As companhias de aprendizes artífices e a indústria naval no Segundo Reinado
(notas de pesquisa)*
David P. Lacerda
I
No relatório do Ministério da Marinha de 1857, José Antonio Saraiva informava à
Assembleia Geral Legislativa que havia sido criada uma companhia de aprendizes artífices no
Arsenal da Corte, e duas outras estavam em processo de regulamentação nos arsenais de
Pernambuco e da Bahia. Para o ministro, as companhias eram “a esperança de operários
para os arsenais”, uma vez que o ensino de ofícios nesses estabelecimentos “poderia dar à
educação de nossa mocidade uma direção benéfica”, em razão da falta de “homens de
letras” e de tantos outros com “habilitações que [servissem] a todas as indústrias”.1
Contudo, a importância das companhias como espaço de aprendizagem dos ofícios ligados à
indústria naval parece remontar ao início dos anos 1840, quando os estaleiros régios
passaram a integrar as reformas administrativas experimentadas pela Marinha de Guerra a
partir de então. Na ótica de Joaquim José Rodrigues Torres, além de erguer oficinas
especializadas e produzir matéria prima adequada, era necessário “formar operários” aptos
aos serviços navais. O aquartelamento de menores nas companhias de artífices surgia,
assim, como alternativa à formação de uma força de trabalho qualificada, cujo sucesso,
segundo Rodrigues Torres, resultaria no “duplo e importante fim de criar operários
inteligentes e desviar da ociosidade centenas de homens”.2
*
Este texto é um dos resultados das pesquisas desenvolvidas durante o estágio-sanduíche (PDSE/CAPES)
realizado no Brazil Institute da King’s College London, que contou com a supervisão do professor Anthony W.
Pereira. Ele é parte da tese de doutorado que venho desenvolvendo no PPGHIS da UNICAMP sobre as relações
de trabalho no Arsenal de Marinha do Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX. A pesquisa conta com a
orientação do professor Claudio H. M. Batalha e o apoio financeiro do CNPq.
1
BRASIL. Ministério da Marinha. Relatório do ano de 1857 apresentado à Assembleia Geral Legislativa na 2ª
Sessão da 10ª Legislatura (Publicado em 1858), p. 12. Todos os relatórios citados foram consultados no site:
http://www.crl.edu/brazil/ministerial/marinha. Acesso em Fevereiro e Junho de 2014.
2
BRASIL. Ministério da Marinha. Relatório do ano de 1842-3 apresentado à Assembleia Geral Legislativa na 2ª
Sessão da 10ª Legislatura (Publicado em 1843), p. 7 e p. 12.
1
O discurso oficial a respeito da educação de menores nos estaleiros da Marinha
adquiriu força com as transformações ocorridas nas estruturas de poder do Estado imperial.
Nas duas primeiras décadas do Segundo Reinado, as tentativas de reformulação das práticas
administrativas herdadas da Marinha portuguesa produziram uma série de medidas legais
que envolveram a organização das relações de trabalho nos arsenais. A oferta de ensino
profissional a menores pobres emergiu nesse ínterim como solução – real ou imaginada –
capaz de superar a “imperícia” de artesãos e operários. Se o aprendizado de menores era
visto pelas autoridades como um dos elementos centrais ao fortalecimento da Armada
Nacional, por outro lado essa experiência possuía significados diversos. A formação de
futuros hábeis artesãos nos canteiros e oficinas dos arsenais não se reduz à perspectiva dos
ministros, pois tal problemática envolve os modos como o Estado lidava com os dilemas
inerentes às relações de trabalho na sociedade escravista.
Tal como vem sendo demonstrado pela historiografia, o recrutamento de menores
era uma forma de aproveitá-los como mão de obra qualificada nas dependências da Armada
e em outras instituições do Império. Mas, também, funcionava como estratégia de controle
social, que, na ótica da ideologia da classe senhorial, poderia assegurar a tranquilidade da
ordem pública, evitando que esses jovens se entregassem ao ócio, à vadiagem e aos maus
costumes.3 Este paper procura dialogar com tais pressupostos a fim de refletir sobre alguns
dos vínculos entre trabalho e educação na segunda metade do século XIX. Para tanto, elege
como objeto de análise algumas características e finalidades das companhias de aprendizes
artífices instaladas nos arsenais da Corte, da Bahia e de Pernambuco, em fins da década de
1850. Especificamente, trata-se de entendê-las como parte de um modelo de trabalho
peculiar às atividades de construção e reparação naval e, desse modo, como dimensão
constitutiva da experiência dos trabalhadores nos arsenais de Marinha. Mais do que isso, o
estudo desses estabelecimentos talvez possibilite entender por que surgiu na Marinha de
3
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. A Ressaca da Marujada: recrutamento e disciplina na Armada Imperial. Rio
de Janeiro: Arquivo Nacional, 2001, pp. 84-85. Cf., também, SOUSA, Jorge Prata de. “A mão de obra de
menores: escravos, libertos e livres nas instituições do Império”. In: SOUSA, Jorge Prata (org.)., Escravidão:
ofícios e liberdade. Rio de Janeiro: APERJ, 1998 (Coleção Ensaios), p. 35.
2
Guerra daquele período a preocupação em aprimorar o trabalho executado em seus
arsenais, por meio de instrução primária e profissional.4
Considerando a educação em um sentido mais amplo, isto é, como um conjunto de
práticas sociais e culturais, pode-se notar que as companhias de aprendizes artífices não
eram a única experiência na Marinha de Guerra relacionada à educação.5 Apenas a título de
exemplo, a Academia de Marinha (destinada ao oficialato), a Escola Naval (dedicada ao
ensino secundário), as companhias de aprendizes marinheiros (voltadas para a instrução
profissional e de primeiras letras), bem como a instalação de bibliotecas e a circulação de
livros, mapas e periódicos (como o Brasil Marítimo, a Gazeta Naval e a Revista Marítima
Brasileira6) compunham um diversificado quadro de instituições destinadas à formação
intelectual e profissional no meio naval. Além das aulas de geometria, desenho e mecânica
ministradas nos arsenais, havia um constante intercâmbio de engenheiros e artesãos nos
estaleiros europeus, especialmente, na Inglaterra, para o estudo de máquinas a vapor e
construção naval.7
Essas experiências formativas estavam diretamente conectadas aos avanços da
tecnologia naval e ao surgimento da Marinha como instituição voltada para a defesa do
território. Essas variáveis envolviam elementos nacionais e globais do contexto histórico
associado ao desenvolvimento da indústria naval no Brasil oitocentista. Os Relatórios do
Ministério da Marinha, por exemplo, trazem informações a respeito da legalização de áreas
para o corte de madeira, do término do dique da Ilha das Cobras e de demandas por navios,
4
A abordagem deste paper segue de perto as formulações de CASEY, Neil. “Class Rule: The Hegemonic Role of
the Royal Dockyard Schools, 1840-1914”. In: LUNN, Kenneth and DAY, Ann (Ed.). History of Work and Labour
Relations in the Royal Dockyards. London and New York: Mansell, 1999.
5
Cf. LINS, Mônica Regina Ferreira. “Viveiros de “homens do mar”: Escolas de Aprendizes-Marinheiros e as
experiências formativas na Marinha Militar do Rio de Janeiro (1870-1910)”. Tese de Doutorado, UERJ, 2012.
Sobre um estudo mais abrangente acerca das instituições civis, militares, filantrópicas e religiosas de ensino, cf.
CUNHA, Luiz Antonio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. 2ª edição, São
Paulo: Editora da UNESP; Brasília, DF: FLACSO, 2005 [2000].
6
Para mais informações, cf. ARIAS NETO, José Miguel. “Imprensa militar no século XIX: um balanço preliminar”.
Revista Navigator: Subsídios para a História Marítima do Brasil, vol. 9, n. 18, 2013.
7
Para exemplos pontuais, cf. BRASIL. Ministério da Marinha. Relatório do ano de 1845-2 apresentado à
Assembleia Geral Legislativa na 3ª Sessão da 10ª Legislatura (Publicado em 1846), p. 8 e BRASIL. Ministério da
Marinha. Relatório do ano de 1848 apresentado à Assembleia Geral Legislativa na 1ª Sessão da 8ª Legislatura
(Publicado em 1849), p. 26. Cf., também, TELLES, Pedro C. da S. História da Engenharia no Brasil (Séculos XVI a
XIX). Vol. I. Rio de Janeiro: LTC – Livros Técnicos e Científicos Editora S. A., 1984, p. 242 e pp. 261-263.
3
carvão, ferro, munição e maquinário no exterior, especialmente em áreas da Grã-Bretanha e
da França. Com o avanço do capitalismo industrial, caracterizado em grande medida pela
revolução dos meios de transporte, a difusão e o uso de vapor, carvão e ferro expandiram o
comércio e o mercado mundiais entre 1840 e 1895.8 No caso da indústria naval, as
características da produção de embarcações sofreram alterações com a paulatina introdução
da hélice, da propulsão a vapor e da passagem da madeira ao metal, provocando mudanças
nas áreas de engenharia, arquitetura naval e na própria organização do trabalho nos
estaleiros. A despeito do alcance e do ritmo em que foram absorvidas, no Brasil como em
outros países, importa salientar que a introdução dessas inovações técnicas trouxe impactos
para o processo de trabalho na construção naval.9
Em alguma medida, esses efeitos foram experimentados pelos estaleiros brasileiros
a partir da metade do oitocentos, razão pela qual as companhias de aprendizes artífices dos
arsenais podem ser entendidas como resposta às demandas que exigiam o aperfeiçoamento
técnico das oficinas e dos trabalhadores nela empregados. Assim, elas foram projetadas para
garantir o aprendizado de menores nos ofícios de calafate, modelador, fundidor, polieiro,
carpinteiro, ferreiro, tanoeiro, correeiro e operador de máquinas, abrangendo, assim,
profissões de um setor onde predominava um alto grau de especialização.10
Além dos impactos do progresso técnico, os conflitos militares e diplomáticos
também exercem pressão e limites sobre o setor naval.11 Não seria exagero supor que as
companhias de aprendizes artífices tivessem adquirido certa relevância no seio da Armada
8
Tal como afirma Eric J. Hobsbawm para o que chamou de “segunda fase da industrialização”. Cf. Industry and
Empire – From 1750 to the present day. London: Penguin Books, 1990 [1968], capítulo 6.
9
DEWERPE, Alain. “Entreprises, technologies, travail dans la construction navale (1880-1980)”. Le Mouvement
Social – Les ouvriers européens de la navale. Nº 156, juillet-septembre, 1991, pp. 6- 8.
10
Como forma de capacitar “tecnicamente” os trabalhadores para os serviços de construção naval, a educação
foi uma das alternativas adotadas por outras marinhas para dar contar dos efeitos trazidos pelos avanços
técnicos experimentados pelo setor. Além de CASEY (vide nota 4), cf. algumas menções sobre a importância e o
papel da instrução primária e sua relação com os desdobramentos técnicos e sócio-profissionais em AGULHON,
Maurice. Une ville ouvrière au temps du socialisme utopique. Toulon de 1815 à 1851. Paris: Editions de l'École
des Hautes Études en Sciences Sociale, 1970, capítulo 3.
11
É o que argumenta Mary Hilson ao analisar o caso sueco da virada do século XIX. A autora afirma que certas
particularidades do modelo de trabalho dos estaleiros devem ser levadas em conta, pois se trata de um
universo sujeito às flutuações dos negócios capitalistas, das estratégias militares e da política externa. Cf.
“Labour politics in a Naval Dockyard: The Case of Karlskrona, Sweden c. 1880-1925”. International Review of
Social History. Volume 46, Part 3, December, 2001, pp. 341-342.
4
em função, também, das contendas envolvendo o Império brasileiro na região platina. O
confronto contra Oribe e Rosas (1850-1851), a intervenção militar no Uruguai (1864) e a
Guerra da Tríplice Aliança contra o Paraguai (1864-1870) podem ter reforçado a necessidade
de um poderio naval mais adequado. A tensa dinâmica da geopolítica platina, cerrada em
“fronteiras vivas e, em muitos casos, não delimitadas juridicamente”,12 talvez tenha
redimensionado o significado dos arsenais – e em seu interior, a prática do ensino de ofícios
– como unidades produtivas fundamentais ao desenvolvimento da Marinha de Guerra como
instituição dedicada à defesa do território.
II
Os decretos 2.583 e 5.622, expedidos, respectivamente, em 1860 e 1874, foram os
primeiros dispositivos a reorganizar as instâncias administrativas e as relações de trabalho
nos arsenais do Império, desde sua incorporação ao poder naval durante as lutas pela
Independência. Grosso modo, essas normas redefiniram as funções de diretorias e oficinas,
os direitos e as obrigações de engenheiros, capelães, lentes, inspetores, operários e artesãos
– fossem estes civis ou militares; mestres ou contramestres.13 As companhias de aprendizes
artífices foram, portanto, integradas aos arsenais sediados na cidade do Rio de Janeiro e nas
províncias da Bahia e de Pernambuco, mais exatamente nas capitais Salvador e Recife,
recebendo, nessa ordem, os títulos de 1ª, 2ª e 3ª companhias. O decreto de 1874, embora
tivesse modificado vários itens do regulamento anterior, manteve integralmente o modelo
de organização das companhias:
Tabela I
Organização geral das companhias de aprendizes artífices
12
COSTA, Wilma Peres. “A Guerra do Paraguai e a problemática militar no Império”. História. São Paulo, 14, 3348, 1995, p. 37.
13
BRASIL. Decreto 2.583 de 30 de abril de 1860, “Reorganiza os Arsenaes de Marinha no Imperio”; Decreto
5.622 de 02 de maio de 1874, “Reforma o Regulamento dos Arsenaes de Marinha”; Decreto 2.615 de 21 de
julho de 1860, “Manda observar novo Regulamento para as Companhias de Aprendizes Artifices dos Arsenaes
de Marinha da Corte e Provincias da Bahia e Pernambuco”. Vale ressaltar que enquanto a companhia da Corte
havia sido criada em 1857, os estabelecimentos das províncias foram autorizados a funcionar no ano seguinte
pelo decreto 2.188 de 09 de junho de 1858. Tudo na Colecção das Leis do Imperio do Brasil, disponível em
http://www2.camara.leg.br/. Acesso em Setembro de 2014.
5
Arsenal da Corte
Pessoal
Comandante
Número
1
Cirurgião
Capelão
Secretário
Agente
Professor de Primeiras letras
Ajudante do dito
1
1
1
1
1
1
Mestre de música
Guardas
Porteiro
Enfermeiro
Cozinheiro
Ajudante do dito
Serventes
Aprendizes Artífices
Total
1
6
1
1
1
1
4
200
222
Arsenais da Bahia e de Pernambuco
Pessoal
Número
Comandante
1
Capelão e
Professor
de primeiras
letras
1
Secretário
1
Agente
1
Guardas
3
Cozinheiro
1
Serventes
2
Aprendizes
Artífices
80
90
Fonte: cf. nota 13.
À primeira vista, chama à atenção a quantidade de empregados em ambos os
estabelecimentos, destacando-se a cifra que corresponde aos aprendizes que deveriam ser
aquartelados no Arsenal da Corte. Não é objetivo deste texto explicitar as razões dessa
diferença, mas é possível supor que elas estejam associadas ao fato de as atividades de
construção e reparo de embarcações terem se concentrado no Rio de Janeiro no pós 18501860, transformando os demais estaleiros em centros de reparação naval.14 A maior
variedade de empregados também sugere algumas pistas nessa direção. Na capital,
observam-se a presença de um músico, um enfermeiro e um cirurgião, todos pertencentes
aos quadros do arsenal. Nas províncias, além da falta desses profissionais, o capelão
acumulava o ensino de primeiras letras, o catecismo, a confissão e a celebração de missa em
dias santos e aos domingos para aprendizes e demais praças. Por fim, um capitão ou um 1º
tenente cuidaria do comando das companhias, acompanhado por um escrivão de 3ª classe
que se encarregaria dos afazeres de secretário.
14
TELLES, Pedro C. da S. Op. cit., pp. 251-253. Para maiores detalhes, cf. GREENHALGH, Juvenal. O Arsenal de
Marinha do Rio de Janeiro na História: 1822-1889. Rio de Janeiro, IBGE, 1965.
6
A estrutura organizacional das companhias se manteve após o regulamento 5.622,
que, conforme foi dito, não alterou o que havia sido estabelecido pelo decreto anterior.15
Entretanto, existiam diferenças entre os arranjos institucionais e o que era experimentado
na rotina das companhias dos estaleiros. As informações extraídas dos relatórios dos
inspetores da Bahia e da Corte, ambos de 1872, indicam o número de aprendizes artífices
por ofício:
Tabela II
Aprendizes artífices matriculados em 1872
Ofícios
Máquinas
Modeladores
Fundidores
Ferreiros
Carpinteiros
Carapinas
Polieiros e Torneiros*
Calafates
Tanoeiros
Corrieiros e Bandeireiros
Total
Arsenal da Bahia
10
4
5
10
6
5
40
Arsenal da Corte
30
29
63
34
10
14
21
201
Fonte: Arquivo Nacional do Rio de Janeiro (ANRJ), Série Marinha, Subsérie Secretaria-Ministro de Estado dos Negócios da Marinha, XM 785.
* Esses ofícios constam no relatório da inspeção do Arsenal da Bahia, mas não há menção ao número de artífices. O relatório da inspeção da Corte inclui
apenas os polieiros.
Conforme a tabela II, os aprendizes matriculados nas companhias de ambos os
arsenais demonstram uma diferença numérica significativa. Em 1872, o total de menores
pertencente à companhia da província correspondia à metade do que havia sido previsto
pelo decreto 2.583 de 1860. Na capital, onde se observa um expressivo contingente de
aprendizes, especialmente nas oficinas de máquinas, carapinas, carpinteiros, polieiros e
torneiros, o número de menores matriculados alcançou a marca de 201 aprendizes, segundo
os dados “fornecidos pelos mestres das diferentes oficinas do arsenal”. Anos mais tarde, em
1878, constavam no relatório da inspeção 245 meninos inscritos nas oficinas, número que
15
Apenas o decreto 2.615, também sancionado em 1860 (vide nota 13), alterou algumas disposições sobre as
companhias, mas, basicamente, ele reuniu as normas sobre as companhias em um único texto legal, atribuindo
papéis a cada um de seus empregados.
7
talvez corresponda às exigências fixadas pelo decreto 4.820, de 1871, que elevou em 50 o
total de menores daquela companhia.16
Ainda com base nos relatórios da inspeção, nota-se que as condições materiais e de
salubridade das companhias não eram suficientes, ou, em certas situações, estavam longe
de satisfazer o que os inspetores consideravam adequado. Em 1873, o inspetor do arsenal da
capital pernambucana alegava que os edifícios da enfermaria não satisfaziam as
necessidades do tratamento dos doentes, pois não havia espaço satisfatório e as
acomodações disponíveis eram “pouco arejadas”.17 Na companhia de aprendizes do Arsenal
da Corte, o inspetor também se queixava da falta de “alojamento conveniente e próprio de
um estabelecimento de educação”. Ampliar o espaço físico das instalações onde meninos e
demais empregados estavam aquartelados era uma demanda considerada urgente, já que o
“acréscimo de menores [...] reclama necessariamente novas alas para dormitórios, vestiários
e outras acomodações indispensáveis”. Ainda segundo o inspetor:
Atualmente, os empregados acham-se desfavoravelmente alojados: para
os seis empregados graduados há apenas três quartos em extremo acanhados, e
para os sete serventes e cozinheiros há um único [quarto], escuro e sem ventilação.
A enfermaria, conquanto sirva só para os menores que se acham
afetados por moléstias passageiras, não tem capacidade para acomodá-los em
número superior a seis: é este o número de camas que aquele aposento admite, e
mesmo estas acham-se muito unidas umas às outras.
É muito sensível a falta absoluta de um lugar apropriado para se
estabelecerem prisões em que os menores sejam corrigidos em suas faltas e em
que além de condições higiênicas haja um isolamento relativo.
[...]
Além da vigilância efetiva que esses empregados devem exercer sobre
um tão elevado número de meninos, são incumbidos de outros serviços
indispensáveis, do quartel, tornando-se assim o desempenho de suas obrigações.
Se até agora eu já considerava insuficiente o número d’estes empregados, hoje é
de absoluta necessidade o aumento d’ele, visto que tem de se criar mais uma seção
18
de 50 menores que deve ficar especialmente a cargo de um guarda.
16
ANRJ, Série Marinha, Subsérie Secretaria-Ministro de Estado dos Negócios da Marinha, XM 914. BRASIL.
Decreto de 18 de Novembro de 1871, “Eleva a mais cincoenta praças o numero de Aprendizes Artifices da
Companhia de Menores do Arsenal de Marinha da Corte”.
17
ANRJ, Série Marinha, Subsérie Secretaria-Ministro de Estado dos Negócios da Marinha, XM 451.
18
ANRJ, Série Marinha, Subsérie Secretaria-Ministro de Estado dos Negócios da Marinha, XM 785.
8
A descrição acima evidencia alguns aspectos da rotina vivenciada pelos menores
aprendizes e demais empregados das companhias. A falta de salubridade e de acomodações
adequadas eram resultados da precariedade das instalações já existentes e do elevado
contingente de menores que a companhia recebia em suas dependências. Depois de
sancionado o decreto que elevou o número de menores da companhia, o inspetor julgava
ser urgente o aumento do efetivo de 06 guardas, que, desde os decretos de 1860, eram
responsáveis pela segurança do estabelecimento e pela manutenção do controle dos
menores aquartelados. A enfermaria comumente abrigava uma grande leva de aprendizes,
principalmente aqueles acometidos por “moléstias sem gravidade, próprias da idade e às
vezes provenientes do pouco cuidado que eles têm em resguardarem-se das intempéries”.
Afora o melhoramento das condições de higiene das companhias, o inspetor da Corte
solicitava ao Ministro da Marinha que fossem elaboradas “dietas” para os menores em
tratamento nas dependências do quartel.19
Outras variáveis comuns ao funcionamento das companhias eram o perfil dos
menores e as características do ensino propriamente dito. Pelo disposto nos decretos de
1860, os meninos entregues ou capturados para assentar praça nas companhias de
aprendizes artífices deveriam contemplar os requisitos seguintes: “ser brasileiro”, ter entre
sete e 12 anos, possuir “constituição [física] robusta” e ter sido vacinado. Ainda que
houvesse diferenças significativas quanto ao número de menores, tanto na Corte como nas
províncias o contingente deveria ser preenchido segundo os parágrafos do artigo 17 do
decreto 2.615:
1º Com os órfãos ou desvalidos que [...] forem remetidos pelas autoridades
competentes.
2º Com os filhos das pessoas que por sua pobreza não tiverem meios de os
alimentar e educar.
3º Na falta de menores que se achem nas condições dos parágrafos antecedentes,
com quaisquer outros que sejam apresentados por seus pais, tutores, ou quem
legitimamente os representar, dando-se preferência para os operários do Arsenal,
das praças de pret e de marinhagem da Armada.
Os pedidos de admissão de menores eram endereçados ao inspetor do arsenal, que
após verificar o cumprimento de tais requisitos, os encaminharia ao Ministro da Marinha. O
19
ANRJ, Série Marinha, Subsérie Secretaria-Ministro de Estado dos Negócios da Marinha, XM 785.
9
envio de menores pobres, órfãos e desvalidos – incluindo os libertos pela lei de 187120 –
para as companhias dos arsenais era uma estratégia do Estado imperial para aproveitá-los
como mão de obra livre. Entretanto, seus significados vão além do recrutamento em si, e até
mesmo da necessidade (tão reforçada pelas autoridades da Armada) de completar seus
quadros com braços qualificados. Havia incertezas e expectativas de mobilidade social sendo
compartilhadas em torno das (restritas) alternativas de acesso à educação formal no interior
do sistema escravista. Como Álvaro Nascimento já assinalou, remeter meninos às
companhias de marinheiros ou dos arsenais “representava, nas parcas esperanças dos pais,
a possibilidade de garantir um ofício para os filhos”, embora também houvesse pais e
tutores que, desejando abocanhar o prêmio de 100$000:00 oferecido pela Marinha,
transformassem “seus filhos ou órfãos em mercadorias”.21
No caso dos arsenais, talvez fosse possível acrescentar a esse quadro interpretativo
que o envio de menores para as companhias de aprendizes artífices era parte de uma
política naval centrada na reestruturação dos estaleiros régios. As tentativas de criar
estabelecimentos que objetivassem, a um só tempo, educar e assistir materialmente os
meninos que para lá fossem levados – dispensando-lhes fardamento, alimentação e
gratificação diária de 100 a 300 réis até a idade de 16 anos – sinalizavam uma tendência na
direção de formar trabalhadores qualificados e subordinados aos desígnios militares. A
possibilidade de eles oferecerem sua força de trabalho ao Estado, após o término da
aprendizagem, era uma solução que parecia concreta para ministros e demais autoridades
da Marinha. Em outras palavras, é possível supor que um modelo de trabalho estivesse
sendo concebido e colocado em prática nos arsenais, durante os anos que se seguiram à sua
reformulação.
Como dimensão constitutiva desse modelo, as companhias de aprendizes artífices
possibilitaram que a educação integrasse o cotidiano de trabalho dos arsenais, exercendo
um papel importante na formação de jovens que comporiam a força de trabalho de um
estabelecimento público específico. Nos quartéis ou em navios-escola, o ensino destinado a
menores consistia, primeiramente, no aprendizado da leitura, da escrita, da “doutrina cristã”
20
BRASIL. Decreto 5.881 de 27 de Fevereiro de 1875. “Aprova o Regulamento que estabelece o modo e as
condições do Recrutamento para o Exercito e Armada”.
21
NASCIMENTO, Álvaro Pereira do. Op. cit., p. 78 e p. 80.
10
e das operações fundamentais de aritmética. Ao lado das “marchas, contramarchas e
pequenas evoluções militares” conduzidas pelo “oficial inferior”, destacado pelo
comandante da companhia, eram praticadas atividades desportivas e culturais, tais como
exercícios de natação e lições de música para aqueles que tivessem “vocação”. Aulas de
geometria e desenho aplicadas às artes também eram ministradas, mas apenas os menores
em idade e “desenvolvimento” adequados poderiam frequentá-las, como na companhia do
arsenal de Pernambuco, onde havia lições de “geometria aplicada, mecânica e desenho de
máquinas” duas vezes por semana, de “7 às 9 da manhã”.
O ensino e a prática dos ofícios aconteciam em uma realidade sócio-profissional
multifacetada, vazada por códigos, hierarquias e disciplina próprios do meio militar naval. As
oficinas e as ocupações nelas reunidas dedicavam-se aos trabalhos com metal, madeira e
máquinas. Embora sua composição variasse com certa frequência, uma vez que muitas
oficinas foram eliminadas e/ou criadas durante o período analisado, elas geralmente
permaneciam reunidas em torno de quatro diretorias: construção naval, máquinas, obras
civis e militares e artilharia. De acordo com o “Mapa demonstrativo do pessoal artístico de
1879”, por exemplo, o Arsenal do Rio de Janeiro possuía a configuração seguinte: na
primeira diretoria, agrupavam-se carpinteiros, carapinas, calafates, poleeiros, torneiros,
ferreiros, serralheiros e o pessoal de aparelho e velas; na seguinte, estavam ferreiros,
modeladores, caldeireiros de ferro, limadores, fundidores, caldeireiros de cobre e
martinetes; na terceira, apenas o pessoal da seção hidráulica, e, na última, reuniam-se
espingardeiros, coronheiros, pirotécnicos e operadores de máquinas.22
Visando atender às demandas advindas do paulatino processo de especialização do
trabalho no setor da construção naval, as companhias tendiam a reproduzir tal estrutura
profissional, buscando contemplá-la em sua diversidade. Mestres e diretores de oficinas
supervisionavam os “mais inteligentes e moralizados operários”. Ao serem escolhidos pelo
inspetor do arsenal e pelo comandante da companhia, eles deveriam conduzir o aprendizado
do ofício, compartilhando seus conhecimentos técnicos e habilidades artísticas com os
menores que recebessem. Sob as mãos e os olhares desses operários, os menores
permaneceriam por um período que correspondia à faixa etária exigida para admissão nas
22
ANRJ, Série Marinha, Subsérie Secretaria-Ministro de Estado dos Negócios da Marinha, XM 737.
11
companhias, onde os meninos poderiam permanecer aquartelados até os 16 anos, quando
teriam a opção de ingressar nas companhias de artífices militares. Esta era uma
oportunidade de os menores estenderem seu aprendizado até os 21 anos, dando
continuidade à sua trajetória nos arsenais.
Ao contrário dos mestres que conduziam o aprendizado nas oficinas, os professores
responsáveis pelo ensino de primeiras letras (escrita, leitura e aritmética), desenho e
geometria também se incumbiam de aferir o desempenho e a frequência dos alunos das
companhias. O vocabulário utilizado para avaliar a conduta dos menores aprendizes fornece
pistas a respeito dos parâmetros adotados para classificar a performance dos alunos. Em
suma, esse modus operandi qualificava a conduta dos menores como ótimo, bom, regular,
péssimo e sofrível, enquanto seu aproveitamento nas matérias era aferido pelos termos
muito, pouco, algum, nenhum (ou sem), regular e sofrível. Na Bahia, cerca de 140 menores
“das diferentes oficinas do arsenal” frequentaram a escola de primeiras letras durante o ano
letivo de 1871. No mapa demonstrativo do desempenho dos alunos, particularmente na
coluna designada à avaliação do “aproveitamento”, mais de 80 alunos obtiveram o conceito
“algum”, pouco mais de 20 menores ganharam o conceito “pouco” e o restante, “muito”.
Ainda em 1871, o inspetor do Arsenal da Corte parecia satisfeito com o desempenho dos
menores aprendizes. Dos 30 alunos submetidos a exame em dezembro daquele ano, 13
haviam sido aprovados em escrita e leitura e outros 17 em “análise lógica e gramatical e em
aritmética”, incluindo os “excelentes resultados” obtidos nas aulas de música.23 Além disso,
segundo a relação dos alunos que cursaram aulas de primeiras letras, apenas um dos 196
menores obteve avaliação “regular” no item “comportamento”, e os demais oscilaram entre
ótimo e bom. Já no quesito “aproveitamento”, 59 receberam o conceito “pouco”, 23
“muito”, 80 “regular” e 32 apareceram “sem” aproveitamento.
Os relatórios sobre as turmas que frequentavam as aulas nas companhias dos
arsenais – dados que provavelmente eram aferidos pelos professores, e, em seguida,
repassados ao inspetor – informam o nome dos menores, as oficinas nas quais praticavam
23
As informações de ambos os relatórios estão em ANRJ, Série Marinha, Subsérie Secretaria-Ministro de Estado
dos Negócios da Marinha, XM 785. Cabe destacar que os 140 aprendizes estavam distribuídos nas oficinas do
Arsenal da Bahia na proporção seguinte: máquinas (30), carpinteiros (29), carapinas (31), ferreiros (28),
fundição (7), modeladores (3), pedreiro (3), tanoeiro (3), polieiro (3), caldeireiro (2) e calafate (1).
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seus ofícios, a data em que foram matriculados e observações sobre seu aproveitamento e
comportamento. Embora nem sempre esses dados apareçam documentados em sua
totalidade, eles ajudam entender experiências e expectativas compartilhadas pelos sujeitos
envolvidos nas relações de trabalho e de ensino-aprendizagem nas companhias. Levando-se
em conta o potencial e os limites das evidências empíricas referidas neste texto, talvez se
possa avançar na discussão de temas que constituem a lógica própria desses
estabelecimentos, tais como o perfil social dos menores, o cotidiano das relações entre
mestres e aprendizes, a variação do número de meninos matriculados nas companhias ao
longo do tempo, bem como suas condições materiais e seus arranjos institucionais.
III
Para os objetivos deste paper, importa destacar que as companhias de aprendizes
artífices constituíram, ao longo do Segundo Reinado, uma alternativa possível à formação de
jovens operários nos (para os) arsenais de Marinha do Império. A criação, organização e
definição das finalidades das companhias pelo Estado, bem como as formas de
recrutamento adotadas para a composição de seus efetivos, eram parte de uma estratégia
de reestruturação dos estaleiros navais. A partir da metade do século XIX, o avanço do
progresso técnico e da especialização do trabalho na indústria naval trouxe certas demandas
às quais a Marinha de Guerra procurou, a seu modo, adequar-se. Longe de pressupor uma
posição homogênea de suas autoridades, o fato é que havia a preocupação em aperfeiçoar o
trabalho executado nos arsenais, suas práticas administrativas, seus serviços e os
trabalhadores neles envolvidos. A combinação entre o ensino de primeiras letras (leitura,
escrita e aritmética) e de matérias ligadas à arte naval (desenho e geometria), somada à
preparação dos menores nos trabalhos de construção e reparo de embarcações, evidencia
alguns dos vínculos entre a educação e o mundo do trabalho no Brasil oitocentista. Mais do
que isso, tratam-se de elementos que, em razão de sua configuração própria e do contexto
em que tomaram forma, visavam assegurar uma força de trabalho especializada e
subordinada ao poder naval. Os limites e os impasses dessa experiência, contudo, são temas
para outra história.
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David P. Lacerda I No relat