DA EXTENSÃO Á INTERAÇÃO: UM DIFÍCIL CAMINHO
Silva, Rosa Maria Alves da Silva – UNITOLEDO
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Resumo:
O presente trabalho constitui-se num relato de parte de uma experiência de formação docente inicial
e em continuidade ocorrida durante um período de três anos, através de uma parceria entre uma
Universidade e uma Escola de Ensino Fundamental, no espaço próprio do estágio supervisionado.
Definidos como atividades de extensão, os estágios colocam, frente a frente, duas instituições - a
universidade e as escolas de ensino básico. Entre elas há uma relação de intercomplementaridade,
visto que ambas são locais de produção da docência e do ensino (ainda que em níveis diversos) e
do conhecimento sobre eles (docência e ensino). Além disso, a universidade e as escolas de ensino
básico articulam-se também na formação de professores - a primeira forma professores para a
segunda e a segunda participa do processo de formação conduzido pela primeira, através do estágio.
A autora relata o processo de inserção da universidade na escola, nas suas reais condições sociais de
produção. Analisa as implicações de um Projeto de Estágio cuja pretensão era superar os princípios
da racionalidade técnica procurando alternativas para uma maior articulação teoria e prática,
almejando transformar uma atividade predominantemente extensionista num espaço de interação e
formação docente. Nos moldes da racionalidade técnica, a formação docente inicial começa pelo
estudo de diferentes teorias, em disciplinas que explicitam princípios norteadores do processo de
ensino e, depois, são encaminhados para os estágios, com a finalidade ou pretensão de observarem
na prática o que viram teoricamente e de se exercitarem nos procedimentos de aplicação.Tal
organização e estrutura dos cursos de formação inicial, a repetir-se nas ações de formação
continuada, colocam em paralelo os problemas do cotidiano escolar e os ideais que emergem das
teorias, os profissionais que elaboram as propostas didáticas (especialistas e intelectuais) e os que as
aplicam (professores como técnicos).Assim, nessa perspectiva, a relação teoria e prática encontra-se
cindida
Palavras –chave: formação docente, estágios, interação.
1805
1- Delimitando o problema
A formação docente, no Brasil, sob o impacto do tecnicismo dos anos 70 e do
neo-tecnicismo dos anos 90 do século XX, tem se pautado, majoritariamente, nos princípios da
racionalidade técnica que concebem a atividade profissional de uma perspectiva estritamente
instrumental, assentada na aplicação rigorosa de técnicas e métodos científicos. A racionalidade
técnica tem como suporte filosófico, o positivismo, que valida como conhecimento único e
universal, o conhecimento científico de caráter experimental que, segundo Gómez (1992), cinde
inevitavelmente investigação e prática.
Nos moldes da racionalidade técnica, a formação docente inicial começa pelo
estudo de diferentes teorias, em disciplinas que explicitam princípios norteadores do processo de
ensino e, depois, são encaminhados para os estágios, com a finalidade ou pretensão de observarem
na prática o que viram teoricamente e de se exercitarem nos procedimentos de aplicação.
Tal organização e estrutura dos cursos de formação inicial, a repetir-se nas ações
de formação continuada, colocam em paralelo os problemas do cotidiano escolar e os ideais que
emergem das teorias, os profissionais que elaboram as propostas didáticas (especialistas e
intelectuais) e os que as aplicam (professores como técnicos).
Assim, nessa perspectiva, a relação teoria e prática encontra-se cindida. Definidos
como atividades de extensão, os estágios colocam, frente a frente, duas instituições - a universidade
e as escolas de ensino básico. Entre elas há uma relação de intercomplementaridade, visto que
ambas são locais de produção da docência e do ensino (ainda que em níveis diversos) e do
conhecimento sobre eles (docência e ensino). Além disso, a universidade e as escolas de ensino
básico articulam-se também na formação de professores - a primeira forma professores para a
segunda e a segunda participa do processo de formação conduzido pela primeira, através do estágio.
A
partir
dos
princípios
da
racionalidade
técnica,
essas
relações
de
complementaridade não têm sido exploradas. Uma instituição e outra são lidas em separado: à
universidade, como centro produtor de pesquisas e de teorização, cabe fazer a crítica dos equívocos
que reconhece nas práticas cotidianas das escolas de educação básica e nelas intervir através de
assessorias, dos cursos de educação continuada e também dos estágios, visando corrigir tais
equívocos, mais do que discuti-los e compreendê-los em suas condições de produção, juntamente
com os professores que fazem/vivem a escola. Mais do que redimensionar as formas de ação nas
escolas, em diálogo com a vida cotidiana e os saberes ali produzidos, os professores das
universidades, via de regra, explicitam teorias que, justificadas por seu caráter científico, devem
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substituir os saberes não institucionalizados em circulação na escola. Embora o discurso acadêmico
seja pautado no princípio de que não há receitas metodológicas a serem compartilhadas, mas
princípios a serem seguidos, as técnicas implicadas nas teorias, ao invés de serem abertamente
problematizadas, entram em cena veladamente.
Conscientes das limitações dos estágios como atividades extensionistas,
professores supervisores dos estágios de um Curso de Pedagogia de uma instituição de Ensino
Superior da região noroeste do Estado de São Paulo, analisando a organização e estrutura dos
mesmos, constataram que era preciso um maior acompanhamento e orientação ao trabalho dos
estagiários, de modo a deslocar o foco do estágio da observação passiva do trabalho do professor,
como acontecia até então, para a experimentação pelo estagiário de uma prática docente.
Com base nessas preocupações e com a responsabilidade de formar novos
professores, propuseram, no início de 2000, ao Conselho de Pesquisa e Extensão da Instituição, um
projeto a ser implementado em parceria com a rede municipal de ensino. Esse projeto previa a
atuação dos estagiários do 2º e do 3º anos junto a uma escola do Ensino Fundamental da rede
pública municipal, para a realização de um trabalho específico com alunos das séries iniciais do
Ensino Fundamental, de forma que, experimentando-se na prática docente, pudessem articular o
saber teórico adquirido no curso de formação com os saberes da prática dos docentes.
Concomitantemente, propunha-se uma capacitação dos professores em cujas classes os estagiários
estivessem atuando. Essa formação continuada teria lugar em reuniões semanais que aconteceriam
durante a permanência dos estagiários em sala de aula e seriam centradas em reflexões sobre a
prática docente, buscando, sempre que necessário, uma fundamentação teórica que respondesse às
inquietações e dúvidas trazidas por esses professores. Por sua vez, as reuniões de orientação e de
supervisão dos estágios estariam possibilitando aos estudantes a reflexão sobre as experiências
docentes vividas por eles.
O compromisso de um trabalho interativo firmar-se-ia, assim, num tripé de
relações: os acadêmicos que teriam a oportunidade de vivenciar e refletir sobre uma prática
produzida,
a partir de um projeto elaborado, desenvolvido e avaliado por eles próprios; os
professores da rede, responsáveis pelas primeiras séries do ensino fundamental, que refletiriam
sobre sua prática pedagógica, nos momentos a eles oportunizados pela presença dos estagiários, e,
finalmente, os docentes atuantes no curso de Pedagogia que receberiam contribuições referentes ao
cotidiano escolar, o que possibilitaria uma avaliação e revisão do ensino ministrado nos cursos de
Licenciatura, favorecendo a construção de uma metodologia do processo de ensino e de
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aprendizagem desenvolvida na região, mais adequada à realidade e em consonância com o ensino
fundamental.
O Projeto previa ainda o incentivo à pesquisa, a partir da identificação de
situações e estratégias facilitadoras ou dificultadoras de aprendizagem. Essa coleta de dados
resultaria dos encontros com os professores e da observação e atuação dos acadêmicos junto aos
alunos do ensino fundamental, em situações reais de ensino. Delimitados os problemas, caberia não
só, mas, principalmente, aos professores da faculdade, subsidiar, apontar caminhos para que seus
alunos pudessem buscar significados e alternativas de solução. Deveriam ainda instrumentalizá-los
para que pudessem sistematizar, registrar e socializar os conhecimentos adquiridos.
Após a aprovação do Projeto, o próximo passo foi a “determinação” da Escola na
qual ele seria desenvolvido. Os critérios utilizados para essa “escolha”, definidos por um
representante da Secretaria Municipal de Educação e aceitos por nós, docentes da faculdade, foram
os seguintes: o fato da escola estar localizada em bairro de periferia, com muitas ocorrências de
violência, haver crianças com problemas de aprendizagem, aparente falta de apoio familiar e grande
mobilidade do corpo docente.
2- A Cortês Resistência
2.1 Os primeiros passos
Como já foi dito, a escola onde desenvolvemos o projeto foi escolhida através de
um “acerto” estabelecido entre a Secretaria de Educação e os professores da Faculdade,
responsáveis pela Prática de Ensino e estágios supervisionados. Posteriormente, seus professores
foram “consultados”, “aceitaram” o desafio e receberam-nos de modo bastante cordial e solícito.
Estávamos no mês de março de 2001.
No entanto, após alguns encontros, começamos a perceber as limitações do
projeto, que os professores educada e convenientemente estavam “engolindo goela abaixo”.
A partir da contextualização da situação e das condições sociais em que o projeto
foi implantado, uma questão merece reflexões mais cuidadosas e refere-se à atitude tomada pelos
professores que tentavam se colocar à nossa disposição.
Esses docentes estavam alheios aos propósitos do Projeto de Estágios. Os
problemas que motivaram o trabalho não foram sentidos por eles, os objetivos e as ações não foram
planejados com eles e nem sequer haviam sido consultados sobre a relevância, importância e
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aceitação do Projeto. Porém, do lugar social em que se encontravam, acataram a decisão tomada
pela secretaria e assumiram uma posição de “cortês resistência”.
A esse respeito, parece-me bastante adequada a análise feita por Paulo Freire
(1977), ao analisar o problema da comunicação entre o técnico agrônomo e o camponês, nos
processos de extensão agrícola que se instalava no Chile das décadas de 60/70 do século XX.
Analisa ele, em relação àquele contexto, que havia razões de ordem históricosociológica, cultural e estrutural que explicavam o fato dos camponeses entregarem-se ao silêncio,
à apatia, mesmo em face das intenções dialógicas por parte dos agrônomos extensionistas que
tentavam capacitá-los com técnicas mais arrojadas para o cultivo.
Na busca de explicações, o autor ressalta a necessidade de refletir sobre o ato de
conhecer:
Conhecer é tarefa de sujeitos, não de objetos. E é como sujeito e somente
enquanto sujeito, que o homem pode realmente conhecer. Por isso mesmo é que, no processo de
aprendizagem, só aprende verdadeiramente aquele que se apropria do aprendido, transformando-o
em apreendido, com o que pode, por isto mesmo, reinventá-lo; aquele que é capaz de aplicar o
aprendido-apreendido a situações existenciais concretas. (Paulo Freire, 1977, p. 27)
O Projeto de extensão proposto por nós, professores da Faculdade, para os
professores da rede pública, não os considerava como sujeitos, e sim, como objetos de nossa ação.
Embora houvesse uma intenção explícita de desencadear reflexões conjuntas, a partir da prática
docente e do cotidiano escolar, os professores não foram ouvidos, não opinaram sobre a necessidade
(ou não) de discutir e refletir coletivamente sobre seu trabalho, nem sobre sua disponibilidade (ou
não) em compartilhar suas ansiedades, seus anseios, sua história, seus saberes com um grupo
estranho à escola e ao seu convívio. Receberam a proposta já elaborada, como uma prescrição de
alguém que supunha saber, inclusive, quais eram suas necessidades.
Repetimos que o conhecimento não se estende do que se
julga sabedor até aqueles que se julga não saberem; o conhecimento se
constitui nas relações homem-mundo, relações de transformação, e se
aperfeiçoa na problematização crítica destas relações. ( Paulo Freire,
1977,p.36)
O fato de a escola ter sido escolhida pela Secretaria Municipal desencadeou nos
professores um sentimento de obrigatoriedade, advindo dos lugares sociais ocupados por eles na
hierarquia da Secretaria Municipal de Educação. Os critérios explicitados pela Secretaria para a
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indicação da escola – uma escola com problemas, situada em um bairro igualmente problemático expuseram a própria escola, seus professores e alunos a um julgamento público. Nessas condições,
o que esperar daquela proposta de trabalho? Como responder a ela?
Reconheço, hoje, o quanto é compreensível a relação de reserva que os
professores mantiveram em relação aos objetivos do projeto. Reconheço também, que apenas o
desejo de superar as marcas da racionalidade técnica e do extensionismo que pautam as relações
dentro da universidade e dela com outras instituições de ensino, em nada as modifica. Os gestos e as
ações desencadeadas, a exposição ao outro e aos sentidos que produz como réplicas às nossas
intervenções, a análise sem defensivas dessas réplicas, a descrição e análise cuidadosa dos fazeres,
dizeres e sentidos produzidos em nossas relações com esses nossos outros configuram um longo
caminho de aprendizados e desaprendizados a ser percorrido por nós, formadores.
Se hoje consigo escrever dessa maneira sobre o vivido, tenho que reconhecer que,
em um primeiro momento, minha reação foi a de considerar como falta de motivação e de
envolvimento, a cortês resistência dos professores.
As primeiras reuniões com os docentes ocorreram num clima de respeito mútuo,
embora os indícios nos apontassem a falta de envolvimento. Eu os sentia um pouco apreensivos.
Inicialmente, respondiam minhas perguntas, formuladas com a intenção de desencadear uma
discussão sobre a prática, elaborando as respostas com certo cuidado, assumindo, às vezes, uma
postura defensiva, outras vezes, desviando o rumo da conversa. Afinal, de que lugar social eu
falava? Com que intenções? Qual havia sido o acordo feito com a representante da Secretaria da
Educação, que também era professora da Faculdade e minha parceira no projeto? Embora eu os
tivesse informado sobre nossas intenções, as dúvidas e a desconfiança persistiam. Por que
confiariam os professores em nós, se os submetíamos a práticas que nos interessavam sem
perguntar-lhes, sequer, sobre o que pensavam de nossa proposta?
A mediação do constrangimento partiu de uma das professoras. Ela havia sido
minha aluna, recentemente, no curso de Pedagogia, e era uma das poucas efetivas da escola.
Assumiu uma posição de mediadora entre mim e o grupo, incentivando conversas e discussões mais
espontâneas. Aos poucos, fomos ficando mais à vontade, falando de práticas docentes, levantando
problemas do cotidiano.
Havia ainda professoras que se mantinham, o tempo todo, em silêncio.
Considerando com Bakhtin que o silenciar significa, poderíamos interpretar o silêncio dessas
docentes como um indício de apreensão, desconfiança, não envolvimento, como estratégia para não
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expor seu trabalho . Fontana (2002), investigando a produção do silêncio no processo de
constituição da professora, questiona o que, como professoras, silenciamos, a quem silenciamos e
por que silenciamos. Interroga ainda de que sentidos, investimos o silêncio que assumimos na
dinâmica de nossas relações de trabalho. Narrando suas primeiras experiências profissionais, a
autora interpreta o silêncio como um traço constitutivo da profissão docente, que é apreendido e
elaborado como um modo de participação na organização do trabalho dentro da escola e que em sua
compreensão, remete ao drama, entendido como situação de conflito que se instaura dentro do
sujeito em relação aos lugares de poder a que se vê submetido.
No final da segunda reunião, no primeiro semestre de 2001, os professores,
impulsionadas pela docente Samara1, relataram que seus alunos tinham melhorado muito nos
últimos meses, referindo-se aos aspectos comportamentais. Não por acaso, reconheço hoje, que as
primeiras interlocuções já se voltavam para um dos critérios explicitados pela Secretaria ao indicar
a escola: uma escola que apresentasse problemas de aprendizagem. Pedi a elas, então, que
pensassem, para o nosso próximo encontro, sobre as causas dessa mudança, ou seja, o que a escola
tinha feito para desencadear essa melhora?
Na semana seguinte, retomamos a questão e as respostas foram as seguintes: o
planejamento da escola vinha priorizando o desenvolvimento de boas atitudes de convivência; havia
um compromisso da equipe em relação a esse objetivo; todos os dias, antes do início da aula, faziase a oração coletiva; uma vez por semana, acontecia o culto à bandeira. O projeto Amigos da Escola
também acontecia, através de um voluntário que ministrava aulas de Educação Física para as
crianças. Essas aulas eram
consideradas de muita validade pelos professores, não só porque
possibilitavam um outro tipo de vivência às crianças, dentro da escola, como também porque
atuavam sobre o grupo de alunos, disciplinando-os em relação aos objetivos da própria atividade
esportiva.
A partir dessas considerações, surgiu novo questionamento: - O que desenvolver
nas séries iniciais do 1º grau? - Dever-se-ia priorizar as atitudes dos alunos ou os conteúdos de
ensino? Não me dava conta, ainda, de que, mais do que uma escolha, o controle disciplinar em
implementação na escola era, talvez, uma resposta à imagem que se fazia da própria escola e dos
caminhos necessários ao ensino, nas condições em que era ali produzido..
Em resposta a minha indagação, um dos professores lembrou e procurou recuperar
a fala de um outro docente, que na ocasião ocupava um cargo político relacionado à educação.
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Todos os nomes de docentes e estagiários que constam nesse trabalho são fictícios.
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Frente à angústia manifestada pelos professores com relação às crianças que não aprendiam, ele
questionava: - “A criança sabe fazer continha de mais e de menos? –Sabe fazer ditadinho? Sabe
escrever o nome?”
A retomada da enunciação daquele professor pareceu-me bastante oportuna para
uma reflexão acerca do nosso posicionamento político frente à natureza e aos objetivos da
educação. A palavra, como fenômeno ideológico por excelência, segundo Bakhtin (2002), traz
consigo valores, crenças, conceitos acerca da vida social, do outro. Os enunciados não são neutros,
nem uma unidade de significação em si mesmos. Eles significam na corrente da comunicação
verbal, em suas relações com outros enunciados, com outras vozes, que dizem, de lugares outros,
outras possibilidades de sentidos. O cotejamento entre enunciados dá visibilidade às disputas de
interesse e às tensões existentes entre diferentes grupos sociais. O modo como nos posicionamos e
somos posicionados frente a esses enunciados indiciam nossa pertença a determinados grupos,
nossa visão a respeito das diferenças sociais existentes entre esses grupos, nossos valores e projetos.
Pedi, então, aos professores que pensassem sobre a situação lembrada pela professora
para
retomarmos a discussão no próximo encontro.
Na semana seguinte, retomei a questão e fui analisando para e com o grupo, o
enunciado recuperado e destacado na semana anterior: A criança sabe fazer continha de mais e de
menos? Sabe fazer ditadinho? Sabe escrever o nome? Considerei que aquela fala poderia ter, pelo
menos, duas conotações antagônicas que refletiam posturas políticas diferentes em relação ao papel
social da escola. A primeira possibilidade era a de que a fala destacava conhecimentos básicos que
toda criança deveria adquirir como instrumento para a aquisição de outros conhecimentos. Sendo
assim, a fala remetia a uma postura educadora igualitária, voltada para as condições necessárias ao
desenvolvimento dos educandos. No entanto, aquela mesma fala poderia estar indicando que as
crianças mais pobres, provenientes de um meio social mais limitado culturalmente, como aquele do
bairro em que se inseria a escola, deveriam ter garantido o acesso a um conteúdo essencial mínimo.
Este segundo sentido remetia a uma postura de discriminação e continuísmo de uma ordem social
injusta, na qual a quem pouco tem, garante-se o mínimo à sobrevivência, reforçando na escola, suas
já limitadas e desiguais oportunidades de desenvolvimento.
Por que problematizei exatamente esse fragmento? Pensar dialeticamente as duas
possibilidades de sentido nele contidas foi o que me motivou a fazer esse destaque.
Conforme Bakhtin (2002), a palavra reflete e refrata a realidade. Ao refletir, ela
devolve imagens consolidadas e hegemônicas com relação aos lugares sociais ocupados pelos
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indivíduos numa sociedade de classes, diferenciada. O reflexo, em geral, remete ao projeto de
conservação de uma dada situação. Em contrapartida, ainda que hegemônicos, por serem
dominantes num certo período, nos processos de conservação está posta a sua antítese, que é a
refração daquele interesse e daquele significado para outros grupos sociais, apontando para
possibilidades outras que não a manutenção de um certo modelo social estabelecido. Assim, todo
projeto conservador contém dialeticamente em si, sua negação.
Fiquei muito otimista com o gradual envolvimento dos professores, pude me
pronunciar menos porque a palavra foi tomada por muitos deles. Se, por um lado, a leitura de que o
conhecimento do mínimo necessário por parte das crianças das séries iniciais do Ensino
Fundamental confortava os professores, por outro lado havia a possibilidade dela remontar a uma
ordem social injusta em que os cidadãos não teriam oportunidades iguais de desenvolvimento.
Saí satisfeita desse encontro, considerando que iniciáramos a formação continuada
que eu tanto almejava. Pensando “juntas”, ainda que a análise tivesse sido minha e, essa era ainda
uma ilusão em relação aos meus próprios gestos, estaríamos re-significando nossos conceitos. Essa
re-significação teria, possivelmente, implicações para a prática docente.
2.2 Superando gradativamente “a cortês resistência”
Um fato novo, ainda naquele mesmo ano, obrigou-me, felizmente, a reformular a
metodologia do Projeto, embora, pareça-me que os objetivos tivessem sido preservados. Como
haveria um concurso público para preenchimento de cargos de professor de Educação Infantil e de
Educação Fundamental, na Secretaria Municipal de Ensino, os professores pediram-me que durante
as reuniões, discutíssemos conteúdos da bibliografia do concurso, visto que seu tempo para estudo
era bastante limitado. Considerei, e confirmei posteriormente, que transformar as reuniões em
sessões de estudo viria ao encontro da motivação dos professores, naquele momento, o que tornaria
os encontros mais dinâmicos e com maior participação de todos. Preparei, então, aulas sobre
princípios teóricos- metodológicos norteadores dos Parâmetros Curriculares de Português. Os
professores ouviam-me com muita atenção, anotavam e levantavam dúvidas e questionamentos.
Enquanto isso acontecia, eu pensava o quão interessante seria se os estagiários estivessem ali,
conosco, participando do estudo e discussão.
Em relação aos estagiários, ao término de suas aulas de regência, reuníamo-nos e
fazíamos uma avaliação da metodologia e recursos utilizados, motivação dos alunos, dificuldades e
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saídas encontradas, etc...Avaliava, a cada encontro, essa ação como muito oportuna e útil. Os alunos
envolviam-se
cada vez mais em seus projetos e não se sentiam inibidos ao falar sobre seu
desempenho e suas frustrações. Trocavam-se experiências, sugeriam-se atividades, confortava-se,
discutia-se. Nesses momentos, eu pensava o quão interessante seria se os professores participassem
desses encontros.
De pensamento em pensamento, fui-me dando conta de como a própria
organização proposta para a realização do estágio na escola era um obstáculo às interlocuções entre
estagiários e professores, mantendo a formação inicial em separado da formação continuada. Afinal,
não havia ainda um espaço comum para discussões, troca de experiências, expectativas,
informações, etc.
No final do ano letivo, os estagiários propuseram atividades diversificadas para o
encerramento do Projeto. Conversamos com os professores que aderiram prontamente à idéia.
Planejamos oficinas diversas: literatura, dobradura, música, fantoches, modelagem e desenho e
pintura. Para cada oficina ficaram responsáveis um professor e um estagiário. Os alunos da escola
poderiam inscrever-se na oficina que desejassem, independente da série que cursavam. O
planejamento da oficina e a preparação do material ficaram a cargo dos estagiários. A direção
adquiriu o material necessário.
No dia do encerramento, assisti a um trabalho conjunto entre professores e
estagiários, atuando com grupos de crianças de diversas séries e níveis de aprendizagem, com
entusiasmo e alegria. As crianças, animadas, produziram trabalhos interessantes e depois do
intervalo expuseram-nos aos demais grupos.
Esse evento despertou em mim a consciência de que ali estava um caminho de
interação entre a formação inicial e continuada, entre o trabalho desenvolvido na faculdade e o das
escolas de ensino fundamental. Percebi, então, que em meu processo de inserção na escola, as
concepções de que eu partira, foram transformadas. Professores e estagiários, em suas relações
comigo, levaram-me a reconsiderar as condições de produção das relações de formação que eu
própria havia instaurado.
Os dois momentos que eu considerava como mais significativos, naquele ano – as
aulas para os professores e as oficinas desenvolvidas por eles e pelos estagiários – haviam sido
aqueles em que meus propósitos e propostas iniciais foram transformados pelos que viviam comigo
o estágio. De um lado os professores, apropriando-se de um espaço que, até então não era deles – o
espaço das tais reuniões de formação continuada – redefiniram-no, imprimindo-lhe um objetivo
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relevante e significativo para o grupo. Do outro lado, as alunos estagiários também redefiniram seu
modo de estar na escola, ao romperem com a separação entre elas e os professores, reunindo os dois
grupos em uma mesma atividade com as crianças.
Uma nova possibilidade estava delineada. Resolvi explorá-la
3- A grande virada
- Como exercer o domínio da classe como um todo? - Como corrigir as
atividades? -Como fazer intervenções adequadas? -Como distribuir melhor o tempo disponível para
a aula? - Como motivar as crianças para o conteúdo que se quer trabalhar? – É muito difícil
despertar o interesse das crianças para a aprendizagem, parece-nos que elas se mostram mais
apáticas do que indisciplinadas.
- Parece que as crianças têm medo de perguntar, de expor suas curiosidades. Às
vezes, eu me pergunto se dessa forma vamos conseguir formar cidadãos responsáveis e críticos no
futuro? (depoimento escrito de uma estagiária, em novembro de 2002).
Letícia, estagiária que desenvolvia um projeto com música, tentando ensinar as
crianças à tocarem flauta, após algumas aulas, tomou uma decisão. Contrariando seu idealismo de
que todos teriam que ter a oportunidade de vivenciar uma experiência musical, tão excitante e
prazerosa (do seu ponto de vista), teve que separar um grupo que demonstrava mais interesse e
habilidades musicais.
A estagiária Vanesca resolveu desenvolver um projeto sobre ciências, alegando
que, durante o período de observação, notou que essa disciplina quase não era trabalhada nas aulas.
Preparou um material apostilado, com um conteúdo bastante interessante. Empenhou-se com
entusiasmo na preparação da aula. Qual não foi sua decepção quando se deparou com o
desinteresse das crianças. Penso que seria interessante transcrever parte do relato dessa aluna por
conter elementos significativos para uma análise sobre formação docente:
-Inicio esta análise, lamentando profundamente as críticas feitas por mim, às
práticas dos professores cujas aulas acompanho. Justifico a retórica do seguinte modo: não temos
formação sólida e nem preparo suficiente para atuarmos como professores. Quando praticamos o
magistério, nos deparamos com grandes problemas como a indisciplina, o currículo, as políticas
educacionais, a desestrutura familiar. Os valores morais estão passando por grande crise, sendo
que a primeira socialização da criança, no seio familiar, está muito deficitária, sobrando para o
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professor ensinar matéria, valores, normas e principalmente noções de higiene. E isso
sobrecarrega-nos de tal forma que ficamos perdidos...
Durante nosso curso, vimos Jean Piaget e sua teoria do construtivismo...Contudo,
mais decoramos para a prova do que aprendemos ou aprofundamos. E, essa belíssima teoria que
poderia auxiliar a prática, acaba por se tornar sem função...A mesma coisa acontece com a teoria
de Emília Ferreiro. Conhecemos a teoria, mas nada aprofundado: nível pré-silábico, silábico,
alfabético, e daí? O que fazemos com estas informações? ...Enfim, o que assimilamos durante o
curso é infinitamente pouco para exercermos a profissão. ( Vanesca ,02/9/2002)
A faculdade e a formação estavam postas em questão, enquanto o projeto
disciplinar da escola parecia ganhar adeptos.
Diante de todas essas dificuldades que vínhamos sentindo (professora e alunas da
faculdade) e da necessidade de socializá-las, demonstrei à direção da escola, nosso interesse em
participarmos de uma reunião de HTPC, para que pudéssemos apresentá-las às professoras e
discutir com elas. Finalmente, no dia 23 de setembro, a reunião aconteceu com grande proveito e
constituiu-se num marco significativo no desenrolar do processo e foi decisiva para a interação
entre os professores e os estagiários.
Inicialmente, o clima era de constrangimento. Não conseguíamos prever as
discussões que emergiriam e como seriam encaminhadas. Os estagiários sentaram-se separados dos
professores e perto de mim e os professores ficaram perto da diretora e afastados de mim. A
organização do espaço físico era também um indício de duas equipes desenvolvendo trabalhos
distintos. Porém, esse clima foi passageiro, pois tanto a diretora quanto os professores assumiram
uma postura de respeito e colaboração conosco. Primeiro, procuraram elogiar aspectos do projeto e
das aulas dos estagiários e, cuidadosamente, chamavam atenção para algumas falhas. Essa
estratégia nos deixou confiantes e os estagiários colocaram suas opiniões, preocupações e angústias.
Foi um desabafo de quem estava se vendo em outra posição e sofrendo as conseqüências desse novo
papel, pois de observadores atentos e críticos da atuação dos professores, passaram a ser
protagonistas iniciantes e frágeis e perceberam o outro lado da tessitura, como evidenciado no
relatório de Vanesca.
Diante da fragilidade, da sinceridade e do pedido de socorro dos estagiários,
assistimos, comovidos, à grande virada. Os professores solidarizaram-se com os jovens
em
formação e assumiram uma postura de incentivadores e colaboradores da formação inicial. As
manifestações de solidariedade, de reconhecimento por aquele que não sabe, que está iniciando,
1816
apareceram quando aquele que não sabia também se expôs e pediu ajuda. A partir de então
pudemos contar com alguns professores que acompanhavam os estagiários, compartilhando
experiências, ouvindo-os, procurando integrá-los mais e mais à dinâmica da escola.
A professora Samara, tentando animar as alunas, confirmou a importância da
formação continuada, reafirmando nossa incompletude profissional: - a gente não é uma pessoa
acabada. Eu tenho aprendido com Andréa. Ela é muito mansa...( referindo-se à estagiária de sua
classe).
A estagiária Vanesca era a mais angustiada. Sua voz, nervosa, relatava o vivido,
enquanto seu corpo revelava a imensa frustração diante de sua primeira aula tão mal sucedida.
Diante da preocupação e do desânimo da Vanesca, os professores, principalmente a Samara (que é a
líder do grupo) procuraram incentivá-la. Tereza (diretora) salientou a necessidade do planejamento
estar de acordo com a realidade dos alunos e sugeriu, numa atitude despojada e confiante, que a
aluna desenvolvesse junto àquela classe de aceleração, um trabalho de orientação sexual.2 Andreza,
professora da classe, prontificou-se a ajudar e Samara disponibilizou materiais que possuía sobre o
conteúdo. Posteriormente, o projeto foi elaborado pelas três e desenvolvido pela Vanesca e a
Andreza, constituindo assim, um de nossos primeiros trabalhos conjuntos.
Por quê, nesse momento do processo de interação entre os grupos, os professores
“tomaram o rumo” em outra direção?
Após um longo período de adaptação e inserção da faculdade na escola de ensino
fundamental, aqueles dois grupos encontraram-se em um espaço comum, a organização do trabalho
docente. Compartilhavam então de necessidades e expectativas similares, o que os aproximou como
um grupo organizado. Bakhtin (2002) explica-nos que todo signo resulta de um consenso entre
indivíduos socialmente organizados no processo de interação e as condições de produção daquela
situação, naquele momento possibilitavam a mudança de direção do movimento no qual estávamos
inseridos, em direção a um trabalho compartilhado.
A partir de então, a direção, coordenação, professores e alunos passaram a
participar de eventos na faculdade e o movimento contrário também aconteceu. Finalmente,
estávamos superando a extensão rumo à interação.
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Classe de aceleração é a denominação usada no Estado de São Paulo para as classes de crianças com defasagem entre
a idade cronológica e a série. Em geral são compostas por crianças multi-repetentes.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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GÓMEZ, Angel Pèrez. “O pensamento prático do professor: a formação do professor como
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1992
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da extensão à interação: um difícil caminho