A RELAÇÃO DOS PROFESSORES COM A CULTURA
DOS EDUCADOS DAS CAMADAS POPULARES
Débia Suênia da Silva Sousa (UFPB)
Introdução
O presente texto parte de uma pesquisa estruturada
como monografia, realizada no período de março a junho de
2003, pré-requisito para a conclusão do curso de Pedagogia. Os
sujeitos da pesquisa foram quatro professoras das séries iniciais
do turno matutino da Escola Estadual Joaquim Victor Jurema,
localizada em um bairro da periferia da cidade de Cajazeiras PB. Para este momento, apresento uma análise das práticas
educativas destas educadoras relacionadas com a cultura dos
educandos das camadas populares nas diferentes situações do
cotidiano da sala de aula.
Na discussão sobre cultura, a figura do ser humano é
indispensável, uma vez que, no esforço para
conhecer a si
mesmo, o homem tem em cada contexto social a possibilidade
de humanização. Nessa perspectiva, podemos entender “a
cultura como invenção da relação com o outro” (CHAUÍ,1995,
p. 295). O outro, então, passa a conceber uma classe social
diferente da nossa, com valores, crenças e práticas variando de
formação social para formação social.
Diante da realidade contemporânea, afetada pelas
transformações sociais, econômicas, políticas e culturais, a
escola e, por conseguinte, o/a educador/a, necessita “[...]
assumir seu papel nesse contexto como agente de mudanças,
geradora de conhecimento, formadora de sujeitos capacitados a
intervir
e atuar na sociedade de forma crítica e criativa”
(LIBÂNEO, 1996, p. 163).
Assim, ao tratarmos a questão cultural no processo
educacional, particularmente de educandos/as das camadas
populares, é imprescindível que a cultura seja pensada como um
fenômeno mutável, ou seja, cultura como:
[...] uma dimensão do processo social da vida de
uma sociedade. (SANTOS, 1994, p. 44)
[...] uma realidade e uma concepção que
precisam ser apropriadas em favor do progresso
social da liberdade em favor luta contra a
exploração de uma parte da sociedade por outra ,
em favor da superação e da desigualdade (Idem,
p. 45).
Identificamos no conceito de cultura defendido por
Santos uma dupla contribuição teórica:
1. cultura relacionada a todos os aspectos de uma
realidade social;
2. cultura direcionada às idéias e crenças de um
povo.
Na primeira concepção, cultura envolve todas as
características que formam uma determinada sociedade. “Assim
cultura diz respeito a tudo aquilo que caracteriza a existência
social de um povo ou nação, ou então de grupos no interior de
uma sociedade”. (SANTOS, 1994, p. 24)
Na
segunda
concepção,
trata-se
de
aspectos
específicos como idéias, pensamentos, crenças. Aspectos que se
referem a uma sociedade específica, onde “cultura diz respeito
a uma esfera, a um domínio da vida social”(Idem, 1994, p. 25 ) e
não mais a sua totalidade.
Assim, registramos que existe mais de uma maneira de
se falar sobre Cultura.
A escola numa perspectiva sócio-cultural
A relação escola, e, por conseguinte, professor/a e
cultura, não é um discurso que surge com a modernidade, mas
sim
uma relação antiga. “As questões culturais sempre
estiveram presentes nos debates em torno da escola. Entre as
suas funções específicas, a de transmissora de cultura ou de
‘elementos da cultura’ entre as diferentes gerações nunca foi
negada ou minimizada [...]” ( GABRIEL,2000, p. 17). Contudo,
na perspectiva moderna, os termos atribuídos à relação entre
cultura e escola contemplam olhares distintos, oriundos da crise
de paradigmas que
marcam as construções de produção do
saber científico.
A incorporação atual dos debates a respeito da relação
escola e cultura suscita a reflexão sobre as múltiplas formas e
possibilidades de conversação, que precisam ser firmadas entre
os diversos grupos sócio-culturais. “Não basta mais lutar contra
as desigualdades sociais, mais é preciso também buscar
estratégias onde as diferenças culturais possam coexistir de
forma democrática” ( Idem, 2000, p. 19).
Diante do pressuposto da relação entre escola e
cultura, sob novos olhares, apontamos para escola numa
perspectiva sócio-cultural, como lugar ou possibilidade de
identificação e aceitação das diferenças culturais com elemento
estrutural no cerne das práticas escolares e das escolhas
pedagógica.
A partir dos anos 80 do século XX, a escola começa a
ser pensada com espaço sócio-cultural. Até então, a escola era
abordada
“nos marcos
das análises macro
estruturais”
(DAYREL, 1999. p . 159), ou seja, a instituição
escolar
evidenciava os determinismos sociais, como também a
dicotomia entre homem-circunstância, ação-estrutura, sujeitoobjeto.
A nova perspectiva da instituição escolar com espaço
de desenvolvimento sócio-cultural dos indivíduos, coloca à
escola em uma dupla dimensão.
Institucionalmente, por um conjunto de normas e
regras, que buscam unificar e delimitar a ação
dos sujeitos. Cotidianamente, por uma complexa
trama de relações entre os sujeitos envolvidos
que incluem alianças e conflitos, imposição de
normas estratégias individuais, ou coletivas, de
transgressão e de acordos (Idem, p. 137).
Percebemos que existe um conflito no processo
educativo escolar. Trata-se do fato de que a escola não consegue
fazer a conexão entre o institucional e o cotidiano nas relações
educativas. “Reduz os sujeitos a alunos, apreendidos sobretudo
pela dimensão cognitiva” (Idem, p. 140).
Mesmo com os debates e apologias atuais em torno da
relação escola e cultura numa perspectiva de coexistência
democrática, no que se refere ao respeito e trabalho com as
diferenças culturais, percebe-se que a instituição escolar ainda
privilegia “uma certa cultura”, considerando-a muitas vezes
como única e verdadeira. Desta forma, exclui-se a possibilidade
de aceitação do “Outro” no processo educacional. Agindo dessa
maneira, supõem que, “[...] os professores partem da hipótese de
que existe entre o ensinante e o ensinado uma comunidade
lingüística prévia de valores, o que só ocorre quando o sistema
escolar está lidando com os seus próprios herdeiros”
(BORDIEU, 1998, p. 55-56).
Nessa conjuntura de tratamento uniforme que a
instituição escolar privilegia, o aluno ou a aluna das camadas
populares, quase sempre, se encontra subordinado aos valores
culturais e aos modelos de ação que a mesma lhes apresenta
como parâmetro a seguir. Assim, a identidade e a subjetividade
dos sujeitos é desprezada. A escola impõe para estes alunos e
alunas a cultura dominante com costumes, deveres e
significações que se contrapõem às atitudes dos indivíduos que
formam as camadas populares.
Posição das professoras diante da cultura dos(as) alunos(as)
Nesse estudo, elegemos alguns elementos que estão
intrinsecamente ligados na relação professor(a)/aluno(a), estes
últimos oriundos da classe popular. Destacamos a maneira que
cada indivíduo se veste, senta e cuida da sua higiene, como
também o modo de falar, suas preferências quanto à música,
programas de TV, brincadeiras, danças, grau de entendimento na
sala de aula e, a forma como os conhecimentos procedentes da
família são contemplados no dia-a-dia da sala de aula.
Para a aceitação da cultura dos alunos e das alunas das
camadas populares por parte dos professores e das professoras
ser efetivada, é importante que os mesmos tomem como ponto
de partida a realidade desses educandos e educandas, como
local incipiente de construção de sua identidade cultural.
Uma das tarefas mais importantes da prática
educativo-crítica é propiciar as condições em que
os educandos em suas relações uns com os outros
e com todos com o professor ou a professora
ensaiam a experiência profunda de assumir-se
como ser social e histórico, como ser pensante
comunicante; transformador, criador, realizador
de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de
amar. Assumir-se com sujeito porque capaz de
conhecer-se como objeto. A assunção de nós
mesmos não significa a exclusão dos outros
(FREIRE,1998, p. 46).
O professor ou a professora que não fica satisfeito(a)
com as diferentes situações dos seus alunos e alunas no
cotidiano da sala de aula, como por exemplo sua postura ao
sentar-se ou com a roupa que usam, questionamos se, por parte
desses docentes, não há consideração de possuírem uma
“superioridade cultural”, de saber o que é certo e o que é errado,
de
detentores
de
uma
verdade
única,
permeada
pela
“organização” social e cultural dominante. Assim, as ações,
posturas e identidades dos sujeitos encontram-se pré-destinadas.
“A identidade de cada sujeito lhe é dada a partir do lugar que
ocupa na Organização e a partir do saber que a Organização
julga possuir sobre ele” (CHAUÍ, 1990, p. 50).
Diríamos, que o professor ou a professora que
reconhecesse em suas relações e práticas educativas cotidianas
“que cada corpo é um elemento assinado por muitos outros”
(CERTEAU, 1994, p. 171), ignoraria as formas e os padrões
culturais dominantes e passaria a considerar a capacidade de
recriação de si próprio, do seu aluno e da sua aluna, usando o
espaço escolar, os livros didáticos e até os PCNs em favor da
multiculturalidade dos sujeitos.
Em se tratando do modo com que os seus alunos e
alunas falam, com a influência do meio familiar e comunitário,
as professoras entrevistadas constroem uma expectativa um
tanto desestimulante em relação aos seus alunos e alunas serem
capazes de falar de acordo com os padrões lingüísticos oficiais.
Gostaria muito que meus alunos fizessem bom
uso da língua normativa [...]. Quando se lida com
crianças pobres que têm pais analfabetos, fica
difícil ensinar os alunos a falarem correto, pois
eles passam mais tempo no convívio com a
família (...). ( Educadora 3)
A língua que se fala e as representações construídas
em torno dela se constituem em um importante veículo de
formação e transformação da identidade cultural dos sujeitos.
Assim, consideramos que mesmo quando o aluno ou a aluna
não fala de acordo com a língua normativa, o professor e a
professora deveriam estar preparados para usar a fala real dos
seus discentes,
como um instrumento de comunicação e
interação para o possível desenvolvimento da construção de
aprendizagem da língua padrão.
Em relação às preferências culturais relacionadas com
música, programas de TV e danças que seus alunos e alunas
levam para a sala de aula, a mídia se coloca para essas
educadoras como uma grande influenciadora.
Preocupada com a maneira que meus alunos
vêem o mundo basicamente influenciados por
programas de TV (...) resolvi levar para a sala de
aula livros de literatura infanto-juvenil (...), no
início eles não davam importância aos livros,
folheavam a procura de gravuras, com o tempo
começaram a gostar de ler e ficavam ansiosos
para chegasse a sexta-feira (...). ( Educadora 3)
A mídia se encontra na liderança
dos “artefatos
culturais” e, de uma maneira geral, interfere nas opções culturais
de que dispomos: seja na música, nos programas de TV, nas
danças. No entanto, é importante ressaltar que, apesar da força
que a mídia tem para suscitar gostos e preferências, há outros
fatores que impedem uma total massificação cultural. Entre eles
podemos frisar a capacidade transformadora dos indivíduos,
bem como sua “herança cultural”, ou seja, os valores, idéias e
preferências adquiridas ao longo de sua trajetória pessoal.
As professoras que participaram deste estudo dizem
tentar fazer uma articulação ainda incipiente, entre os valores,
costumes e conhecimentos dos alunos e das alunas em relação
ao grau de entendimento nas atividades propostas em sala de
aula.
A cultura que eles trazem para a sala de aula,
resultado de toda uma herança adquirida, é algo
de grande, não deve ser desprezada no processo
de aquisição do conhecimento,como não venha a
ser o único e exclusivo referencial para a prática
pedagógica. (Educadora 4 ).
Trabalho com educadora há 25 anos, e, confesso
que apenas de uns 5 anos pra cá é que venho
dando voz aos meus alunos, (...) hoje já
reconheço que quando se trabalha as atitudes e
valores dos educandos em sala de aula,
respeitando e interagindo com suas realidades,
constrói-se uma mudança no que se refere a sua
formação para a vida. (Educadora 1 ).
Percebemos que, mesmo atuando há a mais de duas
décadas como professoras, o
reconhecimento de seus alunos
e alunas no processo educativo, como sujeitos que possam ser
ativos e capazes de construir novos conhecimentos é recente.
Julgamos que este fato é conseqüência de condições precárias
de trabalho, remuneração inadequada, má qualidade na
formação dessas educadoras, como também a ausência de
formação continuada. Contudo, é importante frisar que entender
que os processos educativos estão sempre em movimento e, que
a construção do conhecimento deve ser pensada levando-se em
consideração as múltiplas diversidades culturais, sociais e
econômicas dos seus alunos e alunas, antes de qualquer outro
aspecto passa pela transformação pessoal e reflexão contínua
das suas práticas educativas.
Algumas considerações possíveis
Nos dias atuais, não é mais comum se falar em
verdades absolutas. Somos arrastados pelas circunstâncias
cotidianas que a vida e as relações com o “Outro” nos oferecem.
Como negar que nos processos educativos é possível identificarse a expressão de cada sociedade? A educação é um dos fios
condutores da construção e transmissão cultural seja: a língua,
às expressões corporais, as crenças, costumes, enfim o sentido
que os indivíduos dão as suas ações cotidianas, no espaço
escolar ou além e paralelo a ele. Buscarmos explicações para o
mundo do qual fazemos exige o reconhecimento de que a
realidade não deve ser pensada como imutável, visto que se
apresenta
em
aspectos
contraditórios
e
num
constante
movimento de construção e transformação.
As professoras que fizeram parte desse estudo já
abriram um canal de passagem para uma relação que possibilita
pensar nos educandos como indivíduos que precisam ser vistos e
reconhecidos em suas “diversidades culturais”.
Contudo, a experiência deste estudo nos confirmou
que, trabalhar com a cultura das camadas populares ainda
significa um grande desafio, pois,
geralmente
e
com
raríssimas
as práticas educativas,
exceções,
são
práticas
“manipuladoras de mente” e homogeinizadoras. Ainda a escola,
e, por conseguinte, o professor e a professora, nas suas atuações
pedagógicas, desprivilegiam a diversidade cultural dos seus
alunos e alunas, considerando “certa cultura” como única e
verdadeira. Desta forma, os indivíduos que não se adequarem a
mesma são discriminados e estigmatizados, e a responsabilidade
de possíveis fracassos escolares é atribuída à “falta de cultura”
dos alunos e alunas das camadas menos favorecidas da
sociedade.
Para que o professor e a professora possam respeitar a
autonomia de seus alunos e diversidade cultural presente no
cotidiano da sala de aula, algumas condições se fazem
necessárias. Formação contínua, envolvimento com uma
pedagogia ética, disposição para refletir, avaliar e alterar a sua
prática cotidiana, podem ser alternativas de combate às práticas
e aos programas educacionais massificadores.
Reconhecer a autonomia do educando nos processos
educativos e respeitar a sua cultura nas relações do cotidiano da
sala de aula não significa negar o reconhecimento da autoridade
do educador nesse processo de organização dos saberes, mas
sim, identificá-lo com o compromisso de interagir com o outro
dialeticamente na reinvenção da sociedade.
Referências
CHAUÍ, Marilena. Cultura e Democracia: o discurso
competente e outras falas. 5 ed. São Paulo: Cortez, 1990.
CERTEAU, Michel de. A Invenção do Cotidiano: 1. artes de
fazer. Trad. de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis, RJ: Vozes,
1994.
BORDIEU, Pierre. Escritos de Educação. 2 ed. Petrópolis/RJ:
Vozes, 1998
DAYRELL, Juarez. Múltiplos olhares sobre Educação e
Cultura, Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1999.
FREIRE,
Paulo.
Pedagogia
da
Autonomia:
Saberes
necessários á prática educativa. 7 ed. . Rio de Janeiro: Paz e
Terra. 1998.
GABRIEL, Carmem Tereza. Escola e cultura: uma articulação
inevitável e conflituosa. In. CANDAU, Vera Maria. (Org.).
Reiventar a Escola. Petrópolis/RJ: Vozes, 2000.
LIBÂNEO, José Carlos. Pedagogia e Modernidade: presente e
futuro da escola. In: GHIRALDELLI Jr, Paulo.(org.) Infância,
Escola e Modernidade. São Paulo: Cortez/ Curitiba: editora da
Universidade Federal do Paraná, 1997.
SACRISTÁN, J. G. & GÓMES, A. I. Pérez. Compreender e
transformar o Ensino. 4 ed. Artes Médicas, 1998.
SANTOS, José Luiz dos. O que é Cultura. 15 ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
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a relação dos professores com a cultura dos educandos das