Publicação original: artigo
Formato: texto integral
Fonte: “Sentido da viagem”, Arte e Ciência-Descoberta/Descobrimentos-Terra
Brasilis/Elza Ajzenberg (coord.) São Paulo: ECA/USP, 1999, Volume II
Autora: Rita Mendonça
Sentido da Viagem
Hoje em dia é possível viajar para qualquer parte do planeta. Regiões desérticas,
vales e montanhas mais escondidos da geografia são hoje acessíveis aos viajantes bem
dispostos. Vilarejos onde comunidades ainda vivem em seus costumes tradicionais podem ser
visitadas.
Os meios de transporte e de comunicação tornaram possível não só o contato direto
com as mais variadas regiões como também possibilitaram a construção da própria idéia de
planeta, isto é, a idéia de que todos nós – por mais diferentes que possamos ser, indivíduos e
culturas – somos tripulantes dessa mesma espaçonave.
Viajantes sempre existiram: aventureiros que saíam em busca de novas terras, novos
recursos, novas experiências, novas trocas. No entanto, houve uma época na historia da
humanidade em que as viagens se tornaram o meio a partir do qual toda a concepção de
mundo vigente se transformou completamente: foi a época dos descobrimentos. Segundo
Edgar Morin e Anne B. Kern1, foi a partir de 1992 que as jovens nações européias, ao
partirem para a descoberta de novos territórios, suscitaram o que hoje chamamos de Era
Planetária; suscitaram o que hoje chamamos de Tempos Modernos.
Esses novos tempos são marcados pela descoberta de que a Terra é só um planeta (e
não é mais o centro do cosmos, como se acreditava) e pela comunicação entre as diferentes
partes desse planeta. As viagens provocaram, portanto, uma profunda transformação das
visões de mundo das mais variadas civilizações então existentes. Nem a China nem a Índia –
que na época eram as mais importantes civilizações do mundo – nem os impérios Inca e
Azteca – que foram violentamente subjugados, apesar de serem muito mais desenvolvidos
que as nações invasoras – deixaram de incorporar as profundas transformações trazidas pelo
contato com os estrangeiros que abarcavam em suas terras.
Essa nova visão de mundo foi se expandindo pouco a pouco por todo o globo, ao
mesmo tempo em que a ciência e a técnica foram se tornando referências fundamentais dessa
nova civilização. Hoje a sociedade moderna se vê de um lado globalizando as suas economias
e suas culturas, e de outro lado totalmente compartimentalizada, dificultando a comunicação
1
Edgar Morin e Anne Brigitte Kern, Terra Pátria, Barcelona: Kairós, 1993.
entre as partes que a formam. As infinitas possibilidades e interconexões convivem com a
ausência de linguagem comum.
A devastação do planeta e o esgotamento dos recursos naturais são preocupações de
alguns setores, apesar de afetarem a todos. Os desequilíbrios sociais também afetam a todos:
a violência, o stress, a miséria e a fome.
Há indícios que os desequilíbrios recentes são indicadores do final de uma era,
assim como aconteceu com tantas civilizações que ocuparam e se expandiram pelo planeta
antes de nós. “(...) a crise que hoje estamos enfrentando não é uma crise qualquer, mas uma
grande fase de transição, como as que ocorreram em ciclos anteriores da história humana. (...)
Eles podem ter sido menos de meia dúzia em toda a história da civilização ocidental, entre
elas o surgimento da agricultura no Neolítico, a ascensão do cristianismo na época da queda
do Império Romano e a transição da Idade Média para a Idade Científica2”.
Se as viagens foram tão importantes e estão na origem da construção dessa fase da
história que estamos encerrando, qual é agora o seu papel na fase atual de transição,
construção de novos valores e na solidificação das bases desses novos tempos que hoje estão
se delineando?
Tal como nas demais atividades humanas, o turismo hoje se desenvolve, a meu ver,
por dois diferentes caminhos:
a) há viagem convencional, em que o modelo de vida urbano é transferido para o
local visitado, transformando os espaços turísticos em áreas muito similares aos locais de
origem dos visitantes. A multiplicação das facilidades para viajar, a garantia de segurança e
de conforto, se de um lado possibilitou o contato com qualquer par do mundo, de outro vem
levando o visitante a uma experiência cada vez mais monótona, diluída e pré-fabricada.
Embebidos de sua própria cultura, espalham pelo globo sua experiência de dominação, de
indiferença, de descompromisso. O viajante te se tomado cada vez mais passivo, evita a
experiência, o contato, e se contato com manifestações pré-organizadas e sem autenticidade.
Essas características são observáveis em qualquer tipo de localidade turística, seja urbana,
rural, e mesmo em áreas naturais.
b ) há a viagem encarada como uma oportunidade de vivência, que propicia
transformações internar profundas nos indivíduos; ela propicia experiências novas por poder
se colocar em confronto com o outro, vivenciar o incomum, reconhecer-se com a diferença,
ampliando assim o conhecimento que cada um pode ter de si mesmo. São viagens que situam,
2
Frijot Capra, O Ponto de Mutação, São Paulo: Cultix, 1983.
acima de tudo, o respeito e o interesse por outras maneiras de pensar, fazendo com que essa
diversidade seja a base para a aproximação de outros povos que vivem hoje sua vida à sua
margem ou apesar de nós. É uma maneira de viajar que nos leva a refletir sobre as diferenças
e que busca compreender os fundamentos dessa diferença.
Para finalizar, gostaria de enfatizar a importância do desenvolvimento desse
segundo perfil de viagem, como base e um dos caminhos possíveis para a estruturação de
uma sociedade mais harmônica e da vida com mais qualidade. Nessas experiências, a relação
com o tempo e o espaço são recriadas e as relações como o diferente são transformadas de
forma a fazer renascer o germe do respeito, do interesse e da preservação da dignidade tanto
do visitante como do visitado. Se o que estamos buscando é modificar o paradigma de
sociedade sob o qual hoje vivemos, é necessário proporcionar um processo de vivência onde
essas transformações possam se experimentadas tanto nas relações de cada um consigo
mesmo, como nas experimentações no contato com o outro e com o meio que o cerca. Há um
outro mundo a ser descoberto quando o percurso é feito com a intenção da busca, da
experiência, e não da conquista e da dominação. Fazendo isso, seguimos o conselho de
Michel Serres:3
Parte, deixa o ninho para se enriquecer com os costumes de outros lugares, aí ouvir
palavras nunca antes proferidas. Expõe o corpo ao vento e à chuva porque, para ser
verdadeiramente educado, é preciso se expor ao outro, esposar a alteridade e renascer
mestiço.
3
Michel Serres, Filosofia mestiça. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
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