Cidade de MG preserva receita de queijo 'único' no alto da Mantiqueira
A 1,6 mil metros, produtores guardam receita centenária em Alagoa.
Fabricação feita de modo artesanal e em pequena escala resiste ao tempo.
Alagoa (MG) começa já no alto da Serra da Mantiqueira. Duas estradas levam ao
município: a rodovia serpenteada por curvas fechadas que vem de Itamonte (MG) ou a
curta via antiga de terra que liga o município a Aiuruoca (MG). A pequena cidade no Sul
de Minas poderia continuar escondida por anos sem ser notada, se não fosse por um
detalhe valioso: seus moradores guardam a receita centenária de um queijo parmesão
que não existe em nenhum outro lugar.
A fabricação é feita de modo artesanal e em pequena escala. No entanto, com o passar
dos anos, a dificuldade de acesso ao município e o alto custo de produção têm
dificultado que as famílias mantenham a tradição. Porém, mineiro é teimoso... e sempre
arruma um jeitinho de continuar fazendo o que sabe fazer.
Para falar do parmesão de Alagoa é preciso entender toda a configuração da pequena
cidade, pois do silo que a vaca come ao fresco ar da alta serra, tudo interfere no sabor
que chega à mesa. Os franceses já até inventaram um nome para isso: terroir. O termo,
muito usado na produção de vinhos, se refere ao conjunto de características próprias de
um lugar que fazem com que a produção ali seja única. A combinação da topografia,
temperatura, solo, água, tudo tem como resultado um produto que jamais poderia ter
o mesmo sabor se produzido em outro lugar. E assim os moradores de Alagoa
reivindicam que parmesão alagoense só é de verdade mesmo se sair do tacho da cidade.
Pequena cidade no alto da serra
As ruas estreitas por onde se adentra em Alagoa já revelam que são poucos os carros
que por ali circulam. Nas calçadas, o movimento carrega um eterno ar de domingo. O
barulho mais forte que se ouve é dos sinos da igreja marcando as horas. O visitante que
por ali chega é logo seguido pelos olhares curiosos dos moradores da cidade. Não se
chega de fora em Alagoa sem ser notado.
A pequena cidade tem longa história pra ser contada. Começou lá no início de 1700
quando os bandeirantes saíam do Estado do Rio de Janeiro (que fica logo ali do lado) pra
procurar ouro em Minas Gerais. Na região do município acharam uma lagoa de quase 3
km de extensão cheia do mineral dourado, e tanto levaram que a lagoa não existe mais,
somente restou Alagoa.
Seus pouco mais de 2,7 mil habitantes vivem em sua maioria da agropecuária e da
produção de laticínios. Diz-se na cidade que não dá pra falar mal de ninguém, todo
mundo é meio parente, e se não é aparentado, conhece o parente de alguém. Seus
moradores são definidos por da onde vieram: seu Jair (filho) do Jaime, seu Osvaldinho
do Osvaldo.
A história do queijo parmesão de Alagoa foi passada por gerações e hoje se conta que
há mais de 100 anos um italiano chamado Paschoal Poppa pisou em terras alagoenses.
Ali achou semelhança com as terras da Itália onde se produzia o parmesão de Parma e
resolveu fixar residência em Alagoa. A receita do queijo foi passada para o nativo
Gumercindo Ferreira Pinto, e desde então, de pai pra filho, laticínio a laticínio, até os
dias de hoje.
Queijo que se faz na roça
Para chegar ao Condado, um dos bairros rurais de Alagoa, é preciso atravessar nove
quilômetros contados da Igreja Matriz por um estreito caminho de terra serra acima. A
propriedade de seu Jair Martins de Barros, um dos mais antigos produtores de queijo
parmesão, se esconde no Alto da Serra do Condado, a pelo menos 1,6 mil metros de
altitude. Sua vista é feita pelas serras azuis do Sul de Minas e as altas araucárias da
Mantiqueira.
A visita é logo levada para a cozinha. Na mesa, são servidos os biscoitos assados no fogão
à lenha, café de bule e uma peça de queijo parmesão maturado por 22 dias. Seu Jair logo
explica que o queijo de Alagoa não é queijo igual à de nenhum outro lugar. “Vou falar
pra você: pode ter 100 biscoitos, cada um tem um gosto. Igual queijo parmesão: pode
ter 100 queijeiros, cada um faz queijo de um jeito, cada um tem um gosto.”
Seu Jair é um dos cerca de 50 produtores da cidade - pelos cálculos dos moradores - que
ainda preservam o modo artesanal de fazer parmesão em Alagoa. Nos últimos anos,
muitos produtores rurais de Alagoa trocaram a fabricação do queijo pela produção de
leite. O parmesão tradicional da cidade exige tempo e muita matéria-prima para uma
produção pequena, quando na venda de leite o retorno é mais imediato.
O queijeiro calcula que no município já exista uns 200 produtores de leite, a maioria
deles que antes produzia o parmesão. Ele é um dos poucos que faz questão de conservar
a receita e vender o queijo, mesmo que o lucro nem sempre corresponda à riqueza de
seu sabor. Soma-se a isso a dificuldade de escoar a produção, complicando que o queijo
saia do alto da Mantiqueira para o paladar de outras partes do país.
Uma receita histórica
Não há ingrediente industrializado que seja usado na produção. Dos 46 hectares da
propriedade de seu Jair saem todos os itens da receita. Com seus 67 anos, seu Jair
começou a fazer queijo com apenas 10. Saía da escola e ia direto para um dos primeiros
três laticínios da cidade. “Quina foi o maior queijeiro dessa Alagoa. Nasceu na Alagoa,
criou na Alagoa”, conta do proprietário que ensinou ele a fazer queijo.
A produção de seu Jair é feita com o filho, Fábio Mendes Barros, de 29 anos, em uma
pequena fábrica ao lado da casa da propriedade. Ao chegar no local, já se dá de cara
com o grande tacho que somente é fervido à lenha. “O queijo feito num lugar tem um
gosto, o queijo feito no fogo [à lenha], que nem eu faço, tem outro gosto. O queijo feito
no gás não tem gosto de parmesão, tem gosto de queijo prato”, explica enfático.
Ele começa a listar o conjunto de itens que fazem a produção artesanal do queijo. A
matéria-prima é somente leite cru, nada de pasteurizado. Pela quantidade certa de
lenha, seu Jair define o tempo que o leite fica fervendo. O fermento do queijo vem do
que sobrou da própria produção do produto, e não se pode lavar os vasilhames, senão
não fermenta. “Se lavar onde guarda o fermento com detergente, vai alterar o ácido e
não dá o fermento. Temos duas latas de fermento. O fermento de hoje, a gente usa no
queijo de amanhã.”
Daí o queijo fica em gamelas, “madeira limpinha não pega contaminação nenhuma”,
explica. Para conservar o queijo, nada de fibra plástica. Tudo interfere. “O queijo é
bactéria viva: o certo é na madeira, você colocando ele na madeira de pinho, acaba
passando a cor, que faz ele ficar amarelo e ainda ajuda a maturar”, continua seu Jair. A
água usada vem da mina da propriedade. A silagem da vaca naquele terreno interfere
no gosto do leite, e consequentemente, no gosto do queijo.
Seu Jair gasta cerca de 10 dias pra fazer 200 queijinhos (de até 1 kg). Para essa
quantidade, ele usa 2.000 litros de leite. Após passar um dia na salmoura, o queijo segue
para maturação: no mínimo de 10 até 30 dias. Ele vende para algumas cidades da região
e muitos turistas, principalmente do Rio de Janeiro, compram direto na propriedade
dele.
E é assim que sempre foi feito, durante décadas e décadas. O filho Fábio explica que não
adianta: queijo parmesão de Alagoa só tem esse sabor porque foi produzido lá no alto
da serra, com tudo que a terra permite naquele lugar. “O lugar muda muito como é o
queijo, o fermento muda o queijo. Tem lugar que não dá fermento. Teve um de Alagoa
que mudou para [o Estado de] São Paulo e foi fazer queijo lá, e não teve jeito. Não deu
fermento”, resume.
A vida de sempre
Seu Jair é filho de família de Alagoa entre 14 irmãos: 10 homens e quatro mulheres. De
todos eles, apenas seu Jair e o irmão Lourenço seguiram a tradição de queijeiro. Da
família que constituiu, o filho Fábio o ajuda e pretende seguir a produção de parmesão.
Para casar, construiu a pequena casa onde vive com a esposa há 37 anos. Toda a
propriedade foi conquistada com o trabalho do dia a dia. Vive a vida simples do interior,
e apesar de não ter luxo, nada lhe falta. Pra ele, só tem duas coisas que matam a gente:
aluguel e juros.
Passou a vida em Alagoa. Ao sair da fabriqueta de queijo, ele passa o olhar em volta e
conta do bom ar do campo, da tranquilidade do interior, diz que é um lugar para se viver.
Nunca teve vontade de sair do Condado. “Aqui é o céu”, finaliza.
Fonte: G1/Sul de Minas
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