Entre a lei e a tradição… qual o caminho a percorrer?!
A família Marques (nome fictício) é composta pelos pais e 5 meninas. As três filhas mais velhas
têm idades entre os 15 e os 17 anos. São uma família cigana, com as suas próprias tradições e
crenças. Pelos pais era referido que as filhas apenas estudariam até completarem o 4º ano de
escolaridade, para manter a pureza …“no ciclo há muitos rapazes e elas podem perder-se…lá
há drogas e os meninos mais velhos que gostam de se aproveitar delas… e também… para
que é que serve a escola? Somos ciganos ninguém nos dá trabalho” dizia um dos pais. Por
outro lado, nesta família o casamento desde muito cedo é encarado de uma forma natural.
Assim, a partir do momento em que tenham a menarca o matrimónio é permitido.
Chegamos então ao momento em que a tradição cigana e leis colidem. Ora vejamos, o art. 2.º
da Lei n.º 85/2009 de 27 de Agosto diz que “consideram-se em idade escolar as crianças e
jovens com idades compreendidas entre os 6 e os 18 anos”. Voltando ao caso da família
Marques, e a muitos outros da mesma etnia, as meninas casam-se por volta dos 16 anos e,
nesse momento deixam de frequentar a escola, para se juntarem ao marido “uma boa esposa
tem que saber cozinhar e arrumar a casa, não é na escola” dizia um outro elemento da família.
“A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem
lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em
perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse
perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que
aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo” refere o art. 3º da Lei n.º147/99 de 1
de Setembro. Nestes casos a situação é sinalizada à CPCJ mas…
Sendo culturas onde a escola continua a ter pouca importância, podemos dizer que estas são
crianças em risco? Pensando no seu futuro, o abandono escolar, pode prejudicar o
desenvolvimento pessoal e social dificultando o acesso à atividade profissional. No entanto,
será que estas famílias percecionam o impacto da baixa escolarização? Serão estes
agregados capazes de num curto espaço de tempo mudarem as suas convicções face ao
casamento? E qual o seguimento a dar ao processo, aplicar uma medida de Promoção e
Proteção ou arquivar?
As respostas a estes dilemas apresentam-se complexas sendo as opiniões divergentes. Terá a
tradição que se adequar à lei ou vise versa? Mais importante que estas dúvidas será analisar
que, sendo a escola obrigatória até aos 18 anos, é necessário a criação de estratégias onde a
lei e costumes atuem paralelamente. Afinal queremos que o contexto escolar se apresente
como meio de inclusão e de formação de cidadãos e não de discriminação.
A aproximação entre a escola e família será então essencial para que os jovens consigam
cumprir a sua escolaridade obrigatória com sucesso e motivação. É neste ponto que surge a
necessidade de um trabalho conjunto entre estabelecimento de ensino, família e técnicos para
que sejam criados currículos que vão de encontro às características pessoais, cultura,
capacidades e interesses destes. Por outro lado, se considerarmos que estes pais tiveram um
acesso restrito à escola, têm pouco conhecimento do papel e funções do encarregado de
educação e atribuem pouca valorização à frequência escolar, não será necessário
primeiramente envolver os pais na comunidade escolar? O papel ativo dos progenitores no
percurso escolar dos filhos será sem dúvida fundamental para dissipar os seus receios e para
que a escola não seja um espaço onde existem os “meninos ciganos e não ciganos”. Para a
família Marques a transição das suas filhas para 5º ano de escolaridade foi uma vitória. O
caminho foi árduo e as dúvidas e incertezas da família eram constantes. No 2º ciclo havia um
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espaço novo para pais e filhos que receavam que as filhas fossem “desonradas” e que fossem
abandonadas pelo noivo prometido. O que fazer então? Como garantir que estas meninas não
vão abandonar a escola? As várias reprovações, faltas e resultados negativos por si só quase
que determinam o encaminhamento para Cursos de Educação e Formação (CEF) ou de
Percursos Curriculares Alternativos (PCA).
Estes são claramente cursos considerados mais acessíveis, por serem mais práticos e de
menor duração. Contudo, serão a melhor alternativa?
Se considerarmos que atualmente estes cursos são essencialmente frequentados por jovens
com percursos escolares e pessoais desafiantes, não serão estes cursos propícios a maior
estigmatização? Estarão pais e professores preparados para que estas crianças/jovens
frequentem estas turmas?
Voltando à família Marques, as dificuldades escolares, a falta de motivação, e ainda o facto de
estarem em turmas com jovens considerados problemáticos foram fatores propícios a que
casamento fosse encarado como uma alternativa à escola “lá na turma delas os rapazes
fumam droga, estão sempre a ser expulsos…não queremos as nossas meninas lá, é melhor
elas casarem e ficaram em casa…eles são muito espertos e ainda desencaminham as nossas
meninas” declarava a matriarca.
Apesar da importância destes cursos, será então importante (re)pensar no conceito destas
turmas para que cada aluno tenha a devida atenção mediante a sua situação escolar, social e
familiar. Afinal queremos que estes jovens se sintam integrados e apoiados, pelo que será
essencial que cada aluno se sinta único e as expectativas da escola e família estejam
acertadas.
Espelhando que a tradição e a escola podem ser conciliadas e que cabe a cada técnico/
elemento marcar a diferença na vida de estas crianças…vale a pena pensar? “Por isso meu
neto, a escola tem que ser valorizada por todas as crianças. O segredo para vencer neste
mundo está numa boa escolarização, que nos abre caminhos e nos possa levar muito longe.
Não é porque não se estuda ou porque não se tira um curso que se preservam melhor as
tradições e hábitos ciganos. Ser cigano é também sonhar em ter e construir um mundo melhor,
embora possamos continuar a vê-lo à nossa própria maneira. Basta sentirmo-nos ciganos e
preservamos nos nossos lares as nossas tradições e hábitos. É na escola, meu neto, com
todas as nossas diferenças, que enriquecemos esta sociedade. Uma sociedade que é tua,
minha, nossa, de todos!”, Bruno Gonçalves, autor do livro "O Ciganinho Chico”.
07/02/2013
Filipa Barbosa
Educadora Social CAFAP CF
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