martins observa:
Sempre que me instalo na prosa ou na poesia de Irene Lucília
Andrade é como se estivesse a escutar um elaborado jogo de
murmúrios pessoais e segredos colectivos cuja chave de
compreensão parece estar constantemente a escapar por entre as
fissuras das palavras mas que, paradoxalmente, me mantém
localizado, enquanto leitor, numa espécie de núcleo singularmente
inteligível da escrita literária (Martins, 2009: 94).
Esta autora poderá ser entendida como uma escritora da
existência, da memória, da consciência crítica do tempo que passa,
inexoravelmente. Não obstante, sem pessimismos radicais, é com
serenidade e sabedoria que observa o mundo –o seu mundo– na sua
quotidianidade. O que nos prende, efectivamente, à escrita de Irene
Lucília, como é afectuosamente conhecida na Madeira, é esse olhar
lúcido e transparente que se concentra no meio que a viu nascer e
crescer; olhar que chega ao leitor, não através de uma escrita
criadora de efeitos de sentido, mas através de um estilo sóbrio, mas
denso e sem rodeios. A autora desenha na sua obra uma cartografia
da relação humana e dos afectos, alheia à cartografia corporal que
reivindica o espaço feminino, de que é exemplo a poesia de Maria
Teresa Horta. Num desprendimento da carnalidade, Irene Lucília
Andrade apega-se, sobretudo, ao saber de vidas, de testemunhos
que, tal como ela, conseguem topografar vivências múltiplas.5
5
Sobre a sua propensão para resgatar harmonicamente espaços da memória,
consulte-se o artigo de Ernesto Rodrigues (2009: 101-104) intitulado “A leveza da Arte em
Irene Lucília”.
14
LEONOR MARTINS COELHO
Em Água de Mel e Manacá, o poderoso lastro da memória
surge, desde logo, na primeira missiva de abertura ao livro de
poesia, destinada a uma pessoa com quem a entidade poética
perpetua uma ligação de afeto incontestável. Nessa carta, João
surgirá como “uma memória forte contra o desamparo” (Andrade
2002: 9), uma forma, não só de combater as dissonâncias do
momento presente, mas também de invocar as formas e os seres do
passado: «Havia a presença incisiva da infância a interferir na
minha vida e precisei de denunciá-la para que não me perturbasse»
(ib.).
Neste livro, na figuração problemática do autor, o sujeito
poético insurge-se, através não só das palavras como também da
força disruptiva do verso livre, contra a megalomania arrasadora
dos tempos atuais, lamentando a desmedida da configuração da
nova cidade do Funchal, submetida aos parâmetros da urbe
moderna:
abismados no peso corporal da própria desmesura/ alguns prédios
esperam um glorioso sobressalto/ é a tua inquietação/ quem se
abeira das janelas redundantes/ decalcadas lado a lado/ num
padrão excessivo atónito e exausto (Andrade, 2002:15).
Assim, contrariando a nova arquitetura, padronizada e
atónita, as múltiplas recordações do universo poético de Irene
Lucília, não deixarão de se apresentar como um combate contra
essa “geometria fatigada” (Andrade, 2002: 17). Ao recordar um
tempo pretérito, marcado pelos diferentes modos de entreajuda e de
sociabilidade, o sujeito poético parece recusar o esquecimento a que
é votado um património coletivo, condenado, agora, à
desagregação:
IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO
15
é a nova veste/ das pedras da calçada/ a esconder a rudeza do
velhinho tecido.// é o luxo/ que esta era recomenda/ à pureza
antiga/ que me aparava o passo// temo que possa ser obstáculo/ à
pressa do afecto/ que me instiga os olhos// temo que outras
pressas/ me estorvem/ o ritmo secular do coração (Andrade,
2002: 18).
Desta forma, as notações de lirismo pessoal são confundidas
numa constatação que retoma quase a literatura como modo de
testemunho. A dialética passado/presente ancora na justaposição de
dois imaginários radicalmente opostos (“sabores de plástico” / “mel
verdadeiro”) e resgata para o universo poético um cenário que
desponta, agora, disfórico:
meninos pulsam à beira dos gelados/ e dos sabores de plástico/
devorando os sumos sintéticos das laranjas/ a negação do gosto e
do mel verdadeiro// falsa é a consumação destes prazeres/ sem
que alguém se previna/ temerária é a pose de quem/ se inicia na
voragem das navegações (Andrade, 2002: 87).
Para contrariar essa distopia dos tempos modernos, a voz do
texto sugere uma (re)apreciação do passado e, desse modo,
encontrar (re)novadas circunstâncias de comunicabilidade. Perante
a indiferença das novas figuras que compõem a cidade indecifrável,
face à estranha simetria da desolação que carateriza a atualidade, o
sujeito poético virá propor uma viagem ao passado harmonioso, à
essência das coisas:
por isso uma asa ansiosa parte/ à procura das árvores/ transpõe das
sebes de cimento os perfis tortuosos/ e adensa a busca dum lugar
16
LEONOR MARTINS COELHO
frondoso/ onde erigir um canto/ e uma aura de sentido pleno/ aí
guardará/ o seu poder absoluto (Andrade, 2002: 17).
Compreender-se-á então que a voz do texto convide o leitor
a (re)valorizar modos concretos e imaginários que o tempo apagou.
É claro que não se trata aqui de defender um saudosismo dépassé,
embora haja uma iniludível tendência para mitificar os valores
positivos do passado, os ideais de pureza, para melhor denunciar o
que os tempos presentes oferecem: em vez do autêntico, o artificial;
em vez da justa medida das coisas, o excesso; em vez do espírito
comunitário, o individualismo estéril.
Refira-se que este desejo de recuperar tempos idos, bem
como a crítica à realidade do presente massificado à escala global,
será o vetor essencial do seu último conjunto de poemas intitulados
“Uma Nesga de Mundo” e publicado na coletânea de poesia Ilha 5:
Este é o tempo em que se confirma/ o verão dos trabalhos o auge
dos ofícios/a precisão dos obreiros/por um ténue sussurro de
areias/no emergir dos muros/o chiar duma viga no suster dos
telhados/o ronco agreste do fórceps/a esventrar a montanha (…)
(Andrade Maio, 2008: 29)
Nota-se nos primeiros versos dessa composição poética
presságios de um universo atual distópico onde se assiste com
estupefação à desfiguração da paisagem natural, tornando-se
urgente regressar ao locus amœnus e desta forma escutar,
novamente, o entoar do canto da voz materna «debruçada na casa e
no bordado» (Andrade 2002: 50), «os risos à volta da fogueira de
Junho» (ib.: 50) e «o eco das crianças serenas» junto à ribeira (ib.:
55), de que se falava em Água de Mel e Manacá.
IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO
17
Trata-se de uma imperiosa vontade de se afastar da atual
cidade do Funchal onde «transitam sem olhar» (Andrade 2002: 20)
e, apartando-se, assim, no tempo e no espaço, a entidade poética
pretende proteger-se de uma cidade onde o pitoresco tende a
desaparecer a um ritmo galopante, muito embora se apresente
consciente de que «o mundo é a passagem/ para outras mutações»
(ib.: 56).
Parece, pois, existir no ato de recordar de Irene Lucília
Andrade uma forte preocupação ecológica e se a «memória existe
como pedra fundadora» (Buescu, 2001: 87), misto de “consciência
subjectiva” e de “consciência histórica”, como nota Helena
Carvalhão Buescu, as memórias da escritora são um
questionamento profundo do devir de uma sociedade cada vez mais
longínqua das suas raízes. O que não surpreende, visto tal esforço
literário de humanização do mundo, através da recuperação do
passado e pela abertura ao que se constata no presente e se adivinha
para o futuro, ser recorrente em períodos de transição de um
paradigma social/civilizacional. Neste sentido, é com toda a
legitimidade que a autora, motivada por um forte empenho crítico,
se inscreve num discurso que dá conta da intimadora experiência de
desenraizamento matricial.
Não obstante, a memória dessoutro tempo pretérito permite
perspetivar uma outra realidade desejada. Assim, o poder
construtivo da recordação abre um espaço de questionamento e
revelam uma completude que se alicerça nos valores da
consolidação da amizade, no reatar de laços sociais, para poder
recuperar o que de bom havia e foi desaparecendo ao sabor da
megalomania do homem moderno.
A uma imagem que se nos poderia afigurar regressiva se
opõe uma outra, prospetiva, mais de acordo com o tempo presente,
um tempo que deverá alicerçar-se numa sociedade configurada pela
solidariedade afetiva e familiar, pelo altruísmo e, também, pelo
tópico da confiança e da cumplicidade, formas múltiplas de
contrariar as solidões do nossa época.
18
LEONOR MARTINS COELHO
Nas narrativas de A Penteada ou o Fim do Caminho
desenham-se cenários múltiplos, indo ao encontro do caleidoscópio
humano e paisagístico que o espaço insular de um tempo pretérito
congregou, reabilitando, assim, a periferia da capital da ilha. Desta
periferia da cidade surge, recorrentemente, a alusão a espaços
diversos tais como Água de Mel, Madalena, Caminho ou Ribeira,6
espaços circundantes da zona da Penteada, no Funchal. A Penteada
tornar-se-á, então, espaço de celebração da memória individual,
mas, ao mesmo tempo, coletiva. Por contraste, novos panoramas se
refletem nos arredores da cidade luciliana e poder-se-á compreender
essoutras paisagens como produto da mobilidade política, social e
cultural da ilha da Madeira das últimas décadas.
A escrita de Irene Lucília Andrade situa-se na perspetiva do
tempo que procura exumar e reconstruir para dar a conhecer um
espaço íntimo e fundador que permite justificar o impacto dos
afetos, a evocação de uma linhagem de gentes solidárias, a
recordação de familiares ou amigos, como sugerido pelo texto:
Não encontrei em arquivos, o lugar de recurso quando a memória
se extingue, qualquer referência ao sítio onde nasci. Vislumbrei,
já não sei onde, a existência de um João Penteado, sem prova
acrescida de que a toponímia tivesse dele procedido por via
feminina. (Andrade, 2004: 9).
A Penteada ou o Fim do Caminho desenvolve a
problemática do memorialismo num jogo entre ficção e memória.
6
Veja-se a descrição da Ribeira e dos seus arredores: «A Ribeira corria no fim da
fazenda résvés com a terra. Mais acima a ravina vinha mais alta, mas reduzia-se ali sobre o
leito e uma barra natural de penedos arrastados pela água faziam protecção às bermas
defendidas pelas sebes de canas vieiras e dos respectivos rizomas a que o povo chama
socas. As socas constituíam uma boa estrutura na construção de paredes e na armação da
“Lapinha” pelo Natal» (Andrade 2004: 90).
IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO
19
Referindo-se a este livro de memórias, a autora afirmará numa
entrevista cedida a um diário madeirense: «Isto é a minha
adolescência. (...). Está inteirinha aqui» (Andrade, 2005: 4). A
instância autoral parece esconder-se por detrás das vozes de papel,
que recordam uma dimensão espácio-temporal bem definida: voltar
a essa “gente pequena”, todos eles moradores da Penteada e da
Achada, e trazê-los de novo à vida para revelá-los à luz da
atualidade, à luz das novas mentalidades, nos centros de
congregação de novas gerações: «Ergueu-se aqui [na Penteada] o
Campus Universitário e o Pólo Tecnológico e projecta-se sobre ele
uma zona de alto pendor urbano, nesta invasão indetível pelas leiras
dentro» (Andrade, 2004: 9).
Por isso, os signos sensíveis da recordação apresentam-se
como antídoto contra o sentimento de precariedade e dispersão
gerados pelo desenvolvimento de configuração capitalista e
tecnológica, num meio tão sensível quanto periférico. Assim, a
narração vai focalizar de perto pessoas e lugares aos quais alude
com indicações precisas, traduzindo tons e emoções que se
perderam no tempo. O recorrente motivo do retorno ao passado
deve-se a uma infância feliz: criança amada, como se pode
depreender das brincadeiras de meninice no pátio da escola e na
casa paterna. Revisitar esta paisagem humanizada, perdida no
tempo, permitirá, de igual modo, a Irene Lucília Andrade encetar
uma procura da compreensão de si mesma, constituindo o vetor
ontológico e a matéria-prima do seu projecto literário de pesquisa
sobre os sentidos da vida.
Deparamo-nos com recordações que a voz do texto revela ao
pormenor na evocação dos lugares: a ponte de Água de Mel,7 «a
rampa do muro da coelha» (Andrade 2004: 17), «o vale estreito
entre a Madalena e o Caminho» (ib.: 89), «a fazenda de benfeitoria
com várias culturas de canas, vinhas e bananas» da Elvirinha e
Glorinha, as casas-escolas, e, talvez sobretudo, a casa paterna, «casa
7
«Água de Mel é o nome do ribeiro que desce, por S. Roque, das Serras da
Alegria, cruza sob a ponte o caminho da Penteada e desagua na ribeira de Santo António,
em frente da Madalena» (Andrade 2002: 9).
LEONOR MARTINS COELHO
20
pequena como um ninho de bisbis»8 (ib.: 125), que fez as delícias
da infância da autora. Um lugar com vida que o tempo degradou
impiedosamente, como refere a voz poética em Água de Mel e
Manacá:
agora as moradias velhas/vestem-se com o matagal despenteado
das lianas/e dos fetos sedentos/constroem uma teia amarela/onde
se liga o nevoeiro/respira-se o ar frio e a boca arde. (Andrade,
2002: 32).
Tal como sucedera com o livro de poesia, este conjunto de
narrativas breves abre com uma missiva, endereçada, desta vez, a
Eulália Beatriz de Abreu, a avó paterna da autora e que esta nunca
chegou a conhecer pessoalmente. A ela se dirige, uma vez que a
tem como “presença” benéfica, como sugerido no seguinte
enunciado: «Sem que eu te procurasse surgiste-me de repente como
se tivesses pressentido que eu precisava de ti» (Andrade, 2004: 9).
Irene Lucília responde então a esse apelo profundo e intuído,
através da narrativa de ficção, assumindo esse vínculo genético e
consanguíneo à sua terra.
No seguimento dessa carta, surgem, então, as recordações de
um passeio rotineiro, uma conversa casual, brincadeiras de
meninice no Pátio Grande do Colégio. Ecoam aqui as orientações
de Sœur Louise e ali as recomendações de professoras. Destacam-se
outras figuras acarinhadas na memória da narradora/autora, como
será o caso de Elvirinha ou de Leopoldina. Ao longo das narrativas
que compõem a Penteada ou o Fim do Caminho, poder-se-á notar
um desejo de resguardar não somente momentos e circunstâncias,
objetos e pessoas num recanto da memória afetiva, como também
de lhes conferir um lugar na História social e humana da ilha, de
8
Pequena ave endémica da Madeira.
IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO
21
modo a não serem olvidados pelo desassossego da vida dos tempos
modernos, numa sociedade em constante transformação.
Os quadros vivos impressos em A Penteada ou o Fim do
Caminho insistem permanentemente no charme de uma Madeira de
outrora, «dos tarefeiros [que] vinham cavar os poios e cuidar da
rega» (Andrade 2004: 89), «das batidas breves e secas do martelo
do mestre Ramos» (ib.: 23), «da massa palradora de bordadeiras» a
caminho da fábrica de bordados (ib.: 54), «dos risos e bilhardices9
aliviando a canseira com piadas oportunas» (ib.: 55).
A escrita de Irene Lucília virá opor esse mundo a um
imaginário atualizado, desfigurado e caraterizado pela ausência de
sentimentos, pela anulação do convívio numa sociedade
estereotipada e global. De fato, ao recordar múltiplas imagens do
passado, a autora,10 refugiando-se na voz da narradora, tece duras
críticas à construção desenfreada que vem desfigurando a paisagem
madeirense. Uma cultura da Técnica e do Progresso que não deixará
de alterar o modo de convívio entre as pessoas, enclausuradas,
agora, em torres de vidro, cimento e aço. A ilha vai dando lugar à
mega-construção, a complexos hoteleiros e palacetes numa
sociedade onde impera uma desenfreada economia de mercado.11
Deparamo-nos com duas instâncias que podem parecer de
difícil correlação: o passado espiritual, religioso e familiar versus o
presente da “vertigem do betão”, da verticalidade arquitetónica e da
horizontalidade do asfalto. A pacatez de outrora deu lugar à
desfiguração da paisagem, ao tédio e ao esquecimento do traçado
genealógico: a
9
10
Regionalismo madeirense, sinónimo de ‘coscuvilhice’.
Embora a escrita de Irene Lucília não respeite uma retrospetiva ordenada em
função de critérios cronológicos, apresenta-se como um leque de recordações
ziguezagueantes de múltiplas vivências e de vários episódios na sua vida.
11
Neste sentido, é de referir a visão crítica que a escritora nos dá e que vai ao
encontro da leitura distópica que José Viale Moutinho faz da ilha: «a ilha/ já não tem a
própria sombra, estende/ as mãos aos barcos dos confins do mundo,/ papagaio real, quem
são esses homens/ que abrem os túneis todos da ilha do ogre,/ que rasgam estradas, que te
cortam as linhas/ vermelhas dos teus sonhos de felicidade, que te rasgam as páginas dos
livros de verso?”» (Moutinho, 2008: 141).
22
LEONOR MARTINS COELHO
marcha do tempo criadora de mudança, lavrando a civilização,
brutal, implacável, erguendo o orgulho da modernidade, causa
daquela melancolia e susto com que os vultos de outrora foram
surgindo, num sopro esparso, quando voltei a ver estes rostos mal
poupados entre as últimas devastações (Andrade, 2004: 13).
O presente das múltiplas narrativas da autora espelha a
cidade da “velocidade do automóvel” (Andrade, 2004: 21), das
mudanças operadas, que “despojam de suas formas e rosto” os
lugares de então. Em vez da máquina utilitária ser usada em
«coexistência pacífica com os homens» (ib.: 113), a agressão, a
impiedade «de alguns meios civilizadores» (ib.: 21) surgem
desprovidos de humanidade e de bom senso.
Para combater essa distopia, irrompem do passado múltiplas
corporações profissionais, nomeadamente os tanoeiros, os
picheleiros, os boieiros e as lavadeiras. A escrita não deixará de
convocar o Funchal do trabalho árduo, com vidas de sacrifícios,
mas pacata e serena. Não é por acaso que, no início de A Penteada
ou o Fim do Caminho, a voz narrativa, comungando com essa
“gente pequena” como se fosse um “corpo único”, e, assumindo
“defender causas perdidas ou destinos ignorados”, virá mostrar
“velhos muito antigos”, “homens austeros e mulheres recatadas”,
“hábitos mansos” e “pacíficos costumes”. Não obstante, são
quadros que o tempo apagou e que parecem ter caído no
esquecimento da nova geração.
Ao certo, a vivência deste impasse, superado pelo exercício
criativo da escritora madeirense, atribui à memória um estatuto
fundador. Este processo não constitui apenas uma sondagem no
passado conhecido, ao sabor da nostalgia, mas um apelo ao direito
de todo o ser crescer rizomaticamente, processo esse ameaçado
pelas transformações desregradas da tecnocracia e da massificação.
Assim, na mobilização da escrita como forma de afirmação do saber
IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO
23
e do ser, a escritora, no ofício de interpretação dos tempos a que se
vota, estabelece um paralelismo entre distintas temporalidades,
umas vividas outras pressentidas, contra o tempo acrítico do
consumo pelo consumo.
Como sublinha Helena Carvalhão Buescu, «é através da
actividade da memória que a fixação e a presença da identidade são
produzidas» (Buescu, 2001: 87). Em A Penteada ou o Fim do
Caminho, a memória produz imagens de tal modo sentidas que se
apresenta como «uma câmara de filmar, de olhos fechados» em
busca permanente do «espírito do lugar» (Santos, 2004: 214). Tratase de um tempo humano que faz parte do passado pessoal da autora,
essoutra época que confere espessura ao conhecimento que tem
desse espaço urbano e sem a qual se sentiria incompleta, caso
percorresse, hoje, essas mesmas ruas, esses mesmos lugares,12 sem
a memória de os ter já frequentado.
As narrativas vão dando conta de lugares de refúgio,
passeios e encontros. São lugares que constituem um cenário de
recordações. São como narrativas-ponte entre o antes e o agora
expressando as tendências evolutivas do mundo atual em que a
autora dá a ler as suas “estórias” não apenas como “ficções” mas
também como fantasmas reveladores de «cada uma das
virtualidades do seu ser» (Lejeune, 1975: 42). A rememoração de
acontecimentos, nomes, lugares e atitudes são, assim, marcadores
significativos e reveladores que permitem traçar a trajetória de um
grupo, em particular, da sociedade insular. A perda de seres
recordados abre um campo de significação onde o riso, o afecto, a
dor partilhada, tudo o que é profundamente sentido pode representar
o futuro das relações humanas na sua sobrevivência possível, na
12
Em A Penteada ou o Fim do Caminho, a voz narrativa relembra os ruídos do
passado, o grito do boieiro, «o eco dum vento rebelde que me fustiga a saudade. Verifico
que não sou eu quem ali está inteira, mas só metade de mim…» (Andrade, 2004: 19) ou,
ainda, a «outra metade de mim sou eu olhando de agora todo esse esplendor, usando de
modo menos efémero novas capacidades de olhar» (ib.: 20).
24
LEONOR MARTINS COELHO
procura incessante de, através da literatura, ver a vida que se nos
escapa ser devolvida.
Neste sentido, Ralph-Rainier Wuthenow sublinhou que
recordar é, de algum modo, inventar-se (Wuthenow, 1989: 39). A
memória que resgata o passado nos textos da escritora madeirense,
recupera os tempos de solidariedade, do reconhecimento e da
entreajuda, permite não só questionar o presente, mas também se
constitui como um instrumento da definição identitária. O desfiar de
memórias na escrita poética e ficcional de Irene Lucília Andrade
permite, pois, construir a memória e a identidade coletiva da ilha, e
talvez sobretudo, entrever a perspetivação de uma outra cartografia
possível: aberta, dialogante e inter-geracional.
REFERÊNCIAS:
ANDRADE, Irene Lucília: Crónica Breve da Cidade Anónima – À Hora do Tordo
Funchal: Funchal 500 anos, 2008.
ANDRADE, Irene Lucília: “Uma Nesga de Mundo”, in Ilha 5, José António Gonçalves
(org.). Vila Nova de Gaia: 7 dias 6 noites, 2008: 29-38.
ANDRADE, Irene Lucília: Entrevista no suplemento cultural “Kompleta”, Notícias da
Madeira, Funchal [28 de Julho de 2005].
ANDRADE, Irene Lucília: A Penteada ou o Fim do Caminho, Leiria: Editorial Diferença,
2004.
ANDRADE, Irene Lucília: Água de Mel e Manacá. Porto: Campo das Letras, 2002.
BERGSON, Henri: Matière et Mémoire. Essai sur la relation du corps à l’esprit, Paris:
Puf, 1939.
BUESCU, Helena Carvalhão: Grande Angular. Comparatismos e práticas de comparação.
Lisboa: Fundação para a Ciência e para a Tecnologia, Fundação Calouste Gulbenkian,
2001.
COELHO, Leonor Martins [coord.]: Margem 2 - Irene Lucília Andrade: uma voz na
margem, no 26, Funchal, Câmara Municipal do Funchal/ Departamento de Cultura, 2009.
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique, Paris: Seuil, 1975.
MARTINS, Manuel Frias: “A escrita íntima de Irene Lucília Andrade”. Margem 2 - Irene
Lucília Andrade: uma voz na margem, no 26, Leonor Martins Coelho (coord.), Funchal:
Câmara Municipal/ Departamento de Cultura, 2009: 94-100.
MOUTINHO, José Viale: “São as coisas tais efeitos só do acaso”, in Ilha 5, José António
Gonçalves (org.). Vila Nova de Gaia: 7 dias 6 noites, 2008: 137-146.
RODRIGUES, Ernesto: “A leveza da Arte em Irene Lucília Andrade”. Irene Lucília
Andrade: uma voz na margem, revista Margem 2, no 26, Leonor Martins Coelho (coord.),
Funchal: Câmara Municipal/ Departamento de Cultura, 2009: 101-104.
SANTOS, Thierry: Texto-testemunho. A Penteada ou o Fim do Caminho, Leiria: Editorial
Diferença, 2004: 214-215.
IRENE LUCÍLIA ANDRADE: REGATE(S) DO PASSADO
25
WUTHENOW, Ralph-Rainier: “Le passé composé”, in Autobiographie et biographie.
Colloque Franco-Allemand de Heidelberg. Paris: A.-G. Niset, 1989.
VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009), pp. 27-42
Madeira: reflexões à margem do sistema
cultural português
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
Universidade da Madeira
Centro de Tradições Populares Portuguesas - Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa
A partir do primeiro quartel do séc. XIX, o esforço desenvolvido por
madeirenses no sentido de consolidar de forma significativa a Biblioteca
Madeirense (em sentido lato, ou seja, o conjunto de textos publicados sobre a
Madeira e, em particular, realizadas por filhos da terra), deu azo, como era de
esperar num espaço culturalmente limitado, à publicação de obras heterogéneas e
a projectos literários de valor estilístico diferenciado, mas, raramente, de fôlego
inovador. Este corpus de livros e documentos reflecte e representa o que
poderíamos designar como a imagem e/ou a consciência madeirense ao longo
dos séculos.
Se concebermos a cultura como um conjunto de produções humanas e “como
aquilo que faz sentido”, sob forma de valores e de normas que vão diferenciar
(ou não) a(s) comunidade(s) vizinha(s); se percebermos, no outro e em nós
mesmos, estes sentidos com estatuto de estruturas, ou seja, gestos, cores, sons,
objectos, discursos, ou ainda, códigos abstractos, encontraremos, então, formas
concretas, imaginárias ou simbólicas que irão mediatizar as relações do homem
com o seu meio e fundar o que se designa por “identidade cultural e regional”,
especificando ou diferenciando os grupos em contacto.
28
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
Nesta perspectiva, vale a pena questionar e tentar compreender as referidas
formas num processo contínuo ao encontro do outro e de nós. Esta abordagem
pretende, de facto, enquadrar-se numa situação intercultural por se entender
necessário o estudo e a percepção da relação entre a própria cultura, ainda que
regional, e as culturas de outros grupos.
PALAVRAS-CHAVE: identidade cultural e regional, literatura madeirense,
localismo, sistema cultural português, ilheidade, “madeiridade”.
As of the first quarter of the 19th century, the effort made by Madeirans to
significantly consolidate the Madeiran Library (in a broad sense, or as the set of
texts published about Madeira and, in particular, those produced by the islanders
themselves) has led, as could be expected in a culturally limited space, to the
publication of heterogeneous works and literary projects of different stylistic
value, but, rarely, with an innovative flair. This corpus of both books and
documents reflects and represents what could be designated as the insular image
and/or conscience throughout the centuries.
If culture is conceived as a set of human productions and as “what makes sense”,
in the form of values and norms which will distinguish (or not) the neighbouring
community (or communities); if these senses with the status of structures, such
as gestures, colours, sounds, objects, discourses or even abstract codes, are
perceived in the other and in ourselves, then, concrete, imaginary or symbolic
forms, that can mediatise the relationship between man and his surroundings,
may be found. Thus, what may be designated as a cultural and regional identity,
specifying or distinguishing the groups, may be established.
In this perspective, it is worth questioning and trying to understand afore
mentioned forms as a continuous process in the search for both the other and
ourselves. This approach intends, in fact, to fit into an intercultural situation as
the study and perception of the relationships between one’s own culture, despite
it being regional, and the cultures of other groups.
KEY WORDS: cultural and regional identity, Madeiran literature, localism,
2
1
Portuguese cultural system, islandarity, madeiridade.
A praxis literária na Madeira é antiga. As suas raízes
fundem-se com as origens humanas da ilha. Desde a palaciana à
cultivada no colégio religioso, desde a vida literária de salão à folha
imprensa de jornal, desde a obra colectiva à obra individual, a
1
2
TN. Referring to the specific characteristic of being from an island, islander.
TN. Referring to the specific characteristic of being from the island of Madeira.
MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 29
actividade literária na Madeira acompanhou quase sempre as
correntes estéticas e ideológicas que o meio letrado português
ditava.3 Com a “Geração do Cenáculo”, na segunda década do
século XX, afasta-se o lastro do exotismo e do ultra-romantismo
tardio, multiplicam-se as vocações literárias e os estudos sobre o
Arquipélago, a níveis diversos e sob vários ângulos. Este esforço
que consolidou de forma significativa a Biblioteca Madeirense (em
sentido lato, ou seja, o conjunto de obras publicadas sobre a
Madeira e, em particular, realizadas por filhos da terra), deu azo,
como era de esperar num espaço culturalmente limitado, à
publicação de obras heterogéneas e a projectos literários de valor
estilístico diferenciado, mas, raramente, de fôlego inovador.
Todavia, este corpus de objectos estéticos e documentos sociais não
deixa de reflectir e de representar o que poderíamos designar como
a consciência madeirense ao longo dos séculos, a construção de um
lugar simbólico com a sua comunidade imaginada, constituindo
deste modo um factor de coesão. Mais: apesar de pouco divulgada
ou até ignorada, a produção de monografias tem deixado o
testemunho de um considerável labor intelectual, bem como
projectado as linhas de força do processo cultural e literário
madeirense, em termos gerais.
Impõe-se então a pergunta: se o limitado mercado cultural e
o fraco interesse da sociedade insular pelas obras de criação local
3
Abrangendo o período que vai do povoamento da ilha ao século XX, as
sucessivas elites políticas e culturais do século XX fizeram de Tristão das Damas (aliás,
Tristão Teixeira, segundo donatário de Machico, 14..-15..), Jerónimo Dias Leite (15..-15..),
Baltasar Dias (15..-16..), Manuel Tomás (1585-1665), Troilo Vasconcelos da Cunha
(1654-1729), Francisco Álvares de Nóbrega (1773-1806), Francisco de Paula de Medina e
Vasconcelos (1768-1824), Álvaro Rodrigues de Azevedo (1825-1898), João de Nóbrega
Soares (1831-1890), João Augusto de Ornelas (1833-1886), António Feliciano Rodrigues
(1870-1925), João dos Reis Gomes (1869-1950), Albino de Menezes (1889-1949),
Edmundo de Bettencourt (1889-1973), Cabral do Nascimento (1897-1978) e de Horácio
Bento de Gouveia (1901-1983), os nomes mais emblemáticos da expressão literária com
raízes madeirenses. Mas nem todos se apresentam como devedores dos modelos
portugueses. Alguns escritores madeirenses foram fortemente marcados por outras
influências: por exemplo, José António Monteiro Teixeira (1795-1876), educado em
França, amigo de Chateaubriand, Méry e Barthélémy, escrevia em português e em francês;
Alberto Figueira Jardim (1882-1970) e Carlos de Freitas Martins (1909-1985) beberam na
cultura e no estilo de vida anglo-saxónico.
30
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
não potenciam incentivos, por que existem autores na Madeira?
Como devem ser encarados? Qual a função da Cultura e da
Literatura na sociedade madeirense? Sem termos uma explicação
definitiva a tais perguntas, podemos ensaiar elementos de resposta
que permitam cingir melhor a problemática em causa.
Em primeiro lugar, parece-nos haver nas obras dos criadores
madeirenses a consciência ou, até, a obsessão da exiguidade do
espaço físico, marcado pelo isolamento geográfico, pelo forte apelo
da distância e do desconhecido e pelo ostracismo a que a
comunidade insular foi votada ao longo dos séculos. A isso acresce
o público reduzido e o provincianismo que determinam essa
necessidade de “grandeza moral” e até de horizontes alargados e
transponíveis, como o desejo de conhecer o mundo e voltar.
Em segundo lugar, importa relevar o alento dos escritores e
artistas plásticos do século XX que, apesar das condições adversas à
concretização dos seus projectos artísticos, não se resignaram e se
têm esforçado para pôr cobro a esta “fatalidade”. Aprofundam a
noção de identidade, problematizam a sociedade insular, buscam
novos mundos imaginários e dão conta de uma comunidade com
experiências, traumas, anseios e sonhos. Alguns procurarão até
responder à necessidade de construir uma consciência crítica da
comunidade a que pertencem.
Em terceiro lugar, importa questionar os critérios
(provavelmente válidos do ponto de vista do centralismo
legitimador do continente, mas contraproducentes se pensarmos a
literatura como expressão de uma identidade geocultural com os
seus particularismos, como locus de enunciação) que informam a
consideração de que grande parte da prática literária da Madeira só
pode ser relegada à categoria de epigonismo. Aqui urge uma
necessária revisão de critérios, já que a valorização do passado
literário assume importância para a própria identidade cultural
madeirense. Deste modo, as obras de escritores insulares só podem
ser consideradas justamente se vistas no ambiente cultural em que
foram criadas e, segundo critérios adequados, que deverão ser
orientados para uma concepção de cultura entendida como prática
MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 31
social, cultivo da sensibilidade e busca de uma identidade marcada
pela experiência da ilha.
Se concebermos, deste modo, a cultura como um conjunto
de produções humanas e “como aquilo que faz sentido”, sob forma
de valores e de normas que vão diferenciar (ou não) a(s)
comunidade(s) vizinha(s); se percebermos, no outro e em nós
mesmos, estes sentidos com estatuto de signos e de estruturas, ou
seja, gestos, cores, sons, objectos, discursos, ou ainda, códigos
sociais, encontraremos, então, formas concretas, imaginárias ou
simbólicas que irão mediatizar as relações do homem com o meio
em que evolui e fundar o que se designa por “identidade cultural e
regional”, especificando ou diferenciando os grupos em contacto.
Nesta perspectiva, vale a pena questionar e tentar
compreender as referidas formas num processo contínuo ao
encontro do outro e de nós. Esta abordagem pretende, de facto,
enquadrar-se numa situação intercultural por se entender necessário
o estudo e a percepção da relação entre a própria cultura, ainda que
regional, e as culturas dos outros. Como uma identidade nunca é
uma construção acabada, a questão não consiste em saber quem são
os madeirenses, por já não ser pertinente definir essa identidade
cultural, mas o que significa recorrer à identificação “madeirense”.
Na verdade, uma comunidade gira em torno de si mesma, quando
consegue fixar significativas referências no plano do simbólico e
dos laços afectivos, admitindo simultaneamente influências e
experiências diversas no seu corpo social.
Torrão natal ou mesmo lugar de residência, a Madeira
tornou-se motivo de estudo e de evocação para muitos escritores
ligados à ilha que passaram, a partir do século XIX, a orientar a
actividade intelectual para motivos de raiz madeirense. Desta
preocupação sobressaem monografias de carácter científico e
literário.
No que diz respeito à literatura, esta não deixará de
interrogar a memória e o futuro, de construir pontes e de promover
32
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
a ficcionalização de imagens verosímeis da condição insular. Vale a
pena delimitar, numa leitura diacrónica, as problemáticas que ela
encerra. Se autores madeirenses procuraram constituir, até meados
do século XX, uma literatura regional, com pendor historicista e/ou
etnográfico, identificando-a como estética da fundação4
(nomeadamente com João dos Reis Gomes e Alberto Artur
Sarmento), em ruptura com a tradicional estética do exótico,
convém admitir, em abono da verdade, que deixou de fazer sentido
reduzi-la a esse motivo.
É, pois, com a geração de escritores como Carlos Martins
(Madeira – Mar de Nuvens, 1945), Ricardo Nascimento Jardim
(Saias de Balão, 1946), Bento de Gouveia (Ilhéus, 1949), João
França (Ribeira Brava, 1954) e António Aragão (Um Buraco na
Boca, 1971) que a série da moderna ficção madeirense se abre para
um regionalismo crítico, com base numa “ilheidade”5 ideológica,
preocupada com o conhecimento da alma e do viver madeirense.
Esse regionalismo aposta numa estética da permanência, desejoso
de ilustrar a “ilheidade” através da arte literária e apontando para a
elevação moral e intelectual. Valoriza, por isso, o imaginário
4
Inscreve-se nas tradicionais poéticas europeias que se caracterizam pela busca
da origem, do instante em que tudo começou, do ponto inicial em que a História de uma
comunidade se constitui para sedimentar uma identidade: assenta, deste modo, numa visão
de processo. Valorizam-se as lendas relativas à génese, à origem e os relatos dos
primórdios do povoamento. A cultura madeirense, de feição homogénea (do ponto de vista
linguístico, religioso, étnico e político), tenta então responder à necessidade de uma
explicação da filiação e de autonomização relativamente ao continente, através da
literatura, da historiografia, da genealogia e da etnografia.
5
Aportuguesamos o conceito de “îléité”. As representações mentais que os ilhéus
e os continentais projectam nas ilhas e na vida insular constituem uma das questões
fundamentais para as analisar. Estes aspectos simbólicos foram estudados por A. Moles
(1982) que criou o conceito de “îléité”; retomado posteriormente por Anne Meistersheim,
que propõe a seguinte definição do conceito em “Figures de l’îléité, Images de la
complexité”, em Île des Merveilles, mirage, miroir, mythe: «L’îléité, enfin, c’est-à-dire le
vécu des insulaires, leur culture, leur imaginaire, tous les comportements induits par la
nature particulière de l’espace insulaire, du temps et de la société et qui traverse ainsi et
sous-tend tous les phénomènes. L’îléité serait donc cette qualité de la perception et du
comportement influencée par la forme spécifique de l’espace insulaire». (Meistersheim
1997: 110)
MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 33
popular e denuncia, por exemplo, as carências e as difíceis
condições de vida dos insulanos, a fome a que eram votados os
desfavorecidos em benefício de certos senhores, a crendice ou a
credulidade do povo, o conformismo e as hipocrisias da alta
sociedade funchalense, os vícios da imprensa regional, os
comportamentos considerados “desviantes”, o desinteresse pela
leitura e a vida cultural, as práticas sociais e as mentalidades
bisonhas ou provincianas.
Escritores há que se preocup(ar)am em definir e ilustrar
aquilo que se poderia designar como a “madeiridade”,6 uma
consciência insular própria, sem nunca terem teorizado sobre o
assunto, embora a prática discursiva e a escolha de temas
desenvolvidos nas obras apontem para essa ideia. É o caso, por
exemplo, de Horácio Bento de Gouveia (1901-1983), de Irene
Lucília Andrade (1938) ou de José António Gonçalves (1954-2005).
Grande parte da essência de tudo o que escrevem é tirada da
experiência da vida insular (memórias, sensações e reflexões).
Poderão constar da lista dos escritores mais profunda e
genuinamente “madeirenses”, no sentido em que os textos giram em
torno da ilha. Isso não os superioriza, nem os inferioriza: é um
modo possível de estar no mundo e de trabalhar a palavra literária.
Caberá ao leitor mais avisado ou à comunidade de leitores mais
informados dizer se o binómio conteúdo-forma foi ou é feliz e
pertinente.
6
Usamos o termo do mesmo modo que se fala em “cabo-verdianidade” ou em
“açorianidade”, ou seja, um sentimento insular próprio dos madeirenses que os distingue
dos demais. A consciência de viver numa periferia relativamente ao continente e a Lisboa,
com um passado histórico que só a eles diz respeito, o forte sentimento de pertença a uma
comunidade insular com um destino comum, bem como a um lugar primordial, que já foi
espaço isolado e fechado, com um cenário natural e humanizado que sugere determinadas
emoções e sensações, definem, em grande parte, esse conceito. A “madeiridade” prendese, também, no plano do imaginário, com a universal exemplaridade do seu sentido insular
mítico, entre a presença e a ausência, entre a proximidade e a distância, consciente da forte
atracção magnética insular. Além das especificidades civilizacionais e culturais, facilmente
identificáveis, o contexto em que aquele que se diz madeirense evolui influencia o seu
modo de ser e de ver o mundo.
34
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
Nestes últimos trinta anos, temos vindo a verificar a
tendência, em autores ligados à ilha, para o afastamento do
regionalismo. Tais autores desenvolvem obras que ora enveredam,
através da experimentação formal e lúdica das potencialidades
textuais e semióticas, por uma estética da transgressão e da evasão;
ora se preocupam com outros cenários e problemáticas humanas
distintas das que pertencem à memória cultural madeirense; ora
planificam mundos imaginários, num jogo conceptual de citações e
de vários processos, numa estética da virtualidade,
“desterritorializando” a acção e as personagens do tempo e do
espaço, transportando-as para cenários radicais. Será uma reacção à
estética da territorialização? Não estarão a alegoria e a
ambiguidade ao serviço da subversão do discurso político
dominante? Por um lado, esta atitude parece, pois, indiciar rejeição
do tema da insularidade, numa época em que as novas tecnologias
da era da comunicação anulam a distância que o mar impunha à
ilha. Por outro lado, alguns escritores reivindicam o estatuto de
cidadão do mundo, mais interessados nos problemas (culturais,
políticos, filosóficos e ecológicos) que se colocam à humanidade
em termos globais do que em termos locais. Outra via, porém,
aparece no horizonte insular: a dos escritores que não fogem à
análise política e social do modelo autonómico implementado em
1976. São disso exemplo o cronista Ricardo França Jardim (1946) e
o contista José Viale Moutinho (1945) que, vivendo à distância,
mas atentos ao evoluir da Região Autónoma da Madeira, mercê das
ligações afectivas à sua terra natal, cultivam a distopia, a ironia, a
sátira e até o absurdo para pôr em causa aquilo que consideram os
erros do actual modelo de desenvolvimento socioeconómico da
Ilha.
Ao reduzir-se a expressão rural que caracterizava a
sociedade insular, é natural que se tenha virado uma página da
história sociocultural da Madeira. Actualmente, a sociedade
madeirense é menos monolítica do que era no passado. O
sentimento de isolamento apaga-se a pouco e pouco com novas
perspectivas e a multiplicidade das trocas culturais indiciam uma
real abertura ao mundo, como ilustram, por exemplo, as obras de
MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 35
Ernesto Leal (1913-2005), António Aragão (1921-2008), Margarida
Gonçalves Marques (1929), Carlos Lélis (1932) João Carlos Abreu
(1935) e Maria Aurora Carvalho Homem (1937). A globalização
prossegue o seu caminho a todos os níveis da sociedade e das artes.
Assiste-se, deste modo, à passagem de um quadro geral de
submissão ao “regionalismo” temático, explícito ou difuso, para o
de uma libertação do autor relativamente ao espaço-ilha, enquanto
objecto de criação literária.
É claro que, no mundo da produção literária madeirense,
nem todas as obras, nem todos os autores, são merecedores de
figurar num quadro de honra da Literatura. Porém, esta constatação
não nega a existência de válidas obras de cariz literário, enquanto
documentos e testemunhos com iniludível valor artístico, obras
detentoras de todos os valores do alimento espiritual. A actual
crítica universitária admite a ideia de que essa “literatura” pode ser
uma substância activa, nutritiva, logo que dinamize e diga algo
acerca da comunidade madeirense, remetendo-a, enfim, para um
simbolismo histórico, social e cultural.
No pequeno meio que a ilha é, em que (quase) todos os
agentes culturais se conhecem, em que se vive em certo
“situacionismo cultural”, em que raramente há lugar para a crítica
estimulante que desbrave o matagal onde despontam, por vezes,
delicadas flores, estas matérias são sempre geradoras de
controvérsias e de mal-entendidos. Das discussões havidas, desde,
pelo menos, meados do século passado, em artigos, mesas redondas,
conferências e debates em torno deste assunto, depreende-se que
este tema é suficientemente polémico para atrair atenções, mas
insuficientemente estudado para se desfazerem equívocos e
suspeitas de ordem vária.
Quanto ao panorama cultural da ilha e ao posicionamento de
autores madeirenses relativamente ao(s) centro(s) do país, já
observava o poeta José António Gonçalves:
Por paradoxal que pareça, esta [questão de saber se existe uma
literatura madeirense] é uma discussão despida de grande
36
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
relevância. Na verdade, o que importa ao autor, ao artista, é a
divulgação da sua Arte e não o rótulo made in. Todavia, vivemos,
curiosamente, num mundo que se busca a si mesmo, interioriza a
sua dimensão, procura respostas, abala consciências e se bate pela
autenticidade. E é aí que assume importância essa busca de
identidade cultural que apoquenta um variado naipe de
intelectuais madeirenses (Gonçalves, 1991).
É ponto pacífico, no meio dos escritores afectos à Madeira,
ser a principal motivação dirigir-se ao todo nacional e à lusofonia,
ao resto do mundo, se possível for, desconfiando da cultura
restritiva que lhes poderia infligir a classificação por região,
geradora de mal-entendidos, como tem alertado o poeta Carlos
Nogueira Fino (1950).7 De igual modo, a maioria parece defender
que não há qualquer contradição entre ser autor português e ser
autor madeirense, sendo que esta distinção não passa de mera figura
de estilo, em que vale sempre o todo pela parte e a parte pelo todo.
Assim, quando usarmos o adjectivo “madeirense” deverá ser
tomado como mero qualificativo, que designa uma pertença
geográfica a uma comunidade, ciente da sua identidade regional,
que carrega a própria história (diferenciada nalgumas tradições
religiosas, em certos imaginários e experiências da vida insular,
bem como em traços linguísticos particulares). Não deve ser
entendido como movimento político, nem como apoio ideológico a
um poder estabelecido, seja ele qual for.
É dos Açores que nos chega, através das palavras de
Vamberto de Freitas, um conceito operativo forjado na necessidade
de caracterizar a “Literatura açoriana” e aplicável ao caso
madeirense: o “inclusivismo”, ou seja, “a reivindicação de pertença
ao todo nacional, mas sem a violação interior de quem se nega a si
próprio, ou é negado pelos outros” (Freitas 1999: 96).
Com efeito, à luz da ficção produzida na Madeira, não
parece haver motivos dignos de nota que revel(ass)em
7
Lembremos, por exemplo, a crónica de Carlos Nogueira Fino intitulada “O que
será literatura madeirense?”, publicada no Tribuna da Madeira, Funchal, 02-I-2004.
MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 37
antagonismos entre figuras do continente e figuras da ilha, nem
qualquer sentimento de desprezo ou desejo de ruptura com o todo
nacional. Mantém-se viva a ideia de que a Madeira, como território
humanizado, é consequência da época da aventura dos
Descobrimentos e, como tal, a cosmogonia do Madeirense gira em
torno dessa matriz cultural (religiosa e social) trazida e
implementada na ilha pelos primeiros portugueses: o madeirense
será, assim, em abstracto, um português insular, mais as suas
circunstâncias.
Todavia, como nota Adelaide Batista:
Em matéria discursiva, prevalece ainda o “eles” entre continentais
e insulares e entre o centro e as margens. Com insistente
imponderação, já de si tradicional, cultural, e do “sempre foi
assim”, não nos habituamos nem acertamos no discurso do “nós”,
que nos abranja a todos, desde as franjas mais orientais do
rectângulo continental, passando pela Madeira até ao marco mais
ocidental do País, lá para as bandas do Arquipélago dos Açores,
de onde se pode regressar, em jornada inversa a si própria e ao seu
lugar, no reconhecimento e na crença de que o centro pode estar
em cada região, em cada terra, em cada pessoa (Batista 1999: 7)
No fundo, tudo dependerá da ênfase que se der a factores
sempre exteriores à essência da Literatura, mas que nunca deixam
de condicioná-la: o fundo político, a geografia, o grupo social, o
credo religioso, o contacto com os outros, a experiência de vida
noutros lugares, a orgânica da instituição literária nacional e a
insidiosa questão do prestígio, porque, no concernente à (quase)
invisibilidade na montra da cultura portuguesa da produção artística
das suas ilhas, suspeitamos que é disso que se trata.
Havia, até aos anos noventa do século passado, o
pressuposto de que a Madeira não tinha dado à Literatura Nacional
nomes prestigiantes. Embora afastados fisicamente do meio insular
que os viu dar os primeiros passos no mundo das letras, vultos
literários como Herberto Helder, Helena Marques, Ângela Caires,
38
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
José Agostinho Baptista, José Tolentino Mendonça, Ana Teresa
Pereira desmentem em parte essa situação. Todavia, sem nunca
contestar que o caminho percorrido por cada um deles foi
conseguido por mérito próprio, a experiência da ilha e o
conhecimento que dela tiveram, enquanto motivo de reflexão, de
questionamento, de avaliação das possibilidades e impossibilidades
que esta encerra, enquanto entidade com quem se dialoga para se
tomar decisões –Partir ou ficar? Viver a vida ou escrevê-la? Manter
ilusões acerca das origens ou desfazer-se delas? Permanecer lá fora
ou regressar? Projectar-se através da Literatura ou diluir-se no
esquecimento?– terá tido naturalmente alguma influência no modo
como se fizeram à criação literária.
A forma como se encara a especificidade madeirense no
plano artístico e cultural mantém-se problemática. No congresso de
Cultura Madeirense ocorrido em 1990, Paquete de Oliveira
enunciava:
Julgo […] ser necessário radicalizar o passado no presente para o
futuro. Que quero dizer com isto? Quero dizer que uma das
características de sermos madeirenses é a repetição constante, sem
submetermos a uma sistematização científica o que vamos
produzindo no nosso conhecimento. Uma das características
também da nossa própria cultura é a incerteza dilacerante da nossa
identidade. Por isso procuramos incessantemente as raízes da
nossa cultura. Fico a temer que esta inconstância não seja uma
certeza, mas uma incerteza, um certo palpitar para nos sentirmos
identificados (Oliveira 2008: 167).
Enunciemos, então, algumas dessas dúvidas e perguntas:
existirá uma consciência insular? Um imaginário local? Haverá o
sentimento de pertença a uma comunidade regional? Haverá uma
“literatura madeirense” específica? Quais os critérios que a
definem? Será porque fala da ilha? Será porque inclui traços da
MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 39
cultura insular ou porque cultiva o regionalismo de conteúdos? Será
porque reivindica mais e melhor autonomia em relação ao
continente? A todas estas perguntas a resposta que se impõe parece
ser “sim, mas…”, conquanto se postule a importância do locus de
enunciação, a existência de um corpus que não seja um “objecto”
demasiado “móvel” ou fugidio, e se forjem ferramentas capazes de
definir
a
vocação
de
objecto
híbrido,
ambivalente
(insular/continental;
regional/nacional;
centro/periferia;
local/universal).
Interroguemo-nos antes sobre a forma como os madeirenses
desejariam que os vissem e se vissem no espelho da Literatura,
sobre o modo de questionarem o mundo e de se questionarem à luz
da consciência literária. “Literatura madeirense”: não será o corpus
de textos que representa para a comunidade insular o outro lado do
espelho, a possibilidade de confrontação sobre o qual é preciso
construir a análise crítica? Em última instância, não será à
comunidade de leitores madeirenses que compete reconhecer quais
os livros e autores que mais lhe diz (respeito)? A ensaísta e escritora
Ana Margarida Falcão, ao problematizar a questão, admite essa
perspectiva:
Regra geral, a literatura de arquipélagos que é considerada de
alguma forma independente tem características próprias: factores
de independentização racial, linguística, política e cultural. Na
Madeira essas características não existem, ao contrário do que
acontece em Cabo Verde ou São Tomé, por exemplo. Por outro
lado, na Região há uma consciência da população de uma
literatura sua. Independentemente dessa literatura ter ou não
características diferentes das do país em que se integra, a questão
é: essa consciência colectiva é suficiente para legitimar a
expressão “literatura madeirense”? Há estas duas visões: se
considerarmos que, para haver “literatura madeirense”, teria de
existir a primeira característica, então não há, só há literatura
portuguesa. Se considerarmos a segunda, não podemos negar que
40
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
a população está a legitimar algo como sua pertença (Falcão
2007: 10).
Apesar da crescente escolarização dos indivíduos a partir de
meados do século passado, o projecto da modernização do país e do
desenvolvimento económico-social reteve todas as atenções nestas
últimas décadas, deixando pouco espaço para outros discursos que
não fossem o político e o social (além de, obviamente, o religioso e
o futebolístico). No âmbito da política de descentralização, mais
visível no plano das intenções do que efectiva, existem agentes que
promovem com alguma regularidade acontecimentos culturais (uma
exposição de pintura, um concerto, uma peça de teatro, o
lançamento de um livro), mas o impacte dessas iniciativas continua
a ser muito reduzido junto do público do interior do país ou da ilha.
A cultura artística é ainda muitas vezes entendida como uma
actividade elitista, ao serviço do Turismo ou da burguesia urbana, e
raramente como um motivo de inspiração, de projecção e de
afirmação da comunidade regional a que o autor pertence. Além
disso, continua a haver confusão entre a cultura e a política, em
parte devido à “subsidiodependência” em que a primeira se
encontra relativamente à segunda. Não será por isso surpreendente
assistir-se à criação de novos lugares menos formais e mais activos
como modo alternativo de viver e pensar a cultura e a cidadania: a
blogosfera.
Na verdade, a cultura e a política continuam, na Madeira, a
ensaiar o conceito de “autonomia”. Trata-se, para o primeiro, de
exigir junto do Governo Central maior espaço de manobra para
dirigir a Região, reivindicando a transferência para a ilha de mais
instrumentos do poder. Para o segundo, será afirmar o direito de
pensar, de sentir e de agir à sua maneira, no quadro de uma
cidadania mais participativa.
MADEIRA: REFLEXÕES À MARGEM DO SISTEMA CULTURAL PORTUGUÊS 41
Para concluir, convém dizer que as nossas observações
também apontam para a fragilidade do sistema cultural madeirense,
não podendo ainda contrariar, por um lado, aqueles que consideram
ser um objecto de investigação flutuante e mal definido, por outro,
gorando as expectativas daqueles que desejariam poder afirmar a
existência de um campo estabelecido.
Talvez o meio cultural madeirense mal exista, mas uma
reflexão sobre as suas iniciativas e condicionalismos não pode
deixar de ser feita para que possamos compreender um pouco mais
da natureza da sua evolução em curso. A actividade literária e
cultural na Madeira não constitui uma realidade nova nem uma
nova estrutura mental, antes uma perspectiva a partir da qual
podemos formular perguntas acerca da sua vitalidade. Será, do
nosso ponto de vista, a partir do próprio sistema, no interior do seu
contexto, que muitas das criações intelectuais ou artísticas, quase
sempre relegadas pelo Centro ao limbo da indiferença, deverão ser
olhadas, tendo naturalmente em atenção tudo o que se faz lá fora.
REFERENCIAS:
ARAGÃO, António: Um Buraco na Boca. Funchal: Comércio do Funchal, 1971.
BATISTA, Adelaide: “Açores: terra do longe e do perto – Notícias da sua actividade
literária”, Livro de Comunicações do Colóquio “Cultura de periferias: insularidades”.
Funchal: Câmara Municipal – Departamento da Cultura, 1999.
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Tribuna da Madeira, Funchal [23-III-2007].
FINO, Carlos Nogueira: “O que será literatura madeirense?”, semanário Tribuna da
Madeira, Funchal [2-I-2004].
FRANÇA, João: Ribeira Brava. [com prefácio de Aquilino Gomes Ribeiro].Porto: Manuel
Barreira, 1954.
FREITAS, Vamberto: “Suplementarismo cultural nos Açores: uma reflexão pessoal”,
Livro de Comunicações do Colóquio “Cultura de periferias: insularidades”. Funchal,
Câmara Municipal – Departamento da Cultura, 1999.
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GOUVEIA, Horácio: Bento de. Ilhéus. [Com prefácio de Aquilino Gomes Ribeiro]
Coimbra: Coimbra Editora, 1949.
JARDIM, Ricardo Nascimento (1945): Saias de Balão: na Ilha da Madeira. Funchal:
Câmara Municipal.
MARTINS, Carlos: Madeira – Mar de Nuvens. Funchal: Edição do autor, 1945.
42
THIERRY PROENÇA DOS SANTOS
MEISTERSHEIM, Anne: “Figures de l’îléité, images de la complexité”. Île des
Merveilles, mirage, miroir, mythe. Daniel Reig et Guy Chandès (dir.). Paris: L’Harmattan,
1997.
MOLES, Abraham e Elisabeth ROHMER: Labyrinthes du vécu – L’espace: matière
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OLIVEIRA, Paquete de: “Poderão as ciências sociais acrescentar valor à Pérola do
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Porto: Campo das Letras, 2008.
VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009), pp. 43-66
Virado do avesso ou a polifonia da verdade
MARCO LIVRAMENTO
A criação poético-literária pessoana assenta na tese do poeta fingidor, que, pela
racionalização dos seus sentimentos, transforma as suas emoções e as suas
vivências reais em sentimentos fingidos. Seguindo de perto as premissas ditadas
pelo Sensacionismo, Fernando Pessoa consegue disciplinar as suas sensações
imediatas e coloca nas mãos do leitor a responsabilidade de as sentir ele mesmo,
descodificando-as à luz das suas vivências. Questões de verdade, mentira e
ficção são, pois, inevitáveis sempre que nos dedicamos ao estudo da obra
pessoana. Nos seus textos estético-filosóficos, o autor reflecte sobre toda esta
questão da produção estético-literária associada ao Modernismo e a todos os
outros ismos por ele criados, transmitindo-nos uma verdadeira ars poetica, base
para qualquer reflexão que possamos fazer a seu respeito.
PALAVRAS-CHAVE: Metapoesia; Fingimento; Sensacionismo; Leitor; Fernando
Pessoa.
44
MARCO LIVRAMENTO
The creation Pessoa's poetic and literary theory based on the poet pretender,
who, by rationalizing their feelings, turns their emotions and their actual
experiences feelings pretenders. Following closely the assumptions dictated by
sensationalism, Fernando Pessoa can discipline their immediate feelings and put
in the hands of the reader to feel the responsibility to himself, turning them in
light of their experiences. Issues of truth, lies and fiction are therefore inevitable
whenever we are dedicated to the study of Pessoa's work. In its aesthetic and
philosophical texts, the author reflects on the whole question of aesthetic and
literary production associated with modernism and all the other isms which have
been created, giving us an essential ars poetica, the basis for any reflection that
we can do about it.
KEYWORDS: Metapoetry, Pretence, Sensatonism, Reader, Fernando Pessoa.
Sentir tudo de todas as maneiras
Fernando Pessoa
Falar sobre Fernando Pessoa talvez não seja, para nós, uma
tarefa fácil, já que nos deparamos, a cada momento da nossa
pesquisa e reflexão, com os obstáculos de tudo aquilo que os
grandes entendidos nos diferentes textos pessoanos já disseram.
Interpretemos, pois, este desafio como meio para darmos forma
àquilo que vivenciamos sempre que pegamos num dos seus textos e
sentimos ecoar em nós, constantemente, um conjunto de vozes que,
quase em uníssono, são capazes de nos dizer mil e uma coisas
diferentes. Temos, a cada verso que passamos, ou a cada parágrafo
que dobramos, a sensação de que cada um, a seu tom, num discurso
polifónico e plural, vai juntando letras, unindo sílabas para dar
ainda outro significado às palavras, levando-nos a pensar que
connosco já nada faz sentido, aspirando, sempre, a uma
compreensão que há-de surgir.
Uma vez que nos vamos debruçar sobre a questão da criação
poético-literária pessoana, associada às temáticas do fingimento e
da racionalização dos sentimentos, convém-nos deixar pelo menos
uma breve referência a algumas das questões relacionadas com a
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
45
fragmentação do eu e a sua relação com os heterónimos,1 bem como
alguns aspectos que se prendem com o carácter eminentemente
filosófico e doutrinário, na verdadeira acepção da palavra, de alguns
dos escritos de Fernando Pessoa, já que tais aspectos são dignos de
uma análise individualizada e, por sinal, bastante morosa, a qual
não podemos aqui avançar.
Dediquemos, então, especial atenção ao acto de produção
estético-literária, com particular enfoque para algumas das ideias
contidas no poema “Isto”, no qual temos uma espécie de ‘molde’
estético-literário que se cria sob um pano de fundo marcado pelo
Sensacionismo e pelas reflexões do poeta sobre toda esta questão.
Uma reflexão vivida, uma escrita racional
Uma das temáticas que facilmente reconhecemos em alguns
dos poemas de Fernando Pessoa é a reflexão sobre o [seu próprio]
acto de produção estético-literária, reflexão essa que foi, desde
sempre, muito cara aos autores modernistas, de resto a corrente
1
Não podemos, nunca, deixar de ter presente que sobre esta questão da
heteronímia pessoana já muitos críticos tomaram posição. Basta, para tal, lembrarmos
alguns e termos presente os seus argumentos, para percebermos, por exemplo, o porquê da
heteronímia ser um fenómeno de inspiração biografista (de João Gaspar Simões), esotérica
(de António Quadros e Yvette K. Centeno), sociológica (de Mário de Sacramento),
estruturalista (de Luciana Stegagno-Picchio), ou a teoria da intransitividade (de Gilberto de
Mello Kujawsky), da exuberância genial (de Eduardo Lourenço), da carência primordial
da personalidade de Pessoa (de Leyla Perrone-Moisés), da riqueza da personalidade de
Pessoa (de Jorge de Sena), da excessividade de forças interiores divergentes (de Jacinto do
Prado Coelho). Convém ter presente, também, a sua filiação na literatura francesa, com
referência ao «Je est un autre», de Rimbaud; ou na portuguesa, nomeadamente com a
Correspondência de Fradique Mendes, de Eça de Queirós. Ainda no seio da poesia
pessoana, convém destacarmos a importância da expressão “Liberto em duplo”, em
“Chuva Oblíqua”. E muitas outras influências poderiam aqui ser apontadas. Nota final
apenas para a influência literária inglesa, desde o drama de Shakespeare, ao prefácio às
Lyrical Ballads, de William Wordsworth (cf. Joaquim Manuel Magalhães) ou aos
Monólogos Dramáticos de Robert Browning (traduzidos e prefaciados por João Almeida
Flor).
46
MARCO LIVRAMENTO
literária em que este grande representante da cultura e da literatura
portuguesas deverá ser incluído.2
Em muitos dos seus textos encontramos um autor consciente
da sua função e do seu acto de produção literária, enquanto artista
que faz uso da sua capacidade de acção sobre aquilo que o rodeia,
procurando atingir uma plenitude por meio da totalidade que o acto
de escrita lhe confere, acedendo, por sua vez, a um significativo
auto-conhecimento e a uma espantosa compreensão do real. Temos
um poeta que, fazendo uso de todos os artifícios que estão ao seu
alcance, brinca com as palavras, dá-lhes uso, entrega-as à
imaginação, para que as suas vivências e sensações, a base
sustentável da sua produção literária, sejam ‘apresentadas’ com
inteligência e perspicácia aos olhos de um qualquer leitor que, tal
como ele, procura uma verdadeira identidade: a sua.
Mas o que é, afinal, a obra de Fernando Pessoa? Que
pretende ele alcançar com cada um dos seus poemas? E o que é,
para ele, a arte? Ora bem, estas podem ser algumas das muitas
questões que havemos de nos colocar sempre que leiamos alguns
dos seus poemas, uma vez que exemplificam a liberdade com que o
seu autor/sujeito poético ludibria as hipotéticas imposições de uma
sociedade a que ele reconhece pertencer,3 por meio de um jogo de
palavras simples que nos deixa, por momentos, atónitos e ávidos de
uma possível interpretação.
Se, para Fernando Pessoa, “a arte é apenas e simplesmente a
expressão de uma emoção” (FP, PE: 5), que se afigura como “uma
tentativa de criar uma realidade inteiramente diferente daquela que
as sensações aparentemente do exterior e as sensações
aparentemente do interior nos sugerem” (FP, PI: 191), não nos
poderá ser estranho vermos que o poeta finge sentir algo que não
sente, criando, através do acto de produção estético-literária, uma
2
Sobre toda esta questão do Modernismo, recomendamos a leitura de Vila Maior
(1996).
3
Vejamos, a propósito, algumas das ideias presentes em O Livro do
Desassossego (FP, LD I e FP, LD II), no que toca à fuga ao tédio e às imposições da
sociedade.
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
47
espécie de ‘outro mundo’ que o consola, ajudando-o a encarar o
sofrimento.
Pela ‘mão’ de Ricardo Reis, ele vai um pouco mais além, ao
dizer que a arte lhe “preenche a vida” (FP, PPC: 471), já que nela o
sujeito poético poderá encontrar a base necessária para tomar
consciência não só de si, afirmando-se como alguém que é capaz de
fugir a esquemas estético-literários previamente definidos pelas
normas da sociedade em que vive, pela simples razão de com eles
não se identificar, mas também de todo o meio que o envolve.4
E se já antes referimos que Fernando Pessoa não poderá,
jamais, ser dissociado da corrente estético-literária que marcou a
sua época –o Modernismo–, temos, agora, de ter bem presentes os
valores culturais, sociais e históricos desse período, para assim
conseguirmos uma análise mais fidedigna e completa das suas
ideias e dos seus poemas. Não podemos esquecer que na sua
teorização, Pessoa reflecte, também, sobre o carácter social da
poesia e qual a função desta na sociedade em que se insere.
Ainda assim, o que importa para já reter é que estamos
perante um sujeito que oscila entre o real e o fictício e que se
debruça, de modo bastante explícito, sobre o acto de produção
literária, e que embrenha na sua prática poética a problemática da
construção e das motivações básicas da poesia.
O fingimento que nos encanta
O verso que abre o poema “Autopsicografia”5 –“O poeta é
um fingidor”– deverá ser dos versos mais conhecidos de Fernando
4
Convém aqui referir que, tal como defende Fernando Pessoa, «[a] arte não tem,
para o artista, qualquer fim social» (FP, PI: 161). Digamos que antes tem um “destino
social”, desconhecido do artista, uma vez que para ele só interessa a sua ‘obra de arte’, ou
seja, no caso do escritor só lhe deverá interessar aquilo que ele próprio escreve,
independentemente das repercussões que esse mesmo produto literário poderá vir a ter na
sociedade que o irá receber. Assim, a poesia ganha um carácter eminentemente individual.
5
Não podemos deixar de ter presente que este é um dos poemas teorizadores da
poética pessoana em que se definem claramente os lugares da inteligência e do coração
(sentimento) na criação poético-literária. Atentemos, apenas, na primeira estrofe do
48
MARCO LIVRAMENTO
Pessoa. Remetendo para a temática do fingimento e da verdade ou
não do conteúdo de um determinado poema, este verdadeiro
sofisma coloca-nos numa bifurcação de ideias e de hipóteses de
interpretação: ou o poeta mente –atendendo à etimologia do
vocábulo “fingir”,6 talvez seja preferível usarmos as palavras criar,
inventar, imaginar– quando expressa esta máxima, ou ele, fazendo
jus a essa máxima, mente realmente. Convém realçar que, ao se
pronunciar desta forma, o autor acaba por deitar por terra uma das
grandes máximas do Romantismo e de outras correntes estéticoliterárias anteriores: a de que a poesia lírica é verdadeira pelo
simples facto de ser confessional e radicada na intimidade mais
sincera do seu criador.
Para Pessoa, o fingimento deverá ser um dos artifícios
colocados ao dispor do artista para que este possa alcançar, do
modo mais perfeito possível, os seus intentos, ganhando a mimesis
aristotélica um lugar de destaque no condicionar de toda a essência
técnica de Pessoa. Tenhamos em atenção que «[a] capacidade do
artista para fingir sensações e pensamentos é elevada a princípio
criador absoluto; sem essa ficção contínua não nasce nenhuma obra
de arte» (Lind, 1981: 320).
poema: «O poeta é um fingidor./Finge tão completamente/Que chega a fingir que é dor/A
dor que deveras sente» (FP, OC I: 314). Em O Espelho e a Esfinge, Maussad Moisés
referia-se a esta estrofe como modelo particular da ars poetica de Fernando Pessoa ou do
enigma geral da criação artística. A este poema podemos, aqui, juntar o poema “Isto”, o
qual irá ser, de resto, objecto de algumas considerações mais adiante. Sobre o poema
“Autopsicografia”, leia-se, por exemplo Adolfo Casais Monteiro, que entende que o centro
desta poesia está no verso “Não as duas que ele teve”, referindo a compatibilidade
assumida por Pessoa entre a dor sentida e a dor imaginada: «O poeta poderá não ter
sentido aquilo de que fala, mas pode dar a qualquer coisa uma emoção, venha ela donde
lhe vier, que de qualquer modo ele tem» (Monteiro, 1985: 54).
6
Já Maria Teresa Schiappa Azevedo chamou a atenção para a etimologia do
verbo fingir: «Fingo, -is, -ere é [...] o termo técnico consagrado na Ars Poetica de Horácio
[conhecida, certamente, de Pessoa] para “criar”, “modelar”, “representar”» (Azevedo,
1976: 366). Wittgenstein formulou da seguinte forma o paradoxo de Epiménides:
«[m]entir será uma experiência interna particular? Poderei dizer ao outro “Vou mentir-te”,
e fazê-lo?». Nada melhor para explicar a voz de um poeta do que evocar as palavras de
outro. Lembremo-nos, pois, de Ruy Belo, em Na Margem da Alegria: «[n]ão costumo por
norma dizer o que sinto, mas aproveitar o que sinto para dizer qualquer coisa».
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
49
A reflexão sobre a acção que o sujeito exerce sobre a
realidade, extraindo daí os ‘leit motiv’ da obra literária, leva a que
se imponham questões de veracidade com o resultado da produção
literária, a qual estabelece, desde sempre, uma relação muito
particular com a realidade, não podendo ser desvinculada de uma
espécie de comprometimento do eu.
Mas baste-nos indicar que este fingir de Pessoa nem ele sequer o
dá como incompatível com o sentir, estabelecendo pelo contrário
uma duplicação deste: o que teve e o que exprimiu. O poeta
poderá não ter sentido aquilo de que fala, mas pode dar a qualquer
coisa uma emoção, venha ela donde lhe vier, que de qualquer
modo ele tem. (Monteiro, 1985: 54).
E não é apenas em “Autopsicografia” que a teorização
pessoana se assemelha a um verdadeiro tratado sobre poesia. Se nos
debruçarmos sobre o poema “Isto”, vamos poder constatar que nele
encontramos parte de uma verdadeira ars poetica, no sentido em
que cada um dos seus versos contém um pouco da visão/teorização
que o autor tem sobre a criação literária e sobre aqueles que deverão
ser os ‘motivos’ de um bom poema.
Numa constante referência à sensação e à forma como o
sujeito poético/autor deverá digerir as informações que lhe chegam,
por vezes em catadupa, por meio dos sentidos, conseguimos
vislumbrar alguns traços de uma criação poética muito particular,
onde a divisão é a melhor forma para se alcançar uma unidade
[re]forçada, capaz de garantir ao sujeito poético a força necessária
para encarar e ultrapassar os obstáculos que a sua sociedade lhe
coloca. Note-se que, só assim, este sujeito poético consegue sair do
espaço inumano que o cerca. É só pela criação/transformação que
ele consegue, realmente, saltar a cerca aparentemente
intransponível para se realizar na plenitude de uma sensação
imaginada. Como nos diz Eduardo Lourenço, «ele inventou, para
poder respirar o irrespirável, as formas óbvias para existir no meio
MARCO LIVRAMENTO
50
de uma civilização onde só já se podia “ser” não sendo»
(Lourenço, 2002: 154).
Este espírito moderno, que sente com a imaginação, mostranos, a nós, leitores, uma sensação intelectual, a partir da qual ele
consegue construir uma verdadeira teia de palavras, onde o livre
jogo das faculdades humanas inerentes à imaginação e o livre jogo
dos significados apelam à nossa sensibilidade e à nossa capacidade
para descodificar o segundo sentido das coisas, tendo sempre por
bitola o nosso passado, as nossas vivências radicadas numa
memória que se quer sempre desperta.
Voltemos, entretanto, ao poema:
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sinto ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço,
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que o não é.
Sentir? Sinta quem lê. (FP, OC I: 352)
Tal como já referimos, o assunto deste poema, que, de resto,
surge na sequência de "Autopsicografia", é a teoria da criação
literária. Parece até que a afirmação «Dizem que finjo ou minto/
tudo o que escrevo» é uma resposta a críticas nascidas de possíveis
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
51
interpretações de “Autopsicografia”. Não conseguimos, hoje,
precisar tal facto, mas também não temos argumentos que
inviabilizem essa leitura. Certo é que não podemos deixar de
apontar, a íntima relação que se poderá estabelecer entre estes dois
poemas, uma vez que é bastante notória a proximidade temáticaassumptiva e a semelhança estilística e formal.7
Numa espécie de relação íntima, “Isto” parece adoptar um
carácter explicativo relativamente a “Autopsicografia”, justificando
algumas das ideias aí assumidas, podendo ser visto, inclusive, como
um seu complemento e/ou suplemento. Mas o que é importante
reparar no poema “Isto” é que nele temos um sujeito poético que
afirma que o seu fingimento não é propriamente mentira, mas sim o
resultado do confluir de esforços entre a sensação e a imaginação:
«Dizem que finjo ou minto/ Tudo o que escrevo. Não./ Eu
simplesmente sinto/ Com a imaginação» (ib.). Estamos, portanto,
perante o resultado de um jogo de forças dominadas sempre pela
intenção do poeta, um verdadeiro privilegiado e, até, predestinado.
Se no poema “Autopsicografia” tínhamos um sujeito poético
dividido entre a sensação –dor sentida– e o fingimento dessa
sensação –dor imaginada–, aqui isso já não acontece. O sujeito
poético deu, possivelmente, um passo em frente e, agora, sente
apenas com a imaginação, chegando mesmo a pôr de parte aquele
que em “Autopsicografia” era o ponto de partida para as suas
sensações –o coração: “Não uso o coração.” (ib.).
Note-se que ao rejeitar o sentimentalismo exacerbado,
Pessoa afasta-se do padrão poético convencional, o qual confunde
lirismo e confissão, devendo, neste caso, os versos exteriorizarem o
que o coração sente. Contudo não é isso que o sujeito pessoano
defende. Colocando os seus versos no pólo oposto –o da razão e da
seriedade– o sujeito não rejeita ou anula a invenção/criação, de
forma a expor o que mais lhe convier e apetecer: «Por isso escrevo
em meio /Do que não está ao pé, /Livre do meu enleio, /Sério do
7
Convém que tenhamos presente que a estrutura interna do poema “Isto” é de
cunho racionalizado, com um fio lógico: apresenta-se uma tese, discute-se essa tese e
apresenta-se uma conclusão.
MARCO LIVRAMENTO
52
que não é.» (FP, OC I: 352). E é o próprio Pessoa quem teoriza toda
esta questão:
A composição de um poema lírico deve ser feita não no momento
da emoção, mas no momento da recordação dela. Um poema é um
produto intelectual, e uma emoção, para ser intelectual, tem,
evidentemente, porque não é, de si, intelectual, que existir
intelectualmente. Ora a existência intelectual de uma emoção é a
sua existência na inteligência – isto é, na recordação, única parte
da inteligência, propriamente tal, que pode conservar uma emoção
(FP, PE: 72).
O sujeito poético/autor dispensa o uso do coração porque lhe
basta a imaginação, a qual surge como concentração do sensível e
do intelectual. O que realmente acontece é que Pessoa realiza –neste
seu acto de criação poética– a síntese da sensação com a
imaginação, sobressaindo esta, porque intelectual, operada pela
razão, ganhando outra força alguns dos seus argumentos:
Finjo? Não finjo. Se quisesse fingir, para que escreveria isto?
Estas cousas passaram-se, garanto; onde se passaram não sei, mas
foi tanto quanto neste mundo qualquer cousa se passa, em casas
reais, cujas janelas abrem sobre paisagens realmente visíveis.
Nunca lá estive – mas acaso sou eu quem escreve? (FP, OC II:
1018).
Conforme nos diz Finazzi-Agrò, «esta relação mediata,
imaginada e irónica com a sensação mais não é que uma ulterior
tentativa de dar crédito, no plano textual, à estranheza do falante em
relação ao falado» (Finazzi-agrò, 1987: 33), remetendo para a
«função fatalmente mistificante da linguagem: como exorcismo
imposto por um sentimento que o poeta não pode deixar de
experimentar, mas que, para ser nomeado, deve ser deslocado, isto
é, colocado numa perspectiva imaginária». (ib.). Desta forma, temos
um sujeito poético/autor que enforma de ficção a sua linguagem,
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
53
dramatizando-a –o tal drama em gente– à boa maneira de Barthes,
que coloca as palavras “dans une machinerie de langage”, que nos
conduz a “une véritable hétéronomie des choses”.8
Além de mentir, temos um sujeito que racionaliza os seus
sentimentos, impondo-lhes uma espécie de travão para que sejam
exteriorizados de forma intelectualizada apenas aqueles que ele
acha pertinentes para o receptor do poema. Ou seja, na relação que
o poeta estabelece com a sua expressão poética ele tem plena
consciência de que tem de se desdobrar num outro eu (alteridade
poética) para que assim não se limite à representação das suas
emoções pessoais (plano do fingimento). E isto só o consegue por
meio da razão:
Para que qualquer impressão possa ser convertida em matéria de
arte, é mister que, primeiro, se transmute em impressão, não
parcialmente, senão inteiramente, intelectual. […] O que sentimos
é somente o que sentimos. O que pensamos é somente o que
pensamos. Porém, o que sentido ou pensado, novamente
pensamos como outrem — é isso que se transmuta naturalmente
em arte, e, esfriando, atinge a forma. (FP, OC II: 332-333)
Assim, por detrás de toda a obra poética deverá estar
implícito o grande trabalho e dedicação do poeta, uma vez que para
conseguir a forma final [algumas vezes, quase] perfeita teve de
recorrer às suas ‘artimanhas’ criativas enquanto «profissional, no
sentido superior que o termo tem» (op. cit.: 1923).
Aqui não está em causa o tempo que o autor demora a
conceber este ou aquele verso, pois o mesmo poderá resultar de
«um esforço [...] consciente ou inconsciente, rápido ou demorado»
(op. cit.: 155). O que tem importância é o resultado final que se
8
São diversas as considerações que o autor tece a propósito das diferentes entre a
«poética moderna» e a «poética clássica». Ora vejamos apenas um exemplo: «[n]a poética
moderna, pelo contrário, as palavras produzem uma espécie de contínuo formal do qual
emana a pouco e pouco uma densidade intelectual ou sentimental sem elas impossível»
(Barthes, 1997: 40).
MARCO LIVRAMENTO
54
alcança. E é nesse resultado final –o verso, a estrofe, o poema– que
temos, disseminados pela imaginação e pela fantasia, o real e o
irreal misturados, como que fundindo-se no âmago do poeta.
«Pessoa firma-se no quotidiano, não para uma descrição
exterior mas para conferir-lhe uma ultra dimensão; ascende ao
metafísico e estabelece uma espécie de relativismo ontológico»
(Coelho, 1971: vol. 2, 135). Algo semelhante é o que nos diz
Eduardo Lourenço: «A [poesia] de Pessoa situa-se imediatamente
ao nível do ontológico (é ontologia em acto), sendo como é, pura e
interminável interrogação sobre o ser múltiplo das “verdades” ou
das “vivências” em que o pensar nelas as converte» (Lourenço,
1973:18).
Uma verdade consequente
Não podemos pôr em causa a verdade do texto ficcional,
nem tão-pouco aplicar-lhe os critérios da verdade cognoscitiva, uma
vez que, e tal como nos diz Barthes, “[a] palavra poética não pode
nunca ser falsa, porque é total [...], é aqui um acto sem passado
imediato, um acto sem contornos, e que propõe apenas a sombra
espessa dos reflexos de todas as origens que lhe estão ligadas”
(Barthes, 1997: 43).
Silvina Rodrigues Lopes, falando do texto narrativo, diznos, também, que «numa ficção, um narrador ou qualquer outra
personagem pode estabelecer conjecturas que posteriormente se
revelem verdadeiras ou falsas em relação ao universo narrativo, mas
isso não tem implicações directas quanto ao valor de verdade, ou ao
sentido, do texto literário» (Lopes, 1994: 436). Ou seja, transpondo
estas ideias para o texto lírico, podemos dizer que um poema,
enquanto enunciado ficcional, se esconde sob uma verdade muito
particular, a sua; verdade essa que pode estar embebida de um cariz
subjectivo do sujeito estético-literário, ou poderá ter como referente
o mundo que pelo próprio poema é representado.
Assim, uma vez que estamos perante um poeta que
artisticamente só sabe mentir (FP, OC II: 301), é natural que em
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
55
muitos dos seus poemas, como é o caso dos já referidos “Isto” e
“Autopsicografia”, encontremos subjacente a noção de mentira
literária/verdade ficcional,9 a qual nos remete, indubitavelmente,
para sentidos dependentes dessa mesma noção.
E o porquê desta mentira? Somente porque o sujeito sente
uma necessidade de objectivar aquilo que transmite, para que a sua
posição de alteridade lhe permita alcançar a tal lucidez que ele
almeja. Essa alteridade resulta da transformação do eu monológico
num outro eu que, a várias vozes, ultrapassa o tom confessionalista
e a sinceridade humana que mesclavam a poesia de outros tempos,
nomeadamente do Romantismo, tal como já anteriormente
referimos.10 Mas será que ele sentiu aquilo que nos conta? O
desdobramento do sujeito leva-o um pouco mais longe. E não
precisamos de ir muito além das suas palavras para nos
apercebermos disso. É o próprio poeta quem nos elucida: «Tudo o
que sinto ou passo, /O que me falha ou finda, /É como que um
terraço, /Sobre outra coisa ainda.» (FP, OC I: 352).
Dando forma às suas estratégias de descodificação e
seguindo uma filosofia estética muito própria, Pessoa procede à
transformação dos sentimentos vividos em sentimentos imaginados.
E, na verdade, ele conseguiu moldar o seu discurso no sentido de
lhe conferir uma determinada peculiaridade que se fixa no já
referido desdobramento do sujeito.
Temos de relembrar parte da teoria de Mikhaïl Bakhtine que
soube reconhecer a dramaturgia inerente ao acto de escrita:
9
Aqui deixamos apenas uma das muitas considerações de Pessoa a respeito do
valor de verdade ou não do poema: «Tão pouco se deve o artista preocupar com a verdade
do que descreve. É-lhe lícito escrever um poema onde se violem todas as probabilidades –
logo que, é claro, a violação dessas probabilidades não implique directamente uma falha
na natureza do poema, como seria, por exemplo, o anacronismo num poema histórico, o
erro psicológico num drama, etc. A verdade pertence à ciência, a moral à vida prática»
(FP, PI: 201).
10
Todavia, não podemos deixar de apontar a oposição [possível] entre
confissionalistas e fingidores, numa perspectiva mais diacrónica do que sincrónica.
Pensemos nas confissões de Safo e nos fingimentos de Pero Meogo, por exemplo.
56
MARCO LIVRAMENTO
Un écrivain […] n'est-il pas toujours un "dramaturge" en ce sens
qu'il redistribue tous les mots entre les voix d'autrui - l'image de
l'auteur étant du nombre (de même que les autres masques de
l'auteur)? […] Dans le mot, une voix créatrice ne peut jamais être
que seconde voix. […] L'écrivain, c'est lui qui sait travailler la
langue en se situant hors de la langue, c'est celui qui détient le don
du dire indirect (Bakhtine, 1984: 318-319).
Em Pessoa, deparamo-nos com a problemática do “poeta
dramático”, defendida pelo próprio na carta endereçada a João
Gaspar Simões e datada de 11 de Dezembro de 1931:
Munido desta chave, ele pode abrir lentamente todas as
fechaduras da minha expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que,
como poeta dramático, sinto despegando-me de mim; que, como
dramático (sem poeta), transmudo automaticamente o que sinto
para uma explosão alheia ao que senti, construindo na emoção
uma pessoa inexistente que a sentisse verdadeiramente, e por isso
sentisse, em derivação, outras emoções que eu, puramente eu, me
esqueci de sentir (FP, OC II: 302-303).
Esta ideia de representação leva-nos, por conseguinte, a ver
o poeta como um actor que é capaz de representar diferentes
personagens na perfeição, sem que para isso tenha vivenciado
experiências próximas daquelas que ele representa. É o tal fingidor
que «Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor
que deveras sente» (FP, OC I: 314). É enquanto poeta dramático
que Pessoa nos apresenta uma hipotética razão para a criação dos
seus heterónimos, vistos como consequência de uma
tentativa/necessidade de despersonalização.
E associada à questão do fingimento temos, inevitavelmente,
a questão da mentira e da consequente verdade literária associada à
representação da plenitude do sujeito poético. A poesia de Pessoa
aparece-nos, assim, como uma poesia assente nas ideias de
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
57
despersonalização, de desdobramento no outro/alteridade, de
trabalho cuidado e do esforço do artista, bem como nas de mentira,
verdade estética e fingimento, remetendo-nos para a problemática
da verdade do texto ficcional, ao qual, salvaguarda-se, não devem
ser aplicados os critérios de verdade cognoscitiva.
Não sendo já novidade para todos aqueles que se dedicam
um pouco mais à obra de Fernando Pessoa, a alteridade estética, que
facilmente poderá ser notada nos mecanismos e nos procedimentos
técnico-discursivos por ele adoptados, mais não é do que a tentativa
de transmitir algumas das perturbações que, regra geral, assolam o
espírito dos homens do Modernismo.11 Qual espasmo cerebral
dominado pela inteligência e pela razão, a sua produção literária é,
mormente, encarada como o resultado de um labor poético muito
cuidado e apurado. Recorrendo ao intelecto, o poeta é capaz de nos
falar, por exemplo, de uma dor que ele nunca sentiu, mas que nos
leva a acreditar, pelas suas capacidades extraordinárias de
enunciação, que essa dor terá mesmo sido por ele sentida.
Lembremos as sábias palavras de Jacinto do Prado Coelho:
«[a] inteligência lembra uma varinha de condão: graças a ela, tudo o
que dormia o sono do nada, incluindo o próprio Homem, acorda
para a existência. Ser é ser objecto de conhecimento»12 (Coelho,
1990: 97). A mesma varinha, porém, por um uso intenso e
persistente, acaba por esvaziar de realidade as coisas, fá-las
regressar ao nada de onde vieram» (ib.).
11
No seguimento desta ideia, faz todo o sentido notarmos até que ponto Pessoa se
apresenta como um sujeito em crise, que se coaduna com as perturbações dos homens
modernistas, reflectindo as tendências do panorama cultural europeu dos finais do século
XIX e inícios do século XX, marcados que foram pelas interrogações acerca da nova
concepção do Ser e da forma como esse mesmo ser deveria e estava no Mundo. Veja-se o
que nos diz Jacinto do Prado Coelho: «uma das chaves capitais para a compreensão do
poeta é o contexto histórico (social e sociocultural)» (Coelho, 1990: 236). Se quisermos
seguir apenas as palavras do próprio poeta para perceber o grau de envolvência da sua
poesia no contexto sociocultural da sua época, basta-nos prestarmos atenção a alguns dos
textos que fazem parte das suas Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação (FP, PI).
12
Tenhamos, aqui, presente a Fenomenologia de Heidegger, da qual Fernando
Pessoa poderá ter herdado esta postura.
MARCO LIVRAMENTO
58
E é em muito por causa de toda esta problemática que o
próprio Pessoa criou em torno da ficcionalidade que o seu processo
de criação literária ganha especial importância, uma vez que
começamos, logo, a sentir necessidade de saber como é que todas
estas ideias irão ser passadas para a enunciação das palavras, para o
‘papel’.13
Pessoa escreve para quem?
De acordo com o que temos vindo a dizer, no génio
pessoano temos um sujeito poético que cria tanto pela intuição,
como pela inteligência, transformando os sentimentos vividos em
sentimentos pensados, para que os outros os possam viver e sentir
também. É caso para dizermos que a sua «obra de arte […] deriva
portanto do que com propriedade se pode chamar um instinto
intelectual» (FP, OC III:17). Talvez por isso Jacinto do Prado
Coelho, ao analisar «a distância que separa o que se diz do que se
é», ache que «a estética anti-romântica de Fernando Pessoa assenta
na referida concepção da escrita como ruptura e ausência. É
necessariamente uma estética não já da expressão mas da invenção»
(Coelho, 1983: 111). Não há implicação, não há comprometimento.
E diz-nos Pessoa: «Por isso escrevo em meio/Do que não está ao pé,
/Livre do meu enleio, /Sério do que o não é» (FP, OC I: 352). Há
apenas o transmitir de uma ideia. Depois, «Sentir? Sinta quem lê»
(ib.).
Desta forma, o sujeito poético/autor oferece ao leitor
emoções possivelmente falsas, que uma vez passadas pela “peneira”
da inteligência, se transformam em procedimentos técnicodiscursivos representativos de todo o trabalho intelectual que teve
de ser empreendido para que se conseguisse chegar ao resultado
final do poema. Logo, «a emoção verdadeira tem (…) uma
13
Convém contarmos que toda esta questão do fingimento e das consequências da
sua aplicação no processo de criação estético-literário não se limita à produção literária de
Fernando Pessoa ortónimo, muito pelo contrário, em Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e
Ricardo Reis, por exemplo, encontramos muitas reflexões sobre a arte e a sua essência,
sobre a literatura e a realidade portuguesa, entre muitos outros factores.
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
59
expressão falsa. Exprimir-se é dizer o que não se sente» (FP, PE:
168).
Ainda assim, para o leitor está reservado um lugar
privilegiado no campo da interpretação e da significação das
palavras e ideias que o poema encerra. É a ele que o sujeito poético
entrega a decisão final. E se tomarmos por certa a ideia de que na
sociedade onde se insere o leitor prevalece a noção de que a poesia
possui um carácter confessional, acabaremos por perceber que o
leitor corre o risco de fazer uma interpretação errada dos
sentimentos expressos, já que ele irá sentir algo que não foi sentido
pelo sujeito, pensando, porém, que este o sentiu. Ou então, o leitor
poderá fruir sentimentos que o poeta não poderá transmitir. E tudo
isto acontece por força da imaginação. De um e de outro.
A interpretação semântica ou semiótica é o resultado do processo
pelo qual o destinatário, perante a manifestação linear do texto, a
enche de significado. A interpretação crítica ou semiótica, em
contrapartida, é aquela pela qual se tenta explicar por que razões
estruturais o texto poderá produzir aquelas (ou outras,
alternativas) interpretações semânticas (Eco, 1992:33).
Não podemos ignorar que o sujeito poético/autor escreve
tendo já em vista fazer chegar uma qualquer ideia ou mensagem a
um destinatário –o leitor. Com esta posição, ele leva às últimas
consequências a capacidade de produção de sentido e a rejeição de
toda a univocidade que permitiria uma leitura tranquilizadora de um
poema, uma vez que o leitor não pode, jamais, negar o seu papel
activo no processo de leitura-interpretação do texto. Mas, note-se
que a escrita é aqui entendida como construção e transformação da
realidade e não como representação de uma anterioridade empírica;
o poema afirma, constrói, engendra, faz nascer minuciosamente as
coisas como revelação.
Lembremos a teoria de Bakhtine, que nos diz que todo o
discurso implica o outro. Quando alguém fala ou escreve é com a
60
MARCO LIVRAMENTO
finalidade de que alguém o oiça ou leia, estabelecendo-se, sempre,
uma relação entre um eu e um tu. No entanto, o diálogo acontece
não só entre indivíduos, mas também entre qualquer enunciado
verbal:
Le dialogue, au sens étroit du terme, ne constitue, bien entendu,
qu'une des formes, des plus importantes il est vrai, de l'interaction
verbale. Mais on peut comprendre le mot «dialogue» dans un sens
élargi, c'est-à-dire non seulement comme l'échange à haute voix et
impliquant des individus placés face à face, mais tout échange
verbal, de quelque type qu'il soit. (Bakhtine, 1977: 136).
Nestas palavras está subjacente a ideia já anteriormente
referida do sujeito da enunciação como dramaturgo, remetendo para
as implicações que tal facto irá significar na escrita literária.
Importa, agora, realçar a ideia de dialogismo que o sujeito poderá
estabelecer, também, com o leitor.14 Como nos diz Umberto Eco,15
«[o] leitor é uma testemunha dessa descolagem se, e só se, também
ele não subordinar a leitura à lei prévia. É aí que a ideia da escritaleitura como abdução inventiva pode fazer sentido.» (Eco, 1992:
42). E, qual falante que no momento da enunciação se apropria da
língua e dela faz o uso que mais se adequa à realização dos seus
objectivos, é ao autor (Fernando Pessoa) a quem compete imprimir
a ordenação mais conveniente ao discurso que enuncia.
A palavra poética assume-se como a palavra que transforma
a aparência em aparição. A linguagem, enquanto faculdade que
14
O papel do leitor e a relação que ele pode estabelecer com o sujeito da
enunciação mereceu a atenção de muitos dos autores e críticos literários coevos de
Fernando Pessoa, perdurando até aos nossos dias. Veja-se, por exemplo, o caso de Manuel
Gusmão, em Dois Sóis. A Rosa – A Arquitectura do Mundo (1990, secção “As Posições do
Leitor”).
15
Veja-se, a propósito as considerações que o autor tece no tocante à intenção dos
intervenientes no processo enunciativo, a qual condiciona a interpretação, e por
conseguinte, o significado: “intentio auctoris”, “intentio operis” e “intentio lectoris”.
Pequena referência, também, para as estéticas da recepção de Wolfgang Iser e Hans Robert
Jauss, por exemplo.
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
61
permite ao homem pôr em prática a sua capacidade enunciativa, dá
ao sujeito poético a possibilidade de exorcizar muitos dos seus
sentimentos, como que os passando por uma ‘peneira’ que deixa
separar apenas aquilo que lhe convém mostrar ao leitor, seu
‘companheiro’ numa luta pela identidade. «Ora, como se sabe desde
há muito, embora se saiba melhor depois de Fernando Pessoa, na
comunicação literária o conteúdo do comprometimento é distinto da
sinceridade do comprometimento –reveladora das múltiplas
possibilidades de envolvimento do sujeito com o mundo» (Martins,
1995: 164).
Uma forma de ser, estar e sentir
Toda esta teorização poética de que temos vindo a falar
articula-se, como, de resto, facilmente podemos constatar, em torno
da sensação, já que é ela «[a] base de toda a arte» (FP, PI:192),
independentemente de ser uma sensação imaginada ou fingida.
Fruto, como já se disse, de um trabalho apurado e aturado, a
sensação é passada ao leitor, para que ele a possa interpretar à sua
maneira.
Uma sensação intelectualizada segue dois processos sucessivos: é
primeiro a consciência dessa sensação, e esse facto de haver
consciência de uma sensação transforma-a já numa sensação de
ordem diferente; é, depois, uma consciência dessa consciência,
isto é: depois de uma sensação ser concebida como tal – o que dá
a emoção crítica – essa sensação passa a ser concebida como
intelectualizada, o que dá o poder de ela ser expressa (FP, PI:
192).
No seguimento desta linha de pensamento está, pois, a
intelectualização das emoções na poesia de Fernando Pessoa,
particularmente nos poemas ortónimos, o que leva o poeta a travar
uma luta incessante entre o sentir e o pensar, entre a consciência e a
inconsciência. Recordemos, então, os primeiros versos do poema
62
MARCO LIVRAMENTO
“Isto”: «Dizem que finjo ou minto /Tudo o que escrevo. Não. /Eu
simplesmente sinto /Com a imaginação./ Não uso o coração» (FP,
OC I: 352).
Não será demais relembrarmos a opinião de Rudolf Lind, ao
afirmar que «[a] capacidade do artista para fingir sensações e
pensamentos é elevada a princípio criador absoluto; sem esta ficção
contínua não nasce nenhuma obra de arte» (Lind, 1981: 320).
Convém termos, também, presente que quando quis esclarecer a
génese e obra dos heterónimos, Fernando Pessoa procurou ajuda no
Sensacionismo, uma vez que estava consciente do papel decisivo da
«decomposição do real em sensação», tal como ele mesmo refere na
célebre carta enviada a Adolfo Casais Monteiro, datada de 13 de
Janeiro de 1935 (cf. FP, OC II: 340-342). De resto, foi o próprio
Pessoa um autor que seguiu, de certa forma, os trilhos deixados por
Cesário Verde (cf. por exemplo FP, LD I: 144), quem afirmou que
eram sensacionistas Álvaro de Campos e Alberto Caeiro, não
escondendo que queria lançar e teorizar esta nova corrente da
literatura portuguesa.
Talvez por isso não seja errado dizermos que o enigma
pessoano resulta de uma coesão vertiginosa da sensação, que, de
resto, lhe confere uma inviolabilidade significativa, manifestação da
sua origem. Daí o seu movimento perpétuo, a sua autonomia total,
como parte integrante de um sistema que nunca se degrada.
A palavra poética assume-se como a palavra que transforma
a aparência em aparição, ganhando a matéria verbal uma
consistência ímpar, resultado que é de uma acumulação de energias
que se elevaram à consciência e à linguagem que se materializa
num corpus poético. Aqui e ali notamos a intenção de uma poesia
como missão, dever, cumprimento, visitação e não apenas como
mera expressão. Estamos longe de um simples poetar expressivo e
lírico.
E, como nos diz Georg Rudolf Lind, na sua introdução às
Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação, «[é] precisamente nestas
páginas programáticas sobre o Sensacionismo que descobrimos a
frase-chave para toda a obra de Fernando Pessoa, a explicação de
VIRADO DO AVESSO OU A POLIFONIA DA VERDADE
63
todas as contradições, a solução de tantos enigmas: “Sentir tudo de
todas as maneiras”» (FP, PI: XIV).
Seguindo todos os argumentos que acabámos de apresentar,
podemos concluir que para Fernando Pessoa o poema é um produto
intelectual, uma construção, que resulta da recordação da emoção,
pelo que a sua concepção poderá confundir-se, muitas vezes, com
um fingimento. Da necessidade da intelectualização do sentimento
para exprimir a arte, nasce uma verdade estética, que, apesar de não
rejeitar a sinceridade dos sentimentos do eu individualizado e real
do poeta, atribui ao eu poético uma capacidade significativa para
estabelecer relações com o Mundo, abrindo espaço e lugar para
poder exprimir intelectualmente as emoções ou o que quer
representar.
É numa dialéctica de sinceridade/fingimento que a crítica da
sinceridade ou teoria do fingimento se associa às dicotomias
consciência/inconsciência e sentir/pensar, levando o poeta a
defender a ideia de que a criação artística implica a concepção de
novas relações significativas, graças à distanciação que faz do real.
Abre-se um novo espaço para a possibilidade de se gerar o
fingimento ou a mentira.
E não podemos nós, hoje, negar que a poesia de Fernando
Pessoa revela uma despersonalização de um poeta fingidor que fala
e que se identifica com a própria criação poética, como, de resto,
impõe a modernidade. Limitemo-nos, então, a sentir tudo de todas
as maneiras. E fiquemo-nos pelas proféticas palavras de Pessoa,
pela voz de Bernardo Soares, no seu Livro do Desassossego: «Que
serei eu daqui a dez anos – de aqui a cinco anos mesmo? Os meus
amigos dizem-me que eu serei um dos maiores poetas
contemporâneos» (FP, LD I: 9). E a profecia cumpriu-se.
REFERÊNCIAS:
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VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009). pp. 67-79
Memorial de Aires:
autorreferencialidade e denúncia da
utopia realista
1
JURACY ASSMANN SARAIVA
Centro Universitário Feevale de Novo Hamburgo
Rio Grande do Sul
Memorial de Aires, de Machado de Assis, publicada em 1908, pouco antes da
morte do escritor, mantém a reflexão sobre o ato da escrita, aspecto já
evidenciado em produções anteriores. No Memorial, o contrato de leitura
proposto, a caracterização do narrador protagonista, o movimento
autorreferencial e as remissões intertextuais instalam uma reflexão metaficcional
e comprovam que o texto se constrói sobre um paradoxo. Adotando um
posicionamento aparentemente realista, o escritor desmistifica a utopia que
sustenta essa concepção artística e se aproxima de uma perspectiva pós-moderna,
ao relativizar o conceito de verdade e comprovar que a ficção é mais convincente
do que o real que ela intenta representar.
PALAVRAS-CHAVE: Machado de Assis, Metaficção, Intertextualidade.
1
Artigo produzido no âmbito de projeto de pesquisa, desenvolvido com o apoio
do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e da
FAPERGS (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul.
JURACY ASSMANN SARAIVA
68
The novel Memorial de Aires, by Machado de Assis, was published in 1908,
shortly after the author's death, and it maintains reflections about the act of
writing, an aspect that had already been privileged in his previous works. In
Memorial, the proposed reading contract, the characterization of the protagonist
narrator, the self-referential movement and the intertextual remissions establish
the metafictional reflection and lead to the conclusion that the text is built upon a
paradox. By adopting an apparently realistic standpoint, the writer demystifies
the utopia that supports this artistic conception and approaches a post-modern
perspective by relativizing the concept of truth, thus proving that fiction is more
convincing than the reality it intends to represent.
KEY
WORDS:
Machado de Assis, Metafiction, Intertextuality.
1. Jogo lúdico da linguagem
A análise de Memorial de Aires, última obra publicada em
vida por Machado de Assis, sob o ângulo do sujeito da enunciação e
de seus comentários metadiscursivos comprova que ela se estrutura
como um paradoxo, já que o tratamento dispensado a esses aspectos
permite afirmar que, sob um texto aparentemente realista, o escritor
desmistifica a utopia que sustenta tal concepção artística,
aproximando-se de uma perspectiva pós-moderna.
O Memorial de Aires expõe, em forma de diário, duas
histórias distintas –do casal Aguiar e a de Tristão e Fidélia, e a do
próprio narrador, Aires, que se conduz como testemunha dos
episódios, embora passe a ser o protagonista deles. Ao duplo papel
assumido por Aires, que intenta alcançar a verdade sob a aparência,
somam-se outros artifícios, como a solução encontrada para dar
forma a uma narrativa que finge aproximar-se do verídico, ainda
que seja eminentemente fictícia. Essa dualidade, decorrente do
processo de composição técnico-composicional está explícita no
contrato de leitura, na caracterização do protagonista e, sobretudo,
no movimento autorreferencial do texto e nas remissões
intertextuais, influenciando a recepção dos leitores.
A introdução do leitor ao Memorial de Aires se dá mediante
a “Advertência”, que explicita o caráter memorialístico do texto e
reforça o contrato de leitura, já mencionado no título. Como
metatexto, a “Advertência” ocupa uma posição intermediária entre
MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA
69
o estatuto ontológico do real e o da ficção, pois, ao assiná-la com as
iniciais “M. de A”., o autor assume, concomitantemente, a função
real de escritor e a função ficcional de editor. Sob o primeiro
aspecto, Machado de Assis responde pela autoria da obra,
interligando-a à sua produção precedente; sob o segundo, apresentase como o divulgador de um texto cuja autoria atribui ao
Conselheiro Aires, definindo, como tarefa pessoal, a eliminação de
lembranças do diário que não se subordinavam a um objetivo
comum: «Vai como estava, mas debastada e estreita, conservando
só o que liga o mesmo assunto» (Assis, 1986: 1096).
Consequentemente, o processo de enunciação da
“Advertência” introduz um duplo ângulo perceptivo: por um lado,
expõe a tarefa do escritor que “desliteraturiza a obra” (Tacca, 1978:
37), quando a apresenta como um documento ou como o resultado
de um testemunho. Por outro, introduz a função do editor que
defende a autenticidade do manuscrito, ao mesmo tempo em que o
insere no espaço da ficção, porque delega sua autoria a um escriba
cuja biografia a ficção legitima, visto que sua existência é
consolidada pelo círculo romanesco dos protagonistas de Esaú e
Jacó.
Com suas palavras, o autor-editor salienta o direcionamento
do diário para o verossímil e seu comprometimento com o verídico,
embora a atribuição da autoria ao Conselheiro Aires venha
salvaguardar sua identidade romanesca. Portanto, o Memorial de
Aires liga-se às narrativas em que o fictício mimetiza
procedimentos do real, manifestando sua fidelidade a uma
concepção realista da arte. Ao definir a configuração do diário
enquanto gênero, a “Advertência” atua sobre a percepção do leitor e
antecipa o posicionamento metatextual da subjetividade narradora,
que estabelece a observação e a análise da realidade como critérios
da composição do texto memorialístico. Logo, os esclarecimentos
da “Advertência” interferem no horizonte de expectativa do leitor,
que integra a recepção do Memorial a outras narrativas,
caracterizadas pela mesma peculiaridade.
70
JURACY ASSMANN SARAIVA
Entretanto, ao postular o valor documental do texto
memorialístico e ao conjugar sua escrita à existência fictícia de seu
autor –Aires– o autor-editor denuncia o artifício que institui a
ficcionalidade. Dessa forma, ele compromete a narrativa, não com
uma referencialidade factual, mas com a verossimilhança,
determinando que a seleção dos eventos obedeça à organicidade e à
cronologia, ao mesmo tempo em que permite a insurgência da
subjetividade narradora, que registrara, sob forma de diário,
acontecimentos e vivências.
Na composição da subjetividade de José Marcondes Aires,
destacam-se os comentários com que ele compõe sua imagem: a do
diplomata que retorna definitivamente a sua terra e para quem a
aposentadoria, sinônimo de velhice, traduz as restrições que lhe são
impostas e define sua condição de exilado. Seu exílio recebe um
endereço –«o Catete, o Largo do Machado, a Praia de Botafogo e a
do Flamengo» (Assis, 1986: 987)– e só lhe resta atuar já não como
protagonista do espetáculo da existência, mas como simples
espectador a quem está reservado o direito de comentar a encenação
do espetáculo.
Por essa razão, o registro diário dos fatos faculta a Aires o
exercício da análise, da explicação e da crítica, e, sobretudo, satisfaz
«o gosto e o costume de conversar», que «a índole e a vida» (Assis,
1986: 1168) lhe deram. Entretanto, o ato de linguagem, engendrado
pelo desejo de dialogar, estabelece uma ruptura entre o objetivo
manifestado por Aires e aquele que sua fantasia alimenta: o de
compartilhar dos ruídos da vida ou de negar a proximidade da
morte.
A contradição inerente ao objetivo da escrita do Memorial
revela-se nas duas séries de episódios que compõem a narrativa e
nas quais Aires altera seu papel de protagonista para o de
testemunha dos acontecimentos. Na primeira série, Aires demonstra
seu fascínio pela vida e expõe seu interesse, real ou fictício, pela
jovem viúva Fidélia, que parece inclinar-se para a negação da vida,
predominando a exposição do eu do narrador; na segunda, a
semelhança entre Aires e o casal Aguiar e a paralela proximidade
MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA
71
entre Fidélia e Tristão promovem o conformismo e a aceitação de
Aires diante da velhice, concentrando-se, então, a narrativa no
desvelamento das demais personagens.
Assim, entre a situação inicial –oposição entre Aires e
Fidélia– e a final –identidade entre Aires e o casal Aguiar– o texto
revela o conflito pessoal de Aires, representado pela oposição entre
Eros e Tânatos, entre o desejo e sua irrealização, entre o papel de
protagonista e o de testemunha, para chegar, finalmente, ao
acolhimento da condição imposta pelo ciclo da vida.
Todavia essa progressão do ignorar para o conhecer
sublinha, para o leitor, os equívocos que se entrelaçam na
composição da personagem Aires, cujos enunciados compõem uma
figura contraditória. Ele embasa sua avaliação dos comportamentos
das demais personagens na dupla experiência de ator e de
espectador, procedendo com a cautela do raisonneur. Mas a
duplicidade e a concomitância de funções não constituem, para o
protagonista, garantia de conhecimento, uma vez que lida com uma
linguagem infranqueável, que o constrange a compor «páginas de
conjecturas» (Assis, 1986: 1175) que, por sua natureza, eliminam a
proximidade com o real.
O Memorial de Aires reveste-se, assim, de uma
complexidade que não permite uma leitura linear, pois, conforme
afirma José Paulo Paes, é um livro “oblíquo e dissimulado”, cuja
leitura apressada, «sem paciência de ler nas entrelinhas ou gosto de
demorar-se nas obliqüidades machadianas», pode conduzir ao
equívoco de julgar o Memorial como um produto do «ocaso da
carreira do romancista» ou como prova de sua “decadência” (Paes,
1985: 13). Para o obscurecimento da narrativa, contribui também a
estrutura do diário, já que Aires não apenas lida com a dualidade da
linguagem alheia, como também interpõe, entre ela e seu registro,
sua própria mediação. Para Aires, se «a presença imediata das
coisas ilude, excita ou dói em excesso, é preciso deixar que as
coisas passem, e só depois, e de longe, tomá-las por matéria da
escrita» (Bosi, 1999: 132). Consequentemente, por detrás da prosa
bem cuidada e aparentemente distanciada, há o processo de reflexão
72
JURACY ASSMANN SARAIVA
do narrador, que pode ser vítima de enganos, mas que também se
vale do ludíbrio para ocultar sentidos em suas reflexões e análises.
2. Inserção na circularidade dos textos
A concepção de Aires inclui sua experiência de produtor e
receptor do ato da escrita, visto que, à progressiva notação dos
episódios, acrescenta reflexões de caráter metaliterário.
Paralelamente, o protagonista integra ao discurso a remissão a
outras formas de expressão artística, das quais se torna intérprete,
estabelecendo um contraponto entre elas e o diário. Suas
afirmativas metaliterárias e a inclusão do universo da textualidade
presentificam, por conseguinte, a artificialidade do processo de
produção e as questões estético-culturais que o envolvem, propondo
um novo nível interpretativo, aquele que tematiza o fazer do
Memorial.
Ao expor a análise de seu texto, Aires rejeita tanto o
“poético” como o “patético” da linguagem: o primeiro, porque já
não se harmoniza com sua circunstância de vida; o segundo, porque
não pretende comover nem despertar piedade. Ele recusa,
igualmente, o fantasioso, para eleger a “prosa”, ou seja, a «realidade
possível», que requer «sobriedade de estilo» (Assis, 1986: 1186).
Relacionado à dimensão significativa do diário, o
esclarecimento autodiscursivo presentifica duas orientações
opostas: enquanto a recusa ao fantasioso busca desmistificar o
ilusório, a rejeição da linguagem elaborada acaba por constituir
nova forma para representar o literário, que se instala pelo recurso
ao romanesco. Como ambos, o verdadeiro e o falso, são
interdependentes, a impossibilidade de considerar apenas um deles
prestigia a instabilidade de sentido e comprova que o Memorial se
valida pela equivocidade ou pela ambigüidade. Consciente disso, o
narrador assume a tarefa de enunciar, ainda que por
metadeclarações contraditórias, a organização estético-semântica do
Memorial que aponta para a fraudulência da linguagem, desde que a
MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA
73
veracidade não se formaliza através do discurso, mas dele se vale
como meio de encobrimento.
A análise metaliterária efetuada pelo narrador decorre, por
sua vez, de um processo de produção que se concretiza,
simultaneamente, como processo de recepção. Inserido em um
universo sígnico, Aires concebe o diário como a transposição, por
meio da escrita, de um processo de leitura que recorre, igualmente,
à interpretação de outros textos. Por conseguinte, o narrador não é
apenas leitor do texto que produz, mas também de obras literárias
para, através delas, explicar situações e circunstâncias de caráter
pessoal e compreender as demais personagens.
A menção à obra de Goethe e aos escritores Shelley e
Thackeray exemplifica a tentativa de alcançar a compreensão
própria pela relação com a literatura. O Fausto de Goethe é
invocado para ilustrar a relação análoga entre duas apostas: de um
lado, Deus e o Diabo polemizam sobre o bem e o mal e colocam a
prêmio a alma de Fausto; de outro, Rita e Aires polemizam em
torno da fidelidade amorosa e colocam a prêmio o corpo de Fidélia.
Todavia, a alusão ao poema dramático de Goethe também insinua a
«inspiração maligna» (Assis, 1986: 1099), já que, paralelamente,
tematiza o dilema interior de Aires entre o desejo da conquista
amorosa e sua repulsa, entre a rebeldia contra a lei natural e a
própria submissão a ela, entre a sensualidade e a ascese.
Ao afirmar «[g]astei o dia a folhear livros, e reli
especialmente alguma cousa de Shelley e também de Thackeray.
Um consolou-me de outro, esse desenganou-me daquele; é assim
que o engenho completa o engenho, e o espírito aprende as línguas
do espírito» (Assis, 1986: 1102), Aires também introduz o ilimitado
textual na circunscrição de sua vida. O lirismo melancólico de
Shelley2 oferece-lhe a visão realista de suas circunstâncias, para as
2
Como se verá mais adiante, Machado de Assis se vale de um verso do poema
“To...” de Percy Bysshe Shelley (1792-1822), expoente do Romantismo inglês, para
traduzir a melancolia do narrador em face de sua condição de sexagenário. A obra
completa de Shelley recebeu nova edição, em 1999, pela Johns Hopkins University Press,
74
JURACY ASSMANN SARAIVA
quais o humor de Thackeray3 se transforma em paliativo. Portanto,
ao sintetizar a disparidade entre Shelley e Thackeray, Aires não só
compreende os próprios sentimentos, como reafirma a opção pelo
equilíbrio ou pelo regramento das convenções e evita quer a
rendição ao patético, quer a própria transformação em objeto de
sarcasmo. A experienciação artística é, portanto, a via para a
lucidez, e a ela recorre o sujeito enunciador para alcançar a solução
dos impasses pessoais.
Na elaboração dos dados, que incorporam a reflexão do
Memorial sobre sua natureza de linguagem, tecem-se também os
liames que o interligam à história literária e que devem ser
recuperados pelo leitor. Tais vínculos iluminam significados e
assinalam a identidade do texto como manifestação da literatura:
enquanto o conteúdo da história se complementa por ligações
semânticas, o recorte formal do discurso filia o diário a outros
textos para transgredir ou confirmar sua concepção modal ou
genérica.
O nome Tristão, associado ao de Wagner, é uma das
rupturas que cinde a leitura linear do Memorial, promovendo o
estabelecimento de relações com as personagens lendárias. Sendo
marca, o nome Tristão adere à personagem que conquista o amor de
Fidélia e declara sua função de oponente a Aires, assim como
cavalheiro medieval o fora, na lenda bretã, ao velho rei Marcos; da
mesma forma, a sobreposição do nome do Conselheiro –
Marcondes– ao do rei fundamenta a identificação entre ambos.
Portanto, o diálogo entre Tristão e Isolda e Memorial de Aires
instala-se a partir da identidade do fundo temático; todavia, o
conflito do velho, cujas intenções amorosas são preteridas por
incidir a escolha feminina sobre um jovem, sofre modificações.
de Baltimore, USA, e o poema em questão encontra-se disponível em
http://www.helpself.com/love-poems/poem-2q.htm.
3
A menção do narrador a William M. Thackeray (1811-1863) visa assinalar o
humor satírico do romancista e jornalista inglês, que contrasta com a melancolia do poeta
Shelley. Ao recorrer aos escritores, Machado de Machado de Assis expõe a si mesmo
como leitor. Por informação de Glória Viana, sabe-se que Machado possuía o romance
Vanity Fair, a novel without a hero (1848) em sua biblioteca (Viana, 2001: 222).
MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA
75
Elas provêm do deslocamento tempo-espacial e, sobretudo,
do emudecimento da voz épica: as aventuras heróicas da Idade
Média dão lugar à repetição monocórdia dos fatos cotidianos da
Idade Moderna; a imensidão e a multiplicidade das florestas e dos
palácios restringem-se ao acanhamento da urbe não-cosmopolita e
ao reduto privativo dos salões; a univocidade da voz épica –
outorgada pelo conhecimento dos fatos– é substituída pelo
relativismo da voz subjetiva, pois embora as palavras pertençam ao
narrador, ele já não domina a verdade.
A passagem de um universo a outro e a radicalidade da
mudança do ponto de vista narrativo fixam modificações na ação:
enquanto em Tristão e Isolda há o confronto explícito entre
personagens, no texto memorialístico a ação se concentra no âmago
do protagonista, que duela consigo próprio, cindido entre a
submissão ao desejo ou às regras do convencionalismo social. No
espaço dos anseios reprimidos, a indignação e o furor do rei
ultrajado são substituídos pela conformidade do Conselheiro;
dissolve-se a ação pela introspecção e pelos circunlóquios, que
reprisam o sentimento de desvalia e a impotência. Porque a
submissão de Aires não é real, mas aparente, sua rebeldia irrompe
sob a dubiedade do discurso, ainda que ele se resguarde do
confronto pelo recurso às máximas da opinião. Assim, Aires é,
contrariamente a Marcos, um indivíduo caracterizado pela
impotência: as circunstâncias que envolvem sua decrepitude não só
o condicionam a reprimir ou a mascarar os apelos da sensualidade,
como também o impedem de enunciar livremente suas aspirações,
sendo a censura no agir ratificada pela censura no dizer.
Os vínculos intertextuais definem-se, portanto, a partir da
similaridade temática, que enfatiza, igualmente, a diferença entre os
textos. No universo de Aires desaparece a arte do sortilégio: poções
mágicas, duendes e feiticeiras, que ajudam a retraçar o destino
humano, não fazem parte do dia a dia de indivíduos que se pautam
pela racionalização e pela incredulidade. De acordo com o
significado literal das afirmações do narrador, a verossimilhança do
diário se fundamenta no verídico, do qual se exclui o fabuloso.
76
JURACY ASSMANN SARAIVA
Entretanto, se este pertence ao passado, o fictício corrói, no
presente, o verídico, cuja representação é a finalidade do texto
memorialístico. Ao mimetizar o real, o diário acaba por denunciar a
ficcionalidade que nele se introduz pela distância interposta entre o
sujeito e sua mise en scène. Essa situação é radicalizada, porque o
espectador –Aires–, aparentemente incrédulo, sucumbe à sedução
de encenações, alheias ou próprias. Situada nos limites do fictício, a
lenda bretã dele se nutre; voltado para a realidade, o diário aí se
conjuga à característica essencial do romanesco, eliminando as
fronteiras entre o real e o ficcional.
A equiparação entre Tristão e Isolda e Memorial de Aires
demonstra que características fundamentais do primeiro –o recurso
ao fantasioso e o extravasamento emocional– não desaparecem no
segundo, mas são aí submetidas a outro processo de construção, de
que resulta um novo contrato formal. Sob esse aspecto, o verso de
Shelley –“I can give not what men call love”, integrado à
construtividade do texto– reafirma ainda a similaridade temática das
narrativas, embora insista na impotência sexual como distinção
entre o Conselheiro e o rei.
Na progressão da narrativa, Aires repete o verso ou a ele se
refere, modificando-o ou adaptando-o à variação do contexto, e as
diferentes nuances conotativas bem como a própria contestação ao
autor dos versos reforçam a idéia da inaptidão genesíaca do
Conselheiro, enquanto elucidam, também, sua inconformidade com
essa circunstância. Para superar o impasse, Aires sublima o
sentimento amoroso e atribui seu interesse ao esteticismo, para que
possa idealizar, tanto o objeto de sedução, como seus sentimentos.
A adoração estéril é o meio de que dispõe para superar sua condição
de exilado dos afetos, pois permite tornar manifesto o que de outro
modo lhe seria interdito.
Esse procedimento contribui para elucidar a funcionalidade
do verso de Shelley: por um lado, ele estabelece o ponto de
aproximação com o fulcro temático de Tristão e Isolda e, por outro,
justifica, sob o aspecto semântico e formal, a seleção das epígrafes:
MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA
77
Em Lisboa, sobre o mar,
Barcas novas mandei lavrar...
Cantiga de Joham Zorro.
Para veer meu amigo
Que talhou preyto comigo,
Alá vou, madre,
Para veer meu amado
Que mig’a preyto talhado,
Alá vou, madre.
Cantiga d’el-rei Dom Denis (Assis 1095).
Sobrepostas ao Memorial, as cantigas medievais parecem
sugerir a função do interpretante, Aires, a quem cabe elucidar os
sentimentos de Fidélia; ainda, por sua conexão com o passado
remoto, introduzem a idéia da inevitabilidade da separação, que
decorre de uma determinação temporal, implícita ao ciclo biológico.
Paralelamente, as cantigas suscitam o confronto com o verso de
Shelley, pois ele mimetiza o procedimento tautológico das cantigas
medievais, ao reproduzir os dois elementos que nelas se interligam:
o verso e a repetição. Por sua forma versificada e por sintetizar o
conflito da subjetividade narradora, o verso é o refrão, ou seja, a
“alma” não da cantiga, mas do diário de Aires; já a repetição do
verso articula-se à repetição da idéia nas cantigas, embora sob
variações, ou seja, ao paralelismo.
É preciso registrar, porém, que as epígrafes, assim como o
título e à advertência, são dados paratextuais, isto é, eles revelam a
intervenção do editor no manuscrito e expressam sua interpretação a
respeito dele. Sendo a atividade final do ato de recomposição do
diário, as cantigas introduzem o ato de recepção, embora não
possam ser apreendidas pelo receptor antes que ele proceda à leitura
do diário e sem que as decodifique como um pronunciamento
metadiscursivo do editor.
78
JURACY ASSMANN SARAIVA
Como outras inscrições da autorreferencialidade, as cantigas
de amigo também se investem de um caráter paradoxal.
Semanticamente, coadunam-se ao enredo visível, para indiciar o
sentimento amoroso de Fidélia e sua inevitável separação dos pais
adotivos; formalmente, apontam –como expressão máxima da
artificialidade poética–, para o convencionalismo das regras que
orientam a execução do Memorial. Entre essas regras se inclui a da
afirmação de um sentido explícito, para validar um sentido
encoberto, o que se constata nas declarações contraditórias de
Aires: coagido a omitir os sentimentos pessoais e a transcrever,
principalmente, os de Fidélia, Aires assume a função poética do
trovador, para, contraditoriamente, traduzir a manifestação elegíaca
própria. Logo, são as convenções que articulam a narrativa e os
fenômenos líricos medievais, evidenciando tanto os artifícios da
execução do diário, quanto o artifício que o sustenta: o amor de
Aires por Fidélia é um fingimento, cuja dilemática situação lhe
proporciona a ilusão de vida.
A idéia de que a estruturação do Memorial de Aires se
alicerça sobre o paradoxo é confirmada pelas relações intertextuais,
que revelam o traço opositivo entre os pronunciamentos
metaliterários do editor e do narrador e as referências por elas
instauradas. A especificidade da poesia romântica de Shelley, do
romanesco medieval e das cantigas invade o diário e deteriora os
procedimentos da representação mimética, inoculando-lhe seus
caracteres. Com efeito, na análise da realidade, o Conselheiro
transgride a norma do distanciamento em relação a seu objeto, e a
aparente concretude do real não apenas se esvai sob a transparência
de máscaras, como se deixa invadir pelas ficções do analista. Por
conseguinte, a concepção realista da arte –explicitamente evocada
por Aires em suas metadeclarações ao defender o princípio formal
da adesão ao verídico e os recursos da análise e da observação–
convive com a emoção e a fantasia subjetivistas, além de se
defrontar com as dubiedades do real.
Conclui-se que, por meio da autorreferencialidade e das
relações intertextuais, o Memorial expõe sua natureza ambígua:
MEMORIAL DE AIRES: AUTORREFERENCIALIDADE E DENÚNCIA
79
sendo pretensamente real, é integralmente fictício. Nele se
confundem o coloquialismo da linguagem e os artifícios de sua
realização; o pseudorrealismo do narrador e o romanesco de sua
perspectiva; as restrições aos limites do cotidiano e os ilimitados
estímulos da práxis estética. Embora estabeleça a representação
mimética do real como norma primeira, o diário amplia o horizonte
dessa representação, integrando-a ao universo do literário;
simultaneamente, projeta o questionamento quanto à veracidade do
real, cujas fronteiras passam a confundir-se com as do imaginário.
Esse caráter paradoxal do diário incita o leitor a buscar
respostas no movimento circular que engloba o desdobramento do
texto sobre si mesmo e sua correlação com outros textos. Todavia, o
desvelamento que resulta dessa inflexão não se apresenta como
impasse, senão como um meio de garantir a impraticabilidade da
apreensão ingênua dos enunciados e como forma de acentuar a
tensão implícita ao Memorial e que as epígrafes claramente
denunciam: representar e mostrar-se como objeto de representação.
Na transparência dessa tensão, o diário referenda seu estatuto de
artefato e se expõe como testemunho do fazer literário de seu autor.
Ao acolher, adaptar, reelaborar ou transgredir convenções,
Machado de Assis não só sublinha a artificialidade da estruturação
discursiva do Memorial de Aires, como demonstra a intangibilidade
dos sentidos ao mesmo tempo em que desmistifica a utopia do
realismo em arte.
REFERÊNCIAS:
ASSIS, Joaquim Jose Maria Machado de: “Memorial de Aires”. Obra completa. Vol. 1. Rio
de Janeiro: Aguilar, 1986.
BOSI, Alfredo: O enigma do olhar. São Paulo: Ática, 1999.
PAES, José Paulo: “Um aprendiz de morto”. Gregos e baianos. São Paulo: Brasiliense,
1985.
TACCA, Oscar: Las voces de la novela. 2.ª ed. Madrid: Gredos, 1978.
VIANA, Glória: “Revendo a Biblioteca de Machado de Assis.” A Biblioteca de Machado de
Assis. Org. José Luís Jobim. Rio de Janeiro: Topbooks, 2001.
VEREDAS 12 (Santiago de Compostela, 2009), pp. 81-106
Critérios canonizadores num sistema
literário deficitário (o caso galego para
1974-1978)1
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
Universidade da Corunha - Grupo Galabra
Neste artigo é estudado um alargado corpus bibliográfico secundário em relação
a como foi construído o conhecimento sobre o Sistema Literário Galego de
1974-1978. Dele abstraímos os critérios que conduziram à seleção,
estabelecimento e canonização dum determinado conhecimento sobre os limites
deste sistema nessa altura e identificamos os principais agentes responsáveis por
uma construção que explica tanto as lacunas e as deficiências nesse saber
canonizado como a inclusão ou exclusão posterior de determinadas práticas ou
repertórios no sistema literário galego do período em causa.
Estabelecemos os critérios delimitadores e hierarquizadores utilizados para o
estudo do período 1974-1978 porque, nesta altura, o critério dito filológico (em
virtude do qual o sintagma “literatura galega” é identificado apenas com aquelas
práticas consideradas literárias efetuadas em língua galega) ainda não é
unanimemente assumido como identificador pela totalidade da crítica que se
ocupa deste sistema literário periférico em processo de construção, com défices
na sua estrutura e funcionamento e em relação dialética (ou em concorrência
1
Este trabalho inclui-se no projeto de investigação FISEMPOGA (“Fabricação e
Socialização de Ideias num Sistema Emergente durante um Período de Mudança Política.
Galiza 1968-1982”) subsidiado pola DGPyTC do Governo da Espanha entre os anos 20092011 (FFI2008-05335/FISO).
82
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
polo mesmo espaço social) com um sistema autónomo e fortemente
institucionalizado dito espanhol. Esta classe de estudos permitem contemplar,
portanto, quer o caráter dinâmico de processos canonizadores quer a sua natureza
construída e não teleológica.
PALAVRAS-CHAVE: Canonização, Regras, Défices, Sistema Literário,Transição
política, Galiza.
The aim of this article is to study a wide corpus of secondary
bibliography in relation with how the knowledge about Galician Literary System
was built from 1974 to 1978. From it, we abstract the criteria leading to the
selection, establishment and canonization of a certain knowledge about the limits
of that system at the time and we identify the main agents responsible for a
construction that explains the gaps and faults of that canonized knowledge, like
the subsequent inclusion or exclusion of certain practices or repertoires in the
Galician Literary System we focus.
We establish delimitating and categorizing criteria used for the study of
the period 1974-1978 because by that time the so-called philological criterion
(according to which the label “Galician literature” is only identified with those
literary practices made in Galician language) is not unanimously assumed as an
identifier by the whole of the critics focusing on this peripheric literary system
under a process of construction, with deficits in its structure and functioning, and
maintaining a dialectical relationship (or struggling for the same social space)
with an autonomous and highly institutionalized system named Spanish.
Therefore, this kind of studies allow us to contemplate the dynamic character of
canonizing processes, as well as its constructed and non-teleological nature.
KEY WORDS: Canonization, Rules, Déficcits, Literary System, Political Rules,
Transition, Galiza.
Neste trabalho analisamos os critérios utilizados desde os
finais da década de setenta do século XX no campo da crítica
literária da Galiza para delimitar e identificar o Sistema Literário
Galego (SLG) entre 1974 e 1978. Selecionamos este assunto
porque, apesar da importância do estudo dos critérios utilizados
para a definição (individuação) dos diversos sistemas literários (van
Rees 1983: 286), a investigação sobre as margens ou as condições
de aplicabilidade das normas delimitadoras ou identificadoras não
ocupa um volume de reflexão equivalente na bibliografia sobre o
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
83
SLG, nem abordadas do ponto de vista histórico, nem topográfico
(para os enclaves), nem quanto às relações deste sistema periférico
com o Sistema Literário (em) Espanhol (SLE) -com o qual concorre
historicamente pelo mesmo espaço social-, com o campo nacional
galego ou com os diversos discursos identitários propostos.2
Da mesma maneira, detetámos esta lacuna no estudo de
momentos e estádios (como os que são objeto tanto deste artigo
[SLG em 1974-1978] como do projeto em que se integra [SLG em
1968-1982]) em que este sistema pode ser caraterizado
fundamentalmente como deficitário em virtude dum insuficiente
grau de autonomia e institucionalização, ou, por outras palavras, de
escassa suficiência sistémica (entendida pelo professor Torres Feijó
[2000: 970 e ss.] como o mantimento da continuidade, da
identidade e da estabilidade dum sistema cultural sem que estes
traços sejam alterados em dependência de agentes, instituições ou
sistemas alheios).
Para a seleção do corpus de materiais através dos quais nos
aproximarmos dos critérios e dos processos de fabricação deste tipo
de conhecimento sobre o SLG de 1974-1978, consideramos, por um
lado, o índice de impacto dos produtos determinados, esteja esse
impacto circunscrito ao campo da historiografia e da crítica
literária/ cultural ou alargado a espaços mais extensos e
diversificados da população galega, assim como, por outro lado,
levamos também em conta a utilidade específica dos trabalhos
críticos concretos para a consecução dos objetivos marcados.3
Em virtude destes critérios de impacto e utilidade específica,
2
De acordo com os trabalhos do professor Elias J. Torres Feijó (2004: 429 e ss.)
entendemos por enclave a «secçom do sistema cultural situada num território
geograficamente afastado da comunidade originária, configurando um espaço no qual as
pessoas e as instituiçons presentes mantenhem relaçons específicas entre elas e com os
seus homólogos da metrópole» (Samartim e Cordeiro Rua 2009: 179). Igualmente, e de
maneira funcional, entendemos por “campo nacional” o lugar do espaço social onde está a
ser construída a comunidade política imaginada, como inerentemente limitada e
(relativamente) soberana (vid. Anderson 2007 [1983]: 23).
3
Ao se tratar duma abordagem qualitativa dos materiais, não quantitativa, o
corpus bibliográfico foi selecionado levando em conta os princípios de diversificação e de
saturação (Pires 1997: 113-169).
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
84
e após verificarmos que outros estudos similares utilizam no básico
também esta tipologia de materiais (veja-se González-Millán 1996:
323-4, também para a função concreta de cada uma das fontes),
analisamos os principais trabalhos monográficos destinados ao
público especializado (que abordam geralmente um aspeto ou um
género específico), a totalidade das histórias da literatura e dos
manuais publicados com posterioridade ao período do nosso estudo
e várias antologias e livros de texto destinados ao ensino secundário
ou, no caso das histórias da literatura e manuais especializados,
também universitário. Entendemos que assim atendemos uma
variada tipologia de produtos que, por um lado, permitem o acesso
às normas valorativas próprias da crítica académica (ou
universitária, colocada, segundo van Rees [1983: 397], no topo das
práticas institucionais legitimadoras) e, por outro lado, são o
suficientemente indicativos das linhas de discurso centrais e do grau
de fixação e promoção no nível geral das ideias assentes na
atualidade e socializadas entre 1979 e 2008 quanto à estrutura e o
funcionamento do SLG entre 1974 e 1978. Por último, interessa-nos
chamar a atenção para a estreita relação existente entre o campo do
ensino e a (re)produção do conhecimento sobre o SLG do período
em causa e, neste sentido, apontamos apenas que a estrutura da
instituição (para o caso a educativa) condiciona em grande medida a
produção (e a função) do conhecimento e dos significados
elaborados no seu seio.
1. O Critério Filológico
A análise da bibliografia referida ao SLG de 1974 a 1978
permite-nos afirmar que existe prática unanimidade à hora de
selecionar as regras de obrigado cumprimento para a inclusão de
materiais no supradito sistema nessa altura ou, por outras palavras,
que todos os trabalhos analisados aplicam um mesmo critério básico
para integrar um dado elemento no conceito “literatura galega”.
Referimo-nos ao acompanhamento unânime nos trabalhos
analisados do critério filológico proposto já em 1963 (19813: 11)
por Ricardo Carballo Calero (“Carvalho” desde os anos oitenta),
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
85
professor da Universidade de Santiago de Compostela (USC) e
principal filólogo e crítico literário do grupo organizado em volta da
Editorial Galaxia (o que desfruta do maior grau de
institucionalização do SLG no período em foco):
Técnicamente, é o idioma empregado o que caracteriza ás
distintas literaturas. [...] Nen a nacencia do autor nen os ambientes
descritos [outras normas em discussão no período em estudo] son
criterios axeitados para determinar a incrusión das obras dentro
dos marcos dunha ou outra literatura. [...] Entendo por literatura
galega a literatura en galego. [...] Mais niste libro é o idioma o que
nos serve pra escolmar o material do noso estudo. Seguimos un
criterio, pois, filolóxico, que nos parez o máis científico, xa que o
idioma é o estormento da literatura.4
A aceitação do “critério filológico” assim estabelecido
significa afirmar (na terminologia habitual dos materiais
consultados) que unicamente é “literatura galega” aquela escrita em
língua galega (Vázquez Cuesta 1980: 622; Tarrío Varela 1994: 9;
Rodríguez 1996: 6; Vilavedra 1999: 15; Villanueva 2000:
“Presentación”). Desta maneira, tal como acontece na bibliografia
analisada, a unanimidade na hora de estabelecer o critério filológico
como elemento normativo necessário exclui a priori do corpus do
SLG qualquer prática tida por literária em qualquer outra língua
diferente do galego e, concretamente, delimita a posição do
castelhano (o outro idioma a ocupar espaços sociais na Galiza) em
relação com este sistema. Porém, a situação em que se desenvolve
historicamente o SLG (são aqui referidos expressamente nos
trabalhos consultados períodos iniciais na construção do sistema ou
4
Os itálicos (nossos) chamam a atenção para a estratégia utilizada por Carballo
Calero para reforçar a sua proposta normativa: atribuir caráter técnico e científico à regra
que deseja naturalizar (e o facto de denominar “filológico” este critério, não nos parece
alheio a esta estratégia).
86
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
momentos de conjunturas políticas especialmente adversas para o
uso publico da língua galega) justificam para a parte da crítica que
se ocupa desta questão, por um lado, a inclusão complementar e
instrumental nas análises do SLG da produção em castelhano dos
agentes bilíngues (em função da melhor explicação da sua produção
em galego)5 e, por outro lado, a flexibilidade na aplicação do
critério filológico (em função, como veremos, de diferentes critérios
secundários).
Verificamos nos materiais analisados, então, que a crítica
literária reconhece a dificuldade de aplicação estrita do critério
filológico em períodos de deficiente institucionalização e escassa
autonomia relativa (tal como acontece em grande medida entre
1974 e 1978) ou, em geral, naqueles em que as circunstâncias sóciopolíticas não favorecem a utilização da língua galega, e que esta
mesma crítica aponta neste sentido para a necessidade de adaptação
na aplicação deste critério; contudo, nem sempre esta parte da
crítica coloca argumentos explicativos do grau exato de
flexibilidade que deve alcançar o critério filológico nessas
circunstâncias, nem em função de que critérios alternativos ou
secundários deve ser limitada esta regra básica, nem da natureza da
relação da produção em castelhano com os diferentes espaços
ocupados pelo SLG numas específicas circunstâncias sóciopolíticas coincidentes com fases problemáticas na sua construção.6
Em geral, estas questões são apagadas com o recurso a uma
alegada «tendencia histórica cara ao unilingüismo» (Rodríguez,
1996: 7) sustentada na tomada de consciência identitária diferencial
5
Este argumento está presente já na própria formulação do critério filológico por
3
Carballo Calero em 1963 (1981 : 11-13) e é defendido posteriormente por produtores que
exemplificam diferentes posições crítico-metodológicas (Vázquez Cuesta 1980: 622;
Vilavedra, 1999: 16 ou Rodríguez, 1996: 6-7).
6
Julgamos que só González-Millán (2003: 16-18) reflexiona sobre os
condicionamentos para a implementação deste critério nos enclaves do SLG. Será
igualmente González-Millán (1998: 18) quem aponte para a necessidade de colocar no
foco da investigación «as múltiples interaccións discursivas que determinan e configuran o
espacio sociopolítico e cultural no que emerxe o criterio filolóxico, as relacións entre o
fenómeno lingüístico, o literario e o nacionalitario, e as articulacións que lexitiman cada
un deles como formacións sociodiscursivas específicas».
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
87
da comunidade galega, nos planos individual e coletivo, que é
ligada diretamente com a progressiva assunção e a correspondente
habilitação do instrumento linguístico autóctone. Esta ligação entre
aumento da consciência identitária e utilização da língua galega,
digamo-lo ainda que seja de passagem, é consubstancial aos
nacionalismos etno-filológicos (é o caso do galego) e é entendida
pelo conjunto da historiografia literária analisada de maneira
teleológica, em coerência com o papel unanimemente central por
ela atribuído ao critério filológico no SLG e correlativamente à
consideração geral da língua galega como principal (ou único)
elemento etno-identitário diferencial imprescindível da comunidade
galega.
É preciso apontar, contudo, que as pesquisas realizadas no
seio do projeto Fisempoga indicam que este consenso geral em
volta da aceitação do critério filológico como única norma
sistémica (critérios delimitadores que balizam sistemas culturais
[Torres Feijó, 2004: 429-430]) ainda não é totalmente unânime na
década de setenta (veja-se também Rodríguez Fernández [1999: 5051], onde sustenta que este consenso chega só a partir de 1980).
Neste sentido, verificam-se entre 1974 e 1978 tanto práticas (de
grupos à esquerda e à direita do sistema) como algumas tomadas de
posição que questionam o monopólio da língua galega como
elemento delimitador da pertença à “literatura galega” (estas
últimas provenientes mormente do exterior do SLG: Díaz-Plaja,
1974: 18; Varela, 1976: 115 ou, já em inícios de oitenta, Ribera
Llopis, 1982: 12); porém, sim achamos várias provas da
estabilidade alcançada por esse critério delimitador no SLG durante
o regime autonómico7.
7
Por exemplo a forte oposição com que a prática unanimidade dos grupos
presentes no SLG recebem a concessão do Prémio Nadal no ano 1990 a Alfredo Conde, até
esse momento produtor modelar (e monolíngue) no SLG, polo romance (em espanhol) Los
otros días. A função normativa da língua galega nesse estado de campo fai com que o
abandono por Conde da norma sistémica já relativamente estabilizada, assim como o
reforçamento do referente de oposição que supõe a decisão deste agente de concorrer a um
dos mais importantes prémios do SLE, traga como consequência o imediato afastamento
da centralidade que ocupava até esse momento (Caño 2009) e explicam que Carlos
Casares, principal agente do grupo Galaxia na altura, afirme no semanário A Nosa Terra
88
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
Ora, como indicámos, a pesar da centralidade concedida
pela crítica e a historiografia literária ao critério filológico para a
delimitação deste sistema literário (e cultural) periférico ao longo
do seu processo de construção, as fases nas quais lhe é reconhecida
alguma instabilidade nunca são fixadas cronologicamente (para
além de periodizações em maior ou menor medida gerais e
canónicas,8 assim como tampouco são explicadas as caraterísticas
ou as circunstâncias que fazem que em estádios do SLG similares a
estes quanto a estrutura e funcionamento não seja apontada uma
modulação equivalente na aplicação do critério filológico (com a
correspondente repercussão na análise do sistema).
De qualquer maneira, nos materiais consultados
encontramos algumas referências a esta questão procedentes dos
principais representantes das duas orientações metodológicas
maioritárias no campo da crítica literária galega posterior a 1978.
Ainda que o estudo dos postulados teórico-metodológicos
utilizados no campo da crítica literária galega do período
autonómico não é assunto específico deste trabalho, essas
referências aos critérios utilizados para complementar ou (de)limitar
o grau de aplicabilidade do critério filológico indicam que as regras
propostas estão em relação direta com a metodologia de análise
adotada, motivo polo qual faremos aqui referência, em primeiro
em 11 de Janeiro de 1991 que “tiñamos conquistado un territorio para a nosa lingua e esa
foi unha das accións mais importantes nos últimos 20 anos. Escreber na Galiza era
escreber en galego e só en galego, conquista moi importante e que parecía definitiva. Que
un escritor dea un paso atrás na conquista deste espacio literario resúltame
incomprensible” (X. Carballa: “Escritores e intelectuais galegos poñen en cuestión a
decisión de Alfredo Conde”).
8
Como o “Prerrexurdimento” (Vilavedra, 1999: 16 e Cochón e Vilavedra 1995:
11), o “Rexurdimento” (Cochón e Vilavedra, 1995: 11) ou a “inmediata posguerra” ([19391950?] Vilavedra 1999: 16). O professor Anxo Tarrío (2008: 248) localiza o préRexurdimento entre 1840 e 1861 e o Rexurdimento entre 1862 e 1906; refere também a
«tensión conflictiva entre la [cultura] elaborada a través del idioma propio de Galicia, es
decir, el gallego, y el superpuesto, el castellano, desde, cuando menos, la segunda mitad
del siglo XV» (pág. 249), afirmando na continuação que, «por todo esto, aunque en este
trabajo nos fijaremos sobre todo en la producción literaria en gallego, habra que tener
siempre en cuenta la realidad del sistema literario hegemónico del castellano en España, y
también en Galicia, en los períodos que nos hemos propuesto observar [(os dous citados e
a “Época Nós” [1916-1936])]» (pág. 250).
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
89
lugar, às propostas teóricas ao efeito do professor Francisco
Rodríguez Sánchez (1985, 1990 e 1996), principal fabricador de
ideias ('idea-marker', vid. Even-Zohar, 2005: 210-211) da esquerda
nacionalista galega do após-guerra para assuntos culturais e
linguístico-literários e, neste sentido, máximo representante nesta
altura da conceição crítica que Xoán González-Millán (1994a)
chamou “nacionalismo literário”; doutro lado, aludiremos à análise
desta questão feita pela professora Dolores Vilavedra (sobretudo
1999), enquadrável na parte da crítica literária galega de fins do
século XX que utiliza nos seus trabalhos terminologia própria de
abordagens relacionais (sistémicas e de campo).
2. O Critério Identitário
Em primeiro lugar, Francisco Rodríguez condiciona a
suficiência do critério filológico ao compromisso social e nacional
que um determinado produto ou produtor tem necessariamente que
atingir para ser considerado por esta parte da crítica como integrado
na “literatura galega”. Ainda que o professor Francisco Rodríguez
estabelece a posição do seu grupo (o partido comunista patriótico
Unión do Povo Galego [UPG]) já no início da década de setenta
(Grial 30, 1970: 455-462), quanto aponta para os vários
compromissos que devem contrair textos e produtores para serem
incluídos dentro do âmbito de referência do sintagma “literatura
galega”, é a partir da década seguinte (e, sobretudo, em Rodríguez,
1990 e 1996) quando, perante a relativa centralidade alcançada no
campo da crítica literária galega de critérios legitimadores de
natureza estética e comercial até então claramente secundários no
SLG (González-Millán, 1994b: 33), o líder da crítica nacionalitária
expressa de maneira categórica que (Rodríguez, 1996: 9; itálico no
original)
é literatura galega a que está feita en galego e responde á
conciencia de Galiza como realidade cultural autónoma,
diferenciada. O uso da lingua aparece, pois, como unha condición
90
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
necesaria, malia poida non ser suficiente, para focalizar a
9
realidade propria, desde dentro dela.
De acordo com a literalidade das palavras de Francisco
Rodríguez, em última instância, a aplicação do que podemos
denominar critério identitário (a consciência da identidade
diferenciada da Galiza) exigiria a exclusão de facto das margens do
SLG duma parte da produção em galego hoje existente. Ao não
verificarmos este extremo nos trabalhos que acompanham implícita
ou explicitamente esta proposta crítica (tampouco na Historia da
literatura galega que encabeça o trabalho de Francisco Rodríguez
de 1996) entendemos que este critério identitário é funcional no
plano identificador (delimitador de inclusão/ exclusão no sistema
em foco) apenas se o considerarmos de maneira inclusiva, isto é, se
entendermos que a simples utilização da língua galega significa
imediatamente a posta em prática da reclamada consciência
identitária diferencial.10
Porém, este critério identitário sim tem claramente uma
função hierarquizadora, de atribuição duma posição mais ou menos
central dum determinado repertório no cânone literário galego (isto
é, o critério identitário é complementar e opera sobre o conjunto da
9
Esta ideia já tinha sido expressada por Rodríguez em “A especialidade da nosa
historia e da nosa literatura” (A Nosa Terra 66, 15/06/1979). Em 1985 (pág. 11) Francisco
Rodríguez recorre à legitimidade que fornece a tradição (elemento central na
configuração do SLG historicamente considerado e, também, no período focado neste
trabalho) para acrescentar ao filológico este outro critério identificador da literatura
galega: “Nós podemos engadir, ademais, que é aquela que está feita desde dentro do país.
[...] Neste sentido, outro dos nosos críticos literários de xuícios ben avaliados, Uxio Carré
Aldao, di na sua 'Literatura Gallega' [Ed. Maucci, Barcelona, 1911, pág. 36] que a nosa
literatura é aquela que recolle os sentimentos e as aspiracións do noso pobo”.
10
Sobre o “extraordinario poder asignado al criterio filológico”, responsável desta
leitura inclusiva em virtude da qual «toda la producción literaria escrita en Galicia era
considerada una parte del panteón nacional», veja-se González-Millán (2002: 229). O
próprio González-Millán (1994b: 27) sintetiza esta posição indicando que, para a parte da
crítica que ele denomina “nacionalismo literario”, «no canon deberían entrar
exclusivamente textos de temática social e intencionalidade reivindicativa, e só aqueles
autores que proxectasen unha imaxe paradigmática da comunidade nacional».
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
91
produção do sistema como uma caraterística necessária para a
seleção dos repertórios que devem ser valorados e reproduzidos).
Do nosso ponto de vista, entendemos que apesar de ser expressado
como se de uma norma sistémica se tratasse (regra de obrigado
cumprimento para integrar um determinado sistema cultural), o que
vimos chamando critério identitário funciona de facto como uma
norma de repertório, já que não delimita a pertença ao SLG mas
sim carateriza e hierarquiza a posição de determinados elementos
no seu interior.11
Por outro lado, a expressão deste critério como
complementar ao filológico, já seja para caraterizar o SLG ou para
determinar as suas margens, introduz neste sistema um elemento
legitimizador de natureza político-ideológica (qualidade
compartilhada, por outro lado, com o critério dito filológico) neste
caso dificilmente identificável ou quantificável de forma empírica
(tampouco é achegado qualquer método ou procedimento para a
deteção desta qualidade). Nesse sentido, a formulação deste critério
heterónomo (em quanto gerado no exterior dos campos de produção
cultural) constitui um ideologema (tanto no sentido de Bakhtin
como de Kristeva) que atribui explicitamente uma função política e
ideológica aos produtos enquadrados no SLG, por mais que, como
veremos, não unicamente (Rodríguez, 1990: 10-11; carregado no
original):
A nosa literatura até 1.936, de forma clara, é
fundamentalmente unha literatura tracexada para a
desalienación cultural colectiva, formando parte dun esforzo
de conformación dunha consciéncia nacional galega. Ten, pois,
unha clara funcionalidade social e mesmo política, ainda que
non a poidamos reducir a esta categoria.
11
Torres Feijó (2004: 437) define este conceito de norma de repertório como os
«elementos que, nom sendo apresentados como delimitadores de sistemas, som
promovidos como elementos que dotam de maior genuinidade ao entendimento e
elaboraçom dos produtos dessa comunidade como próprios da mesma ou constituem as
especifidades de que se nutrem as tendências subsistémicas».
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
92
Esta norma complementar está sustentada numa
metodologia de análise de base materialista que considera “os textos
literários produtos históricos e, polo tanto, cun sentido en relación
co proceso da história” (Rodríguez 1990: 5), que parte da
consideração da Galiza como comunidade cultural e politicamente
dominada e que, em consequência, não oculta a sua
intencionalidade política (cifrada no caráter social e nacionalitário
atribuído ao conjunto dos produtos culturais), da qual dependerá
qualquer outra função conferida aos produtos literários. A
centralidade deste «critério histórico-político interno» (Rodríguez,
1990: 19) neste método de análise explica, em última instância, as
tomadas de posição do “nacionalismo literário” tanto antes como,
para o aspeto que agora nos ocupa, depois de 1978, quando, perante
o processo de institucionalização experimentado no SLG desde o
início do período autonómico, esta parte da crítica rejeita as práticas
e os modelos virados para o mercado ou afastados em maior ou
menor grau da primordial função social e nacionalitária por ele
imputada aos produtos e aos produtores literários (veja-se
González-Millán, 1994b: 23-42).
3. O Critério “Sistémico”
Esta análise heterónoma do SLG é discutida abertamente
pela secção da crítica que, partindo de análises de carácter
relacional com base nas teorias de Lotman, Even-Zohar ou
Bourdieu e referenciando-se em grande medida nos contributos de
González-Millán para o caso galego, entende a literatura «como
sistema semiótico, como institución e como producto textual»
(Vilavedra, 1999: 23).12 Este setor da crítica alcunha de
12
Parece oportuno referirmos, ainda que seja de passagem, “Os problemas dunha
lectura (poli)sistémica da literatura” colocados por González-Millán (2001) na última fase
da sua trajetória. Em síntese do professor Arturo Casas (2007: 66; itálico no original),
nesse trabalho González-Millán “analiza a que considera ambigüidade teórica de EvenZohar e o seu excesivo débito co positivismo funcionalista, co formalismo de Tinianov e
cunha concepción semiótica da literatura insuficientemente aberta e en cambio abstracta de
máis, motivo este polo que a teoría dos polisistemas daría en promover unha serie de leis
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
93
“perspectivista” (pág. 19) o critério identitário proposto pelos
nacionalistas galegos, considerando-o dificilmente compatível com
«o estudio da literatura galega como un sistema autónomo e
autóctono». Em troca, uma das principais defensoras destas
posições metodológicas, a professora Dolores Vilavedra (1999: 17),
propõe o que ela denomina criterio sistémico (isto é, “a
consideración da literatura como un conxunto ou rede de elementos
interdependentes no que cada un se define fronte ós restantes pola
función que desenvolve na antedita rede”) em primeira instância
como um método de análise capaz de renovar os estudos literários,
«superar o 'textocentrismo'» e «atopar un novo paradigma
epistemolóxico, que se pretende empírico e funcional, fronte ó
carácter histórico-hermenéutico do paradigma no que
tradicionalmente se viñan xerando as teorías literárias» (pp. 16-17).
Com esta perspetiva metodológica de orientação sistémica, os
trabalhos críticos e historiográficos aqui situados (saídos
fundamentalmente do âmbito da USC) pretendem abordar o SLG
como uma «institución lexitimamente autónoma» (Vilavedra, 1999:
28), mas também focam entre os seus objetivos “integrar outros
[critérios] coma o filolóxico ou mesmo parcialmente o [...]
denominado 'perspectivista'”, que nos vimos identificando como
identitário (Vilavedra, 1999: 21; itálico nosso).
Comecemos então por analisar a questão da referida
integração dos critérios filológico e identitário no alegado
“criterio sistémico” através dos argumentos com que Dolores
Vilavedra (1999: 20-21) sustenta a consideração do que parece ser
também um novo critério normativo como «moi axeitado para
matizar o filolóxico á hora de delimitar o campo de estudio do que
aquí estamos a denominar 'literatura galega'»:
En primeiro lugar, porque nos permite incluír nel todos aqueles
productos literarios de intención estética (é dicir, non mimética)
ditas universais mediante un proceso inductivo e esencialista, parco na atención a
situacións sistémicas diferenciadas e perigosamente homoxeneizante”.
94
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
[...] que se emiten prioritariamente no espacio público galego e
que se someten tamén prioritariamente ós mecanismos de
distribución (editoriais), avaliación e institucionalización
(premios, crítica, etc.) autóctonos. A isto habería que engadir
outro requisito: que os productores e consumidores compartan un
mínimo consenso repertorial non tanto entendido como suma de
coñecementos individuais [...] senón como conxunto de normas
estético-literarias colectivamente asumidas (pensemos, por
exemplo, nos modelos xenéricos). En segundo lugar, [...] o xa
comentado carácter dinámico da noción de sistema permite
acoller as ocasionais excepcións ó criterio filolóxico xa
mencionadas, e explica perfectamente a ambigua posición de
escritores como Manuel Murguía ou José Ángel Valente, [...].
Finalmente, [...], obríganos a non descoidar a análise do
comportamento de instancias coma o lector ou o código
lingüístico, que participan dun xeito moi específico na
configuración do sistema literario galego como sistema autónomo
[itálico nosso].
De acordo com a citação recolhida acima, não nos parece
incorreto afirmar que da aplicação coerente do chamado “criterio
sistémico” como método de análise deveria resultar a integração
dentro das margens dum sistema literário/ cultural específico (aqui
o SLG), num período histórico concreto [aqui 1974-1978], de todos
os elementos (produtos, produtores, instituições, consumidores,
repertórios e mercado) que conformam uma determinada rede de
relações estabelecida de acordo com as normas de diferente
natureza por eles total ou parcialmente compartilhadas (aceitação
em maior ou menor medida geral de normas que podemos fazer
coincidir com o denominado aqui por Vilavedra consenso
repertorial). Na nossa análise, isto significa que para a correta
aplicação das metodologias de base relacional ao estudo de sistemas
culturais deficitários quanto ao grau de autonomia e
institucionalização (em estádios iniciais de construção ou, em todo
o caso, com défices na sua suficiência sistémica), a instabilidade ou
a falta de unanimidade normativa verificada nestes sistemas exige,
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
95
em primeiro lugar, a fixação, a hierarquização e a determinação do
grau de abrangência e centralidade do conjunto das normas
(sistémicas ou de repertório) que funcionam em todo ou em parte do
espaço social em foco num período delimitado; e, em segundo
lugar, a inclusão na análise da rede de relações (e, portanto, no
sistema concreto) de todas essas normas e elementos, o que
significa incluir como fazendo parte do SLG toda a produção
gerada ao amparo dalguma dessas normas, também a produção não
escrita em galego quando o critério filológico tal como definido
anteriormente para o SLG não é o (único) critério legitimador
proposto (como verificámos que acontece no período 1974-1978
para o caso galego).
Deste ponto de vista, as “excepcións ó criterio filolóxico”
terám a ver fundamentalmente com o nível de aplicação dum
critério complementar que Vilavedra chama aqui consenso
repertorial, entendido como o «conxunto de normas [...]
colectivamente asumidas» num período concreto num determinado
sistema ou, por outras palavras, a aplicação do critério filológico
não poderá ser apriorística e estará em dependência das leis que
explicam o funcionamento do sistema em cada momento.13
Desde uma interpretação que se pretende inclusiva das
palavras de Vilavedra no que têm de proposta metodológica, a
participação dum produtor ou dos seus produtos no SLG guardaria
estreita relação com o (re)conhecimento do (e no) próprio sistema e
com a aceitação das regras que o regem, assim como com a própria
consciência e vontade de participar verificada através das várias
tomadas de posição que conformam uma determinada trajetória.14
13
Vários trabalhos de membros do grupo Galabra sobre estádios diferentes do
processo de construção do SLG indicam que as exceções ao critério filológico não são tão
“ocasionais” como refere Vilavedra na esclarecedora “Introducción” à Historia da
literatura galega que comentamos. Por outro lado, o que a professora compostelã chama
“consenso repertorial” pode ser identificado com o que a teoria da instituição literária de
Peter U. Hohendahl (1989: 34) chama “normativa”, conceito que «refire non aos idiolectos
individuais dos autores senón ao conxunto de fórmulas codificadas do sistema literario»
(recolhido por González-Millán, 1994b: 16).
14
Achamos que esta ideia geral está expressada mais claramente em Cochón e
Vilavedra (1995: 11; itálico nosso): «O primeiro criterio que orientou a selección dos
96
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
Neste sentido, convém indicar que, em estreita relação com a
consciência da Galiza como entidade cultural diferenciada, também
a crítica nacionalista contempla nas suas análises a “conciéncia
literária” (Rodríguez 1996: 9) dos agentes como elemento capaz de
perfilar as margens de aplicabilidade do critério filológico como
norma sistémica (Rodríguez 1985: 8 e 1996: 7); isto é, a
consciência, a vontade ou a expetativa dum produtor de fazer parte
dum determinado sistema -confirmadas através da análise da sua
trajetória (diremos nós)-, justificaria a sua inclusão no sistema em
foco.
Esta confluência entre a crítica nacionalista e a de base
relacional leva-nos a abordar a questão ainda pendente da apontada
integração (dita parcelar) do critério identitário proposto por
Francisco Rodríguez no que Dolores Vilavedra denomina “criterio
sistémico”. Em princípio, o caráter pretensamente abrangente e
totalizador das teorias sistémicas explica que entre os objetivos
focados desde esta metodologia esteja necessariamente o estudo das
relações de (inter)dependência entre o campo literário e o campo
nacional, cujos processos de construção caminham de mãos dadas
em sistemas como o galego ao longo de numerosas fases da sua
história (nomeadamente nas caraterizadas pela escassa
institucionalização política e cultural). De facto, a constatação desta
relação dialética entre construção do sistema literário e construção
nacional explica por si mesma, numa aplicação coerente das teorias
autores que figuran no volume foi o lingüístico. Así, foron tidos en consideración todos
aqueles que teñen cando menos publicada unha obra en lingua galega. Mais este criterio
flexibilízase cando se trata dos autores do noso Rexurdimento e Prerrexurdimento: é obvio
que a relevancia do factor lingüístico era percibida daquela como non necesariamente
determinante para a configuración do sistema literario galego polos seus membros» (isto
é, nas nossas palavras, que a língua galega não era considerada uma norma sistémica polos
participantes na precária rede existente na altura). Por outro lado, parece oportuno
explicitar que a participação num sistema contempla a possibilidade tanto de aceitar
determinadas regras existentes como de impugná-las total ou parcialmente e tentar impor
outras novas; o conceito de défices projetivos proposto pelo professor Torres Feijó (2000:
975 e ss) como carências sistémicas «que indicam um vazio que se quer preencher (ou
umha presença que se quer substituir), um projecto que se quer realizar», cobra especial
rendabilidade neste ponto à hora de explicar determinadas tomadas de posição em função
de estados concretos do campo.
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
97
de base relacional, a necessidade de «demarcar a función que [para
alguns grupos e agentes] cumpren obras e autores na conformación
histórica da conciéncia nacional”» (Rodríguez, 1990: 19).
De conformidade com o dito acima e com a utilização como
método de análise do que a professora da USC chama “criterio
sistémico”, Vilavedra (1999: 18-19) afirma contemplar o estudo da
função jogada pela consciência nacional no processo de construção
do sistema literário. Porém, imediatamente a seguir, intervém como
agente canonizadora tomando posição na luita metodológica (e
ideológica) pelos instrumentos de legitimação que tem lugar no
campo da crítica literária galega nos anos noventa e atribui função
normativa ao referido como “criterio sistémico”, para negar o
carácter hierarquizador que a crítica nacionalista atribui ao critério
identitário (Vilavedra, 1999: 18; itálico nosso):
Na miña opinión, esta tarefa [o estudo do papel atribuído à
consciência nacional na conformação do sistema literário] entra
plenamente dentro das competencias tanto do historiador coma do
estudioso da literatura, pero sen embargo non debe postularse, por
razóns evidentes, como criterio de xerarquización artística.
As “razóns evidentes” alegadas pela professora Vilavedra
(1999: 18) para não atribuir ao critério identitário valor
hierarquizador têm a ver, por um lado, com que da sua aplicação
geral resultaria a marginação do cânone daqueles repertórios aos
quais não fosse atribuído valor como conformadores da alegada
consciência nacional e, por outro lado, com quê instituições ou
agentes seriam eventualmente responsáveis da atribuição desse
valor e da fixação dos “lindes desa hipotética valencia de
'galeguidade'” (quiçá a própria crítica nacionalista, responsável pola
elaboração do critério...).
Do nosso ponto de vista, nas propostas de Dolores Vilavedra
98
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
subjazem problemas de dous tipos na altura de afirmar as
avantagens que “o criterio sistémico presenta, á hora de delimitar as
estremas da literatura galega” (Vilavedra, 1999: 21). Em primeiro
lugar, julgamos que existe uma confusão entre a função própria da
metodologia (as ferramentas teóricas e procedimentais com as quais
o agente investigador se aproxima do objeto de estudo e que
possibilitam o conhecimento deste) e a função delimitadora ou
hierarquizadora das normas que atuam num determinado sistema
num dado momento e que são objeto do estudo do pessoal
investigador. Em segundo lugar, esta atribuição de função
normativa (própria do objeto analisado) ao instrumento da análise (a
metodologia sistémica), não só localiza no mesmo plano a
metodologia e o objeto de estudo que esta deve atingir, mas também
explica a intervenção como agente canonizador de quem defende no
campo os seus próprios instrumentos de legitimação.15 Como
resultado disto, esta representante da crítica dita sistémica não
aplica o “criterio sistémico” apenas como método interpretativo,
mas propõe que este funcione como norma sistémica; ao mesmo
tempo, a investigadora atua de facto como agente canonizador,
apesar de que o acompanhamento das teorias relacionais de base
sistémica e sociológica não passa, entendemos, por intervir no
processo de canonização para afirmar ou negar a validez de normas
concretas (que tenham a função que os diferentes grupos lhe
atribuírem no interior do sistema), mas sim pela tomada de
consciência da própria função desenvolvida e da posição ocupada
em cada momento como agente investigador (não canonizador) e
analisar o campo em questão para abstrair as regras que atuam num
determinado processo de canonização, explicando a função que
15
«In interpreting, evaluating and ranking literary works, they practice at an object
level what, in an empirical-theoretical perspective, they are supposed to analyze at a metalevel. In preferring the role of agent of symbolic production to that of analyst of this
process, their reflection on principles underlying a relational mode of analysis is almost
nil» (van Rees e Dorleijn 2001: 335). Repare-se ainda em que a alegada interferência entre
o papel de agente da produção simbólica e o de analista do processo nem se coloca
necessariamente no lado da consciência nem da parte exclusiva duma determinada posição
crítica; já a feminista Toril Moi (2002: 42) sustentava que nenhuma crítica é “imparcial” e
que toda a gente fala duma determinada posição conformada por fatores culturais, sociais,
políticos e pessoais.
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
99
estas normas desempenham num concreto estádio do mesmo, que
grupos ou agentes as propõem ou lhes atribuem valor, com que
interesses e objetivos, o grau de unanimidade ou centralidade delas,
os problemas que levanta a sua aplicação, etc.
Por outra parte, já referimos que para Vilavedra o principal
problema colocado pelas propostas heterónomas de Francisco
Rodríguez consiste em que o princípio de hierarquização externa
que defende o grupo nacionalista (estabelecido por meio do que
vimos chamando até aqui critério identitário) significa subordinar a
autonomia do SLG aos interesses defendidos no campo nacional.
Não é objeto dum trabalho destas caraterísticas a valorização da
oportunidade ou da eficácia (política, cultural, etc.) dos critérios
hierarquizadores propostos pelos vários grupos que atuam no
campo da crítica galega após 1978, ainda que sim julgamos
conveniente a análise dos seus efeitos para o estudo do sistema e,
sobretudo, a sua avaliação como método de análise e aproximação
dum determinado objeto de estudo (neste trabalho, em último
termo, o processo de construção do SLG para o período 19741978). Neste sentido, o principal problema que encontramos nas
propostas teóricas e analíticas defendidas por Francisco Rodríguez
não tem a ver necessariamente com o submetimento dos interesses
políticos aos científicos (são conhecidas as óbvias relações entre
ambos os campos, e mais em sistemas emergentes como o galego),
mas sobretudo estão em função da resistência deste grupo a aceitar
as mudanças nas leis que regem no campo literário (e político) na
Galiza autonómica a respeito da Galiza franquista, o que se traduz
na aplicação de idênticos métodos de análise e interpretação a
realidades sociais que já funcionam de maneira diferente, dando
como resultado uma compreensão parcelar (e parcial) do objeto de
estudo.
Achamos que uma boa mostra desta falta de adaptação das
propostas metodológicas ao estudo da realidade sócio-cultural
surgida da transição política no Estado Espanhol é que o corpus
teórico e analítico formulado pelo professor Rodríguez nos anos
setenta é reproduzido praticamente na sua literalidade até bem
100
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
entrada a década de noventa do século passado (vejam-se, neste
sentido, a continuidade das ideias já presentes em 1970 nos seus
trabalhos de 1979, 1985, 1990 e 1996) e aplicado nos trabalhos
desta parte da crítica até a atualidade, facto que reforça a ideia da
falta de atualização dos instrumentos analíticos que conduz à
insistência numa mesma interpretação para um objeto de estudo
configurado já de jeito substancialmente diferente em virtude da
função identitária atribuída prioritariamente à literatura.16
Esta continuidade nos postulados interpretativos da corrente
central do nacionalismo galego explica-se em grande medida em
função das luitas no interior do campo galeguista17 entre os grupos
partidários do que poderíamos denominar a resistência sistémica
(com influência considerável até 1982) e os que defendem passar à
ofensiva após a consolidação do regime político autonómico e
impulsionar (fundamentalmente desde a instituição educativa e o
mercado) novos elementos repertorias que aproveitem as
oportunidades fornecidas pelo novo estado do campo político e
permitam concorrer com o SLE através da promoção, por exemplo,
«duma literatura destinada ao público infantil e juvenil ou [d]os
denominados subgéneros narrativos, que funcionam em sistemas
mais normalizados como uma das posições com maior sucesso entre
o público e, portanto, com um mercado maior e economicamente
mas rentável» (Rodríguez Fernández 1999: 123). Pela contra,
16
Também as ideias geradas nos anos setenta por este grupo em volta da questão
(sócio-)linguística são reproduzidas até a atualidade, constituindo o corpus ideológico
central e marcando a praxe do nacionalismo galego neste campo (vejam-se as várias reedições, de 1976 a 1998, do livro também de Francisco Rodríguez Conflito lingüístico e
ideoloxia na Galiza). Sobre a reprodução de ideias sem questionar a sua validez para
entender um objeto de estudo em mudança pode ser consultado Itamar Even-Zohar (2002),
trabalho que o professor de Tel Aviv dedica ao caso galego.
17
Entendemos por galeguismo o «movimento de reivindicaçom da identidade
diferenciada da Galiza com independência do grau de autonomia política proposto para a
colectividade galega polos vários grupos ou agentes autoproclamados galeguistas, assi
como o processo de fabricaçom de ideias que apoiam e justificam os vários graus desta
reivindicaçom. Quando este movimento vise a reinvidicaçom [sic] política da Galiza como
ente nacional diferenciado dum referente de oposiçom identificado com o par Castela/
Espanha, estaremos falando em nacionalismo, umha das várias ideias possíveis de
galeguismo» (Samartim, 2005: 10).
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
101
chefiados por Francisco Rodríguez, os grupos enquadráveis na
resistência sistémica entendem que um SLG autónomo (Rodríguez
Fernández 1999: 121)
só se poderá alcançar a se eliminar a projecção do sistema literário
espanhol na Galiza, a se fortalecerem um conjunto de plataformas
institucionais que promovam em especial os produtos literários
galegos, unido a uma intervenção dos campos do poder que
defenda com exclusividade ao sistema minorizado.
A partir então das apreciações de Rodríguez Fernández
(1999: 120 e ss.) e em relação com os termos resistência simbólica
(González-Millán, 1991) e suficiência sistémica (Torres Feijó,
2004), entendemos que o referido conceito de resistência sistémica
abrange as tomadas de posição e as estratégias político-culturais que
atribuem ao conjunto dos elementos que participam num sistema
periférico em processo de autonomização (de construção da
suficiência sistémica) uma função eminentemente defensiva a
respeito do referente de oposição. Atuando em virtude duma lógica
heterónoma que fará depender o seu programa (regras, materiais,
ações, posições...) do contraste e da distinção com o referente de
oposição, os grupos e agentes que sustentam esta posição reagem
quer contra a incorporação de novos elementos repertoriais (sobre
resistência às transferências e à planificação vid Even-Zohar 1998)
quer contra a promoção e legitimação dos velhos materiais que
entendem inapropriados por não cumprirem a função defensiva e
distintiva indicada. Em troco, desde as posições de resistência são
reivindicados como principais elementos constitutivos e
legitimadores a identidade diferenciada da comunidade, o carácter
periférico e dependente do sistema próprio, e o valor modelar da
tradição e dos materiais por ela consagrados. Estas tomadas de
posição e estratégias substanciadas na resistência são verificadas
também (no caso galego) com posterioridade a o sistema cultural
102
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
experimentar um forte aumento no seu grau de autonomia e
institucionalização, sendo executadas por grupos que não
reconhecem como suficiente a autonomia alcançada em virtude de
que (ainda) não foi completado o programa elaborado na anterior
situação de (maior) dependência.
Ora, se no pólo da crítica nacionalista verificamos a
permanência dos mesmos postulados teóricos para o estudo do SLG
em duas fases diferentes na sua configuração (enlaçadas
substancialmente pelo período objeto da nossa investigação), na
parte das propostas críticas mais viradas para a autonomia do feito
literário encontramos, por seu lado, algumas interpretações da
literatura como fenómeno eminentemente estético.18 Neste ponto, o
agente que melhor exemplifica a defesa do que, acompanhando a
terminologia utilizada até o de agora, poderíamos denominar
critério estético, Ramón Gutiérrez Izquierdo (2000, et al 1991 e
2003), contempla também de maneira secundária o estudo das
relações entre o campo literário e os campos do poder, fazendo-o no
seu caso do ponto de vista das referências ao “contexto” (entendido
este como o conjunto dos elementos extraliterários a que um texto
fai referência ou que explicam a produção de determinados textos) e
apontando para a existência de «prexuízos» e «reduccionismos»
(Gutiérrez Izquierdo 2000: 9) na parte da crítica que fai depender as
suas análises de questões externas ao texto literário (como da
“vontade” e do “patriotismo”, elementos que indigitam
implicitamente o grupo nacionalista); em troca, esta crítica
esteticista defende posições claramente situadas a favor de análises
internas, textocêntricas e, em última instância, também dificilmente
objetiváveis (pág. 38):
as suxestións e emocións que suscita unha obra literaria residen
nela mesma e na súa dimensión artística, non no coñecemento do
18
Para as questões relacionadas com processos de autonomização e estetização de
sistemas literários periféricos podem ser consultados os trabalhos de G. Jusdanis (1991) ou
de D. Kiberd (1995).
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
103
contexto. [...] A historia da literatura debe procurar estudiar as
obras en si, destacando os seus valores estéticos, pero tamén debe
incluír algunha información sobre o contexto, o que permite un
coñecemento máis completo do fenómeno literario e, xa que logo,
facilita interpretacións parciais da obra, que enriquecen a súa
19
dimensión plurisignificativa.
A apresentação deste critério estético completa a
identificação das normas com que a crítica galega posterior a 1978
delimita e hierarquiza os repertórios presentes no SLG no lustro
imediatamente anterior a este ano e permite cotejar estes critérios
com os resultados dos trabalhos realizados pela equipa que está a
desenvolver o projeto Fisempoga. De acordo com isto podemos
concluir afirmando que a identificação feita pela crítica literária do
período autonómico do uso da língua galega como única norma
sistémica (critério dito filológico) e de duas normas de repertório
principais (o critério identitário e, com menor impacto crítico, o
estético) dificilmente permite explicar o funcionamento do SLG
num período, como o compreendido entre 1974-1978 (lapso
temporal ao qual se refere a informação levantada do corpus
utilizado neste trabalho), caraterizado pola discussão normativa e
polos défices na sua aplicação.20 Desta maneira, atribuindo o
carácter de norma sistémica unicamente ao critério filológico
19
Dá para ver que esta proposta minoritária está sustentada em critérios
valorativos que descansam preferentemente no «carácter singular da personalidade
creadora» (Gutiérrez Izquierdo 2000: 7), no «carácter representativo dos trazos formais e
temáticos do xénero ou autor estudiado» e na «eficacia estética» (pág. 8) «de obras
significativas, vinculadas sempre co contexto e coas peculiares circunstancias que
rodearon e rodean a producción en lingua galega, pero sen caer no discurso que reduce o
labor dos nosos escritores a unha especie de crónica social ou a un simple exemplo de
vontade e patriotismo» (pág. 9).
20
Em trabalhos anteriores referimos já, «por um lado, a discussom do carácter da
língua galega como (única) norma sistémica de alguns grupos e agentes actuantes no fim
do franquismo [1968-1973] e na transiçom [1974-1978] no SCG [Sistema Cultural
Galego] e, por outro lado, a aplicaçom deficitária polos intervinientes neste sistema
cultural do pretendido carácter de norma sistémica (défices derivados em grande parte da
situaçom política existente sob o regime franquista)» (Cordeiro Rua e Samartim, 2008:
165).
104
ROBERTO LÓPEZ-IGLESIAS SAMARTIM
(estabilizado só durante a autonomia política concedida pela
constituição espanhola plebiscitada em Dezembro de 1978), a
crítica literária galega reduz o conjunto de elementos integráveis na
rede de relações que chamamos SLG entre 1974 e 1978 e exclui da
delimitação e da análise do funcionamento deste sistema nesse
período os repertórios (regras e materiais; também os
eventualmente compartilhados com o SLE) relacionados com
tomadas de posição como as que afirmam, por exemplo para o SLG
de 1976, que «[l]a literatura gallega se produce del mismo modo
que sus hablantes: de modo bilingüe» (Varela 1976: 115).
Assim mesmo, os défices apontados na aplicação de
ferramentas metodológicas relacionais (abordados em referência ao
critério chamado sistémico) e o facto de limitar as normas de
repertório aos critérios identitário e estético não contribui para
contemplar nas análises deste sistema outras normas que funcionam
no período em causa e que, polo mesmo, são imprescindíveis para
compreendermos o funcionamento e o processo de construção
sistémica. Referimo-nos, nomeadamente, à função legitimadora e
hierarquizadora concedida à tradição polo conjunto dos grupos
presentes no SLG entre o franquismo e a transição (já analisada
para o caso daqueles mais centrais e institucionalizados em relação
com o determinante campo da codificação linguística em Samartim
2005).
REFERÊNCIAS:
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nacionalismo, Fondo de Cultura Económica: México, 2007 [1983].
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Mulleres en Galicia. Galicia e outros pobos da Península, Sada, Ediciós do Castro, 2007 :
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COCHÓN, I. & VILAVEDRA, D. (coord.): Diccionario da literatura galega, vol. 1
“Autores”, Galaxia: Vigo, 1995.
CRITÉRIOS CANONIZADORES NUM SISTEMA LITERÁRIO DEFICITÁRIO
105
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Narrativas da infidelidade em
Sagarana, de Guimarães Rosa
REGINA ZILBERMAN
UFRGS; FAPA
Fidelidade e infidelidade são comportamentos humanos corporificados por duas
figuras míticas da Antiguidade: Helena e Penélope, personagens dos épicos
Ilíada e Odisseia, atribuídos a Homero. Da literatura clássica migraram para a
ficção contemporânea. Em Sagarana, de Guimarães Rosa, o tema da
infidelidade, e seu avesso, a fidelidade, pode ser descrito a partir de suas
aproximações às míticas Helena e Penélope.
Palavras-chave:
infidelidade.
Guimarães
Rosa;
Sagarana;
personagem
feminina;
Faithfulness and unfaithfulness are human behaviors represented by two
mythical figures from Antiquity: Helen and Penelope, characters from the
homeric epic poems, Iliad and Odyssey. From the classic literature, they
migrated to the modern fiction. In Guimarães Rosa’s Sagarana, the theme of
unfaithfulness, and its opposite, the faithfulness, can be described from the
viewpoint of its proximity to the mythical Helen and Penelope.
Key words: Guimarães Rosa; Sagarana; female character; unfaithfulness.
REGINA ZILBERMAN
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Mirem-se no exemplo
Daquelas mulheres de Atenas
Despem-se pros maridos
Bravos guerreiros de Atenas
Chico Buarque de Holanda
1. Entre Penélopes e Helenas
No século XIX, a ficção brasileira balançou entre Penélopes
e Helenas. Penélope em terras de Pindorama é Carolina, que
protagoniza A viuvinha, uma das primeiras novelas de José de
Alencar (1829-1877). Comparece igualmente em um conto que
Machado de Assis (1839-1908) publicou no Jornal das Famílias em
1868, “A mulher de preto”, conforme sugere o narrador da história,
ainda que, nesse caso, a heroína, Madalena, igualmente uma falsa
viúva, ao invés de aguardar o marido distante, vai em busca dele, no
Rio de Janeiro. Até Capitu, enquanto espera Bentinho liberar-se da
promessa de sua mãe, que queria fazê-lo padre, e obter o diploma
em Direito em São Paulo, tem sua faceta Penélope, ainda que dela
suspeite o vigilante José Dias, olheiro do futuro bacharel.
As Helenas também comparecem em número notável,
embora seja aos olhos dos parceiros masculinos que, seguidamente,
se apresentem sob o ângulo da mulher pouco confiável, ao mesmo
tempo simulada e sedutora, fêmea de difícil definição. A Lúcia, que
protagoniza Lucíola, de José de Alencar, exibe identidade
escorregadia, a começar pela sua denominação. Batizada Maria da
Glória, adota o nome de uma amiga quando essa morre, para figurar
com uma espécie de apelido, de alcunha ou metáfora na capa do
livro assinado pelo romancista cearense.
Foi, contudo, Machado de Assis que desenhou a Helenamatriz da ficção nacional, modelo que migra de um romance para
outro, adensando-se. O folhetim que Machado publicou em 1876,
originalmente no jornal O Globo e, depois, em livro, pela Garnier,
NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA
109
apresenta o formato original da personagem, já que a personagem
lendária dá nome não apenas à protagonista do texto, mas também à
obra inteira, sugerindo a associação entre as duas figuras.
Como se sabe, a Helena dos helênicos dispôs, entre seus
conterrâneos, de substancial trajetória literária: aparece nas duas
epopeias, a Ilíada e a Odisseia, atribuídas a Homero (século VIII?),
depois em poema de Estesícoro (c. 632 a. C.- c. 553 a.C.) datado do
século VI a. C., e ocupa a imaginação de pensadores e artistas do
século V a. C., bastando lembrar a Apologia de Helena, do sofista
Górgias (480 a. C.-375 a. C.), e os dramas de Eurípedes (485 a. C.406 a. C.), As troianas, de 415 a. C., e Helena, de 412 a. C.
Nessas obras, Helena é invariavelmente uma figura dotada
de grande beleza, qualidade que transportou para suas
representações modernas, como se verifica em A trágica história da
vida e morte do Doutor Fausto, de Christopher Marlowe (15641593), ou no Fausto, de Johan Wolfgang von Goethe (1749-1832).
É também mulher sedutora, a ponto de reverter a fortuna em seu
favor, como mostra Eurípedes, em As troianas, e Górgias, na
Apologia, capaz de argumentar e justificar-se, até o ponto de caírem
as acusações que pesam sobre sua pessoa. Mas nunca deixa de se
mostrar simulada e pouco confiável, propriedades que se
evidenciam desde a Odisseia, de Homero, onde tem curta
participação em episódio exemplar para sua caracterização. Nesse
trecho da epopeia, que ocupa o canto IV, ela relembra para
Telêmaco, filho de Ulisses, e diante de Menelau, outra vez seu
marido e de novo em Esparta, a saudade de sua pátria, quando
estava em Troia, longe da terra natal. É então contestada pelo
cônjuge, que recorda o incidente do cavalo de madeira, em cujo
interior os aqueus se escondiam, com o fito de tomar a cidade
inimiga. Nessa ocasião, Helena, junto com as troianas, imitava a
voz dos soldados gregos, visando fazê-los denunciarem-se e, com
isso, prejudicar o estratagema que os levou à vitória:
Las troyanas rompieron a llorar con fuerza, mas mi corazón se
alegraba, porque ya ansiaba regresar rápidamente a mi casa y
lamentaba la obcecación que me otorgó Afrodita cuando me
REGINA ZILBERMAN
110
condujo allí lejos de mi patria, alejándome de mi hija, de mi cama
y de mi marido, que no es inferior a nadie ni en juicio ni en porte.
Y el rubio Menelao le contestó y dijo:
(...) Tres veces lo acercaste a palpar la cóncava trampa y llamaste
a los mejores dánaos, designando a cada uno por su nombre,
imitando la voz de las esposas de cada uno de los argivos.
También yo y el hijo de Tideo y el divino Odiseo, sentados en el
centro, lo oímos cuando nos llamaste. Nosotros dos tratamos de
echar a andar para salir o responder luego desde dentro. Pero
Odiseo lo impidió y nos contuvo, aunque mucho lo deseábamos.
Así que los demás hijos de los aqueos quedaron en silencio, y sólo
Anticlo deseaba contestarte con su palabra. Pero Odiseo apretó su
fuerte mano reciamente sobre la boca y salvó a todos los aqueos
(Homero, 1960: 48).
Na obra de Machado de Assis, a protagonista faz jus ao
nome, pois também ela oscila entre duas pátrias, a de sua família
original, pois protege o pai, Salvador, e a da família que a adotou,
os Vale, não confessando a Estácio a falsidade de sua posição.
Nesse romance de recorte romântico e posicionamento conservador,
porém, Helena não alcança a redenção, pois não dispõe de
suficiente habilidade para conciliar as duas paternidades, a falsa,
que a beneficia, e a verdadeira, que a prejudica. Na impossibilidade
de harmonizar os contrários, acaba vítima das contradições que
armou.
Virgília, sua sucessora e personagem de Memórias póstumas
de Brás Cubas, é mais bem sucedida, podendo trocar de casa, sem
mudar de personalidade. Talvez a diferença entre as duas moças,
portadoras, ambas, de denominações de procedência clássica, uma
grega, outra latina, seja de ordem econômica, já que, nascida em
berço de ouro e bem casada, Virgília não precisa se proteger da
miséria. Mas a esposa de Lobo Neves e amante de Brás Cubas
arrisca sua honra, que preserva por meio do melhor dos ardis –a
simulação, jamais falando de um parceiro quando está na presença
NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA
111
do outro, que é tanto mais eficaz, quanto mais ancorada no encanto
pessoal e na beleza.
Sofia, de Quincas Borba, é mais uma personagem cuja
nomeação é devedora da migração de vocábulos gregos para a
língua portuguesa. Também ela não diverge do paradigma, embora
esse só seja amplamente confirmado em Dom Casmurro, quando
entra em cena Capitolina, a fêmea que talvez se equipare ao Zeus
Capitolino celebrado, mas evitado por Olavo Bilac (1865-1918)
poucos anos antes, em “Profissão de fé”:1
Não quero o Zeus Capitolino
Hercúleo e belo,
Talhar no mármore divino
Com o camartelo (Bilac,1959: 39).
Capitu sintetiza os atributos de Helena, já que, conforme
Bento Santiago, seu namorado e, depois, marido, é bela, sedutora,
simulada e pouco confiável. Tal como sua precursora, alterna-se
entre duas pátrias, não a dos pais, mas a dos amados e amantes,
arriscando-se mesmo a perder a segurança do lar em nome de
aventura, na expectativa, provavelmente, de recuperar o conforto
anterior. Capitu acaba por não ter essa sorte, mas outra de suas
irmãs literárias, Fidélia, de Memorial de Aires, é bem sucedida, para
felicidade de todos, menos de seu admirador silencioso, o
Conselheiro Aires, que assistiu à lenta desconstrução dos protestos
de fidelidade por parte dessa viúva que pareceu, mas não foi, uma
autêntica Penélope, para conquistar e reter Tristão, o amado da vez.
1
Ao final do poema, é indicada sua data de criação: 1 de setembro de 1886.
REGINA ZILBERMAN
112
2. Penélopes e Helenas do sertão
Quando Guimarães Rosa (1908-1967) publicou Sagarana,
em 1946, o legado representado por Penélopes –poucas– e Helenas
–muitas– já se mostrava consolidado desde o começo do século XX.
Helenas visivelmente prevaricadoras já tinham protagonizado
narrativas como O marido da adúltera, de 1882, de Lúcio
Mendonça (1854-1909), Hóspede (talvez a melhor configuração da
Helena original em romance brasileiro), de 1888, de Pardal Mallet
(1864-1894), Mocidade morta, de 1899, de Gonzaga Duque (18631911), ou A esfinge, de 1911, de Afrânio Peixoto (1876-1947).
Independentemente da trajetória da narrativa fecundada pelos
propósitos estéticos da Semana de Arte Moderna e da vanguarda
modernista, paradigmas de representação do comportamento da
mulher se apresentavam ao escritor na qualidade de inspiração ou
de sugestão
Sagarana, diante desse padrão, tanto reproduz, quanto
subverte os modelos em circulação.
2.1. Pequenas Helenas
Quando eles se entopem de vinho
Costumam buscar um carinho
De outras falenas
Mas no fim da noite, aos pedaços
Quase sempre voltam pros braços
De suas pequenas, Helenas
Chico Buarque de Holanda
As Helenas são mais frequentes em Sagarana, aparecendo
em seis das nove narrativas que formam o conjunto do livro,
embora, nem sempre, sejam responsáveis pelos principais
acontecimentos. Em “O burrinho pedrês”, por exemplo, pertence ao
paradigma das Helenas a “namorada do Silvino” (Rosa, 1956: 46),
que Badu tomou, determinando o desejo de vingança por parte do
NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA
113
vaqueiro traído. Por causa disso, Badu é obrigado a domar um touro
furioso, jogado para cima dele pelo rival; pela mesma razão, o
Major Saulo, que comanda o grupo de peões e exerce grande
autoridade moral sobre os rapazes, pede a Francolim que observe o
Silvino: «é para vigiar o Silvino, todo o tempo, que ele quer mesmo
matar o Badu e tomar rumo. Agora, eu sei, tenho a certeza» (ib.:
51). Contudo, a vingança não se concretiza, pois a enchente acaba
levando o Silvino, enquanto que Badu, agarrado à cauda do burro
Sete-de-Ouros conduzido por Francolim, chega são e salvo, embora
bêbado, à fazenda do Major Saulo.
A Helena de “O burrinho pedrês” não tem corporalidade,
mas não deixa de prejudicar seus admiradores. A guerra teria sido
mais violenta, não fosse a intervenção da natureza, imprevista pelos
homens, que, encerrados em seus problemas, não perceberam o
avolumar das águas, que transformaram o Córrego da Fome em
torrente caudalosa, lavando os pecados do mundo, inclusive os de
Silvino, de Badu e da namorada de ambos.
A Helena de “Sarapalha” também não se materializa,
embora habite a memória dos dois primos, Ribeiro e Argemiro, que,
tomados pela malária, vivem de recordar a época em que o
primeiro, casado, tinha saúde e dinheiro, até perder a esposa e
deixar-se levar pela doença e pela febre. “Sarapalha” acompanha o
padrão lendário, embora não o apresente segundo a perspectiva
cronológica, já que a narrativa se concentra na atualidade dos
primos condenados pela maleita, até os acontecimentos passados
começarem a se revelar nas falas memorialistas das personagens:
Primo Argemiro já residia com Primo Ribeiro e a esposa deste,
quando aparece o boiadeiro, que «tinha ficado três dias na fazenda,
com desculpa de esperar outra ponta de gado... Não era a primeira
vez que ele se arranchava ali. Mas nunca ninguém tinha visto os
dois sozinhos...» (ib.: 135). O hóspede parece ter arrebatado a
esposa de Ribeiro, que foge com o estrangeiro, nunca mais
retornando.
114
REGINA ZILBERMAN
É a partir desse pressuposto que o relato de Guimarães Rosa
começa a emancipar-se do mito original: Ribeiro impede que
Argemiro persiga o par fujão, apesar da vontade deles de vingar-se:
Ai, Primo Ribeiro, por que foi que o senhor não me deixou ir atrás
deles, quando eles fugiram? Eu matava o homem e trazia minha
prima de volta p’ra trás... (ib.: 133)
Além disso, os dois parentes já estavam adoentados, quando
o fato aconteceu: “gente já estava amaleitados” (ib.: 133), conforme
observa Ribeiro. Por fim, o que parece mais decisivo, Argemiro
igualmente era apaixonado pela moça com quem Ribeiro casara,
amor que nascera antes mesmo do matrimônio do primo e que o
levara a abandonar tudo, para residir na casa do parente e manter-se
próximo da amada. De certo modo, Guimarães Rosa, em
“Sarapalha”, duplica as figuras masculinas, estabelecendo, ao
mesmo tempo, uma paradoxal triangulação entre eles, já que
Argemiro tanto espelha Ribeiro, quanto o boiadeiro, no primeiro
caso, porque é o amante abandonado, no outro, porque ele poderia
ter sido o motivador do adultério, fato que não aconteceu dada a
intromissão do sedutor estrangeiro.
Assim, “Sarapalha” substitui a dupla de rivais por um trio de
homens atraídos pela mesma mulher, a que se submetem, dado o
poder de encantamento e fascínio que a caracteriza. Sob este
prisma, Guimarães Rosa altera a composição masculina do mito
original, estabelecida, de um lado, pelos irmãos Menelau e
Agamemnon, de outro, pelo troiano Páris. Por sua vez, a
personagem feminina não aparece diretamente em cena, sendo tãosomente presença na memória de Argemiro, o ângulo menos
favorecido do triângulo, já que não corresponde ao marido, nem à
figura masculina que, procedendo de fora, desestabiliza o lar.
Argemiro é a metade de cada um desses, sem coincidir com eles, o
que acentua sua fragilidade; mas é também a presença mais
consistente da narrativa, já que suas recordações verbalizam o
passado. No lado oposto, coloca-se a personagem feminina, a mais
ausente, porém, pela mesma razão, a mais influente, desarticulando,
NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA
115
a cada vez em que é mencionada, a estabilidade já tão precária dos
seres masculinos restantes, os dois primos febris.
“Minha gente” é outra das narrativas que lida com o modelo
feminino traduzido pelo mito de Helena. Mas, nesse texto, ela tem
nome –Maria Irma– e aparência física digna de descrição bastante
detalhada: seu andar tem «ondular de pombo e o deslizar de
bailarina, porque o dorso alto dos seus pezinhos é uma das dez mil
belezas de Maria Irma.» (ib.:196). Mais adiante, o narrador dá conta
de outros atributos da moça, destacando os olhos, fator essencial na
descrição das personagens femininas e sedutoras nos contos de
Sagarana e já sugerido quando do desenho da esposa de Primo
Ribeiro, em “Sarapalha”:
E reparei que os olhos de Maria Irma são negros de verdade, tais,
que, para demarcar-lhes a pupila da iris, só o deus dos
muçulmanos, que vê uma formiga preta pernejar no mármore
preto, ou o gavião indaiê, que, ao lusco-fusco e em vôo beira
nuvens, localiza um anu pousado imóvel em chão de queimada.
(ib.: 196).
Só que a novela, narrada em primeira pessoa, apresenta a
perspectiva do homem que vem de fora –e da cidade, sendo
acolhido por seu tio Emílio, que o introduz no sutil jogo da política
local. Submetido às graças de Maria Irma, ele confessa seu amor e
seu desejo:
De repente, notei que estava com um pensamento mau: por que
não namoraria a minha prima? Que adoráveis não seriam seus
beijos... E as mãos?!... (...) Acariciar os seus braços bronzeados...
Por que não?... (ib.: 208-209)
Acaba, porém, vítima dos estratagemas da moça, que o usa,
para chegar a Ramiro, o rapaz da vila que almeja desposar. O
narrador acaba cedendo à armação da prima e deixa-se casar com
Armanda, “a de admirável boca e de olhos esplêndidos” (ib.: 227),
forma conveniente de terminar sua aventura de modo feliz.
116
REGINA ZILBERMAN
Outra Helena habita a história apresentada em “São
Marcos”, inserida na qualidade de relato metalinguístico. Trata-se
do episódio de Tião Tranjão, narrado por Aurísio, que conta como o
rapaz foi traído pela mulher, vingando-se, depois, por meio da reza
de São Marcos, a mesma que salvará José, o protagonista desse
texto, da cegueira e da maldição do feiticeiro João Mangolô.
Também “Conversa de bois” relata o adultério praticado pela mãe
de Tiãozinho, provocando a morte do pai do menino, transportado
no carro de bois, e a vingança dos animais, enquanto que “Corpo
fechado” dá conta da rivalidade entre Manuel Fulô e Targino, por
causa da noiva do primeiro, desejada pelo segundo.
Nos relatos citados, a mulher desempenha papel central,
embora, seguidamente, seja apenas matéria da recordação interior
ou do discurso de personagens (exceção feita à noiva de Manuel
Fulô, em “Corpo fechado”), que, da sua parte, são antes
testemunhas dos acontecimentos que seus agentes. O processo
colateraliza as figuras humanas, marginaliza-as do decurso da
narração, mas não perde de vista sua importância para o desfecho
dos fatos relatados. É como se a narrativa pendesse entre a
centralidade da figura feminina para o transcurso das ações
principais e a apresentação periférica de sua materialidade física,
situação que magnifica seu poder, tornado quase divino por força de
sua ausência palpável no momento em que os episódios estão sendo
passados aos interlocutores do narrador.
Cabe destacar ainda um aspecto relativo à construção dessas
personagens: transgressoras, por romperem os laços de fidelidade
que as unem a seus parceiros (como a namorada do Silvino, a
esposa do Primo Ribeiro, a filha do tio Emílio, Maria Irma, a
mulher de Tião Tranjão, a mãe de Tiãozinho), elas são também bem
sucedidas, já que seus novos companheiros não as abandonam.
Assim, elas não são criminalizadas, nem punidas; curiosa ou
paradoxalmente, o castigo, quando ocorre, atinge sobretudo o examado (Silvino, Primo Ribeiro, Primo Algemiro) e só
eventualmente o novo amante, como ocorre a Agenor Soronho, em
“Conversa de bois”.
NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA
117
Esse posicionamento é coerente com a conformação clássica
do mito de Helena, que, tendo causado, entre outros males, a guerra
entre aqueus e troianos, o que levou à destruição da cidade e da
família de Príamo, não sofre qualquer penalidade, exceto as
palavras amargas da vencida Hécuba, em As troianas, de Eurípedes,
ou a réplica de Menelau, no citado trecho da Odisseia. Implantando
no coração do sertão mineiro suas Helenas nativas, Guimarães Rosa
confirma o mito, dando continuidade, de modo, porém, nada
moralista, a uma tradição que remonta ao Romantismo nacional.
2.2. Penélopes impacientes
Quando eles embarcam soldados
Elas tecem longos bordados
Mil quarentenas
E quando eles voltam, sedentos
Querem arrancar, violentos
Carícias plenas, obscenas [...].
Chico Buarque de Holanda
Penélopes são personagens de mais difícil representação.
Paradigma da esposa fiel, que aguarda o retorno do parceiro,
garantindo a estabilidade do lar e a gestão da família, a figura de
Penélope arrisca-se à submissão e à subalternidade. Não é o caso da
rainha da Ítaca e companheira de Ulisses; também não é o caso das
personagens criadas por Erico Verissimo (1905-1975), que conferiu
a seres imaginários como Clarissa, em Saga, por exemplo, ou
Bibiana Terra, em O Continente -primeiro volume da trilogia O
tempo e o vento-, status de guerreiras domésticas, mulheres cuja
fibra depende de sua capacidade de resistir ao assédio do mundo
masculino, representado pelo poder, a riqueza e a autoridade.
Guimarães Rosa dá outra estatura ao mito de base. Uma de
suas representações mais provocadoras aparece em “A volta do
marido pródigo”, cujo título alude à situação original,
experimentada por Ulisses, só que vertida em timbre paródico. O
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REGINA ZILBERMAN
indigitado “marido pródigo” é Eulálio de Souza Salãthiel, o Lalino,
que trabalha na construção da estrada de rodagem entre Belo
Horizonte e São Paulo. É amado por sua esposa, Maria Rita,
conforme o depoimento de algumas personagens que conhecem o
casal, sendo que o próprio narrador informa que ela «o bem-queria
muito» (Rosa, 1956: 84). Contudo, nem Lalino está satisfeito com
sua vida, sentindo-se muito limitado no acanhado ambiente de
trabalho, nem Maria Rita é criatura de deixar os outros indiferentes,
pois, conforme sugere um diálogo entre personagens secundárias, o
Ramiro espanhol, outro dos trabalhadores engajados na construção
da estrada, ronda a mulher de Lalino; e, embora um deles comente
que “séria ela é” e que “ela gosta dele, muito” (ib.:. 79), o outro
retruca: «É, mas quem tem mulher bonita e nova, deve de trazer
debaixo de olho...» (ib.: 79).
Eis o que Lalino não faz; pelo contrário, desejoso de romper
suas estreitas fronteiras, pois nunca tinha passado «além de
Congonhas, na bitola larga, nem de Sabará, na bitolinha, e,
portanto, jamais pôs os pés na grande capital» (ib.: 80-81), resolve
partir, dirigindo-se a Belo Horizonte e, depois, para a «capital do
país» (ib.: 91). Não apenas abandona a mulher –a mesma que, numa
manhã em que «vendo que o marido não ia trabalhar, esperou (...) o
milagre de uma nova lua-de-mel. Enfeitou-se melhor, e, silenciosa,
com quieta vigilância, desenrolava, dedo a dedo, palmo a palmo, o
grande jogo, a teia sorrateira que às mulheres ninguém precisa de
ensinar» (ib.: 85)– como, para poder viajar, pede dinheiro
emprestado para o rival Ramiro, “negociando”, de certo modo, a
mulher Maria Rita, que encantava o outro.
Maria Rita não apenas fica desobrigada de aguardar o
marido aventureiro, como acaba por amigar-se com Ramiro: depois
de três meses, ela «estava morando com o espanhol» (ib.: 90).
Lalino, porém, retorna à casa, após ter passado por aventuras que,
segundo o narrador, «só podem ser pensadas e não contadas, porque
no meio houve demasia de imoralidade» (ib.: 91). Sem dinheiro e
sem mulher, ele vai em busca do auxílio do Major Anacleto, que
concorre à reeleição em sua terra. Lalino revela-se excelente cabo
NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA
119
eleitoral, conquistando votos para o Major até em redutos
oposicionistas. Sabendo ter sido um colaborador eficiente, o
“marido pródigo” pede ajuda a Oscar, filho de Anacleto, com o fito
de reconquistar Maria Rita.
Mais uma vez a Penélope sertaneja surpreende: pois, se se
recusara a aguardar o marido fujão, agora é a primeira a tomar sua
defesa, argumentando: «Fiquei com o espanhol por um castigo, mas
o Laio é que é meu marido, hei de gostar dele até na horinha d’eu
morrer!» (ib.: 112).
Ao final, é ela –conforme o narrador, «uma rapariga bonita,
em pranto, com grandes olhos pretos que pareciam os de uma
veadinha acuada em campo aberto» (ib.: 116)– quem pede ajuda ao
Major, visando alcançar a reconciliação, resultado obtido ao final
do relato.
Maria Rita é, assim, a mulher de um só homem, ainda que
tenha aceitado o comércio com o espanhol Ramiro, de certo modo
facilitado pelo marido. Outras duas senhoras, embora apresentem
semelhanças físicas com a esposa de Lalino, não agem da mesma
maneira.
Dona Silivana, esposa de Turíbio Todo, é a Penélope mais
impaciente do grupo feminino de Sagarana. Seu marido, «seleiro de
profissão» (ib.: 145), ficara sem serviço com o advento da «estradade-ferro» e «de duas estradas de automóvel» (ib.: 146); ele então
«caiu por força na vadiação» (ib.: 146), o que significa passar o
tempo em pescarias e outras aventuras fora de casa. Um dia,
retornando de uma dessas atividades, conta o narrador, «veio
encontrá-la [Silivana] em pleno (com perdão da palavra, mas é
verídica a narrativa) em pleno adultério, no mais doce, dado e
descuidoso, dos idílios fraudulentos» (ib.: 147).
Essa Penélope, pois, não perdera tempo, tomando-se de
amores pelo ex-anspeçada Cassiano Gomes. Turíbio Todo resolve
vingar-se, mas, sabendo que o rival é bom atirador, escolhe tocaiálo; contudo, decide desde logo poupar Silivana:
120
REGINA ZILBERMAN
Nem por sonhos pensou em exterminar a esposa (Dona Silivana
tinha grandes olhos bonitos, de cabra tonta), porque era um
cavalheiro, incapaz da covardia de maltratar uma senhora, e
porque basta, de sobra, o sangue de uma criatura, para lavar,
enxaguar e enxugar a honra mais exigente. (ib.: 148)
O ardil de Turíbio Todo não resulta bem: acaba por alvejar
Levindo Gomes, irmão de Cassiano Gomes, o que provoca nova
necessidade de vingança, matéria da longa travessia dos dois
homens pelo sertão, até culminar na morte do marido traído por um
capiau, o 21, que o surpreende com um tiro certeiro. Enquanto corta
o território de Minas Gerais e o de São Paulo, em fuga, Turíbio não
deixa de retornar à casa e rever a mulher, que, Penélope dos
avessos, aproveita a oportunidade para saber dos planos do marido e
contá-los ao amante.
Penélope impaciente é, por fim, Dianóra, esposa de Augusto
Esteves (depois, Matraga), o irresponsável filho do coronel Afonsão
Esteves, «das Pindaíbas e do Saco-da Embira.» (ib.: 329). De
Augusto diz o narrador que andava «sempre com os capangas, com
mulheres perdidas, com o que houvesse de pior. Na fazenda –no
Saco-da-Embira, nas Pindaíbas, ou no retiro do Morro Azul– ele
tinha outros prazeres, outras mulheres, o jogo do truque e as
caçadas» (ib.: 334). Como se vê, um Ulisses sem epopeia, que ainda
piora após a morte do pai, pois ficara «mais estúdio, estouvado e
sem regra» (ib.: 334), com «dívidas enormes, política do lado que
perde, falta de crédito, as terras no desmando, as fazendas escritas
por paga, e tudo de fazer ânsia por diante, sem portas, como parede
brancaǽ (ib.: 334).
Dianóra, por sua vez, «tinha belos cabelos e olhos sérios»
(ib.: 333) e «amara-o três anos, dois anos dera-os às dúvidas, e o
suportara outros todosǽ (ib.: 335). A boa Penélope, porém, cansa,
especialmente após a decadência econômica e moral do marido.
Cansa também porque «agora, porém, tinha aparecido outro» (ib.:
335). No começo, a moça hesita, segundo informa o narrador:
«Não, só de pôr aquilo na ideia, já sentia medo... Por si e pela
filha... Um medo imenso» (ib.: 335). Mas acaba por ceder, pois «o
NARRATIVAS DA INFIDELIDADE EM SAGARANA, DE GUIMARÃES ROSA
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outro era diferente! Gostava dela, muito...» (ib.: 335), o que a leva a
abandonar Augusto Esteves e partir, acompanhada da filha, na
companhia de Ovídio Moura. Mais adiante, quando Augusto, em
penitência, busca a redenção por seus pecados da juventude,
descobre, por intermédio do Tião da Thereza, qual foi o destino de
sua mulher e de sua filha: «a mulher, Dona Dianóra, continuava
amigada com seu Ovídio, muito de-bem os dois, com tenção até em
casamento de igreja» (ib.: 349); a filha, por sua vez, «crescera sã e
se encorpora uma mocinha muito linda, mas tinha caído na vida,
seduzida por um cometa, que a levara do arraial, para onde não se
sabia...» (ib.: 249).
A penélope Dianóra, mais paciente que as antecessoras
Maria Rita, de “A volta do marido pródigo”, e Silivana, de “Duelo”,
fora igualmente bem sucedida, reproduzindo-se um padrão de
comportamento, caracterizado pela infidelidade conjugal por parte
de moças assediadas por homens atraentes que, direta ou
indiretamente, abalam sua situação doméstica e até podem retirá-las
de casa. Essas Penélopes, ao contrário das Helenas, têm presença
física e corporalidade no relato, destacando-se sobretudo a beleza.
Mas, tal como ocorre ao primeiro grupo, elas não são objeto de
criminalização ou castigo, até porque sua culpabilidade é matizada.
Não é difícil reconhecer o reaparecimento dessas
personalidades no desenho de personagens de Corpo de baile, como
Nhanina, a mãe de Miguilim, de “Campo geral”, dividida entre
Bernardo Caz, seu marido e pai do menino, e o Tio Terez, problema
resolvido com a morte do primeiro, reproduzindo a dualidade
configurada na clássica Helena. Por sua vez, Doralda, de “Dãolalalão, o devente” personifica a Penélope por excelência, à espera
do retorno de Soropita, ainda que a travessia do marido reduza-se
ao trajeto entre o Ão e o Andrequicé. Otacília, de Grande sertão:
veredas, também se incorpora ao modelo das penélopes sertanejas,
de todas talvez a única em que o quesito paciência jamais é posto
em dúvida.
Com nenhuma delas, porém, identifica-se Diadorim, talvez
porque essa mulher guerreira nunca tenha abdicado da fidelidade,
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REGINA ZILBERMAN
um de seus atributos, não o principal, provavelmente, contudo, o
mais constante. De todo modo, essas personagens já não pertencem
a Sagarana, conjunto de narrativas em que Guimarães Rosa, pela
primeira vez, deparou-se com a volubilidade do amor e a
imprevisibilidade das mulheres.
REFERÊNCIAS
BILAC, Olavo: “Profissão de fé”. In: Olavo Bilac. Poesia. Agir: Rio de Janeiro, 1959.
HOMERO: La Odisea. Trad. de Luis Segala y Estalella. Aguilar: Madri, 1960.
ROSA, João Guimarães: Sagarana. 4ª ed. [versão definitiva], José Olympio: Rio de
Janeiro, 1956.
OS/AS AUTORES/AS:
Ngqpqt"Octvkpu"Eqgnjq é Professora Auxiliar da Universidade da
Madeira (Centro de Competências Artes e Humanidades),
investigadora do Centro de Estudos Comparatistas da Faculdade de
Letras de Lisboa, no âmbito do projecto “Estudos Utopianos” e
Doutorada na área dos Estudos Interculturais (título da dissertação:
“O universo ficcional de Gérard Aké Loba: utopia e construção da
identidade pós-colonial”).
Endereço eletrônico: [email protected]
Vjkgtt{"Rtqgpèc"fqu"Ucpvqu é Professor Auxiliar da Universidade
da Madeira, desde 2007. É doutorado em Linguística Aplicada, e
membro do Centro de Tradições Populares Portuguesas (F.L.U.L.).
Tem vindo a desenvolver pesquisas e estudos sobre produções
culturais e literárias na ilha da Madeira. Participou nos seguintes
projectos editoriais: Crónica Madeirense (1900-2006), antologia
organizada por Fernando Figueiredo, Leonor Martins Coelho e
Thierry Proença dos Santos, Campo das Letras, Porto, 2007; e
depois? sobre cultura na Madeira, actas do ciclo de conversas com
posfácio dos organizadores, em co-autoria com Ana Isabel Moniz e
Diana Pimentel, Universidade da Madeira, Funchal, 2005; e
Narrativas Contemporâneas da Madeira, antologia bilingue
português-francês, em co-autoria com Isabel Baião dos Santos e
João Paulo Tavares, Secretaria Regional da Educação, Funchal,
1997. Coordenou o número especial da revista Margem 2, nº 25,
Dezembro 2008, Câmara Municipal do Funchal, dedicado ao tema
“Viver (n)o Funchal”. Preparou a edição do romance Canga de
Horácio Bento de Gouveia (com introdução e estabelecimento do
texto por Thierry Proença dos Santos), E.M. 500 Anos do Funchal,
Funchal, 2008. Publicou a monografia Comeres e Beberes
Madeirenses em Horácio Bento de Gouveia, Campo das Letras,
Porto, 2005. Participa regularmente em congressos e não descura a
124
intervenção cultural (apresentação de livros, colaboração com a
comunicação social e com as escolas).
Endereço eletrônico: [email protected]
Octeq" Nkxtcogpvq investigador, natural e residente no Funchal,
Ilha da Madeira, é licenciado em Línguas e Literaturas Clássicas e
Portuguesa e mestre en Estudos Portugueses Interdisciplinares. Os
temas literários madeirenses têm ocupado muito do seu tempo dedicado à investigação, levando à pubicação de alguns artigos em revistas nacionais.
Endereço eletrônico: [email protected]
Lwtce{" Cuuocpp" Uctckxc é Pós-Doutora em Teoria da Literatura
pela UNICAMP; professora do Curso de Pós-Graduação em
Processos e Manifestações Culturais do Centro Universitário
Feevale, de Novo Hamburgo, Rio Grande do Sul.
Endereço eletrônico: [email protected]
Tqdgtvq"Nôrg|/Kingukcu"Ucoctvko é professor na Universidade da
Corunha desde 2006, e foi professor visitante na Universidade de
Vigo em 2003. Licenciado em Filologia Galega com prémio
extraordinário (1998), Filologia Portuguesa (1998) e DEA em
Estudos Clássicos e Medievais (2000) pela USC. Bolseiro de
investigação do Instituto Camões (1999-2001) e da USC (20032005), Prémio Carvalho Calero de Investigação em 2002 com A
Dona do Tempo Antigo. Mulher e campo literário no Renascimento
Português (1495-1557) (Ed. Laiovento, 2003), integra o projeto
FISEMPOGA, entre cujos resultados apontamos “Défices
projetivos e estratégias de planificação cultural no campo editorial
dum sistema periférico (Galiza: 1968-1978)” (Estudos GalegoBrasileiros IV, Corunha/ Rio de Janeiro, UdC/ UFRJ [no prelo]).
125
Tgikpc"\kndgtocp é doutora em Romanística pela Universidade de
Heidelberg (Alemanha), professora colaboradora no Programa de
Pós-Graduação em Letras, da UFRGS, professora das Faculdades
Porto-Alegrenses e pesquisadora 1A, do CNPq.
Endereço eletrônico: [email protected]
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Revista Veredas Número 12 - Associação Internacional de