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TRATADO DOS TRÊS IMPOSTORES, MOISÉS, JESUS, MAOMÉ, autor anónimo (O Espírito de Espinosa); Prefácio de Manuel Dias Duarte, tradução
de Luís Manuel A. V. Bernardo e Luís Alves da Costa, notas de tradução
de Luís Manuel A. V. Bernardo, Vega, 2004
Todos podemos encontrar gostosamente, em certas obras de autores
anónimos, envoltas num persistente mistério que os episódios da sua
recepção tenderiam a adensar e a complicar, um interesse que vale de
imediato por tal significação enigmática e mítica, e que por si só justificaria uma edição actual, apresentada com um competente aparelho de notas;
esse interesse espontâneo independe, pois, da importância ou da qualidade literárias, filosóficas, ou de outra índole, que o conteúdo possa em si
mesmo possuir. Deste ponto de vista, o Tratado dos Três Impostores:
Moisés, Jesus, Maomé, publicado pela primeira vez em 1712, em Roterdão, contraditoriamente remetido para as mais diversas paternidades,
reclamando-se do espinosismo, ou do «Espírito de Espinosa» - ao ponto
de reproduzir na íntegra longas passagens da Ética ou do Tratado Teológico-político, numa reordenação singular e muito própria à sua conveniência - , revelando e levando ao extremo um princípio ateu e anti-religioso identificado nesse mesmo espinosismo, mas evocando igualmente,
como seu paradigma, o texto medieval De Tribus Impostoribus, também
este atribuído polemicamente a múltiplos autores possíveis, reúne razões
mais do que suficientes para um encanto e para um interesse directamente
históricos, indirectamente filosóficos, que convidam a uma leitura sem
excessivas pretensões.
Daí que o maior mal-entendido da presente edição portuguesa resida
nas palavras com que, no prefácio — e só o refiro porquanto, como «via
real» para a obra, um prefácio lhe reivindica um estatuto que é sempre
gerador de legítimas expectativas e de um certo modo de nos dispormos a
ler o texto - , Manuel Dias Duarte acrescenta ao imediato e natural interesse pelo Tratado, um outro, deveras surpreendente: uma vez que, na sua
óptica, o 11 de Setembro marcaria o fim da modernidade, ou seja, «o fim
inadiável da filosofia e do pensamento dicotômico, feito de oposições e
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de contradições'» , substituída por uma «pós-moderna» (contudo «velha»)
«divisão por "culturas" ou "civilizações" caracterizadas cada qual pela
religião dominante [...]», só restaria respondermos a esse declínio, conclui ele, pelo reforço da filosofia, reabrindo «o debate e a discussão»,
começando «por uma reflexão exigente apoiada em obras de referência»
- o que julgo constituir precisamente tudo aquilo a que este texto nunca
deveria aspirar, ou seja: ser uma «obra de referência» capaz de reabrir
uma «reflexão exigente».
Uma vez assumido, sem desprimor, o carácter menor do livro em
causa, concebido entre o intuito do combate político-religioso e o da
invocação de pensamentos que, nesse combate, apoiem uma determinada
posição sem a fundamentarem, percebe-se melhor a sua incessante oscilação de qualidade: se os capítulos-chave denotam a incompreensão sectária em relação ao que se quer combater, visando desmascarar Moisés,
Jesus, Maomé — e haveria que, a estes nomes já presentes no título, acrescentar o de Numa Pompííio - , através da simplificação grosseira das
ideias atacadas, outros capítulos revelam, contudo, uma cultura da reflexão e da argumentação; estes são, e digo-o sem ironia, transcrições de
páginas de Espinosa, Charron, Naudé. Um exemplo: a desconstrução da
«ilusão finalista» (capítulo II, «Razões que Levaram os Homens a Representar um Ser Invisível, ou O que se Chama Habitualmente Deus»,
pp. 25-31) ou as curiosas passagens acerca dos motivos e das motivações
da superstição (capítulo XV, «Sobre os Supersticiosos, Sobre a Superstição e a Credulidade do Povo», pp. 83-86) permanecem momentos filosoficamente estimulantes, que darão ao leitor, quanto mais não seja, o
desejo de reler a argumentação completa e mais profunda nos originais.
1
É, todavia, fundamentalmente a «impostura» de Jesus Cristo que se
pretende provar, num exame que se estende ao longo de quatro capítulos,
V I I a X - enquanto que a cada um dos demais «impostores» se dedica um
único - , pondo-se finalmente em causa a sua divindade a partir da sua
humanidade (capítulo X, «A Divindade de Jesus Cristo», pp. 61-63):
«Mas, aliás, se Jesus Cristo fosse Deus, seguir-se-ia, como diz São João,
que Deus tinha sido feito carne e teria assumido a natureza humana, o que
encerra uma contradição tão grande como a de afirmar que o círculo
assumira a natureza do quadrado, ou que o todo se transformara em parte.», p. 62. Significa isto incompreender por inteiro um dos aspectos em
que o cristianismo mais vibrantemente pode falar ainda ao homem, propondo-lhe o sentido de uma moral: o exemplo da generosidade extrema
que é chamar a si, por amor, a culpa e o sofrimento de outrem, encar1
Mas cabe perguntar: é «isso» a modernidade - a não ser no quadro estrito, demasiado
específico e, neste caso, nunca mencionado, da «desconstrução» a que Derrida procede
desse conceito?
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nando-o - e a palavra adequa-se bem aqui - por um acto de vontade,
através de uma radical diminuição de si (um despojamento escolhido por
amor), que só nos termos estritos de uma lógica formal(ista), more geométrico, pode ser tomada por contraditória. (E, de resto, na posição de
não-Cristão que o penso: digo-o para que não subsistam equívocos, não
porque esse lugar acrescente à minha posição qualquer tipo de autoridade
e crédito indiscutíveis.) Ora essa incompreensão do sentido mais fundo
dos ensinamentos daqueles que se intenta refutar, de que demos um
exemplo mas que subsiste ao longo das páginas, pode ser aceitável para o
leitor advertido de estar lendo um texto que afina uma retórica da intervenção e da eficácia num contexto histórico e cultural específico, mas
não é compatível com o fardo da «exigência» filosófica que o prefácio
injustamente parece fazer recair sobre o livro. Há que reencontrá-lo, portanto, na sua verdadeira dimensão: a de um aguçado instrumento de
polémica em elemento de guerras político-religiosas. Para essa transferência, aliás, a própria edição portuguesa oferece os meios indispensáveis
e proveitosos, guiando-nos através das notas com que um dos tradutores,
Luís Manuel Bernardo, reconstitui e nos devolve, muito atenta e rigorosamente, as preocupações de uma época, ou todo um universo de pressupostos e de influências, ou de proximidades e debates filosóficos, que
sustentam subterraneamente o texto. Julgo mesmo ser por esse suplemento que o leitor mais tem a ganhar, reatando os caminhos de polémicas
que esquecera ou cujos pormenores não conhecia de todo, como uma
visão global dos embates históricos e particulares, sociais, políticos, religiosos, sobre os quais se vai configurando a posição do autor que se
esconde sob o «Espírito de Espinosa».
José António Leite Cruz de Matos Pacheco
CARLOS JOÃO CORREIA, Mitos e Narrativas. Ensaios sobre a Experiência do Mal, Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa, Lisboa, 2003,
245 pp.
I . O mito, em concretizações que culturas longínquas entre si produziram ao longo dos mais variados tempos da história humana, tem merecido a Carlos João Correia, de há muito, uma atenção que o torna, entre
nós, um estudioso de singularíssimo perfil: um investigador que, no território sempre insuficientemente desbravado que é o da circulação entre o
mito e a filosofia, faz falar ao mesmo tempo as duas linguagens: se, por
um lado, o seu olhar é sempre o do filósofo, o do sujeito de uma razão
que reflecte criticamente, por outro lado, os mitos estão muito longe de,
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