Anais do XIV Seminário Nacional Mulher e Literatura / V Seminário Internacional Mulher e Literatura
PRODUÇÃO INTELECTUAL/LITERÁRIA DAS MULHERES
NEGRAS DOS ESTADOS UNIDOS: ROMPENDO INVISIBILIDADES
Raphaella Silva P. de Oliveira1
INTRODUÇÃO
A produção intelectual de mulheres negras durante anos foi invisibilizada. Essa poderia ser uma frase clichê, de sentimentos ressentidos como
a falsa democracia racial nos impele a pensar, mas ao voltarmos os olhos
em busca dos escritos de negras, depreende-se um enorme esforço para
mapeá-los, localizá-los. Esse artigo, pode de repente ser acusado de não
científico, por se propor de forma apaixonada e humilde discutir como se
deu a inserção da produção intelectual das mulheres negras estadunidenses, mais especificamente no campo literário. Contudo, a literatura produzida por essas mulheres, tem ensinado que relatar a experiência por elas
vivenciada é o ponto chave para compreensão de suas questões sociais,
para superação do racismo, do sexismo, para o desenvolver de um sentimento de solidariedade que as une e fazem com que permaneçam vivas.
O que o feminismo negro tem a ver com isso?
As concepções teóricas do feminismo negro, nos EUA,
são apresentadas através de autoras como, bell hooks
e Patricia Hill Collins, evidenciando: a intersecção das
categorias de raça e gênero como um aspecto que marca
a diferença nas experiências de mulheres; a crítica
ao feminismo enquanto teoria e prática, sobretudo a
dificuldade em reconhecer a diversidade interna ao
movimento, em particular a questão racial, dimensões
que também são evidenciadas pelas feministas negras
brasileiras. (BARBOSA, 2010: 1)
1 Estudante do PPG em Crítica Cultural, pesquisadora vinculada ao NUGSEX Diadorim,
bolsista FAPESB.
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De acordo com a escritora afro-americana bell hooks, no século XIX,
as mulheres negras eram o grupo mais consciente da opressão racista que
qualquer outro grupo de mulheres na América (hooks, 1992). A autora entende que apesar de serem vítimas do racismo, os homens negros podem
oprimir mulheres negras. Pensando em pirâmide étnico-racial, as mulheres
negras compõem a base dessa pirâmide, abaixo de homens brancos, mulheres brancas e homens negros. Nessa perspectiva, imbricar as categorias raça, classe, gênero é uma forma de mulheres negras examinarem suas
problemáticas e ressignificarem/transformarem suas realidades descontínuas.
Pensando suas experiências, mulheres negras examinam o feminismo negro não apenas como produção intelectual, mas uma produção
fundamentada em suas vivências. Collins, um expoente na discussão sobre
feminismo negro nos Estados Unidos pontua que este é
... um conjunto de experiências e idéias
compartilhadas por mulheres afro-americanas que
oferecem um ângulo particular de visão do eu, da
comunidade e da sociedade, envolve interpretações
teóricas da realidade de mulheres negras por
aquelas que a vivem (COLLINS, apud BAIRROS,
1995)
Bell hooks é uma ativista feminista negra que acredita na experiência das mulheres negras como força motriz para transformar as relações de
opressão sexista e racista. Analisando o ponto de vista da autora, Barbosa
coloca “hooks acredita que as mulheres negras têm um papel central a desempenhar na construção de uma teoria feminista, podendo oferecer uma
contribuição única e valiosa.” (BARBOSA, 2010: 2). Ainda sobre o ponto de
vista de hooks, a autora assinala que analisando o ponto de vista de mulheres negras, o feminismo negro é capaz de criar um conhecimento contra
hegemônico.
Rompendo barreiras da invisibilidade, as mulheres negras dos Estados Unidos, no século XIX engajam-se em uma militância político social dis-
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cutindo suas questões, bem como um aumento no número de publicações
escritas por mulheres negras nas mais diversas áreas do saber. De acordo
com Cadwell,
as falas públicas e as obras escritas por essas mulheres
durante o século XIX apontavam para as experiências
particulares das mulheres negras em virtude da relação
entre raça e gênero, durante a escravidão e em virtude da
segregação racial no período pós-abolição. (CADWELL,
2010:20).
Assim, assumindo a posse de suas demandas, as negras americanas
revestem-se da força político e intelectual a fim de tornar sua voz audível,
como Bonnici observa que “autoras feministas apropriam-se de linguagem
como: voz, discurso, silêncio e imitação para investigar o discurso entre patriarcalismo e a condição da mulher” (BONNICI, 1999, p. 199). Reconhecendo que o discurso é um espaço de quebra de hegemonias, transformação
das relações de poder, as escritoras estadunidenses superam as barreiras
impostas pelas instituições racistas, classistas e patriarcais e começam a
ocupar os espaços das disciplinas e estudos acadêmicos e editoras.
PRODUÇÃO INTELECTUAL DE MULHERES NEGRAS: OBSTÁCULOS E
SUPERAÇÕES
Nós devemos estar atentos para a absorção sedutora das
vozes das mulheres negras em salas de aula de ensino
superior onde textos de mulheres negras são muito mais
bem vindos do que as próprias mulheres negras. 2
Como frutos da militância do século XIX, houve um notável aumento na visibilidade das produções de mulheres negras a partir de 1980. De
acordo com Caldwell, “as obras escritas por mulheres negras nos anos 1970
e 1980 fizeram parte dos primeiros trabalhos de um campo de estudo que
2 “we must be attentive to the seductive absorption of black women’s voices in classrooms of
higher education where black women’s texts are still much more welcomed than black women
ourselves.(COLLINS, 1996:01) TRADUÇÃO NOSSA
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estava se formando: o campo de estudos sobre a mulher norte-americana
ou Black Women’s Studies” (CALDWELL, 2010:20).
É importante ressaltar que quando se pensava em escritos sobre
negritude, geralmente, essas produções se referiam ao homem negro. A
vida intelectual das mulheres negras não era pautada, reflexo do sexismo
manifesto também, na comunidade negra, como assinala hooks:
Apesar do testemunho histórico de que as negras sempre
desempenharam um papel importante como professoras
pensadoras criticas e teóricas culturais na vida negra em
particular nas comunidades negras segregadas muito
pouco se escreveu sobre intelectuais negras. Quando
a maioria dos negros pensa em grandes mentes quase
sempre invoca imagens masculinas (hooks 1995:466).
A produção intelectual das mulheres negras estadunidenses passa
pela compreensão que este trabalho dialoga totalmente com propósito de
emancipação de um grupo que durante séculos foram remetidas a condição
de invisíveis. É uma militância que se fundamenta também, em um pensar
contra-hegemônico, visto que significa o emergir de um grupo considerado
minoria que deseja fazer sua voz audível, pois deseja quebrar padrões estabelecidos por uma sociedade branca, machista.
Partindo do reconhecimento que o pensar científico é branco, masculino e heterossexual, é essencial refletir sobre os obstáculos que mulheres negras enfrentam para o exercício do saber. Cuti (2010) em seu livro
Literatura Negro-Brasileira defende a ideia de que é necessário tempo e espaço físico para o exercício da escrita. Esse é o ideal para a atividade intelectual, mas deve-se também perguntar até que ponto isso foi permitido à
mulher negra que não foi ás ruas discutir questões de trabalho, porque já
eram mães e chefas de família. É importante refletir os malabarismos que
essas mulheres tiveram que fazer para ter uma produção intelectual.
No contexto estadunidense, hooks (1995) revela que as mulheres
negras eram vistas como corpos sem mente, que deviam servir aos outros.
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Ainda de acordo com a autora, “num contexto social capitalista de supremacia patriarcal branca como esta cultura, nenhuma negra pode se tornar
uma intelectual sem descolonizar a mente” (hooks 1995, p: 474) Driblar as
artimanhas de uma sociedade em que a mulher negra sempre estava subjugada foi o exercício das militantes do século XIX e que ainda é seguido por
suas contemporâneas.
Buscando a emancipação e visibilidade intelectual, o aparecimento
da produção de mulheres negras, inicialmente, dar-se no campo da história
e da literatura (Cadwell 2010). Esse grupo vem ditar novos parâmetros nos
fazeres acadêmicos, ao tempo que resgatavam a história das mulheres negras e de suas experiências.
Dando enfoque ao campo literário, Cadwell pontua que as obras literárias produzidas por mulheres negras na década de 80 “causaram um impacto muito grande nas universidades norte-americanas e iniciaram o processo de quebra da hegemonia branca e masculina na área de Literatura”
(CADWELL 2010: p: 22). As obras dessas mulheres passaram a ser incluídas
na graduação e pós-graduação, além de conquistar espaços nas editoras.
Salgueiro (1999) coloca que “escrevendo da perspectiva “mulher e
negra”, as escritoras de origem africana nos Estados Unidos examinam a
individualidade e as relações como uma forma de caminho para a compreensão de questões sociais complexas” (SALGUEIRO, 1999, p.141). A experiência sempre foi a grande arma dessas mulheres, a saber, aquelas oriundas
do Movimento dos Direitos Civis, que revestidas pela força da arte literária
passam a denunciar a exclusão a que seu grupo é remetido.
Escritoras como Maya Angelou, Toni Morisson, Alice Walker são mulheres que abraçaram a missão de continuar a abordar os efeitos do racismo
e seximo em suas obras. A última autora, desestimulada com o Movimento
dos Direitos Civis que nada mudou a situação das mulheres negras, escreve
um romance cuja personagem principal é uma reprodução autobiográfica
da experiência de Walker com o Movimento.
Outra forma de perceber a voz que mulheres negras estaduniden-
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se têm desenvolvido é a busca por suas antecessoras. A re-publicação das
obras de Zora Neale Hurston é fruto dessa ação. Esquecida pela comunidade negra, os escritos de Zora Hurston renascem nos anos de 1970, quando
os estudos literários passam a ser mais sistematizados.
A militância das mulheres negras foi crucial para o reaparecimento dos escritos de Zora Neale Hurstom. Intelectuais ativistas como: Andrea
Rushing, Barbara Smith, Toni Cade Bambara e Alice Walker foram responsáveis pela introdução dos escritos de Hurstom na academia.
Dessa forma, em um trabalho que une militância e solidariedade
feminina, as mulheres negras nos Estados Unidos passam a ocupar seu espaço. Contudo, é importante voltar os olhos para a colocação de Collins no
início desse tópico e pensar as formas que o racismo se recria e se materializa nas instituições e continuam a excluir as mulheres negras. É importante
refletir também sobre as estratégias de visibilidade desses estudos e produções nas academias que cooperem para o empoderamento das mulheres
negras, bem como para a construção de uma episteme feita por e para esse
grupo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Quando olhamos os passado, vemos que foram muitas as dificuldades que as mulheres negras estadunidenses tiveram que superar para a
institucionalização de seus estudos teóricos e literários. É consideravelmente recente, que essas mulheres passam a receber prêmios por suas produções, ou serem reconhecidas pelo cânone literário ocidental.
Ao refletir sobre o contexto brasileiro, ainda são poucas as mulheres negras que conseguem fazer circular seu saber, suas experiências. Os
homens negros que brigaram por seu lugar no saber, não as incluíram. Contudo, pouco a pouco essas produções começam a aparecer. Na literatura,
é sempre bom se emocionar com o exemplo de Maria Carolina de Jesus
que superou as dificuldades de ser uma lixeira e nos agraciou com sua bela
escrita.
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Eu, enquanto mulher de cor, que escolheu trilhar os caminhos da
academia, ainda na minha pequena experiência, consigo identificar as armadilhas do sexismo, do racismo nessa instituição. Exemplos como Luiza
Bairros, Maria Nazaré Mota, Lélia Gonzalez ajudam a seguir na busca pelo
conhecimento produzido por e para nós mulheres negras. Seguir seus passos como tem feito Lícia Maria Barbosa, Tatiana Raquel Reis Silva é fundamental para a constituição de um saber teórico no Brasil. Poetisas como
Elisa Lucinda solidificam e perpetuam essas vivências. A experiência é marca de uma escrita negra de resistência, que tem criado estratégias de produção e circulação de seu saber. Nesse contexto, nos reconhecer enquanto
intelectuais negras é um exercício ainda difícil, mas é um ponto fulcral para
institucionalização de um saber de mulher negra brasileira.
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Bibliografia
BAIRROS, Luíza. Nossos Feminismos Revisitados. In: Dossiê Mulheres Negras –
Matilde Ribeiro (org). Revista Estudos Feministas, Florianópolis/SC, CFH/CCE/UFSC,
v.3 n. 3, 1995, pp.458-463.
BARBOSA, Licia Maria de Lima. Feminismo negro: notas sobre o debate norte-
americano e brasileiro. In: Seminário Fazendo Gênero 9, 2010, FlorianópolisSC. GT: Mulheres negras e suas diversas formas de organização nos contextos
urbano e rural no Brasil. Disponível em: http://www.fazendogenero.ufsc.br/9/site/
anaiscomplementares
BONNICI, T. O feminismo no contexto pós-colonial. In: REIS, Lívia Freitas de. VIANNA.
Lúcia Helena e PORTO. Maria Bernadette (Org.) Mulher e Literatura, Rio de Janeiro,
EDUFF, 1999, p.198-205.
CALDWELL, Kia Lilly. A institucionalização de estudos sobre a mulher: Perspectivas
dos Estados Unidos e do Brasil. Revista da Abpn: experiências de mulheres negras na
produção do conhecimento. Brasília, v. 1, n. 1, p.18-27, 2010. Qudrimestral.
CUTI, Luiz Silva. Literatura Negro-Brasileira. São Paulo: Editora Selo Negro, 2010.
hooks, bell. Eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Resenha tradução
Jefferson Bacelar, Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1993 (não publicado).
______. Intelectuais Negras. Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v. 3, n. 2, p.464-478,
1995.
HURSTON, Zora Neale. Seus olhos viam Deus. Tradução: Marcos Santarrita, Rio de
Janeiro: Record, 2002.
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