Proibição de Circulação de Vans no Rio de Janeiro. Uma ilegalidade disfarçada.
Elaborado por Daniel Menegassi Reichel, advogado-sócio do escritório Reichel, Rijo &
Sinclair Advogados, em maio de 2013.
*Trabalho protegido pela Lei nº. 9.610/98
Objeto de Estudo
O presente estudo visa analisar a legalidade da proibição de circulação de
Vans no Município do Rio de Janeiro, em itinerários que não sejam integralmente
supridos por transporte público regular de passageiros.
Adotar-se-á como fundamento para análise a legislação municipal em
vigor, bem como os princípios norteadores da Administração Pública.
1. Noções Introdutórias. Premissas Necessárias.
Antes de adentrarmos na análise propriamente dita da legalidade da
proibição de circulação de Vans em itinerários carentes de transporte público regular,
é necessário consolidar algumas noções jurídicas básicas que envolvem o tema.
Em primeiro lugar, é necessário ter em mente a distinção criada pela
doutrina italiana entre interesse público primário e interesse público secundário.
O Poder Público é investido de poderes pelo povo para agir em seu
interesse, atendendo às suas necessidades imediatas e diretas. Quando assim o faz,
age de acordo com o interesse público primário.
Já quando age de acordo com seus interesses próprios, na qualidade de
pessoa jurídica, titular de direitos e obrigações, o faz com fundamento no interesse
público secundário.
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A atuação administrativa nessa hipótese só será legítima se não colidir
com nenhum interesse público primário. Essa é a primeira premissa.
Em segundo lugar, é imperioso reconhecer que a delegação da prestação
de serviço de transporte complementar ocorre mediante autorização administrativa, ou
seja, o vínculo criado entre o autorizatário e o Poder Público não tem natureza
contratual, mas caráter precário, podendo, em regra, ser revogado ou alterado
discricionariamente a qualquer tempo, por critério de conveniência e oportunidade.
Essa é a segunda premissa.
Como se demonstrará adiante, a proibição de circulação de Vans pelo
Poder Público ocasiona um verdadeiro choque entre as premissas apontadas, pois,
em que pese juridicamente possível por se tratar de autorização administrativa, não
será legítima quando imposta em rotas desprovidas de transporte público regular em
sua integralidade, pois contrária será ao interesse público primário.
2. Da Ilegalidade da Proibição de Circulação de Vans em Itinerários
Desprovidos em sua Integralidade de Transporte Público Regular de
Passageiros.
Como cediço, a Prefeitura do Rio de Janeiro publicou em abril de 2013 o
Decreto N 37.007/2013, em que proibiu a circulação de Vans na Zona Sul do
município.
O fundamento utilizado foi
a
necessidade de reordenamento
e
racionalização da rede de transportes, cuja estrutura já se mostraria suficiente para
atender a demanda da população, sem necessidade de complementação pela
circulação de veículos de baixa capacidade de transporte de passageiros.
Conforme dito anteriormente, a decisão da Prefeitura em princípio seria
juridicamente possível, tendo em vista que o vínculo existente com os autorizatários de
transporte
complementar
tem
caráter
precário,
sendo,
portanto,
revogável
discricionariamente a qualquer momento.
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No entanto, é inadmissível a mesma conclusão quando a proibição de
circulação de Vans ocorre em itinerários que não sejam integralmente servidos por
transporte público regular de passageiros.
Nessas hipóteses a restrição imposta ao transporte complementar significa
oficializar e compactuar com uma verdadeira inexistência de serviço público em
determinados trechos que, normalmente, são de difícil acesso.
A situação narrada não é incomum. Pelo contrário, é usual que o serviço
de transporte complementar se dê em rotas não abrangidas e inacessíveis pelas
linhas de ônibus e de metrô.
Um claro exemplo disso pôde ser visto em matéria jornalística onde uma
senhora de idade reclamava da proibição da circulação de Vans no Cosme Velho, pois
com a restrição imposta seria obrigada a diariamente subir a pé uma ladeira de cerca
de quatro quilômetros onde, obviamente, não havia a disponibilidade de transporte
público por ônibus.
Ora, salta aos olhos que nessas hipóteses a restrição de circulação de
veículos de baixa capacidade de transporte de passageiros impõe um sério gravame à
população local que, dependendo das circunstâncias, tem seu deslocamento
dificultado, senão praticamente inviabilizado.
Note-se que a inexistência de transporte complementar nessas áreas de
difícil acesso pode inclusive contribuir decisivamente para um desfecho indesejado em
situações de emergência médica, pois por certo impedirá, ou, no mínimo, dificultará
um deslocamento rápido.
Em outras palavras, a dificuldade de locomoção imposta pela Prefeitura à
população local certamente consiste em inegável potencial lesivo aos direitos de sua
personalidade, tais como o direito de ir e vir, o direito à independência e o direito à
saúde em situações mais extremas.
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Nesse sentido, inequívoco está que nessas hipóteses a revogação da
autorização de circulação de veículos de transporte complementar, em que pese em
tese juridicamente possível, não atende aos interesses e necessidades diretas e
imediatas da população envolvida e, portanto, não se coaduna ao interesse público
primário.
Pelo contrário, a conduta do Poder Público consistirá em verdadeira
concretização do interesse público secundário e, como atentatória à interesses e
direitos de status constitucional, deverá ser tida por ilegítima.
Poder-se-ia ainda argumentar, em contraposição ao que ora se defende,
que a população envolvida é pequena em relação à parcela da população que se vê
influenciada diretamente por um trânsito mais caótico e desordenado, o que justificaria
a medida restritiva, mas tal alegação não prospera.
Isso porque o interesse público não se confunde com o interesse coletivo.
O interesse público primário por vezes será respeitado suprindo-se a necessidade de
minorias quando, na ponderação de interesses, estiver relacionada com direitos
fundamentais, o que se justifica juridicamente diante da constitucionalização do Direito
Administrativo e da emergência do Princípio da Juridicidade que atualmente norteia a
Administração Pública.
Nessa esteira, assim se manifestou o Jurista Gustavo Binenbojm (Uma
Teoria
do
Direito
Administrativo.
Direitos
Fundamentais,
Democracia
e
Constitucionalização. 02 Edição, Página 31, Editora Renovar):
“A fluidez conceitual inerente à noção de interesse público, 55 aliada à
natural dificuldade em sopesar quando o atendimento do interesse
público reside na própria preservação dos direitos fundamentais
(e não na sua limitação em prol de algum interesse contraposto
da coletividade), impõe à Administração Pública o dever jurídico de
ponderar os interesses em jogo, buscando a sua concretização até
um grau máximo de otimização”.
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Conclusão
Não se nega que a Administração Pública detém discricionariedade para
revogar autorizações de delegação de prestação de serviços públicos, quando lhe for
conveniente e oportuno.
No entanto, diante da constitucionalização do Direito Administrativo e da
emergência do Princípio da Juridicidade, não pode referida prerrogativa ser exercida
em afronta a direitos fundamentais.
Isto é, não pode o Poder Público restringir a circulação de veículos de
transporte complementar quando isso induzir à uma verdadeira negação de serviço
público, dificultar o exercício de direitos personalíssimos e puder potencializar
situações de risco para a população envolvida.
Assim agindo, estará a Administração Pública privilegiando o interesse
público secundário em face do interesse público primário, o que por certo tornará
ilegítima sua conduta, possibilitando aos autorizatários a busca por prestação
jurisdicional que lhes garanta a manutenção do serviço de transporte público
complementar, ao menos até que as deficiências de transporte sejam supridas pelo
Poder Público.
Daniel Menegassi Reichel
Reichel, Rijo & Sinclair Advogados
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