Anais do 5º Encontro do Celsul, Curitiba-PR, 2003 (905-912)
MONOFÔNICO OU POLIFÔNICO: ESTUDO DE UM TEXTO ESCOLAR
Márcia Helena de MELO (Universidade Estadual de Campinas)
ABSTRACT: We intend to evaluate if in one text produced in school environment for two students of high
school there is only one point of view or if this text congregates ideas and conceptions of world that
provide the crossing of the some social voices.
KEYWORDS: process; discourse; social voices; text
0.Introdução
A aula de redação dentro da escola tem uma função fundamental, não só por seu papel na
disciplina de Língua Portuguesa, cuja principal finalidade é ensinar a ler e a escrever, mas por ser usada
em todas as disciplinas, uma vez que a escrita constitui o principal modo pelo qual o aluno é avaliado e
pode expressar o conhecimento que adquiriu. Mais que isso, a redação na escola é um primeiro passo na
preparação do aluno para os textos que ele irá produzir na sociedade.
Vários trabalhos no âmbito da Lingüística, Lingüística Aplicada e Educação, no entanto, têm
apontado o estudo da escrita como sendo um mero exercício escolar. Athaíde Júnior (1995), por exemplo,
salienta como fatores restritivos à produção de sentido pelo aluno, o fato de que este deverá escrever
sobre um tema pré-determinado sem levar em conta o seu interesse: dirige-se, naquele momento, a um
professor que não será de fato leitor de seu texto, pois estará interessado em verificar, sobretudo, a correta
assimilação de pontos gramaticais.
Desta forma, na redação escolar parece não haver lugar para o conflito, a heterogeneidade e a
subjetividade. Ainda que o aluno faça opções quanto ao que vai escrever, elas são quase sempre
determinadas pela imagem que o aluno faz das expectativas do professor, seu único leitor e avaliador, e
não determinadas por seu próprio desejo. Há quase uma homofonia da voz legitimada.
Dadas essas considerações iniciais, objetivamos, neste trabalho, avaliar se um determinado texto
produzido por uma dupla de alunas pertencentes a primeira série do Ensino Médio de uma escola
particular-comunitária da cidade de Valinhos é monofônico ou polifônico, ou seja, se neste texto em
específico uma só voz se faz ouvir, exprimindo uma única visão de mundo ou se este texto reúne idéias e
concepções de mundo que proporcionam o cruzamento das várias vozes sociais. Será que essas alunas
inscreveram-se no repetível histórico, representando-se como controladoras e criadoras de sentido,
exercendo a função de autoria ou o texto se mostrou como um mero exercício escolar, no qual não há a
manifestação da voz das estudantes. Obviamente, não queremos, com isso, defender que a voz do aluno
que deveria aparecer seja a de um sujeito uno, individual, mas sim uma voz que, de alguma maneira,
reorganiza, a partir de reflexões e de sua própria historicidade, outras vozes.
1. Algumas considerações metodológicas
Antes de entrarmos nas bases teóricas que nos servirão de suporte para a análise a que nos
propomos, conforme exposto acima, alguns esclarecimentos se fazem necessários com relação à
metodologia empregada para coletar os dados que nos servirão como corpus de pesquisa.
Nossa intenção inicial, com este texto, foi olhar para a produção escrita como resultado de um
processo de construção, operado em uma dimensão temporal que inclui esboços, plano da obra,
elaboração, até chegar às correções finais.
Para que o processo de produção pudesse ser apreendido da maneira mais completa possível, três
etapas foram utilizadas. Primeiramente, fizemos uso de um software francês chamado Genèse,
desenvolvido pela Association Française pour la Lecture, em 1993, com objetivos pedagógicos. Tal
software registrou todas as idas e vindas, as substituições, novas ordenações, pausas etc. que as alunas
efetuaram ao longo da construção do texto. Desta maneira, todos os passos dados pelas alunas durante a
elaboração textual, inclusive todas as modificações, puderam ser impressos, proporcionando-nos a
apreensão da linguagem em seu status nascendi.
Em nossa segunda etapa, filmamos todo o momento de elaboração do texto em fita de vídeo com o
objetivo de capturarmos o diálogo mantido entre os sujeitos a respeito do texto: suas reflexões, suas
dúvidas, suas escolhas lingüísticas em detrimento de outras etc.
Na terceira e última etapa fizemos uma entrevista com as próprias alunas, desta vez gravada em
fita de áudio, questionando os motivos que as levaram a apagar, substituir, adicionar etc. Fizemos essa
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entrevista após uma análise prévia dos relatórios gerados pelo programa Genèse e análise da fita de vídeo,
pontuando os episódios que nos chamaram a atenção. A seleção de duas alunas para que o texto fosse
escrito conjuntamente foi, portanto, crucial para o nosso estudo.
Obviamente, neste trabalho que ora desenvolvemos não nos ocuparemos dos fatores envolvidos no
processo de produção textual, mas todas essas informações são necessárias neste momento para esclarecer
ao leitor que os dados de que dispomos para análise transcendem o mero produto final: o texto. Ou seja,
com esta metodologia, tivemos mais fontes de informação para recorrer e verificar se a polifonia esteve
ou não presente, pois além do produto final, o texto, tivemos acesso ao processo de produção desse texto
e pudemos verificar se, durante esse processo, houve alguma incidência de polifonia, seja em algum
momento durante o diálogo mantido entre a dupla durante a elaboração ou mesmo em alguma resposta
dada durante a entrevista que realizamos. E se houve incidência de polifonia durante o processo de
produção que não se concretizou na materialização lingüística escrita, cabe ao analista do discurso trazer
o fato à tona, uma vez que, diferentemente do hermeneuta, o analista procura desvelar os fatos resistentes
que precisam ser apagados para que os sentidos se dêem, tornando visível o seu modo de funcionamento.
É, enfim, como diz Pêcheux (1984), fazer com que a opacidade do texto, que aos olhos do leitor se
apresenta como transparente, faça-se visível.
Quando da coleta dos dados, os sujeitos, ambos do sexo feminino e com idade de 16 anos eram
meus alunos. Como já dito, tratam-se de estudantes de uma escola comunitária-particular da cidade de
Valinhos, que estavam cursando a 1ª série do Ensino Médio quando a pesquisa foi realizada, no segundo
semestre de 1999. Eles pertencem à classe média alta e têm pais com nível universitário.
2. Perspectiva teórica
Tal trabalho requer uma linha teórica que responda à reflexão que se pretende empreender. Noções
como a de sujeito, autor, interdiscurso e polifonia nos são caras nessa empreitada e sobre elas precisamos
discorrer, sucintamente.
Com relação à noção de sujeito e autoria, podemos dizer que correntes como o estruturalismo, o
materialismo histórico e a psicanálise, as quais constituem o suporte da análise do discurso francesa
(ADF), ameaçam a sobrevivência do sujeito da linguagem, pois para elas o sujeito é assujeitado à
estrutura da língua, à ideologia, ao inconsciente. Apesar de tomarmos como parâmetro fundamental de
análise os conceitos desenvolvidos pela ADF, postulamos uma concepção de sujeito ativo, que trabalha,
produz conexões e não é meramente afetado pelo discurso.
No Brasil, é Possenti quem, partindo da heterogeneidade constitutiva dos discursos e dos sujeitos,
mostra, em diversos artigos, o trabalho do sujeito. De acordo com o autor (1996b), como a língua joga
com fatores que lhe são externos, estes fatores devem ser levados em conta no momento da produção e da
interpretação de um enunciado. Baseando-se em Franchi (1992), Possenti concebe o sujeito como algo
mais que um lugar por onde o discurso passa, vindo das estruturas. Segundo ele, como os usuários da
língua estão sempre tendo que decidir o que levar ou não em consideração a cada ato de fala, o
funcionamento da linguagem exige dos interlocutores uma atividade, um trabalho. Ele defende a idéia de
que o sujeito não é meramente afetado pela língua e pelo discurso, mas que ele é ativo, trabalha e produz
conexões.
Ressaltamos que o fato de tentar demonstrar o trabalho do sujeito na linguagem não implica
postular um sujeito intencional, ou mesmo negar o inconsciente, a ideologia e a história. Ou seja,
descrever o trabalho do sujeito no discurso não significa inscrever-se numa filosofia do sujeito neutro,
transparente a si próprio – uma filosofia de antes da descoberta freudiana – nem naquela de um sujeito
sem determinações sócio-ideológicas – uma filosofia de antes de Marx. É como diz Possenti, inspirandose na formulação de Mainguenau (1987:12) sobre a relação entre língua e discurso (“a AD afirma [...] a
dualidade radical da linguagem, a um só tempo integralmente formal e integralmente atravessada pelos
embates subjetivos e sociais”) e baseando-se na análise de chistes para postular a inclusão na AD de
outros princípios tais como:
“os sujeitos são históricos e atuam; a ideologia está sempre presente, mas não é a única realidade
e também é histórica; que os sujeitos estão irremediavelmente dentro e fora do arquivo, quem sabe
mesmo arquivando; enfim, que a interação existe e se caracteriza pelo jogo tenso entre o que há
houve e o acontecimento circunstancial que ela é, no qual os sujeitos têm um papel que ultrapassa
o de ser um lugar imaginário” (1996a:45).
No que tange à concepção de interdiscurso, valemo-nos das considerações de Maingueneau
(1984). Este autor (op.cit: 27,28) explica o que vem a ser o interdiscurso, distinguindo uma tríade:
universo discursivo, campo discursivo e espaço discursivo. Afirma que o primeiro é constituído por um
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“conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem numa conjuntura dada”. Os campos
discursivos, por sua vez, são entendidos como “um conjunto de formações discursivas que se encontram
em concorrência, delimitam-se reciprocamente em uma região determinada do universo discursivo”. Os
espaços discursivos são recortes discursivos que o analista isola no interior de um campo discursivo tendo
em vista propósitos específicos de análise.
Como as formações discursivas pertinentes a um espaço discursivo podem apresentar poucos
elementos indicadores da relação que as constitui no nível da superfície discursiva, Maingueneau propõe
que se leve em conta os fundamentos semânticos dos discursos. Sendo os discursos fundados na relação
interdiscursiva, o autor propõe que o que se deve é “construir um sistema no qual a definição da rede
semântica que circunscreve a especificidade de um discurso coincide com a definição das relações deste
discurso com seu Outro” (idem:30). O discurso, assim, nunca seria autônomo, pois como ele se remete
sempre a outros discursos, suas condições de possibilidades se concretizariam num espaço de trocas, mas
jamais enquanto entidade fechada.
Sobre polifonia, adotamos o enfoque postulado pelo teórico russo Mikhail Bakhtin (1981). Para
este autor, a palavra não é monológica, mas plurivalente, e o dialogismo é, no quadro teórico de sua
teoria, uma condição constitutiva do sentido.
Embora dialogismo e polifonia sejam termos algumas vezes utilizados como sinônimos nos
escritos de Bakhtin, alguns autores como Barros (1994) distinguem claramente um do outro. Barros
reserva o termo “dialogismo” para o princípio dialógico constitutivo da linguagem e de todo o discurso e
emprega a palavra “polifonia” para caracterizar um certo tipo de texto, aquele em que o dialogismo se
deixa ver, aquele em que são percebidas muitas vozes, por oposição aos textos monofônicos que
escondem os diálogos que os constituem. Neste caso, monofonia e polifonia são tomadas como efeitos de
sentido decorrentes de procedimentos discursivos que se manifestam no texto. Assim, mesmo sendo o
dialogismo a condição fundamental da linguagem e do discurso, há textos predominantemente polifônicos
ou monofônicos, dependendo das estratégias discursivas acionadas. Nos textos polifônicos, os diálogos
entre discursos mostram-se, deixam-se ver ou entrever; nos textos monofônicos eles se ocultam sob a
aparência de um discurso único, de uma única voz.
Para o analista do discurso, interessa estudar a relação entre dialogismo e polifonia. Interessa
examinar como se dá o mascaramento – ou não – do dialogismo discursivo no plano textual. Como em
todo o texto são percebidas vozes que ecoam de maneira diferente no discurso, para se estabelecer o (s)
sentido (s) de um texto, tem-se, pois, que levar em conta como as diferentes vozes sociais se fazem
presentes na superfície textual.
E o que nos mostrou o texto elaborado por G. e J., sujeitos de nossa pesquisa? Exprime um único
discurso, uma única voz ou nele podemos visualizar o diálogo entre os discursos? Para sabê-lo, passemos
a análise do mesmo.
3. Análise
A proposta de produção textual entregue às alunas foi a seguinte:
De acordo com a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) brasileira, um trabalhador
deve cumprir uma jornada de 44 horas semanais. Isto significa quase 08 horas de trabalho
por dia, de 2ª a sábado.
Baseado na seqüência narrativa que os quadrinhos de Henfil1 sugerem, escreva uma carta
ao atual Ministro do Trabalho, argumentando em favor da diminuição dessa jornada diária
do trabalhador brasileiro.
Mediante a proposta de produção textual acima, G. e J. escreveram a seguinte carta ao Ministro do
Trabalho, dispensando 01 hora e 39 segundos para tal intento:
Valinhos, 09 de novembro de 1999.
Caro senhor ministro do trabalho,
Estamos lhe escrevendo na tentativa de chamar-lhe a atenção sobre a situação do trabalhador
brasileiro.
De acordo com a CLT (consolidação das Leis do Trabalho) brasileira, um trabalhador deve
cumprir uma jornada de 44 horas semanais. Isso significa quase 8 horas de trabalho por dia, de segundo à
1
A seqüência mostra as dificuldades vividas por um trabalhador comum no seu dia-a-dia: acordar cedo,
desjejum apressado, ônibus lotado, trânsito intenso, trabalho pesado etc.
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sábado. Levando em consideração a jornada de um trabalhador comum, tanto o senhor como nós,
podemos concluir que é inviável tal limite.
Um trabalhador que precisasse estar em seu serviço as 6:00 da manhã deveria necessariamente
acordar, no máximo, as 5:00, sendo este dono ou não de um meio de transporte, já que de ambas maneiras
enfrentaria congestionamento, ou no caso de utilizar o transporte coletivo, uma superlotação. Devendo
ainda encontrar tempo para se alimentar. Tal fato é inaceitável, uma vez que é necessário uma boa
alimentação para suportar 8 horas de trabalho.
Vale ainda salientar que a situação se agrava a medida que é falho o sistema rodoviário do país, por
mal administração governamental.
Com muito esforço, digamos que o trabalhador tenha conseguido chegar pontualmente em seu
serviço, este deve cumprir no mínimo 8 horas de jornada, devendo encaixar um curto espaço de tempo
para o seu almoço. Novamente o trabalhador tem sua alimentação defasada, prejudicando sua saúde e
conseqüentemente seu desempenho no trabalho.
Ao retornar para sua casa, o trabalhador, tem novamente que enfrentar o trânsito. Já em sua
residência e exausto, ao ligar a TV tem ainda que ouvir notícias sobre violência, desemprego e corrupção
no país.
Preocupado com o problema do desemprego, que aflige grande parte da população, este acaba se
submetendo aos horários da empresa e não se queixando da redução do salário se chegar atrasado.
Assim como a CLT, a constituição brasileira garante o direito ao lazer a todos os cidadãos. No
entanto, devido a correria do dia a dia, nossos trabalhadores não encontram tempo para tal atividade.
Saindo, como o senhor mesmo pode perceber, mais uma vez prejudicado. Já que é comprovado que falta
de lazer, atividades físicas e alimentação ocasionam doenças como o estresse.
Gostaríamos que ao ler esta carta, o senhor tomasse conhecimento das reais condições de vida de
um trabalhador comum (maioria em nosso país) e que a partir disso reconhecesse também que a jornada
de 44 horas semanais é impossível de ser cumprida, levando em consideração as deficiências do governo
e do país.
Gratas,
J. e G.
Inicialmente, chamou-nos a atenção o aspecto formal que a carta apresentou. As alunas iniciam-na
com local e data (Valinhos, 09 de novembro de 1999), de forma idêntica ao tão ensinado cabeçalho, que
acompanha a vida escolar do aluno desde o seu primeiro dia de aula. Segue-se um vocativo (Caro senhor
Ministro do Trabalho) condizente com o interlocutor, o corpo da carta, uma expressão cordial de
despedida (Gratas) e , por último, a assinatura.
Com relação a esse aspecto formal, as estudantes reproduziram exatamente os modos de circulação
desse gênero da escrita, tanto dentro da instituição escolar como fora dela, afinal sempre estamos a seguir
modelos. Lembrando aqui Bakhtin, os gêneros são “tipos relativamente estáveis de enunciados”, mas é
preciso frisar que os gêneros, embora estejam sistematicamente associados a determinadas formas
lingüísticas, não são uma estrutura fechada em si mesma, já que são constituídos no interior de
enunciações sócio-historicamente condicionadas. Ou seja, para Bakhtin, os gêneros (embora
relativamente estáveis), como qualquer outro produto social estariam sujeitos a transformações
decorrentes das transformações sociais. Não há, portanto, uma estabilidade total dos gêneros, mas
também não podemos dizer que sejam completamente instáveis.
Através do programa Genèse, pudemos visualizar que até houve uma tentativa de mudar essa
maneira de escrever a data da carta, já tão cristalizada: ao invés de “Valinhos, 09 de novembro de 1999”,
“09/11/99”. Perguntamos às alunas, na entrevista, o porquê da não concretização desta última maneira:
Pesquisador: Ao recuperar o texto na tela do computador, percebi que vocês começaram a
escrever a data desse jeito, olha só: 09/11. Chegaram a colocar o 1 e apagaram. Por que?
G.: tem que ser mais formal, né. Texto...
J.: cabeçalho...
G.: Você não escreve a data assim, tem que escrever sempre o mês.
Mas, porque não se escreve a data daquela maneira? Por que preferiram não subverter a maneira já
enraizada de se inserir uma data em uma carta formal? Qual voz está prevalecendo neste momento, a voz
do aluno ou a voz do discurso escolar? O diálogo mantido pela dupla no momento da elaboração dessa
parte da carta pôde nos dar uma pista importante, conforme nos mostrou a fita de vídeo:
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G.: como a gente começa? Data, o cabeçalho, né. Como o que? Valinhos? Coloca o cabeçalho, do
modo que a gente sempre faz: Valinhos... hoje é dia 09, 09 de novembro de 1999. Agora pula.
G. Senhor...
J. Excelentíssimo Ministro do trabalho...
Ou seja, as alunas preferiram reproduzir aquilo que lhes foi ensinado, prevalecendo a voz da
escola. Neste momento, a dupla entrou em um mesmo funcionamento que lhes exige se adequar a algo
pronto, que lhes exige a repetição formal, que não abre espaços interpretativos. Perguntas, então, podem
surgir, como: qual seria a solução? Ou ainda, sobre os alunos que conseguem se apresentar como donos
de seu dizer (e isso não significa originalidade, mas produtividade).
Pois muito bem, realmente há aqueles que conseguem se colocar como donos de seu dizer. Resta
questionar se este dizer é fruto do escape aos efeitos do jogo, ou se é fruto de entrar muito bem no jogo a
ponto de se colocar no direito de dizer. Este seria o caso das alunas. Podemos verificar que a carta delas
se apresenta com bom um domínio sintático e semântico, além de apresentar toda a nomenclatura
pertinente a uma carta formal: local e data, vocativo, corpo da carta, expressão cordial de despedida,
assinatura.
E o que nos revela o conteúdo da carta? Ao analisá-lo, será que conseguimos visualizar as
diferenças das diferentes formações discursivas sobre o assunto da redução da jornada de trabalho de 44
horas semanais? Será que há diferentes pontos de vista adotados no texto? Quais vozes aparecem nele?
Ao fazer uma análise da superfície textual, não há como não classificar a carta como monofônica.
Nela, as alunas expõem somente o ponto de vista do trabalhador e trazem argumentos para mostrar como
ele é prejudicado trabalhando a maior parte de seu tempo. Ou seja, não há nenhum ponto de vista que seja
diferente do ponto de vista adotado pelas alunas: o ponto de vista do trabalhador e suas dificuldades para
cumprir 44 horas semanais de trabalho. Não há nenhum topos discursivo contrário à redução das 44
horas. Mesmo quando as alunas referem-se a um “outro”, no caso o governo, fazem-no para ressaltar suas
improbidades administrativas que dificultam ainda mais a vida do trabalhador, a saber: o governo
administra mal as rodovias do país, dificultando ainda mais a locomoção do trabalhador ao seu local de
trabalho e, de modo genérico, o governo e o país são deficientes e isso deve ser levado em consideração
quando da tomada de decisão por parte do Ministro. Prevalece, assim, um único discurso. Não há outros
pontos de vista sobre a redução da jornada de trabalho; não há polêmica; não há um único aspecto
negativo levantado em relação à redução das 44 horas semanais. As alunas defendem no texto uma
posição “x” e trazem argumentos em prol desse discurso “x”.
É interessante salientar que as alunas não pertencem a formação discursiva (FD) do trabalhador
descrito no texto, pois pertencem a classe média alta e não enfrentam (tampouco seus pais) os problemas
relatados por elas. Porém, enquanto sujeitos locutores da carta, posicionam-se sob a perspectiva de um
trabalhador comum, mas não trazem outras FD para o interior desta de onde estão se posicionando
Ao analisarmos o processo de produção desta carta, ou seja, a fita de vídeo e também a entrevista
conferida, também não encontramos nenhum índice de polifonia. O único momento em que as alunas
levemente tangenciaram este tema foi quando enfatizaram que a locomoção do trabalhador é agravada
pelas precárias condições do sistema rodoviário do país. Nesse momento, G. lembra que o governo tomou
sim algumas medidas em relação ao trânsito quando instituiu o rodízio de veículos em São Paulo. Mas
Juliana rebate a colega dizendo que esta medida foi tomada em conseqüência do problema de poluição
que estava afetando o meio ambiente e não para desafogar o trânsito de São Paulo. Vejam:
G.: a gente tem que dizer que isso acontece porque é um grande número de carros, o governo não
toma medidas pra que... apesar que ele tomou, né.
J.: não, o governo tomou medidas!
G.: eu pensei no revezamento, mas ele não está fazendo mais.
J.: não, isso não adianta. Isso aí é pra meio ambiente, entendeu? Rodízio.
G.: tinha que ter mais ônibus coletivos circulando...
J.: mais ônibus
G.: e condições melhores de estradas, certo.
O texto é um puro reflexo da seqüência narrativa dada na proposta. Sendo assim, ele não chega a
ser um processo interacional. Neste caso, o aluno escreve não como um autor para um leitor, que vai
concordar ou discordar de seu discurso, mas de acordo com a ideologia de quem vai corrigir seu texto.
Todos sabemos que o processo interacional exige dois sujeitos, cada um com legitimidade para defender
sua posição. Porém, na escola, é como se o aluno não tivesse legitimidade para defender sua posição.
Adepta de um discurso monofônico em relação à produção escrita, a escola não discute pontos de vista,
não mostra diversidade de correntes, não propõe alternativas.
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A proposta de produção textual, obviamente pede, reclama por um discurso. E é o que as alunas
fazem: escrevem aquilo que se espera que elas escrevam, se adequando perfeitamente à atividade. O que
estamos querendo mostrar é que os sujeitos são divididos, heterogêneos e que a ideologia não os torna,
necessariamente, lineares e previsíveis. E que, mesmo se apropriando de um enunciado fixo para
subsidiar sua argumentação, o aluno poderá garantir o seu discurso. Ou seja, o sujeito pode ter seu texto
construído sobre as bases do discurso alheio, e garantir, ainda assim, a ‘autoria’ do que escreveu. Como?
De acordo com Miotello (1996:87), re-inventando, re-criando, re-fazendo a história, “misturando novos
elementos, organizando de formas diferentes, e incluindo dados que ainda não estão no baú da cultura,
mas que passarão a estar a partir de sua narração. E que ele introduz na narrativa marcas da sua
individualidade (...) É o ato de fiar a experiência própria da vida no fio que se perde no tempo.”
O texto não nos revelou índices de polifonia, mas os dados constantes do processo de produção
textual nos revelaram muitos dados a cerca do trabalho que o sujeito realiza com a linguagem. Houve, no
texto, 49 supressões e 31 mudanças evidenciando que, como é próprio do ato de escrever, as estudantes
têm suas hesitações, reescrevem, fazem modificações, substituem, rasuram, acrescentam palavras, enfim,
fazem inúmeras operações a fim de transmitirem sua mensagem de forma satisfatória para elas. Vejamos
alguns momentos em que o trabalho com a linguagem pôde ser verificado, como nos mostrou a fita de
vídeo.
G.: Senhor...
J.: excelentíssimo Ministro do Trabalho.
G.: Caro Senhor Ministro do Trabalho, né.
J.: por que precisa ser excelentíssimo?
G.: ah, não sei. Não muda muita coisa, não. Caro senhor Ministro do Trabalho. Caro... (já
escrevendo).
J.: estamos lhe escrevendo...
G.: ou, através desta carta tentamos lhe chamar a atenção para a atual situação do trabalhador
brasileiro.
J.: estamos lhe escrevendo para... (permanece esta forma).
Exemplos como estes podem ser encontrados ao longo de todo o texto, demonstrando que há uma
atividade do sujeito. Ao postular uma atividade para o sujeito da linguagem, Possenti chama a atenção
para o fato de que, mesmo tendo suas leis específicas, as línguas naturais são o que são em decorrência do
trabalho dos falantes, que nunca se dá no vácuo. Por isso, as línguas podem dispensar-se de ser sistemas
auto-suficientes ou coerentes, podem dispensar-se de ser estruturas. De acordo com o autor (1996a:42): “
a língua não é uma estrutura (porque é indeterminada), e é uma atividade (porque é histórica).
(...)Assim, o discurso é integralmente um acontecimento e integralmente peça de uma estrutura”.
Assim sendo, além dos fatores externos, a própria estrutura interna da língua é um sistema sintático
e semântico passível de jogo. Franchi (1987) enfatiza o aspecto criativo da linguagem que se dá quando
os sujeitos, tendo a sua disposição uma grande variedade de recursos expressivos, se utilizam deles para
instaurar seus próprios pontos de vista.
Disto decorre que a criatividade não está apenas ou principalmente no estilo, em uma espécie de
marca individual que se sobreporia ao uso da linguagem estruturada, mas na própria atividade lingüística.
Conforme Franchi (idem: 13):
“há uma atividade criativa mesmo quando a linguagem se sujeita a suas próprias regras e há
criatividade na construção das expressões mais simples e diretas em cada um de nossos atos
comunicativos. Há criatividade até quando nada falamos e nos servimos da linguagem no
solilóquio e no silêncio da reflexão em que reorganizamos os contrutos anteriores da
experiência”.
Há, portanto, um sujeito que emerge e que não é completamente livre, pois age num mundo de
representações, e nem é completamente submisso, pois é singular e marcado por um estilo que o faz
redimensionar e subverter atos.
Os exemplos acima mostraram que o aluno faz opções quanto ao que vai escrever, embora
saibamos que, na maioria das vezes, essas opções são determinadas pela imagem que o aluno faz das
expectativas do professor, seu único leitor e avaliador, e não determinadas por seu próprio desejo. De
qualquer forma, tais opções foram salientes e mostram um trabalho feito pelo sujeito. Por que, então, no
que se refere a polifonia, não encontramos nenhum índice no texto das alunas?
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Uma resposta para essa pergunta pode estar no fato de que a escola seja adepta de um discurso
tendenciosamente monofônico, principalmente em relação à produção escrita. O nosso sujeito-autor está
vinculado ao sujeito de direito que tem responsabilidade sobre o que diz, mas ao mesmo tempo, tem o
dever de dizer o esperado. Nós homogeneizamos continuamente o sujeito escolar.
Há opção para tal prática? Não me cabe propor soluções (o que é pretencioso e acima de minhas
possibilidades), mas concordo com Fiorin (1987) quando enfatiza que ao aluno é preciso ensinar a
gramática do discurso para que eles possam com mais eficácia interpretar e redigir textos, assim como
ensinamos a ele a coordenação e a subordinação. Só dessa forma, acreditamos, podem-se descrever e
explicar os mecanismos discursivos-textuais, seu funcionamento e os efeitos de sentido construídos.
Considerações finais
Procuramos, no texto elaborado por G. e J., esclarecer a maneira como a heterogeneidade
discursiva se manifestava para, a partir daí, classificá-lo como dominantemente monofônico ou
polifônico. Classificamos o texto como monofônico, pois ele não põe em cena quais os discursos
correntes sobre a redução da jornada de trabalho de 44 horas semanais, mostrando as variações, as
contradições e as diferenças. Ao contrário, o único ponto de vista adotado pelas alunas foi o ponto de
vista do trabalhador, relatando suas dificuldades para cumprir 44 horas semanais de trabalho. Não houve
um único aspecto negativo levantado em relação à redução das 44 horas; não houve polêmica. Uma
explicação para esta ocorrência pode estar no fato de que esse gênero – a redação escolar – funcionaria
como um exercício e, como tal, tenderia a abafar a voz dos alunos.
Para que haja um evento interpretativo é preciso que o sujeito se represente no lugar de autor, ou
seja, que ele se inscreva do interdiscurso: que o seu dito seja dizível. E isso ocorre quando há o exercício
da repetição histórica. Porém, quando só se dá a repetição empírica e/ou formal, os sentidos não se
constituem.
Com Possenti vimos que o sujeito não é um simples “lugar” atravessado por discursos, vindo de
estruturas. Na hipótese desse autor, o sujeito age, pois produz uma atividade quando está produzindo um
texto ou uma leitura de um texto. No texto analisado pudemos ver o trabalho dos sujeitos na procura do
melhor recurso expressivo para dizer o que pretendiam, em vários momentos da produção textual. O
processo de escritura nos revelou também comentários auto-apreciativos, apagamentos, acréscimos,
adições etc., afastando a obra da concepção romântica da criação.
E se em textos como o elaborado por G. e J. não encontramos o conflito, a heterogeneidade, a
subjetividade, é porque falta-lhes, entre outros, um maior conhecimento do discurso e do texto, seguindo
a esteira de Fiorin (1987). Mesmo quando domina a produção de frases, o aluno tem dificuldade em
construir o discurso. Fecha-se o círculo: sem saber produzir textos, o aluno preenche artificialmente o
tempo e o espaço da redação com fórmulas decoradas e repetidas daquilo que ele acredita ser um
discurso. É preciso, portanto, mostrar-lhe a riqueza dos meios textuais e discursivos, a ilimitação dos
efeitos de sentido que, com esses recursos, podem ser obtidos. Em suma, deve-se fazê-lo “descobrir” que
o discurso e o texto têm organização própria, que há uma gramática do discurso ou do texto. Só assim ele
poderá “apropriar-se” de seu discurso.
RESUMO: Objetivamos avaliar se em um determinado texto produzido em ambiente escolar por duas
alunas pertencentes ao Ensino Médio uma só voz se faz ouvir ou se este texto reúne idéias e concepções
de mundo que proporcionam o cruzamento das várias vozes sociais.
PALAVRAS-CHAVE: processo; discurso; vozes sociais; texto
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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