DIALOGISMO ENTRE “SARGENTO GETÚLIO” E “SÃO BERNARDO”
Simone Almeida Alves Athayde 1, 3; Maria Raimunda Gomes 2, 3.
¹. Bolsista PBIC/UEG
². Pesquisadora - Orientadora
³. Curso de Letras, Unidade Universitária de Ciências Sócio-Econômicas e Humanas, UEG
RESUMO: É nosso propósito, na pesquisa em desenvolvimento, analisar o dialogismo
existente entre os romances Sargento Getúlio (1996), de João Ubaldo Ribeiro e São
Bernardo, de Graciliano Ramos, (1981). Para fundamentação teórica dessa pesquisa literária,
nos valeremos dos estudos de Bakhtin (1895-1975), que afirma: “o romance caracteriza-se
como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” (1998 p. 73). Para as estudiosas
da teoria bakhtiniana, Brait (1997) e Barros (1999), o princípio dialógico, para Bakhtin,
permeia não só a sua concepção de linguagem, mas do próprio mundo. As duas obras
analisadas são narradas em primeira pessoa por protagonistas que têm em comum uma
linguagem, que embora seca e econômica em Graciliano Ramos e rica em experimentações
em João Ubaldo Ribeiro, revela a ideologia e a crueldade dessas personagens, que se
desumanizam ao tentar abafar a voz do “outro”. Pode-se dizer também que são obras que
discutem as convenções escriturais do romance ao utilizar-se das dicções prosaicas da
enunciação oral. Além disso, a tragédia experimentada pelas personagens Getúlio e Paulo
Honório acaba ocasionando a libertação de uma falsa consciência que experimentavam.
Esperamos, com esta pesquisa, contribuir para os estudos a respeito do dialogismo, bem como
nos aprofundar nos estudos destes clássicos da literatura brasileira.
Palavras-chave: Dialogismo ; Ideologia ; oralidade.
Introdução
O teórico russo Mikhail Bakhtin (1998) afirma que o romance “caracteriza-se como
um fenômeno pluriestilístico, plurilíngue e plurivocal” (p. 73), ou seja, o romance é um
gênero dialógico, pois permite o diálogo entre estilos e gêneros intercalados e a coexistência,
no interior de seus enunciados, de diferentes vozes sócio-históricas. Entre os autores que se
dedicaram ao estudo das teorias bakhtinianas, Brait (1997) afirma que dialógico e dialético
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aproximam-se e Barros (1999) assevera que o princípio dialógico, para Bakhtin, permeia não
só a sua concepção de linguagem, mas do próprio mundo, e que, para ele, nenhuma palavra é
realmente nossa, mas traz em si a perspectiva de uma outra voz. Fiorin (2006) acrescenta que
podemos dividir o dialogismo em três conceitos. O primeiro diz respeito ao modo de
funcionamento real da linguagem, no qual todos os enunciados constituem-se a partir de
outros. Além deste dialogismo constitutivo, que não se mostra no fio do discurso, há um outro
que se mostra, composicional. Esta forma de absorver o discurso alheio no próprio enunciado
faz-se através da utilização de discursos alheios demarcados, como o discurso direto e
indireto, e o discurso bifocal, representado pela paródia, estilização, polêmica clara ou velada
e pelo discurso indireto livre. A intertextualidade, ou o diálogo que uma obra faz com outra,
estaria classificada nesta categoria. O terceiro conceito de dialogismo seria o princípio
constitutivo do indivíduo e o seu princípio de ação, já que a consciência constrói-se na
comunicação social e histórica.
Por nos interessar, nesta pesquisa, a questão do dialogismo externo, pretendemos
analisar as similaridades entre o romance Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro,
publicado em 1971 e o romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, publicado em 1936. As
duas obras são narradas em primeira pessoa por protagonistas que têm em comum uma
postura violenta e uma linguagem que, embora seca e econômica em Graciliano Ramos e rica
em experimentações em João Ubaldo Ribeiro, revela a crueldade de temperamento dessas
personagens. Sargento Getúlio narra a história de um policial militar de Sergipe, que em
meados dos anos cinqüenta, recebe de seu superior a ordem de levar um preso oposicionista
da Bahia para Aracaju. Entretanto, devido às mudanças no quadro político, o sargento recebe
uma contra-ordem para libertar o preso e não a cumpre por perceber-se traído. Esta rebelião
contra a autoridade leva o sargento a um final trágico. Porém, na sua insubmissão, Getúlio
consegue uma espécie de “libertação” ao encontrar sua verdadeira identidade, já que, até
então, não conseguia se indiferenciar do chefe- ideal. Em São Bernardo, encontramos o relato
da vida de Paulo Honório. Órfão, teve a infância marcada pela pobreza. Na juventude, foi
preso por ter esfaqueado um homem. Ao ser libertado, tinha um objetivo de vida: enriquecer a
qualquer custo. Com a morte da esposa, a única pessoa que não conseguiu dominar, Paulo
Honório percebe a inutilidade de sua vida e de seus atos cruéis, o que, a exemplo do que
ocorreu com Getúlio, também o liberta de uma falsa consciência. Frutos de uma mesma
situação de miséria social, essas personagens apreendem que para escapar da sina de
miseráveis do nordeste brasileiro, será necessário agir pela lei do mais forte.
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Pretendemos, com esta pesquisa, contribuir para os estudos sobre os procedimentos
do dialogismo que permeia estes romances brasileiros.
Material e Métodos
Para realização desta pesquisa foi feita a leitura dos romances Sargento Getúlio
(1982), de João Ubaldo Ribeiro, e São Bernardo (1981), que constituem o corpus do nosso
trabalho. É nosso intuito fazer um corte no levantamento dos aspectos dialógicos existentes
entre essas obras. Para isso, foram realizadas leituras de
obras teóricas e críticas sobre o
romance e o fenômeno do dialogismo _ que darão sustentação básica a essa pesquisa _ dos
seguintes autores: Bakhtin (1998), Barros (1999), Brait (1997), Fiorin (2006), Machado
(1995) e Marcondes Filho (1997). Também foram feitos fichamentos do material
bibliográfico e elaboração de resumos.
Resultados e discussão
Percebemos que os protagonistas, ao oprimir o “outro” para atingir seus fins,
compartilham de uma ideologia burguesa. Para entender melhor esta afirmação, é necessário
voltar aos primórdios do conceito de ideologia. Conforme Marcondes Filho (1997), foi Marx
quem primeiro introduziu o termo ideologia em seus estudos políticos, ao alegar que se
tratava de uma explicação intencionalmente falsa dos fatos que aconteciam na luta entre
classes. Entretanto, Marcondes Filho (1997) diz que para se entender a questão da ideologia é
preciso avançar no problema da relação do indivíduo com as formas de poder que ele vive. A
ideologia não é um fato individual, mas pertence a um grande grupo de pessoas; é um
conjunto de valores, uma visão de mundo que possui uma grande capacidade de mobilizar
pessoas e se concretiza na ação dos sujeitos; trabalha com símbolos e é formada por
estereótipos, que criam e alimentam preconceitos. A ideologia burguesa caracteriza-se pelo
desejo de ascensão social. O indivíduo, ao perceber a dificuldade para a obtenção deste
objetivo pelos caminhos tradicionais, utiliza meios desonestos e criminosos para sua
realização. Assim, na ideologia burguesa os fins justificam os meios. Outra importante
consideração é que o indivíduo portador desta visão de mundo acredita que, uma vez que
obtenha sua ascensão social e financeira, terá autonomia, será livre e feliz, além de tornar-se
senhor de todas as coisas e pessoas. Entretanto, o que ocorre é o inverso: quanto mais obtém
poder, mais o poder o escraviza. Getúlio aceita fazer o trabalho sujo, utiliza-se da tortura e de
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assassinatos para ser aceito e respeitado por seus chefes e para ter uma vida mais confortável.
Paulo Honório acredita que só será uma pessoa respeitada se tiver muitos bens e usar seu
poder sobre as pessoas, que trata como objetos. Ao se tornarem indiferentes ao sofrimento
alheio, essas personagens demonstram um caráter similar, desumanizado.
Encontramos analogias também nas opiniões derivadas do senso comum e nos
preconceitos emitidos por essas personagens. Ambos, por exemplo, demonstram aversão à
escolaridade, talvez por terem sido excluídos do processo educacional. Em Paulo Honório,
encontramos a visão preconceituosa contra as mulheres, que toma forma nos comentários a
respeito das normalistas, vistas como prostitutas. Já Getúlio utiliza-se de preceitos que traz da
sabedoria popular, tais como conselhos sobre não beber água após chupar cana e tomar
cuidado com prostitutas que ficam nas estradas, pois transmitem a “gota serena”. Paulo
Honório utiliza-se da religião como forma de promover-se socialmente e assim, como
Getúlio, cumpre os rituais sem nenhuma demonstração verdadeira de fé. A visão política de
Getúlio é alienada, reduzida a seguir fielmente o partido de seu chefe. Paulo Honório também
possui uma visão alienada, e utiliza a política para alcançar seus fins e angariar favores dos
governantes.
Outro importante ponto de dialogismo diz respeito à combinação de “literaturidade”
com as manifestações da oralidade existentes nas obras. Para Bakhtin (apud, Machado, 1995),
o princípio da “literaturidade” é o paradigma de língua culta que o romance utilizou como
modelo em alguns momentos de sua evolução para se constituir como representação
enobrecida. Em Sargento Getúlio temos, na experimentação de linguagem, a representação de
palavras chulas, amostras de várias palavras típicas do linguajar nordestino, além do recurso
da intertextualidade ao apropriar-se do cordel, gênero típico da cultura oral e popular daquela
região do país. Em São Bernardo, o próprio narrador-protagonista discute as convenções
escriturais do romance, uma vez que recusa as expressões retóricas em favor das dicções
prosaicas da enunciação oral na obra em questão. Este fato fica evidenciado logo no início da
narrativa, quando o protagonista conta que dispensara o ajudante que contratara para escrever
sua autobiografia porque ele o queria fazer em “língua de Camões” (1981 p.7).
Bakhtin observa em seus estudos, que o sujeito é constituído dialogicamente, não
absorve apenas uma voz social, mas várias, que polemizam entre si. As vozes sociais
penetram com suas ideologias, suas “verdades” em outras vozes, provocando lutas muitas
vezes não percebidas, já que a linguagem cotidiana está impregnada de relações dialógicas.
Há vozes que são permeáveis à incorporação de outras vozes, que se abrem à mudança.
Outras vozes são incorporadas como a voz da autoridade, são centrípetas, resistentes a
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relativizar-se. Pode ser, por exemplo, a voz da Igreja, do partido ou do grupo ao qual se
pertença. Getúlio e Paulo Honório são homens que buscam abafar a voz do “outro”, tanto pela
utilização da violência física, quanto pela supervalorização da própria voz, colocada como
centro da narrativa. Entretanto, as vozes desses protagonistas não lhes pertencem realmente,
pois são “construídas” a partir de suas experiências, ou seja, das influências dos processos
sócio-históricos em que estão inseridos. Portanto, nas obras analisadas, é possível descobrir a
pluridiscursividade ao inferirmos as vozes dos oprimidos no discurso do opressor.
Conclus ão
Como considerações finais, podemos verificar que há dialogismo na composição
estrutural das obras, ao utilizar a oralidade como estratégia composicional, seja como artifício
experimental, seja como elemento demonstrativo do caráter das personagens. Em relação à
temática, existe uma denúncia social implícita nas obras, pois elucidam o problema da miséria
como formadora de homens brutos e alienados. Do ponto de vista psicológico, as personagens
Getúlio e Paulo Honório se libertam da “falsa consciência” quando o primeiro rebela-se
contra o chefe, e o segundo, ao escrever a sua própria história.
O que foi observado nesta pesquisa, até o presente momento, permite concluir que
os aspectos dialógicos entre Sargento Getúlio e São Bernardo relacionam-se, tanto na
temática, qua nto no aspecto composicional, ao fato da pobreza nordestina produzir homens
que, para sobreviver, buscam abafar a voz do outro, num processo de desumanização. Ao
criar vínculos com a tradição oral, essas obras, em termos de expressividade discursiva e de
organização dos relatos dos protagonistas, se encaixam no que Bakhtin (1998) reconhece: que
o romance surge para representar a vida cotidiana através da representação do homem e de
sua linguagem.
Referências Bibliográficas
1. Bakhtin, Mikhail. Questões de literatura e de estética. São Paulo: Unesp, 1998.
2. Barros, Diana L. P. de; Fiorin, J. L (orgs.) Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São
Paulo: Edusp, 1999.
3. Brait, Beth. Bakhtin, dialogismo e construção do sentido. Campinas: Unicamp, 1997.
4. Fiorin,J. L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.
5. Machado, I. A. A prosaica dialógica de Mikhail Bakhtin. Rio de Janeiro: Imago, 1995.
6. Marcondes Filho, C. Ideologia. São Paulo: Global, 1997.
7. Ramos, G. São Bernardo. São Paulo: Record, 1981. 38ª ed.
8. Ribeiro, J. U. Sargento Getúlio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
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05- dialogismo entre “sargento getúlio” e “são bernardo”