Pobreza, números e marketing
Lena Lavinas1
Nas duas últimas semanas, a imprensa divulgou uma nova bateria de dados sobre
a pobreza no Brasil.
O Banco Mundial, no seu mais recente relatório, assinala que o valor dos
benefícios dirigidos aos pobres é insuficiente e que programas de transferência direta de
renda como o bolsa-escola deveriam ter seus valores aumentados em 10 ou 15 vezes, o
que coloca automaticamente em xeque o corte voraz nos gastos sociais promovido pelo
ajuste fiscal perseguido pelo governo federal. Na verdade, o Banco refere-se aqui aos
atuais valores da nova versão do programa federal, o Bolsa-Família, uma vez que
experiências pregressas e bem sucedidas como as iniciativas pioneiras de Brasília, Belo
Horizonte ou Recife, entre outras, tomavam como valor do benefício o salário minimo
vigente.
Vale à pena recordar que um diferencial espetacular dos programas bolsa-escola
descentralizados foi justamente o valor elevado do benefício, condizente com a
intensidade da pobreza, bem como o efeito incremental na coordenação dos demais
programas e políticas sociais em nível local, promovendo aumento do gasto social
agregado por força da necessidade de suprir déficits outros, para além da renda,
igualmente prementes e incontornáveis.
Interpretando o recado do Banco Mundial, o Bolsa-Família tem provavelmente
impacto quase nulo na redução da pobreza e da miséria pois eleva em apenas três vezes o
valor médio das transferências diretas ao público-alvo herdados da era FHC, segundo
informe do próprio governo federal na sua página da Internet. De acordo com Cohn e
Fonseca2, o valor médio do benefício familiar em 2003 ficou em R$ 72,80. Em se
tratando de uma família padrão de quatro pessoas, isso significa um benefício individual
mensal de R$ 18,20 ou um acréscimo na renda per capita diária de 61 centavos de Real
ou 21 centavos de dólar. Haveria que encontrar os demais 79 centavos de dólar que
1
Economista, 51, professora-adjunta do Instituto de Economia e do Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional da UFRJ.
2
O Bolsa-Família e a questão social. In Teoria e Debate, ano 17, n. 57, março-abril de 2004, São paulo:
Fundação Perseu Abramo, p. 10-15.
1
faltam para se chegar à linha de um dólar/dia/per capita propugnada pelo Banco, linha
que permanece sem dúvida bastante imprecisa e imprópria para medir o déficit de
atendimento das necessidades básicas da população carente.
Já o Centro de Política Social da FGV afirma que R$ 2 bilhões mensais
permitiriam eliminar a miséria, isto é, uma dotação anual 4,5 vezes maior que o previsto
para o Bolsa-Família no orçamento de 2004, estimado em R$ 5,3 bilhões. Por ocasião do
release do Mapa da Fome II, a FGV além de descrever o quadro de carência que persistiu
e se agravou ao longo da década de 90 entre nós, oferece uma solução possível, rápida e
quase indolor. Tudo isso por apenas R$ 14,00 mensais. No limite do irrecusável.
Trocando em miúdos: existe um antídoto ao alcance da sociedade brasileira para
acabar com a miséria no país. Basta que cada brasileiro – seja ele criança, inativo, logo,
também aqueles com renda zero - vivendo em famílias cuja renda familiar per capita
esteja acima da linha da pobreza de precisos R$ 79,00 mensais concorde em solidarizarse com os que estão no andar de baixo, doando o equivalente a 14 refeições por mês a
preços dos restaurantes populares que se multiplicam país afora. Pelas contas da FGV,
podemos deduzir que o valor per capita médio do benefício seria algo em torno a R$
35,00 mensais, considerando-se como público-alvo o terço mais pobre da população. Ou
seja, o dobro do valor médio do Bolsa-Família e bem menos que o custo mensal de uma
passagem diária de ida e volta nos transportes urbanos metropolitanos, das mais baratas.
Ainda que dois terços da população doassem linearmente R$ 14,00, independente
do seu nível de renda e da distância social e econômica vis a vis a linha de R$ 79,00,
nem assim teríamos vencido a miséria ignóbil. Além de insuficiente, tal solução mostrase bastante improvável. E esse é o dilema ! Como a linha divisória não demarca aquele
contingente extraordinariamente grande dos cronicamente vulneráveis, que oscilam
acima e abaixo de linhas arbitrárias, mesclando distintas condições – pobre, excluído,
sem nenhum tipo de cobertura social, quase miserável, ou prestes a sê-lo por força do
desemprego, da doença, da desproteção absoluta, de dificuldades familiares -, pode-se
imaginar que muitos dos vulneráveis acima da linha de indigência viriam somar-se aos
mais deserdados do andar de baixo se passassem a contribuir diretamente para dirimir a
miséria alheia. Portanto, o valor da contribuição seria forçosamente mais elevado que o
calculado de forma linear, a menos que se penalizem os pobres não-miseráveis.
2
Evidentemente, tal exercício sugere uma aparente facilidade na modalidade da
transferência direta que, era de se esperar, encanta a muitos. Encantamento entendido
aqui como “tornar invisível”. O desafio é de monta. A título de comparação, vale
recordar que em 2002, segundo informações da Secretaria de Política Econômica3, o
gasto direto assistencial somava meros R$ 10,2 bilhões (valores correntes), ou 5% do
gasto social, inclusive aposentadorias e pensões do RGPS. Neste mesmo ano, a saúde
consumia R$ 24 bilhões.
Para bom entendedor, a conclusão é simples: será necessário um esforço
imensamente maior se de fato quisermos implementar de uma vez por todas nesse país
uma política social compensatória de cunho verdadeiramente redistributivo e efetiva. O
volume para tal seria hoje da ordem de R$ 4,5 a R$ 5 bilhões mensais. Proposta
aparentemente descabida, tal qual descabido é o passivo de pobreza e miséria que
acumulamos. O rumo da política macro-econômica está definitivamente na contramão do
enfrentamento conseqüente e eficaz da pobreza e da exclusão. Benefícios de valor
monetário aquém do requerido para pavimentar hiatos de renda acentuados, ainda por
cima permeados por condicionalidades e restrições, definitivamente não resolvem a
equação. Há que ser arrojado, retirando, portanto, de imediato as lentes que edulcoram a
visão da nossa própria perfídia. Não há mais lugar para trocados, nem mesmo aqueles
doados com boa vontade. O tempo do marketing acabou. É hora de ser consistente e
construir uma política social acoplada a uma política fiscal e tributária que garanta
financiamento permanente e redistribuição em escala, ambos invioláveis. Ponto esse que
permanece fora da agenda do governo e do laço das armadilhas do bom e barato.
3
Gasto Social do Governo Central: 2001 e 2002. Ministério da fazenda. Brasília, 2003
3
Download

O governo gastou ao todo em 2002 cerca de R$ 10 bilhões em