O PLANETA DOS HOMENS
Álfio De Vuono
CAPITULO I
Em Verna, a sofisticada capital de Creta, com seus magníficos prédios,
seus sofisticados meios de transporte, sua exuberante vida noturna, camuflava a
insatisfação dos Vernianos com os desmandos com que as forças armadas tratavam os
civis.
Naquela noite, Karmon chegou a pé na boate Lê Vit. Na entrada
principal deixou passar um alegre grupo de jovens, que tinham acabado de chegar
num magnífico carro aerodinâmico..
Seguiu os jovens, atravessou o salão pelo meio de uma rapaziada
alegre e descontraída, que dançava e pulava ao som de um ri timo alucinante, no
salão enfeitado com uma decoração erótica, iluminada por centenas de luzes
coloridas.
Entrou por um corredor lateral, parou em frente de uma porta imitando
a cara de um macaco, e apertou um botão colocado discretamente na lateral da porta.
Um dos olhos do macaco mudou de cor, e em seguida a porta se abriu.
Karmon entrou cumprimentou o jovem que tinha aberto a porta e
perguntou:
-Jeton já chegou?
Com um aceno de mão o homem confirmou, enquanto fechava a porta.
Karmon continuou pelo corredor, e entrou num pequeno salão onde
uma dúzia de homens, incluso Jeton, aguardavam sentados em poltronas próximas a
uma mesa central.
-Boa noite, sussurrou sentando numa poltrona ao lado da mesa.
Antes que dissesse qualquer coisa, um dos homens comentou:
-Olha! As coisas não estão bem.. .invadiram ontem a célula H, todos
estão presos...
Jeton interferiu e comentou:
-Acho que há traidores entre nós!
Nem bem tinha acabado de falar, um estrondo fez-se ouvir no corredor,
o porteiro entrou correndo na sala, e caiu morto com um tiro nas costas.
De imediato, dezenas de soldados armados com metralhadoras
invadiram o pequeno salão, apontando suas armas para todos que ali estavam.
Cercados pelos soldados, todos levantaram rapidamente das poltronas,
no mesmo instante que Krisan, um rapaz que não teria mais de dezessete anos,
sobrinho de Jeton, apavorado, correu para a porta dos fundos do salão. Uma rajada de
metralhadora de um dos soldados costurou seu corpo, e o rapaz morreu antes de
atingir o chão.
Jeton num impulso tentou correr para o sobrinho, mas Karmon o
segurou pelo braço, ao mesmo tempo em que o comandante do pelotão, parado na
frente do grupo, vociferou em vos áspera:
-Alguém mais está interessado em fugir?
Alguns minutos depois todos os jovens no salão, acantonados, e
cercados por vários soldados, viram um bando de civis atravessarem o salão,
escoltados pelos soldados, e desaparecerem na saída da boate.
Todos os militares se retiraram em seguida, e os jovens, muito
curiosos, correram para a entrada, a tempo de ver todos os prisioneiros empurrados
para dentro de dois camburões do exercito, que juntamente com os soldados partiram
em alta velocidade.
Alguns minutos depois, a musica, e a algazarra da rapaziada tornou a
se ouvir, e se alguém passa-se por ali naquele instante não teria a mínima idéia do que
tinha acontecido.
Em Creta, governada por uma junta militar, a justiça era extremamente
severa para os que se insurgiam contra o regime.
Karmon e Jeton tiveram sorte, e escaparam por pouco da pena de
morte.
Não havia provas concretas contra eles, mas pelo simples fato de
estarem reunidos de forma suspeita, um julgamento sumário os condenou a prisão
perpétua.
Uma semana depois do julgamento, ambos vestindo uniforme de
presidiários, e mais oito companheiros de infortúnio, são encontrados numa viatura
aparelhada para o transporte de prisioneiros, a caminho da prisão Estadual de Verna,
por uma auto-estrada de seis pistas.
Algumas horas mais tarde, o camburão entrou a direita, numa estrada
secundária, e alguns quilômetros na frente, se aproximou de uma imensa construção
quadrada, com mais de dez metros de altura, no meio de uma bucólica várzea onde
pastavam muitos animais.
Um monumental portão preto se abriu na muralha, o veiculo entrou, e
parou na frente de outro portão. Apenas o de traz se fechou, o da frente abriu
permitindo a passagem do ônibus que parou logo adiante.
Enquanto o portão se fechava na traseira do veiculo, travas automáticas
se soltaram livrando os pés dos prisioneiros, enquanto uma voz metálica os ordenou
que descessem do camburão.
Karmon desceu da porta do ônibus, em frente a uma porta de aço. De
cada lado um andróide desarmado observava, enquanto a voz metálica continuava
orientando seus movimentos.
Tanto Karmon como Jeton, e os outros, sabiam que qualquer
movimento inusitado poderia lhes custar a vida.
Os andróides não usavam armas, mas cada um tinha a força de mais de
dez homens.
O prisioneiro na frente de Karmon, teve a experiência disso.
Tropeçou ao descer, cambaleou na direção de um dos andróides, e levou um
empurrão tão violento que atravessou a porta de aço, se estatelando no chão do outro
lado.
Karmon entrou, ajudou o companheiro a levantar-se, e juntamente com
os outros, numa fila cerrada, sempre vigiados pelos andróides, percorreram escadas e
corredores, até as celas, onde ficariam pelo resto da vida.
Karmon e Jeton entraram na nova morada, a grade de aço fechou nas
suas costas, e ambos tiveram a sensação que estavam mortos, e aquela era sua tumba.
De cada lado da parede, uma cama de aço chumbada no chão, com um
colchão com uma saliência na cabeceira a titulo de travesseiro, revestido com um
tecido aparentemente indestrutível.
Karmon sentou na cama e Jeton comentou:
-Nós vamos morrer congelados aqui no inverno,... sem cobertas!
-Podemos morrer de tédio... mas congelados não.
-Por quê? Vai ter cobertas?
-Não! O ar é condicionado... Não reparou?
-Uhh! Grunhiu Jeton, olhando em volta, e perguntando:
-Você está enxergando alguma privada por aqui?
-Ali, quem sabe! - Apontou Karmon para um volumoso botão num
quadro vermelho na parede dos fundos.
Jeton chegou lá, apertou o botão, e de um lado da parede deslizou para
fora um vaso sanitário, e do outro um lavatório com armário.
-Que luxo! - Exclamou, ao mesmo tempo em que urinava no vaso.
-Se você apertar o botão, eles se recolhem, e quando voltarem estarão
limpos.
-Parece que você já andou por aqui! - Comentou Jeton com um leve
sorriso.
-Não... Mas ouvi de quem já andou.
-Beleza! Pelo menos não vamos precisar lavar privada, disse Jeton,
deitando na outra cama.
CAPITULO II
Enquanto isso, a centenas de quilômetros daquela prisão, no centro de
um amplo vale, se situava um edifício baixo, retangular, com dezenas de janelas em
todo seu contorno. Num pilar ao lado de um amplo portão que dava acesso ao prédio,
através do vale, numa pequena placa preta, gravado em letras prateadas, lia-se: I.P.A.
– Instituto de Pesquisas Avançadas.
Naquele instante, o portão silenciosamente deslizou para dentro do
chão, e nem bem tinha desaparecido no piso uma limusine azul com oito rodas,
passou em alta velocidade na direção do prédio do Instituto.
Parou abruptamente na frente da entrada principal, e um homem, sem
paletó, aparentando ter uns cinqüenta anos, meio calvo, e com a barba por fazer, saiu
da porta traseira, e mais correndo que andando entrou no prédio.
Passou apressado pelo recepcionista no balcão, que mal teve tempo de
dizer:
-Boa tarde, Doutor!
Não recebeu resposta, e o Doutor desapareceu por um corredor lateral.
Andou uma dezena de metros, virou a esquerda, parou em frente a uma
porta almofadada, colocou a mão fechada no peito, sussurrou alguma coisa, como se
estivesse rezando, e entrou.
Fechou a porta e encostou-se nela. A sua frente um imenso laboratório
evidenciava a importância das pesquisas que ali eram feitas.
Painéis luminosos, instrumentos, maquinas sofisticadas, e mais um
sem numero de equipamentos, se espalhavam por toda a área numa aparente
desordem..
Por entre os equipamentos, numa larga passagem na frente do Doutor,
apareceu, em desabalada carreira, um magnífico cão Pastor. O Doutor Kurts, esse era
seu nome, mal teve tempo de se agachar, quando o animal pulou sobre ele. Ambos
rolaram pelo chão, e o Pastor numa demonstração enorme de carinho, lambia o rosto
do cientista, puxava sua roupa, corria a sua volta, enquanto o Doutor com palavras de
carinho, tentava acalmar a alegre euforia do cachorro.
Carta e Crumer, companheiros de Kurts nas pesquisas, se aproximaram
sorrindo dos dois.
O Doutor, ajoelhado, abraçado no pescoço do animal, olhou para os
dois, e comentou:
-Por tudo que é mais sagrado... Deu certo!
Crumer acenou a cabeça afirmativamente, enquanto ajudava Kurts a se
colocar em pé.
Caminhando abraçados, por entre os equipamentos, o cientista
perguntou:
-Como ele está?
-Magnífico, - respondeu Carta – coração, pressão, temperatura... Tudo
normal.
-Nessa altura, com os resultados que nós temos, a pesquisa tem de
avançar! – comentou Crumer.
Kurts entendeu o que o colega quis dizer, e afirmou:
-Tem toda a razão... Vou solicitar uma reunião da Junta o mais breve
possível.
Carta, agachando, segurou a cabeça do cachorro entre as mãos, que
balançava o rabo alegremente, e comentou.
-Se autorizarem, até eu me candidato!
Ambos os companheiros riram, e Crumer comentou:
-Não garanto que estarei presente!
Alguns dias depois, numa ampla sala de reuniões, no Departamento de
Planejamento, vamos encontrar reunidos em torno de uma mesa retangular, várias
patentes militares, e alguns civis.
O militar na cabeceira da mesa, com certeza o Comandante da reunião,
dirigiu-se ao soldado perfilado na porta, e ordenou:
-Peça que entrem!
O ordenança abriu a porta e Kurts, Crumer e Carta entraram no salão.
O comandante na cabeceira da mesa levantou, e com um aceno de mão os convidou a
se aproximarem.
-Sentem por favor – Pediu o militar apontando as cadeiras ao seu lado,
e sentando também, disse:
-Todos aqui conhecem o Doutor Kurts, como também os membros de
sua equipe... Foi interrompido com um murmúrio geral de assentimento. Mas
continuou em seguida:
-Pois é! O doutor, juntamente com sua equipe, como vocês sabem, tem
por mais de duas décadas, contribuído de forma decisiva na solução de vários
problemas, e teses cientificas... Certo?
-Hoje, ele vem nos solicitar autorização para dar continuidade, ao que
convenhamos
é
a
mais
espetacular
de
suas
pesquisas...
-Todos vocês já receberam o relatório, então acho que a solicitação pode
ser debatida!
-Pelo que eu entendi do relatório, - falou um dos militares – vocês
estão solicitando seres humanos para dar continuidade a vossa pesquisa?
-Exato. Afirmou Kurts.
Do fim da mesa, um civil perguntou:
-Vocês não acham que uma só experiência bem sucedida com um único
animal, é muito pouco para arriscarmos a vida de um ser humano?
-Veja bem! – falou Kurts – Para chegarmos aos conhecimentos
aplicados na última experiência, foram necessárias dezenas de outras tentativas...
-Sim, mas o sucesso da ultima tentativa não pode ser atribuído ao
acaso? – comentou um militar a esquerda de Carta.
-Negativo! – afirmou Crumer – Não fazemos experiências aleatórias na
expectativa de errar ou acertar. Isso não seria nada cientifico.
-Pelo relatório o animal hibernou por quinze anos?
-Certo Comandante... Mas hibernar não é a palavra correta. Ele teve
seu organismo, digamos, desativado instantaneamente, e permaneceu assim durante
quinze anos. Quando retornou até a digestão do que tinha comido, continuou como se
nada tivesse acontecido – comentou Carta.
Um murmúrio de admiração ecoou na sala, e o Comandante
perguntou: - Quinze anos é um prazo curto, e se por acaso fossem cento e vinte anos?
-A única coisa que poderia prejudicar a experiência seria a falta de
energia para manter os equipamentos funcionando. –afirmou Kurts.
-Existe então uma possibilidade de fracasso?
-Não... Reatores por fusão nuclear podem fornecer energia ininterrupta
por milhares de anos. - concluiu Kurts.
Um dos civis sentado no outro extremo da mesa, levantou a mão, e
perguntou:
-Professor, admitindo que a experiência usando seres humanos seja
realmente um sucesso, qual o interesse prático para o País em autorizarmos sua
execução? Eu pergunto isso, porque milhões serão gastos, e eu não vejo a vantagem
dessa despesa!
-Eu vou lhe responder fazendo outra pergunta. Se você fosse rico...
-De boas intenções. - atalhou o interlocutor.
Todos riram, Kurts também, e continuou:
-É uma hipótese... Mas se alem de rico, tivesse seus cinqüenta anos,
com uma doença incurável, e lhe dessem a oportunidade de renascer daqui a cem ou
duzentos anos, com a perspectiva de ter a cura de seu mal, alem de poder voltar a
viver numa época com duzentos anos de avanço tecnológico...
-Não precisa dizer mais nada1 – interrompeu o interlocutor.
-Doutor! – falou um militar sentado no lado oposto – Quanto tempo o
Senhor acha necessário para que se chegue a conclusão do êxito da experiência?
-Quinze a vinte anos. – esclareceu Crumer.
-Ótimo, ainda estarei no páreo!
-Eu também, sussurrou alguém, no meio das risadas que se seguiram.
-Senhores, - disse o Comandante – não vamos esquecer a seriedade do
assunto, e a razão pela qual estamos reunidos... Mais alguém quer perguntar?
O silencio que se seguiu evidenciou o fato de todos estarem satisfeitos
com as explicações.
-Bem! – rematou o Comandante – A solicitação será posta em votação,
e ao mesmo tempo que dizia isso, virou para os cientistas, e disse:
-Doutores agradecemos vossos esclarecimentos, e gostaríamos que
aguardassem a comunicação do resultado da votação.
Kurts e seus auxiliares levantaram, agradeceram o Comandante, e
todos os membros da junta pela atenção, e se retiraram da sala.
Na saída do prédio, Carta comentou:
-O que vocês acham, será que vão aprovar?
-Se aprovarem, - perguntou Crumer – você se candidata?
Carta pensou um instante, enquanto caminhavam, e respondeu:
-Você quer saber? Eu sou jovem, e vinte anos passam depressa.
-É uma incrédula. – comentou Kurts, enquanto entravam no carro.
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CAPITULO III
Karmon, deitado, sentou na cama rapidamente quando escutou o
deslizar silencioso da grade de aço que se abria.
Na porta aberta, um andróide de rosto inexpressivo, falou com voz
compassada:
-Sigam-me.
Jeton, que tinha acabado de acordar, perguntou:
-O que foi?
Karmon levantou, bateu na perna do companheiro, e disse:
-Vamos!
Alguns minutos depois, ambos escoltados por dois andróides, um na
frente e outro atrás, percorrendo escadas e corredores, entraram em uma ampla sala,
com uma mesa no centro, e várias cadeiras.
-Sentem – ordenou um dos andróides, ao mesmo tempo que se
perfilavam em ambos os lados da porta.
-Será que mudaram a sentença?
-Não faço idéia! – respondeu Karmon, enquanto se dirigiam para a
mesa.
-Vamos ser fuzilados. – sentenciou Jeton
Tinham acabado de sentar, quando por uma porta lateral entraram dois
militares, e um civil.
-Bom dia. – cumprimentou um dos militares, enquanto os três se
acomodavam nas cadeiras restantes.
-Bom dia. - sussurraram Karmon e Jeton, bastante receosos dos
motivos daquela reunião.
Sabiam que a junta militar que governava o País era implacável com os
que conspiravam contra o governo.
Se eles tivessem conseguido provas da participação deles na
conspiração, com certeza seriam fuzilados.
-Qual de vocês é Karmon? – Perguntou um dos militares.
-Eu! – disse Karmon , levantando o braço ligeiramente.
-Senhor Karmon!
-Sim?
-O senhor é formado em Robótica, e o seu Jeton em Química
Aplicada... Confere?
Ambos acenaram com a cabeça, afirmativamente.
-Muito bem... Apesar do vosso grau de instrução, que lhes poderia
proporcionar uma vida tranqüila, preferiram conspirar contra o regime, e agora vão
amargar uma sela pelo resto de suas vidas...
As palavras do militar representaram um enorme alívio para ambos os
condenados que adquiriram a certeza que não seriam fuzilados.
Não havia nada a comentar, e ambos permaneceram em silencio.
O militar continuou:
-Muito bem! Pelo fato dos senhores serem réus primários, por terem
sido condenados por provas circunstanciais, a Suprema Corte nos autorizou a propor
a ambos uma condição para que sejam absolvidos das condenações...
-Desculpe senhor, – interrompeu Jeton – se a condição implica em
delatarmos companheiros, nada feito...
-Não! Não! Não é nada disso. - atalhou o outro militar, e continuou: O que vamos lhe propor não tem nada a ver com os motivos da vossa condenação...
-Coisa boa não deve ser1 Comentou Jeton
-Se vamos servir de cobaia para algum medicamento novo, - atalhou
Karmon - francamente prefiro passar o resto da vida naquela sela com saúde, do que
livre, e quem sabe lá com que doença!
-Por favor, - disse o primeiro militar, espalmando as mãos em sinal de
parem – chega de conjecturas. O Doutor Kurts, - disse apontando para o civil ao seu
lado – ira explicar quais as condições.
Ambos os olhares dos condenados se dirigiram para o cientista que
estava de cabeça baixa, olhando para as mãos.
Pigarreou, levantou a cabeça, encarou os dois amigos, e em voz baixa
falou:
- Senhores, em poucas palavras eu vou resumir nosso objetivo. Eu sou
Diretor de um programa de estudo da longevidade do Instituto de Pesquisas
Avançadas.
O que procuramos é determinar meios de prolongar o tempo de vida
humana, inclusive em períodos descontínuos...
-Fiquei na mesma - comentou Jeton.
-Eu explico melhor... A idéia é interromper a vida por um determinado
tempo, e reavivá-la depois, sem danos para o organismo.
-E nós seremos as cobaias? – perguntou Karmon rindo.
-Estou fora! - exclamou Jeton.
-Calma, eu não terminei... Minha equipe vem trabalhando nesse projeto
a mais de vinte anos. Não nego que no inicio tivemos vários fracassos...
-As cobaias eram condenados? - perguntou Karmon.
-Não... Claro que não... Eram macacos, cachorros, e outros animais,
mas me deixe continuar... Nossa última experiência foi com um cão Pastor de
sessenta quilos. Na semana passada nós o trouxemos de volta, isso depois de quinze
anos... Ele está perfeito, sem nenhuma seqüela, e não envelheceu nem um dia. Tem a
mesma idade que tinha a quinze anos.
-Jeton assoviou, admirado.
Karmon pensou um instante, e perguntou:
-E agora?
-Agora acreditamos que estamos aptos a repetir a experiência com
seres humanos...
-Estou fora! Tornou a repetir Jeton com veemência.
-Pensem bem, - falou um dos militares – estarão livres daqui a doze ou
quinze anos, caso contrário permanecerão naquela sela até a morte.
-E, se não der certo? - perguntou Jeton.
-Tanto o Doutor Kurts, - acrescentou o militar – como sua equipe, não
arriscariam vidas humanas se não tivessem certeza absoluta dos resultados...
-Doutor, - perguntou Karmon – pelo que eu entendi a experiência seria
com nós dois.
-Correto. – respondeu o cientista.
-Porque dois?
-Você não ouviu falar naquele ditado de, quem tem um não tem
nenhum? – perguntou Jeton com ironia.
-Não é nada disso. – afirmou Kurts, com um leve sorriso, e explicou –
A experiência ira demorar quinze anos. Não sabemos se estaremos vivos até lá. Como
vocês são amigos será mais fácil, quando retornarem, se relacionarem com nossos
substitutos, participarem de comemorações, responderem a entrevistas, se
readaptarem aos novos tempos, e por ai afora...
-Muita consideração... sussurrou Jeton.
-O que decidem? - perguntou um dos militares.
-Gostaria de conhecer essa experiência? O cachorro? – perguntou
Karmon.
-Calculamos que fossem pedir isso, - afirmou o outro militar – mas tem
uma condição...
-Qual?
-Estando lá vocês tem duas condições. Ou desistem de participar, e
retornam definitivamente para cumprir vossa pena, ou aceitam e permanecem lá. Mas
vejam bem, se aceitam não haverá arrependimentos no meio dos preparativos.
Mesmo contra a vontade serão cobaias da experiência.
-Isso quer dizer, - disse Jeton – que se formos para lá, aceitando ou
não, vamos participar na marra!
-Negativo, - afirmou o Doutor Kurts – vocês têm a minha palavra que
o vosso desejo será respeitado.
Por um instante, ambos ficaram calados.
-Karmon tinha simpatizado com o cientista. Parecia um homem integro
que dificilmente não cumpriria com a palavra dada.
Virou para Jeton e disse: - Eu aceito, e você?
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CAPITULO IV
Passava das nove horas, quando um furgão cinza estacionou em frente
ao portão da I.P.A.. Na direção, um andróide falou alguma coisa em um microfone.
Em instantes o portão desapareceu no piso, e o veiculo lentamente percorreu a
alameda principal, entrou por uma pista lateral, contornou o imenso prédio retangular,
e nos fundos desapareceu por uma rampa para dentro do edifício. No subsolo
trafegou por entre muitos carros estacionados, até estacionar em frente a três portas
de elevadores.
A porta lateral do furgão abriu, dois andróides desceram, e ajudaram
em seguida Karmon e Jeton a descerem. Ambos usavam macacões justos de um
laranja brilhante, e tinham os pés e as mãos manietados por finas correntes de aço.
A porta de um dos elevadores abriu, e os andróides, segurando cada um
pelo braço, se encaminharam para dentro do elevador.
A porta se fechou, e Jeton comentou surpreso: Estamos descendo?
Realmente estavam. O elevador desceu o equivalente a vinte andares, e
quando parou, a porta abriu, e ambos ficaram deslumbrados com o que viram. A sua
frente um imenso salão com mais de trinta metros de altura, entalhado na rocha, com
vários mezaninos em várias alturas. Maquinas, e equipamentos espalhados por todo
lado, numa aparente desordem, e luzes coloridas de mostradores luminosos se
destacando na feérica iluminação.
Por entre as maquinas apareceram o Doutor Kurts, Carta, e Crumer
acompanhados por um magnífico cão Pastor.
Ao se aproximarem, antes que alguém falasse, um dos andróides em
voz metálica, e compassada disse:
-Doutor Kurts, ambos os prisioneiros estão a vossa disposição, mas
ficaremos de sobreaviso para qualquer necessidade.
-Ótimo, - disse Kurts – mas gostaria que fossem soltos. Vieram por
espontânea vontade, e aqui dentro eles não tem para onde fugir!
Sem comentários os andróides libertaram os dois amigos das correntes
que os prendiam, observados pelos três cientistas.
Quando terminaram, se retiraram para o elevador, e Kurts se apressou
em fazer as apresentações.
-Carta, e Crumer são parte de minha equipe, disse o cientista
apontando para os auxiliares.
Os quatro se cumprimentaram, e Jeton segurando a mão de Carta,
comentou:
-Você é um colírio para meus olhos!
Carta enrubesceu, e tirou a mão rapidamente.
Karmon, ajoelhou afagou a cabeça do cachorro, e perguntou:
-É esse o animal?
-Sim, - respondeu Kurts – bonito não acha?
-Que idade ele teria agora?
-Incluindo os quinze anos, ele teria vinte e três anos.
-Nem deveria estar vivo! – comentou Jeton.
-Venham conhecer o laboratório. – disse Kurts.
Enquanto andavam, Karmon perguntou: - Qual o motivo de vocês
estarem trabalhando a esta profundidade?
-O que fazemos aqui é revolucionário em termos de ciência. –
comentou Crumer – Aqui estamos a salvo da espionagem internacional. Moramos
aqui, não saímos sem uma escolta fortemente armada. Na verdade nos sentimos tão
prisioneiros quanto vocês.
-Mas aposto que vocês têm cobertas e travesseiro1 - disse Jeton.
Os cientistas riram sem entender a observação de Jeton, ao mesmo
tempo em que chegaram a frente de uma construção oval, cujas paredes chegavam até
o teto da caverna. Na frente deles junto a parede um extenso painel a meia altura,
com muitos mostradores, gráficos luminosos, botões e luzes coloridas.
Parando, Kurts, apontando para o painel, falou: - Por trás dessa parede
temos o nosso gerador de energia. É um reator de fusão nuclear, isento totalmente de
radiação. Desse painel controlamos a atividade de todos os equipamentos, reator,
produção de oxigênio, iluminação, enfim tudo que esta funcionando aqui.
-Mas e a experiência? O cachorro? - falou Karmon apontando para o
animal.
-É o que interessa na verdade, não é! - exclamou Kurts rematando: Venham comigo.
Os cinco andaram para o outro lado da caverna, por entre maquinas e
equipamentos, até chegarem a um patamar redondo cercado por uma parede de vidro.
No centro do patamar, suspensos a um metro de altura, ladeados uns dos outros,
quatro sarcófagos de vidro transparente, e ao fundo outro painel cheio de luzes,
gráficos, e mostradores.
Uma porta se abriu no painel de vidro, os cinco subiram no patamar e
contornaram os sarcófagos de vidro.
-Jeton, apontando um, exclamou: - Eu vou passar vinte anos ai dentro?
Nem morto! - e rematou: - Não compensa o risco, daqui a vinte anos nada vai ser
muito diferente do que é hoje!
-A não ser o fato de estarem livres. Comentou Carta.
-Hum!! Enterrado vivo! - Resmungou Jeton olhando para o sarcófago.
Karmon, mais objetivo, e menos impressionado que Jeton, perguntou:
-Se houver qualquer imprevisto, o que acontece?
-Vocês vão ser monitorados pelos aparelhos daquele painel, - disse
Jeton, apontando o painel no fundo do patamar – qualquer modificação, por mais
insignificante que seja, a experiência se interrompe automaticamente, e vocês
retornam sem seqüelas.
-Como podem afirmar que não haverá seqüelas?
Kurts, que tinha permanecido calado, se antecipou:
-Veja bem! Nós já fizemos dezenas de experiências com animais, e não
constatamos até hoje nenhuma alteração no retorno..
-Mas não foi só com esse cachorro? - disse Jeton, apontando para o
animal, que os tinha acompanhado o tempo todo..
-Não! Claro que não! Durante os quinze anos da experiência com ele,
fizemos dezenas de outras com outros animais. – disse Carta, e rematou – Foram
experiências que duraram períodos variados...Um dia, um mês, dois anos...
-Falta de idéia. – resmungou Karmon para si mesmo, e voltou a
perguntar:
-Se houver qualquer problema conosco a experiência se interrompe...
Mas se houver falha no equipamento que nos monitora?
Kurts respondeu: - Todos os equipamentos são em duplicata, mas
qualquer falha em um deles, por mais insignificante que seja, a experiência se
interrompe automaticamente.
-Eu estou convencido, - disse Karmon – só falta coragem!
-Se você topar... Sabe como é... Onde vai o burro vai a cangalha. –
disse Jeton, sem muita firmeza.
-Senhores, - disse Kurts – confiem nos nossos conhecimentos, e na
nossa experiência... Tudo vai dar certo!
-Mas, se vocês forem afastados daqui? – perguntou Jeton, lembrando
que corria uma conspiração lá fora para derrubar o Governo.
-Como já dissemos, - disse Carta – nada depende de nós, tudo
funcionará automaticamente.
-Mas é obvio, - rematou Kurts, adivinhando a dúvida de Jeton – que se
houver necessidade, não excitaremos em interromper a experiência.
-Pensem com calma. – disse Crumer – Vocês tem vinte e quatro horas
para decidir...
Alguns instantes se passaram. Karmon virou para Jeton, olhou para o
companheiro, e falou:
-Meu pai sempre dizia que não se deve deixar para amanhã o que se
pode fazer hoje, eu aceito, e você?
Jeton engoliu seco, pensou um instante, levantou o braço, e gritou, ao
mesmo tempo que abraçava o amigo:
-Seja tudo pela liberdade.!
Os três cientistas, rindo bateram palmas, e todos se cumprimentaram
efusivamente..
Terminada a euforia da resolução, Karmon perguntou:
-Estamos ás ordens... O que precisamos fazer?
-Em principio, - disse Carta, segurando os dois pelo braço – vocês não
vão querer passar os próximos vinte anos vestidos de presidiários, certo? Venham
comigo.
Karmon e o amigo acompanharam a moça até um compartimento
escavado na rocha.
Na porta disse para ambos:
-Ai dentro tem banheiro, e roupas sob medida, que vocês devem vestir
no lugar dos uniformes, - e completou dizendo – estaremos na plataforma esperando.
Os dois amigos entraram, e quando saíram meia hora depois, vestiam
uma espécie de malha justa cor cinza, mangas compridas, gola estreita junto ao
pescoço, e botas pretas, opacas de cano longo.
Quando entraram na plataforma, dois dos sarcófagos já estavam com a
parte superior de vidro aberta. Os três cientistas, sentados na frente do painel no
fundo da plataforma manuseavam botões e alavancas, enquanto luzes piscavam ao
longo de todo o painel, e um zumbido abafado se ouvia ecoando no recinto.
Kurts, e Carta levantaram, se aproximaram dos dois presidiários, e o
cientista falou:
-Estamos prontos, tudo que vocês tem a fazer, é deitar, fechar os olhos,
e aguardar.
-Aguardar? – Perguntou Jeton.
-Sim, - respondeu Carta – quando um de nós, ou qualquer outro quem
sabe, pedir para que abram os olhos, com certeza terão se passado vinte anos.
Enquanto dizia isso, encaminhou Jeton para um dos sarcófagos, e o
ajudou a deitar.
Kurts tinha feito o mesmo com Karmon – Feche os olhos disse,
batendo no seu ombro.
De imediato, a tampa de vidro dos dois sarcófagos fecharam com um
barulho surdo, no mesmo instante que uma nevoa azul compacta invadiu os dois
sarcófagos, escondendo totalmente os corpos dos dois amigos.
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CAPITULO V
Através do vidro do relógio digital, sujo de poeira, mal se via os
números marcando dezoito horas.
No Painel abaixo do relógio atômico, uma minúscula lâmpada
vermelha, coberta de pó, começou a piscar, no mesmo tempo que se ouviu o som
agudo, e continuo de uma sirene.
Trincas apareceram repentinamente nos vidros da plataforma. A névoa
azul compacta que escondia os corpos dos dois amigos desapareceu
instantaneamente, as tampas dos sarcófagos se abriram, e ambos assustados com o
barulho da sirene abriram os olhos, e sentaram rapidamente na borda do leito.
-O que aconteceu? – Gritou Jeton pulando da “cama”, ao mesmo
tempo em que Karmon fazia o mesmo.
Os vidros que cercavam a plataforma estouravam em mil pedaços. O
Painel rachou no meio. A sirene parou, e o chão sob os pés dos dois começou a
trepidar.
-É um terremoto, - gritou Karmon – vamos sair daqui!
.
Ambos correndo pularam a plataforma, e se dirigiram para o elevador, enquanto em
volta tudo se desmoronava. Maquinas eram jogadas umas contra as outras. Vários
focos de incêndio eclodiram por entre os equipamentos destroçados. A enorme
divisória que guardava o reator desmontou quase atingindo os dois amigos. Na rocha
das paredes da caverna trincas se abriam com um barulho alarmante.
Próximo ás portas dos elevadores, Jeton que desde o inicio tinha se
entusiasmado com a cientista, gritou:
-E a Carta, será que está aqui?
-Negativo. – gritou Karmon, entrando em um dos elevadores com a
porta aberta, seguido de imediato pelo amigo. Enquanto apertava o botão do térreo,
completou – Não tem ninguém vivo ai... já fugiram todos.
As portas do elevador tentaram se fechar, mas emperraram no meio do
caminho. Mas ambos num desesperado esforço conseguiram unir as duas folhas.
O elevador trepidando muito começou a subir. Os dois amigos, com os
braços estendidos, e as mãos espalmadas, se cumprimentaram em sinal de triunfo.
Porem a alegria durou pouco. Tinham subido um pouco mais da
metade da altura, e o elevador com uma forte trepidação, e o barulho de ferros
torcidos, parou abruptamente.
Ambos instintivamente aguardaram o pior. O elevador despencar com
eles. Porem, nada aconteceu.
Refeitos do susto, Jeton disse:
-Vamos tentar abrir a porta.
-Não adianta, – disse Karmon, e concluiu – não existe nada entre a
garagem, e a caverna lá embaixo.
-Tem certeza?
-Absoluta!
-Então estamos fritos.
-Ainda não! - Disse Karmon, apontando para cima.
Jeton olhou, e assoviou alegremente.
Um vinco quadrado no teto evidenciava a existência de um alçapão.
Jeton que era mais leve, subiu nas costas do amigo, empurrou a tampa
do alçapão para fora, e se alçou pela abertura.
Se ajeitando pelo meio de roldanas e cabos, deitou no teto do elevador,
deu a mão para Karmon, e o ajudou a alcançar a abertura.
Cansado pelo esforço olhou para cima, deu um violento empurrão no
amigo, ao mesmo tempo em que um pedaço de rocha passando entre os dois varou o
teto do elevador.
Jeton, estatelado contra a parede de rocha, pelo empurrão, perdeu a
força das pernas, e ajoelhou com o susto.
Uma tênue luz vinda de cima permitia ver os degraus de ferro de uma
escada cravada na rocha.
Karmon disse: - Vamos subir.
Nem bem Jeton segurou a escada para acompanhar Karmon , um forte
tremor sacudiu a parede da rocha, pedras passaram zunindo nas costas de ambos, e o
elevador soltou, desceu com o ranger estridente de ferros, e se estraçalhou no fundo
do poço levantando uma nuvem de poeira que rapidamente alcançou os amigos.
Tossindo muito, engasgados pela poeira, ambos aceleraram a subida.
A poeira se reduziu bastante, mas não estavam na metade do caminho,
quando novos tremores derrubaram sobre eles dezenas de pedras miúdas, e muita
poeira.
Ambos agarrados nos degraus da escada, tossindo muito, se viram de
repente no escuro completo. A pequena fenda no topo do poço do elevador tinha
fechado.
Um urro de raiva ecoou no poço acima dos ruídos das rochas se
partindo.
-Não desanime, vamos continuar! – gritou Karmon reiniciando a
subida.
Jeton não disse nada. Cuspiu uma pelota de terra, e continuou subindo
tateando os degraus.
Após alguns instantes de escalada, em lugar de achar um degrau, achou
a bota do companheiro.
-O que foi? – Perguntou.
-A escada acabou!
-O que?
-Verdade!
-Oh! Calamidade! Porque eu não fiquei naquela linda cela? Que triste
fim! – resmungou Jeton, com lagrimas deixando rastro no rosto empoeirado.
-Tem algo esquisito aqui! – exclamou Karmon.
-O que é? – perguntou Jeton, ao mesmo tempo que procurou com a
mão a perna do amigo, e não encontrou. Escalou rapidamente os degraus até o fim da
escada, gritando ao mesmo tempo; -Onde você está?
Levou um susto, quando escutou a voz de Karmon ao seu lado
dizendo:
-Aqui!
Estendeu o braço na lateral da escada, e em lugar da parede rochosa do
poço do elevador, encontrou o ombro do amigo.
-Venha, – disse Karmon – tem uma espécie de corrimão de ferro ao
lado da escada... Cuidado pra não despencar.
Jeton achou de imediato o corrimão, tateou com o pé o piso da
reentrância, e num instante se sentiu ao lado do companheiro.
-O que será isso? – Perguntou.
-A escada não iria terminar aqui de graça... Acho que é um túnel
lateral!
-Deve dar em algum lugar, não é?
-Com certeza. Vamos em frente!
Os dois perceberam que o túnel era uma rampa acentuada que
provavelmente os levaria a superfície.
Seguros no corrimão, andando com toda a cautela, já tinham andado
provavelmente uns cem metros, quando um tremendo estrondo se ouviu atrás deles,
acompanhado do barulho de rochas desmoronamento.
-O poço do elevador implodiu! – afirmou Jeton, no mesmo instante que
uma forte lufada de poeira os atingiu.
Tossindo muito, e seguros no corrimão se apressaram a avançar no
intuito de escapar da poeira.
A poeira diminuiu e ambos pararam para tomar fôlego, mas na ânsia
de achar logo uma saída continuaram logo em seguida.
Na escuridão completa, Jeton deu de encontro com Karmon.
-O que foi? – Perguntou.
-O túnel acabou.
-Ah! Não! – Gemeu Jeton.
Tateando, passou pelo amigo, e constatou que o túnel tinha
desmoronado, interrompendo a passagem.
Sentados, ambos encostados nas rochas desmoronadas, Karmon disse:
-Não devemos desistir agora!
-Vamos voltar?
-Não! Vamos seguir em frente.
-Como?
-O desmoronamento pode não se grande, se movimentarmos as
pedras....
-Companheiro, você já sentiu o tamanho dessas pedras? Algumas
devem ter mais de duzentos quilos!
-Deixamos as pesadas, vamos mover só as menores, e vamos começar
pelo teto, - disse olhando para cima, e levou um susto.
-Olhe! – gritou agarrando o braço de Jeton.
-O que? – perguntou, visto que não enxergava nada na escuridão
-Lá em cima! – disse Karmon meio gaguejando.
Jeton olhou para cima, e abriu a boca de espanto.
A menos de quatro metros de altura, por uma pequena fenda irregular,
se via várias estrelas cintilantes.
-Urra! – gritou, ficando em pé, juntamente com Karmon.
Ambos iniciaram uma escalada frenética pelas rochas do
desmoronamento.
Karmon, o primeiro a chegar, se esgueirou pela fenda, rolou para fora,
e permaneceu deitado olhando um magnífico céu estrelado, sem lua.
Logo em seguida Jeton apareceu ao seu lado, e como para si mesmo,
expressou um único comentário:
-Inacreditável!
Na escuridão nada se via em volta.
Ambos estavam extremamente cansados, praticamente no limite de
suas forças.
Jeton ainda teve disposição para perguntar:
-O que faremos?
-Amanhã! – Balbuciou Karmon.
E ambos, afortunados por estarem vivos, dormiram, apesar do frio,
tendo como teto um céu com milhões de estrelas.
_________________________
CAPITULO VI
Jeton abriu os olhos, e fechou rapidamente, ofuscado pela luz do Sol
despontando no horizonte. Estava transpirando, por conta da temperatura muito
elevada naquela manhã. Procurou o amigo com o olhar, e o localizou, encostado
numa pedra, na sombra, ao lado de onde deveria estar o buraco por onde saíram, mas
parece que o terreno tinha acabado de se acomodar durante a noite, porque a
passagem tinha sumido.
Sem disposição para levantar, engatinhou até onde estava Karmon, e
sentou ao seu lado.
Sem dizer nada, o companheiro apontou para frente.
-O que? – perguntou Jeton, olhando para a direção que Karmon
apontava.
Por instantes não viu nada, de repente gritou:, um tremendo palavrão.
Em toda a sua volta, até onde a vista alcançava, só se via dunas de
areia, montes de diversos tamanhos de pedras grandes, e pequenas. Nenhum prédio,
nenhuma casa, nenhuma arvore, nem um arbusto.
Jeton levantou, e olhou para traz por cima das pedras. A mesma
paisagem. Nenhum animal, nenhum homem. Estavam sozinhos no meio de um
deserto pedregoso, e escaldante.
-Onde está Verna? – gritou, sentando novamente ao lado do amigo.
-Sumiu tudo! - falou Karmon, como que para ele mesmo - O terremoto
deveria ter deixado algum vestígio... Onde foi parar, o prédio, as alamedas, as
árvores, os animais?
-Mudaram a gente de lugar. – Afirmou Jeton.
-Como? – Um deserto igual a este, só existe no Continente Katuniano.
-E daí? Creta não tem Colônias lá?
-Tem!
-Então?
É difícil de acreditar... Nós saímos de dentro daqueles caixões de vidro
as pressas porque tudo estava desmoronando, mas eu tenho quase certeza que era o
mesmo lugar. Não iam mudar tudo para oito mil quilômetros de distância sem alterar
nada.
-Mas não tem outra explicação!
-Não acredito... Mesmo com o terremoto, e mesmo que aqui fosse
Katúnia, deveria ter os vestígios de algum prédio aqui em cima!
-E agora? – perguntou Jeton desistindo de conjeturar sobre o que tinha
acontecido.
-Temos que achar água... E sair deste calor. – afirmou Karmon.
-Se ainda estamos em Verna temos que ir para a cidade... Você se
lembra de que lado ela estava?
Karmon pensou um instante, e afirmou: - No Sul.
Ambos levantaram, e sem mais comentários começaram a andar para o
Sul.
Andaram horas sob um Sol escaldante. As botas que vestiam, eram
muito resistentes, mas extremamente finas, não seguravam o calor. Os pés
queimavam como se estivessem pisando em brasas.
Jeton sentou numa pedra segurando os pés, - e comentou - Não existe
Verna... Olhe! – disse apontando o horizonte.
Realmente, até onde a vista alcançava o panorama era o mesmo. Dunas
de areia salpicadas de pedras de todos os tamanhos.
Karmon, sem dizer nada, deitou na sombra atrás de uma pedra grande.
Jeton fez o mesmo, e falou:
-Acho que nós estamos mesmo em Katúnia!
-Continuo não acreditando. – balbuciou Karmon.
A sede era terrível. Os lábios rachados doíam muito ao falarem. Ambos
se sentiram incapazes de levantar, e em poucos instantes dormiram.
A noite passou, sem que acordassem apesar do frio que substituiu o
calor escaldante do Sol.
Karmon acordou com o calor do Astro Rei no seu rosto. A garganta
ardia tanto que parecia que tinha engolido um vidro de pimenta.
Sacudiu Jeton que ainda dormia, e com voz rouca, e sumida – disse –
Temos que achar água!
Levantou e começou a andar.
Jeton tentou dizer alguma coisa, mas não conseguiu. Apoiou na pedra
levantou também, e seguiu o companheiro.
Conseguiram andar mais algumas milhas, então Jeton desabou na areia
escaldante, balbuciando: - Fim da linha!
Karmon ajoelhou ao seu lado, sacudiu o amigo, e como ele não se
mexia, tentou se levantar novamente, mas todo o deserto passou a girar a sua volta,
deu dois passos trôpegos, e desmaiou antes de atingir o chão.
Tinham se passado algumas horas, quando quatro patas robustas se
aproximaram dos corpos dos dois amigos.
Um camelo carregando grandes fardos dependurados nas laterais se
ajoelhou, e dele desceu um homem de pele trigueira vestido com uma espécie de saia
comprida, e um pano envolvendo a cabeça e o pescoço.
Ajoelhou ao lado de Karmon, colocou dois dedos na artéria do seu
pescoço, repetiu o gesto em Jeton, levantou rapidamente, e emitiu um som estridente
e compassado.
Ao longe destacada no horizonte se movia uma fila de camelos,
misturados com cavalos, carroças, e homens a pé.
Apenas se ouviu o som estridente, a fila mudou de rumo, e veio na
direção dos três. .
Vários homens, vestidos da mesma forma, se aproximaram, e um
deles, vestindo alem da saia, uma larga cinta com um longo punhal atravessado nas
costas, chegou mais perto.
Parecia ser o chefe, e perguntou numa língua estranha: - Estão vivos?
O homem que os tinha encontrado acenou afirmativamente com a
cabeça.
-Dêem água, e coloquem no carroção. – repetiu o que parecia ser o
chefe.
Do meio dos homens um jovem apareceu com um saco comprido de
couro terminado num canudo fino, cheio de água.. Ajoelhou ao lado de Karmon, e
colocou o bico do saco de couro na sua boca. Este grunhindo de dor, e tossindo,
cuspiu um pouco da água que bebeu, mas não acordou.
O rapaz repetiu o gesto com Jeton, e este ao sentir o sabor da água,
virou um pouco o rosto, abriu momentaneamente os olhos, e balbuciou: - É miragem!
– mas desmaiou em seguida.
Os homens, inclusive o chefe, se espalharam em direção a extensa
caravana que tinha parado a alguns metros. Dela, em alguns minutos se separou um
carroção coberto de lona, puxado por quatro cavalos, com quatro homens na boleia, e
estacionou ao lado dos dois amigos.
Enquanto a caravana prosseguia, os homens levantaram primeiro Jeton
depois Karmon, que sem muita delicadeza se viram jogados dentro do carroção, no
meio de sacos, panelas, e um bode fedorento dentro de uma gaiola de madeira.
Voltaram para a boleia, e em instantes o carroção alcançou o fim da caravana que
prosseguiu, sumindo no horizonte.
Pararam quando anoiteceu, ao lado de um pequeno lago alimentado por
águas que brotavam de um amontoado de pedras, tendo em volta muitas palmeiras
espalhadas.
Dois homens vão ao carroção, carregam Karmon e Jeton, e um após o
outro, os levam para dentro de uma barraca feita de peles.
Alguns minutos depois, uma velha encarquilhada, com um vestido
longo, preto, e um lenço na cabeça também preto, entrou na barraca segurando um
balde cheio de água, feito de couro, com alças também de couro.
Amanhecia quando Karmon acordou, e abriu os olhos. Olhou em volta,
sentou no chão da barraca, e na tênue claridade vinda das frestas viu Jeton deitado ao
seu lado.
Sacudiu o amigo que acordou agitado dando socos no ar. Segurou suas
mãos dizendo: - Calma... Para de dar coice!
Jeton levantou repentinamente, bateu com a cabeça no teto da barraca,
ajoelhou, e olhando em volta perguntou: - O que aconteceu?
-Não sei! Estamos limpos e...
-Olha a sua roupa! – exclamou Jeton, interrompendo.
-A sua também. – Afirmou Karmon.
No lugar da malha e das botas que vestiam, estavam com um pano
curto enrolado no corpo, preso na cintura por uma tira de couro, outro pano na cabeça
feito gorro, com uma aba cobrindo a nuca, e sandálias de couro.
-Será baile a fantasia? – Perguntou Jeton sem muita graça.
Karmon levantou, e agachado foi até o que parecia ser a porta.
Antes que pudesse empurrar o couro da porta, quatro homens vestindo
as mesmas roupas que os amigos, mas com longos punhais atravessados nas costas,
entraram, seguraram os dois, e antes que pudessem entender alguma coisa foram
arrastados para fora da barraca, e sem conseguirem resistir porque estavam muito
fracos, foram obrigados a sentar no chão.
Um deles apareceu com um robusto toco de madeira, duas correntes, e
uma marreta. Colocaram o pé de Karmon sobre o toco, uma braçadeira de ferro,
aberta, fixada na ponta de uma das correntes, vestiu seu tornozelo, e o “ferreiro” com
pancadas precisas fechou uma argola de ferro enfiada nos ilhoses da braçadeira.
Da mesma forma a outra ponta da corrente foi presa no outro pé.
Apesar da pequena resistência, os pés de Jeton foram manietados da
mesma forma.
Rindo e conversando alto, todos se retiraram, deixando os dois
sentados no chão.
Completamente desnorteados, ficaram olhando sem entender nada,
enquanto que para alem do Oásis, a caravana se punha em marcha. Uma fila de
camelos carregando enormes fardos nas laterais, e cavalos, muitos montados por
aqueles homens vestidos de saia, e pano na cabeça. Em seguida vários carroções
cobertos de lona, com muitas cabras e bodes atrelados nas laterais. Por último, uma
fila de homens presos pelos pés com correntes, como os dois amigos.
Um pontapé, nas costas de Jeton o fez voltar a realidade. Levantou ao
mesmo tempo em que deu um soco no ar, na direção do homem que lhe tinha
chutado. Este recuou, sacou do punhal nas costas, e investiu contra Jeton que recuou
tropeçou na corrente e caiu.
Karmon num salto se colocou de pé para defender o companheiro,
quando um grito cavernoso paralisou os movimentos do agressor. Quem tinha
gritado, e parecia ser o chefe da caravana, encostou no assecla, que ainda segurava o
punhal, gritou coisas no seu ouvido numa Língua desconhecida, e lhe deu um
violento tapa na cara.
Curvado num cumprimento cerimonioso o homem guardou o punhal, e
se afastou.
O outro olhou para os dois amigos, apontou as correntes que tinham,
cada uma, mais de dois metros, fez um sinal como quem as levantasse, e apontou a
fila de homens acorrentados.
Bastou um olhar para a direção que tinha sido apontada, e ambos
entenderam o recado. Segurando as correntes andaram até o fim da fila, que tinha
começado a se mover..
Karmon olhou para traz, viu o lago, as palmeiras e falou em voz baixa:
- Não é Katúnia!
-Por quê? – perguntou Jeton, atrás dele.
-Lá não tem esse tipo de vegetação... Nem água, e muito menos
aqueles animais lá na frente com dois cupins.
Um estalar de chicote, e palavras ásperas gritadas atrás deles os
obrigou a apressar o passo.
Andando com dificuldade, encostaram no fim da fila, e Jeton
comentou: - Lá não tem essa gente?
-Não! Só negros.
Nesse instante, um bando de garotos, todos também de pele trigueira,
se aproximou dos amigos rindo, e apontando para eles. Dois vestiam suas botas, e
outros vestiam partes das roupas de malha.
O vigia espantou os garotos com gritos, e gestos, e a caravana
prosseguiu.
O Sol já estava quase a pino, quando pararam na pouca sombra de
uma pedreira alta.
Sentaram no chão encostados nas pedras, como todos os outros
acorrentados. Jeton acomodando a corrente entre as pernas, sussurrou: - O que será
que vão fazer com a gente?
-Somos escravos. – afirmou Karmon.
-A escravatura já foi abolida de Creta a séculos!
-Será que estamos em Creta?
-Por todas as crenças que existem neste mundo, se não estamos em
Creta, nem em Katúnia, onde fomos parar?
-Boa pergunta! – exclamou Karmon.
Pararam de falar porque um dos vigias, começou a distribuir no
começo da fila um saco de couro provavelmente cheio de água.
Cada escravo não dava mais de dois goles, e já tinha o saco arrancado
das mãos. Alguns que se recusavam a soltar o saco levavam um tremendo tapa a cara.
Tanto Karmon como Jeton, apesar do nojo de beber no bico todo
babado do saco, não tiveram alternativas, visto que a sede era muito maior.
Logo depois, cada um recebeu uma tigela de barro cheia com uma
massa esbranquiçada e gosmenta.
Jeton olhou para a cuia, olhou para os outros escravos, que engoliam
aquele mingau com as mãos, fez uma careta, enfiou dois dedos na massa, e levou
uma porção a boca. Tinha gosto de graxa, mas a fome era muita, e ambos em
instantes limparam as tigelas.
A caravana prosseguiu. Quase anoitecia quando chegaram a um vale
quase idêntico ao primeiro. Um pequeno lago no meio de muitas pedras, cercado
esparsamente por belas palmeiras.
Em volta do lago, camelos, cavalos, e homens se amontoaram, para
beber. Enquanto isso todos os acorrentados esperaram a sua vez.
Só havia dois jovens dentro do lago, quando alguém autorizou os
escravos a usar a água.
Um barulho metálico de correntes sendo levantadas, e numa corrida
desengonçada todos em instantes estavam dentro do lago.
Karmon e Jeton apesar de terem acompanhado os outros escravos, não
tiveram coragem de beber aquela água, apesar da enorme cede.
Com água pela cintura Karmon se aproximou das pedras, e chamou
Jeton em seguida. O amigo chegou mais perto, e olhou para onde Karmon apontava.
Entre duas pedras grandes bolhas de ar explodiam na superfície da água.
-A nascente! – Exclamou Jeton, e mergulhou a cabeça na água pelo
meio das bolhas.
Quando a curiosidade atraiu a atenção dos outros escravos, os dois
amigos já saciados saíram do lago.
Aparentemente os senhores dos escravos não se preocupavam em
prendê-los ou vigiá-los. O motivo era simples, com aquelas correntes não iriam muito
longe.
Karmon e Jeton perambularam entre os camelos, e os cavalos, já livres
das cargas, e se acomodaram no pé de uma palmeira próxima a uma fogueira.
Jeton deitou no chão ao mesmo tempo em que Karmon foi atraído por
algo ao lado da fogueira.
Levantou, segurou a corrente com cuidado para não fazer muito
barulho, e se aproximou da fogueira. O que tinha atraído sua atenção era um trado
robusto, devendo ter meia polegada de grossura.
Karmon olhou em volta, e não viu ninguém em pé. Segurou a corrente
com uma mão, agachou, e recolheu o trado rapidamente.
Voltou lentamente para perto do amigo, e sentou..
Jeton acordou assustado com as sacudidas que recebeu, olhou para
Karmon ao lado dele que com o dedo em riste na boca pedia silencio.
-O que foi? – perguntou sussurrando.
-Olhe?
O amigo deu um assovio surdo, vendo Karmon com os pés livres, e a
corrente com as braçadeiras nas mãos.
-Como? – perguntou.
O companheiro mostrou o trado, ao mesmo tempo que pediu:
-Os pés!
Jeton rapidamente ajeitou os pés, e a corrente na direção do amigo.
Este enfiou o trado no anel que prendia uma das braçadeiras, apoiou a
ponta numa pequena pedra, e apertou com força o lado do cabo. Lentamente o anel
abriu lateralmente, e Jeton sofregamente retirou o mesmo da braçadeira, tirou ela do
pé, e passou a esfregar o tornozelo dolorido, balbuciando coisas que nem ele
entendia. Em instantes estava livre do outro pé.
Só ai se deu conta do que tinha acontecido, e exclamou: - Vamos fugir!
-Calma, - disse Karmon – é cedo,,, Vamos esperar que todos durmam.
Horas depois, no meio da madrugada, os dois amigos agachados
alcançaram alguns cavalos. Lentamente, para não assustar os animais, encilharam
dois, e a pé puxando os mesmos pelas rédeas saíram lentamente do Oásis. A uma boa
distância montaram, e a galope sumiram na escuridão da noite.
Depois de algum tempo passaram a trotar lado a lado, e Jeton
perguntou: Qual é tua idéia? Pra que lado vamos?
-Vamos pro Norte.
-Mas viemos de lá! - exclamou Jeton, e afirmou: - Não tem nada!
-Vamos ser seguidos... Minha esperança é que não se interessem em
retornar no caminho... Entendeu? Se nos livrarmos deles, depois vamos pensar para
onde ir.
Karmon imaginava também, que com uma noite de vantagem estariam
muito longe quando a fuga fosse descoberta.. Porem estava enganado.
No silêncio do deserto, um dos homens da caravana acordou com o
barulho do galope distante. Chamou outros companheiros, inclusive o chefe, e em
poucos minutos acharam as correntes dos prisioneiros no pé de uma palmeira.
Ordens raivosas ecoaram, e quinze minutos depois meia dúzia de
homens a galope acompanharam o chefe para fora do Oásis.
No deserto, a luz de uma lua brilhante, localizaram rapidamente o
rastro dos cavalos dos fugitivos.
Estava amanhecendo quando Karmon e Jeton perceberam os sete
homens a galope vindo ao encontro deles.
Num galope desenfreado, fugitivos e perseguidores percorreram milhas
pelo deserto, por entre as pedras.
O cavalo de Karmon tropeçou numa pedra, foi de cara no chão,
jogando longe seu cavaleiro. Rolando pela areia ele tentou se levantar quando quatro
homens caíram em cima dele. Jogou um por cima do ombro, chutou violentamente a
cara de outro quando sentiu a ponta aguçada de um punhal cutucar as suas costas. No
mesmo instante Jeton virou seu cavalo, galopou na direção dos outros três que tinham
apeado, e pulou em cima deles sem se importar com os punhais que carregavam.
Uma das laminas entrou meio palmo no seu peito, e ele rolou na areia urrando de dor.
Karmon sem se importar com o punhal nas suas costas, com dois pulos
se ajoelhou ao lado do companheiro que apertava o peito com ambas as mãos. Tirou o
pano da cabeça, colocou na ferida que sangrava, e abraçou o amigo que agonizava,
incapaz de fazer qualquer outra coisa.
Já ia a manhã pela metade quando todos retornaram para o Oásis.
Karmon montado a cavalo trazia atravessado na garupa o corpo de seu amigo, que
não tinha resistido ao ferimento.
Enquanto no meio de muita correria, e gritos, a caravana se preparava
para partir, Karmon acabou de cobrir de pedras o cadáver do amigo. Nem bem tinha
terminado, foi jogado no chão, e em poucos minutos o ferreiro voltou a colocar a
corrente nos seus pés, e colocado em pé, foi empurrado para junto dos outros
escravos.
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CAPITULO VII
A tarde já ia ao meio quando a caravana chegou em Cabur, situada
numa pequena elevação no meio do deserto. Karmon, o último na fila de escravos,
olhou em volta sem acreditar no que estava vendo, visto que nunca tinha tido noticia
que algo idêntico existisse em Creta ou em qualquer outro lugar.
Uma centena de casas se espalhava, sem nenhum critério, em torno de
uma enorme Praça onde a caravana estava entrando. As casas eram feitas de pedras
assentadas provavelmente com barro, cobertas com abobadas também de barro.
Pequenos buracos serviam de janelas, e outros permitiam que as pessoas entrassem
agachadas.
Dezenas de homens ocupavam toda a praça, misturados com cavalos,
camelos, e barracas de pele. Em um dos lados um aglomerado de homens observava
alguns negros acorrentados, sobre um estrado de madeira com um metro de altura.
O alarido era enorme, e aumentou muito quando a caravana entrou na
Praça.
Escoltados, todos os acorrentados, inclusive Karmon, foram
empurrados para dentro de um enorme cercado de madeira, onde já se encontravam
alguns negros também acorrentados.
Karmon sentou ao lado de um deles, próximo a grade de madeira,
olhou por alguns instantes a frenética movimentação das pessoas na Praça, virou para
o negro e perguntou: -Verna? Sabe onde é Verna?
O escravo olhou para ele com ar de espanto, emitiu um ruído segurou a
corrente, levantou, e foi sentar noutro lugar.
Karmon já tinha perguntado para todos na caravana sobre Verna, e só o
que tinha obtido foi passar a ser chamado de Verna. Ninguém parecia saber sobre o
que ele perguntava.
Dormiu encolhido num canto do cercado, junto com todos os
companheiros de infortúnio.
No dia seguinte, já estava acordado olhando a movimentação na Praça
quando vários homens acompanhados do que parecia ser o chefe da caravana,
entraram no cercado, e aos berros, obrigaram todos a caminhar para fora.
Tanto Karmon, como os outros, foram, em fila, encaminhados para o
estrado, e aos cutucões, e empurrões foram induzidos a ficar virados para uma
pequena multidão que já se formava em frente do palanque.
O “patrão” segurou o primeiro escravo da fila pelo braço, o levou para
o centro do estrado, e com uma voz de trovão se dirigiu a multidão apontando o
homem seguro pelo braço.
Karmon intuiu que o escravo estava sendo vendido. Efetivamente
alguém levantou o braço no meio da multidão, caminhou para o estrado, subiu,
chegou perto do homem, apertou seus braços, e pernas, abriu sua boca a força, olhou
bem os dentes, e se deu por satisfeito. Retirou uma bolsa da cinta, e despejou umas
moedas na mão do vendedor. Este reclamou fez sinal negativo. Discutiram por uns
cinco minutos, por fim o chefe ganhou mais algumas moedas, e o comprador segurou
o escravo pelo braço, e o levou embora.
A cena se repetiu várias vezes até chegar a vez de Karmon. Quando ele
foi levado para frente do estrado, muitos curiosos se juntaram a pequena multidão,
para ver o leilão. O motivo se devia ao fato de Karmon ser totalmente diferente dos
demais escravos. Mais alto que a maioria daquele povo, encorpado, pele clara,
cabelos castanhos, se destacava de toda a maioria, de cabelos pretos, pele trigueira, e
muito magros.
Vociferando para a multidão o pregoeiro se fazia ouvir acima do
barulho da multidão na frente do estrado. Balançava os braços, e apontava para
Karmon repetindo várias vezes a palavra Verna.
Karmon deduziu que definitivamente tinha adquirido um novo nome.
Alguém, no meio da multidão, gritou alguma coisa. O pregoeiro
irritado, parece que falou um palavrão, enquanto a multidão caia na gargalhada.
O lance deve ter sido insignificante, pensou Karmon.
Outras vozes se ouviram, até que alguém gritou no fundo da praça,
fazendo a maioria virar para ver quem era.
Um homem de meia idade, barba cerrada, abriu caminho pelo meio da
multidão. Vestia uma longa túnica branca, mocassins pretos, uma larga cinta presa
com uma fivela de prata de onde pendia uma espada fina e curva, e para completar
um turbante azul envolvendo a cabeça. Caminhando junto com ele, vários homens de
túnicas pretas, alguns com duas espadas, uma de cada lado da cintura, dentro de
bainhas dependuradas em largo cinto também preto.
O grupo abriu alas na multidão, tendo a frente o homem de turbante
azul, e todos curvados, se afastavam respeitosamente.
Este deve ser o “manda-chuva” do lugar! – pensou Karmon.
O homem, e sua comitiva, parou em frente ao estrado, e o homem de
roupa branca, apontando para o Verniano, falou alguma coisa para o “perigoso”
(Assim Karmon tinha apelidado o “dono” dos escravos).
Este em cima do estrado, curvado em sinal de respeito, fez uma careta,
e passou a falar sem parar.
O de turbante azul, em tom raivoso, repetiu, levantando a voz, o que já
tinha dito.
O “perigoso”, parou de falar instantaneamente, e curvado se afastou de
costas, repetindo várias vezes a mesma palavra.
-Bateu o martelo! – pensou Karmon, divertido com a cena.
Um homem de túnica preta subiu no estrado. Era uma figura estranha.
Não tinha um olho, ostentava uma longa barbicha, e um turbante sujo que mal
escondia o crânio careca. Jogou para o “perigoso” um saquinho que pelo barulho
devia estar cheio de moedas, colocou-se por traz do Verniano, lhe deu um empurrão,
e um safanão na nuca.
Karmon não pensou duas vezes, tinha os braços livres, juntou o
“careca” pelo pescoço, e o jogou por cima dos ombros.
O “barbicha” se estatelou de costas no chão na frente de Karmon. O
turbante voou longe, e a multidão explodiu em gargalhadas.
O homem levantou rapidamente, puxou uma das espadas da cinta, e
com um berro de raiva avançou para cima do escravo.
Karmon se preparou para se defender quando a vibração de um longo
chicote se ouviu. A ponta enrolou no braço do “barbicha”, e um puxão fez a espada
voar de suas mãos, ao mesmo tempo que outro puxão o arrancou do estrado, caindo
aos pés do dono do chicote.
O Verniano, nos seus pensamentos, agradeceu o homem de túnica
branca, ao mesmo tempo em que este, enrolando o chicote, o fixou na cinta atrás das
costas.
Vociferando com voz raivosa, deu algumas ordens, enquanto o
“careca” com cara amarrada se levantou, curvado, e andando de costas se afastou.
Dois homens subiram no estrado, e escoltando o Verniano, se juntaram
aos outros.
O homem de túnica branca, ainda negociou mais dois escravos negros
com o “perigoso”, e todo o grupo, com os negros e Karmon no meio, vigiado pelos
olhos raivosos do “barbicha”, seguiram o chefe para fora da praça.
Saindo da aldeia o grupo se aproximou de um aglomerado de dezenas
de homens, mulheres, crianças, cavalos, camelos, e tendas, sendo recebidos com
grande algazarra e gritaria.
Pelo tamanho daquela caravana, Karmon entendeu porque toda aquela
reverência na praça, para o homem de turbante azul. Ele devia ser alguém muito
poderoso.
Acompanhados por muitos curiosos, que estranhavam o porte do
Verniano, os três escravos foram colocados dentro de um carroção, e a caravana como
uma serpente ondulante por entre as dunas, tomou rumo ao Sul.
No segundo dia de viagem, já bem longe da aldeia onde foram
comprados, os três foram soltos das correntes, e no meio dos curiosos apareceu o
“careca”. Em altos brados, e dirigindo-se aos três, falava apontando para todos os
lados. Quando percebeu que não estavam entendendo nada, fez um sinal de
desânimo, e deve ter soltado alguns palavrões antes de ir embora, porque todos que
estavam em volta riram muito.
A caravana tinha começado a andar quando um velho de túnica suja e
rasgada, barba branca e mocassins furados, subiu no carroção.
Sentou na frente dos três, suspirou, aguardou alguns instantes, depois
apontou para ele mesmo e exclamou: - Jamal! – Depois apontou para Karmon, e
falou: - Verna?- Em seguida apontou para os negros, e abriu os braços, como quem
aguarda uma resposta.
Os negros não entenderam nada, mas o Verniano compreendeu o que o
velho queria.. Apontou para ele e repetiu. Jamal! – Depois apontou para si, e falou: Verna! – e com o dedo indicador fez um sinal negativo, e apontando novamente para
si mesmo falou: - Karmon!.
O velho repetiu com dificuldade o nome de Karmon, e este foi o inicio
de um longo aprendizado.
Enquanto a caravana serpenteava pelo deserto, o “professor” passava o
dia todo com eles, e depois de alguns dias Karmon já se entendia razoavelmente com
o velho.
Tinha apreendido que o “barbicha” se chamava Aman, e que o nome
do “Manda-Chuva” era Salon. Soube também que Salon era o Rei de Absaluna,
situada as margens do rio Primo, e tinha mais de dois mil habitantes.
A medida que se entendiam melhor, explicou ao velho que Verna era
sua cidade, e ele precisava achá-la. Jamal nunca tinha ouvido falar de Verna, para
desespero de Karmon.
Já viajavam a mais de quinze dias, quando uma noite, sem sono, o
Verniano resolveu passear pelo acampamento.
Ninguém se preocupava com ele, visto que tanto ele como os outros
escravos não tinham para onde ir. Karmon, cuja fuga frustrada tinha custado a vida de
seu melhor amigo, era o que menos se preocupava em fugir.
Passava atrás da tenda onde o Rei Salon dormia, quando percebeu dois
vultos junto a mesma.
Agachou no chão de areia, e rastejando se aproximou da dupla. Um
segurava uma faca longa, e o outro cortava vagarosamente o tecido da tenda.
Karmon entendeu de imediato a pretensão dos dois. Levantou num
salto, deu uma corrida curta, e se lançou sobre os dois. Os três vararam o corte que
tinha sido feito na tenda, e embolados rolaram pelo chão, iluminados parcamente por
uma pequena tocha fumegante.
O Rei, enrolado numa pele de carneiro, acordou juntamente com suas
mulheres, semi-nuas.
No meio de uma gritaria alucinante patrocinada pelas mulheres, tudo se
resolveu rapidamente.
Karmon ainda deitado chutou violentamente a cara de um deles que
tentava se levantar, e se jogou sobre o outro rolando ambos por cima do Rei. Este por
sua vez, puxou a espada da cinta dependurada no pau da tenda, levantou rapidamente,
pelado, só com um pano enrolado nas pernas, e na cintura, e encostou a ponta da
espada na garganta do que tinha levado o pontapé.
O Verniano por sua vez, apertou com o joelho as costas do outro de
encontro o chão, torceu o braço que segurava a espada, e este largou a arma com um
urro de dor. Virou para Karmon na tentativa de reagir, e levou um soco no meio da
cara, desabando desacordado.
Um berro emudeceu as mulheres, e outro berro paralisou quatro
guardas, que tinham entrado na tenda, e se lançavam sobre Karmon.
Com ordens ríspidas o Rei mandou retirar os dois pretensos assassinos,
e enquanto vestia a túnica branca, disse a Karmon: - Você salvou minha vida!
-Tivemos sorte. – foi o único comentário do escravo, enquanto saia por
onde tinha entrado.
Voltou para o carroção, e no caminho passou perto da palmeira onde
tinham amarrado os dois comparsas. Mesmo no escuro, teve a impressão de ver o
“barbicha” se escondendo por traz dos prisioneiros. Como não era de sua conta,
mesmo desconfiado, continuou seu caminho.
Acordou no amanhecer do dia com o barulho que vários homens
faziam ao longe em torno da palmeira onde estavam os prisioneiros.
Pulou do carroção acompanhado pelos outros escravos, e foi ver de
perto o que acontecia. Chegou lá, junto com o Rei acompanhado do “careca”.
-Alguém ajudou os dois a fugir... As cordas foram cortadas! –
comentou Salon.
-Aman estava com eles ontem a noite! – Disse Karmon apontando para
o “barbicha”.
-Seu grandessíssimo mentiroso, filho de uma cadela! – gritou o
“careca”, avançando sobre o Verniano
Muitos guardas, e muitos curiosos, rodeavam o Rei.
-Segurem os dois! – exclamou Salon.Por um instante os guardas
titubearam. Afinal Aman era o chefe deles. A lealdade ao Rei, porem, falou mais alto,
e antes que se encontrassem, Karmon e o “barbicha” foram seguros por vários
homens.
Salon levantando a voz, disse: - Este escravo já demonstrou sua
lealdade... É a palavra de um contra o outro... Que ambos decidam quem tem razão!
Uma gritaria alegre ecoou entre os que estavam ali, e atraiu todos que
estavam na caravana.
O motivo era simples. Pelos costumes os dois iriam lutar sem armas, e
quem perdesse seria obrigado a confessar a verdade.
Aman foi despojado de suas armas, e ambos seguros pelos guardas
foram afastados um do outro. A pequena multidão abriu um circulo, e o Rei ordenou:
- Soltem!
Tirando o cinto e a túnica, ficando somente de fraldão, e o turbante,
Aman disse: - Você me pegou desprevenido uma vez, mas agora vou torcer seu
pescoço. Dizendo isso, se lançou contra o Verniano, e ambos foram para o chão.
Aman era muito forte, ajoelhado sobre o escravo deferiu dois socos na
sua cara. Karmon lançou uma das pernas, envolveu o corpo de seu adversário, e o
empurrou para o lado. Levantou rapidamente, ao mesmo tempo que o “barbicha”.
Frente a frente, o “careca” cujo turbante tinha voado longe, tentou a mesma manobra.
O Verniano negaceou o corpo, segurou o braço de Aman, torceu, e ele
virou sobre si mesmo se estatelando no chão. Com grande agilidade ficou de pé num
salto, virou, e jogou um punhado de areia nos olhos do adversário. Cego
momentaneamente, foi agarrado pelo pescoço, e usando toda sua força, o “careca”
tentou estrangular o Verniano.
Usando as pernas como alavanca Karmon calçou as pernas do
adversário, e ambos foram para o chão. Na queda Aman soltou o pescoço do escravo,
e se viu preso pelas costas numa gravara mortal. Sufocado, bateu com desespero a
mão no chão. O Verniano soltou um pouco o aperto, e perguntou baixinho no ouvido
do capataz: - Quem soltou aqueles dois?
Não teve resposta, e tornou a apertar novamente a “gravata”.
Batendo a mão com desespero no chão, Aman com voz rouca e sumida
gritou: - Fui eu!
Karmon afrouxou um pouco os braços, e ordenou: - Mais alto!
O “barbicha” na eminência de ser estrangulado outra vez, gritou: - FUI
EU!
Um murmúrio se ouviu entre os curiosos.
Solto do abraço Aman rolou na areia tossindo muito.
Salon impassível, ordenou: - Prendam esse homem!
CAPITULO VIII
A caravana avançou pelo deserto, deixando no seu rastro um homem a
pé, sem armas, somente com uma bexiga de carneiro cheia de água, na cintura.
Entre dentes, vendo a caravana se afastar, Aman disse para si mesmo: O que é de vocês está guardado... Cadelas nojentas.
Karmon por outro lado, não viajava mais chocalhando dentro do
carroção. Tinha ganho um cavalo, roupas novas, uma espada, e viajava logo atrás do
Rei.
Durante toda a viajem, não se cansava de perguntar a todos, se
conheciam Verna. Nunca ninguém tinha ouvido falar, nem tinham idéia do que o
Verniano falava sobre a cidade.
Chegaram afinal a Absoluna.
Espalhada numa colina, com um casario idêntico ao da praça dos
escravos, fervilhava de gente pelas ruas e vielas. Ao longe um rio, separado da colina
por uma várzea verdejante.
Na entrada da cidade a caravana se desfez. Carroções, camelos,
cavalos, e tudo o mais se dispersou pelas vielas.
O séqüito do Rei, muito aclamado pelos moradores, o acompanhou
atravessando a cidade, inclusive Karmon.
Chegaram ao que deveria ser o Palácio do Rei. Uma construção
elevada, cercada de grandes tendas, além de outras bem menores.
O Rei fez sinal para Karmon acompanhá-lo, e entrou na construção
principal, acompanhado de seus escravos, dois carroções fechados, e mais vários
guardas.
Lá, num pátio interno os carroções pararam, e deles saíram muitas
mulheres novas, rindo muito, e conversando, semi-nuas, acompanhadas de algumas
velhas, e dois negros muito gordos.
Todos desapareceram por portas laterais, e o Rei acompanhado do
Verniano, e mais alguns guardas, entraram num grande salão, sem janelas, iluminado
por tochas fumegantes, tendo ao fundo uma espécie de trono cravejado de pedras
preciosas, e apliques de ouro.
O Rei sentou no trono, e para todos que se aproximaram falou:Karmon vai substituir aquele traidor bastardo que deixamos no deserto.
Como ninguém disse nada, o Rei concluiu: - A cerimônia será hoje a
noite, e virando para um dos guardas ordenou: - Jô... disse apontando o Verniano, mostre a ele sua tenda, e em seguida fez um sinal com a mão, dispensando todos.
O ex-escravo não teve tempo nem de agradecer, nem de recusar.
Percebeu que a palavra do Rei era uma ordem inquestionável.
Acompanhou Jô que saindo do Palácio, enveredou por entre as grandes
tendas que se espalhavam em volta. Umas guardavam cavalos, outras camelos,
adiante um ferreiro malhava um ferro numa bigorna debaixo de outra tenda. Muita
gente circulando, e Karmon concluiu que ali era um grande mercado onde o povo se
abastecia. Tinha tendas de cereais, de carne seca, galinhas, ovos, de túnicas de muitas
cores, lenços, e turbantes.
Jô parou num aglomerado espalhado de pequenas tendas fechadas,
apontou uma delas, e disse: - Aquela é a sua! – em seguida simplesmente deu a volta
e foi embora.
Karmon curioso em esclarecer uma dúvida, se aproximou, abriu o pano
da porta, e exclamou: - Tinha certeza!
A tenda era de Aman. Num canto algumas peles de lã de carneiro,
muito sujas. Noutro um balcão coberto com restos de comida onde zuniam dezenas
de moscas, e ao lado um banco de três pernas. Numa vara vários pedaços de carne
seca cheios de varejeiras, no mastro principal da tenda algumas roupas, e um chicote..
Mais perto da porta restos de uma fogueira. Tudo isso acompanhado de um cheiro
acre-doce de coisa podre.
O Verniano passou a tarde limpando a tenda. Comprou tudo que
precisava no mercado, a crédito, e no fim da tarde se deu por satisfeito.
Montou no cavalo, atravessou a “cidade”, galopou pela várzea até a
beira do rio.
Ali, se afastando bastante das crianças que brincavam, e das mulheres
que lavavam roupa, amarrou as rédeas do animal numa pedra, livrou-se das roupas, e
numa rápida corrida mergulhou nas águas mansas do rio.
____________________________
CAPITULO VIX
Alguns dias tinham se passado, após Karmon ter assumido a chefia da
guarda do Rei. Já tinha assimilado perfeitamente suas funções.
Seus comandados gostavam dele. Não os xingava, não chutava seus
traseiros, nem ganhavam safanões, como era costume do “barbicha”.
Um dia Karmon andando pelas ruas da “cidade”, um velho, da porta de
uma das casas o chamou com um aceno.
O Verniano se aproximou, e o velho disse: - Entre!
Acompanhou o velho, barba e cabelos muito brancos, mancando, que
entrou na casa, e convidou o “chefe da guarda” a sentar num banco ao lado dele.
Karmon curioso, atendeu ao velho, que olhando diretamente nos seus
olhos disse: - Filho, você está procurando sua cidade?
-Sim... Verna... O senhor conhece?
-Com esse nome, não... Mas eu vim do Norte, a muito tempo atrás.
Estavam construindo lá uma grande cidade. Eu era escravo, trabalhei na construção...
Quando eu fugi, vim pro Sul, tive sorte em chegar aqui!
Não pode ser Verna. Por mais carrasco que fosse, a Junta
Militar, nunca escravizaria ninguém. – Pensou Karmon.
Em voz alta perguntou: - A que distância fica essa cidade?
-Não sei... Muito longe... Demorei mais de vinte luas para chegar aqui!
O velho se referia a lua cheia. Calculando rapidamente o Verniano
concluiu que o velho tinha viajado por um ano e meio.
A noite encontrou com o Rei no pátio do “Palácio”, e contou o que
tinha ouvido do velho.
Salon escutou atentamente, e perguntou:
-Você tem interesse em achar essa cidade?
-Pode ser Verna1
-O homem disse que viajou vinte luas?
-Certo.
-Veja bem! Ele deve ter tido uma enorme dificuldade para chegar aqui,
e provavelmente não tem muita noção da direção que veio!
-Já pensei nisso. – disse o Verniano.
-Eu nunca ouvi falar nessa cidade, mas mesmo que ela exista, você
demoraria umas cinco luas para encontra-la.
-É possível!
-Sim... Mas em que direção... Norte?
-O deserto é imenso, qualquer desvio da rota correta, e você passará ao
lado sem perceber.
Karmon sacudiu a cabeça em sinal afirmativo, e o Rei concluiu: - Se
for de sua vontade, você pode ir quando quiser, inclusive leve uns dois homens com
você, mas pense bem antes de decidir.
As afirmações do Rei martelaram a noite toda a cabeça do Verniano.
Passaram alguns meses, e a dúvida persistia. Conversou muitas vezes
com o velho, mas não conseguiu obter dele mais nenhuma informação.
A vida ali era boa. Tinha conquistado uma linda mulher, que dormia
com ele todas as noites. Nadava no rio, cuidava da cidade prendendo bêbados e,
arruaceiros. Ensinou o Rei, e vários homens a jogar Pólo. Os tacos eram de madeira,
e a bola de pele de carneiro.
Estava difícil portanto se decidir a enfrentar uma viagem atrás de uma
cidade, que não tinha certeza de onde era, e que provavelmente não seria Verna.
Numa madrugada, o destino resolveu sua dúvida.
Acordou com uma barulheira infernal.
Ruído de espadas se chocando, gritos, sapateado de cavalos correndo
por todos os lados.
Pulou sobre a mulher, se vestiu rapidamente, colocou a espada na cinta,
esqueceu o turbante, e saiu ás pressas da tenda.
O que viu lhe deu um arrepio na espinha.
Absoluna estava sendo invadida por uma horda de bandidos. Homens
sujos e mal encarados cavalgavam por entre as tendas, armados de espadas, ferindo
mulheres e crianças. Espalhados pela área vários guardas do Rei, que tinham se
armado em tempo, lutavam com os invasores. Outros que saiam das tendas curiosos
para saber o que estava acontecendo eram impiedosamente imolados com golpes
certeiros. Duas tendas pegavam fogo.
Uma menina passou correndo perto do Verniano perseguida por um
negro seminu a cavalo. Passou por ele, freou o cavalo, que virou nos cascos, e voltou
gritando ferozmente brandindo a espada. Karmon que já tinha desembainhado a sua,
se agachou, e a espada do celerado passou zunindo sobre sua cabeça. Cutucou a
barriga do cavalo com a espada, e este corcoveou, escoiceou o ar com as duas patas
traseiras, e jogou o negro por cima da cabeça. Antes que pudesse se levantar, sua
“vitima” o alcançou, rolando sobre si mesma, e ficando em pé com a agilidade de um
gato. A espada descreveu um arco, e ceifou a garganta do bandido.
Um outro vinha correndo a pé na sua direção, gritando, e sacudindo a
espada acima da cabeça. Quando viu a cabeça do “colega” ser decepada num único
golpe, desviou a direção, e fugiu com o dobro da velocidade.
O Verniano pulou na cela do cavalo, que tinha se aquietado, e partiu a
galope, por entre as tendas, na direção do “Palácio” de Salon.
Com a espada em punho riscou, na passagem, o pescoço de quem
lutava com um dos guardas, e freou o cavalo bruscamente.
A sua frente um gigante musculoso, vestindo somente um saiote curto,
e sandálias presas as pernas por tiras de couro trançadas, barrava sua passagem,
segurando displicentemente a espada atravessada sobre o cavalo.
A segurança, e o riso desapareceram, quando Karmon, jogando a
espada da mão direita para a esquerda, partiu a galope na direção do facínora, e antes
que ele entendesse, desviou de direção passou a sua direita, e com um golpe rápido
riscou as costas do gigante.
Este, que já tinha levantado a espada, sem atinar como atingir o
adversário, deu um urro de dor, largou a espada, e emborcado caiu do cavalo, com as
costas ensangüentadas.
O Verniano não parou. Preocupado com o Rei, continuou o galope,
atropelou com o cavalo outro bandido que quis barrá-lo, e estancou o animal a uma
centena de metros da porta principal do “Palácio”.
Ali, brandindo no ar a espada com uma das mãos, e segurando com a
outra, pelos cabelos, a cabeça do Rei, o “barbicha” ria e urrava de satisfação.
Quando viu o Verniano a sua frente, o sorriso desapareceu de seu rosto.
Largou a cabeça do Rei, que rolou pelo chão, segurou a espada com as duas mãos, e
esperou a investida do inimigo.
Em lugar de galopar para cima do adversário, o cavalo em trote lento,
trouxe Karmon para perto de Aman.
O “careca” afastando de costas, parou quando o Verniano escorregou
lentamente do cavalo, a alguns passos dele.
-Veio se juntar aquele bastardo? – perguntou Aman, gritando, e se
lançando contra ele.
As espadas se encontraram no ar, e um duelo violento se iniciou. Ora
avançando, ora recuando, a luta levou ambos para o pátio interno do “Palácio”. Ali o
duelo terminou. Karmon ao avançar tropeçou, e encostou o joelho no chão. Aman
levantou a espada com ambas as mãos para rachar sua cabeça, quando a espada do
adversário varou seu ventre saindo do outro lado. Soltou a arma com um urro, o
Verniano puxou sua espada, e o “barbicha” curvado, rolou pelo chão estrebuchando.
Karmon não esperou para ver seu adversário morrer. Estava muito
cansado, e não teria forças para enfrentar outro facínora.
Cambaleando, entrou por uma das portas laterais do pátio. Nem bem
tinha entrado quando uma pesada estátua de pedra atingiu sua cabeça, e caiu
desmaiado com o crânio ensangüentado.
Abriu os olhos algumas horas mais tarde, virou, sentou, e tudo que via
na penumbra da sala era a porta iluminada pela luz do sol. Apalpou a cabeça muito
doida, sentiu os cabelos emplastrados, olhou para a mão suja de sangue, e se lembrou
da pancada que tinha levado. Se deu conta então que estava só de tanga, tinham
levado tudo, espada, túnica, sandálias... Tudo. Agradeceu aos espíritos por o terem
dado como morto.
Levantou com dificuldade, e foi até a porta. No meio do pátio viu o
“barbicha” numa poça de sangue, seminu, sem a espada, o turbante, e as sandálias.
Não perdoaram nem o chefe! – pensou.
Olhou em volta. Alguns corpos, tanto de guardas como de bandidos,
também seminus, jaziam espalhados pelo chão.
Andando cautelosamente rente a parede, chegou na entrada principal.
Olhou sorrateiramente para fora, depois avançou para entender melhor o que via.
A poucos passos, com os olhos esbugalhados, a cabeça do Rei o
encarava.
Por todo lado corpos caídos, alguns gemendo, outros se arrastando.
Tendas destruídas, fumaça e fogo por toda a parte.
Tinham levado tudo que tinha valor, inclusive as mulheres e as
crianças, e não satisfeitos puseram fogo na cidade.
O reinado de Salon tinha acabado, e Absoluna destruída.
____________________________
CAPITULO X
O vento levantava pequenas nuvens de areia, através das quais se via,
as vezes, uma pequena luz na noite escura do deserto.
Karmon, sentado a beira de uma fogueira, ao lado de uma pequena
tenda de couro de camelo, pensava se não tinha feito uma asneira.
Com Absoluna destruída, nada mais se podia fazer por ali. Seu antigo
desejo de encontrar Verna tinha retornado. Lembrou das conversas que tinha tido com
o velho sobre a existência de uma cidade ao Norte, e acabou se decidindo.
Juntou o que pode conseguir, e partiu.
Agora lá estava, depois de dias de viagem, ele, sua tenda, um cavalo de
montaria, e mais dois de carga.
Nenhum indicio até aquela noite, que lhe desse esperança da existência
de alguma cidade a sua frente.
Agora porem, olhando o horizonte, naquela noite escura, vislumbrava
bem longe uma tênue claridade espalhada no chão, que constantemente desaparecia,
encoberta, provavelmente, pelas nuvens de areia.
A muito tempo o Verniano olhava fascinado o pequeno clarão
espalhado no horizonte. Não podia ser uma única fogueira.
Teve desejo de levantar acampamento, e alcançar o que, com certeza
não era uma miragem.
A razão porem falou mais alto. Não sabia o que iria encontrar pela
frente, os animais estavam muito debilitados, e a noite muito fria ira exigir um grande
esforço dele, e dos animais.
Levantou, procurou algumas pequenas pedras, e construiu na areia uma
flecha indicando o rumo da claridade.
Amarrou os cavalos atrás da tenda, protegidos do vento, acendeu na
fogueira, que já se apagava, uma pequena tocha, entrou na sua “moradia”,
dependurou a tocha, e deitou na areia enrolado numa pele de carneiro.
Esquecido de que era um condenado a prisão perpétua na sua cidade,
dormiu embalado na esperança de encontrá-la.
No dia seguinte Karmon saiu da tenda, olhou para o Sol que
despontava no horizonte, desviou a vista para sua esquerda, e viu no chão, meio
encoberta pela areia, a flecha que tinha feito a noite. Apontava para o Norte, e isso
coincidia com o que o velho tinha lhe dito.
Deu um sorriso, levantou a vista, e descortinou uma planície de areia
se perdendo no horizonte.
Desmanchou o acampamento numa pressa nervosa, e em minutos
estava a caminho.
Durante horas marchou na direção Norte. A planície a sua frente se
estendia indefinidamente.
Karmon começou a desanimar, desceu do cavalo, continuou andando
ao seu lado, e disse, acariciando a cara do animal: - Acho que vimos miragem ontem!
Nesse instante o vento trouxe, por um instante, o que pareceu ser o som
de um instrumento musical.
O Verniano e o cavalo estancaram, o animal levantou as orelhas, e
novamente de longe chegou o mesmo som.
Karmon montou, largou os cavalos de carga, e a galope partiu na
direção do som.
A medida que avançava, outros sons se juntaram ao primeiro.
Pancadas, relincho de cavalos, um vozerio surdo, parecendo vir de uma grande
multidão, misturados com o som de muitas trombetas.
Estancou o cavalo bruscamente, maravilhado com o que apareceu a sua
frente, a menos de um quilometro, numa leve depressão da planície.
Milhares de homens seminus, postados em filas, cada uma com mais
de cem criaturas, com certeza escravos, puxavam enormes pedras quadriculares,
colocadas em uma rampa também feita de pedras, sobre troncos roliços de madeira, e
amarradas com extensas cordas trançadas, na direção de uma estranha construção
piramidal.
Circulando entre eles dezenas de homens trigueiros, chicoteavam a
esmo as costas dos escravos enquanto estes, ao som cadenciado de tambores, rolavam
lentamente, ladeira acima, as pedras sobre os troncos.
Vestiam um pequeno saiote bordado de fios dourados, seguro por uma
espécie de suspensório cruzado no peito. Botas inteiriças, e na cabeça uma espécie de
toca colorida com abas laterais cobrindo as orelhas, e parte dos ombros.
Mais ao longe a silhueta de duas enormes construções em forma de
pirâmide, e a direita uma gigantesca estatua de um leão deitado com cabeça de
homem.
No horizonte, uma linha escura e sinuosa, dava a idéia de ser um
grande rio.
Ao lado da rampa, que terminava no topo da construção piramidal,
duas fileiras de homens, enrolados em panos brancos, e cobrindo a cabeça com algo
branco e longo, parecido com um cupim invertido, ladeavam uma liteira parecendo
uma caixa, com um teto reto de pano colorido, apoiada em dois varais, e carregada
por dois grupos de homens seminus, postados na frente e atrás.
Na frente um pequeno grupo com vestes quase iguais aos que
chicoteavam os escravos, postados imóveis numa linha única, carregavam longas
trombetas apoiadas no ombro.
Atrás, outro grupo, em linha, portando cada um, uma comprida lança,
completava o séqüito.
Dentro da liteira, sentado num trono enfeitado com entalhes revestidos
de ouro, um menino vestindo um saiote longo e colorido, um colete de couro bordado
a ouro, e na cabeça uma enorme touca de couro com longas abas laterais, toda
revestida com desenhos dourados.
Entremeado com gritos, som de tambores, e estalar de chicotes, se
ouvia um canto repetitivo... Tutankamon... Tutankamon...
Na liteira o menino desviou o olhar da pirâmide em construção, e
momentaneamente o fixou no cavaleiro ao longe, que em seguida desapareceu por
trás da duna de areia.
FIM
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