Arq Bras Cardiol
volume 68, (nº 3), 1997
Ianni
& Mady
Editorial
Forma indeterminada da doença de Chagas
A Forma Indeterminada da Doença de Chagas. Mitos vs Fatos
Barbara Maria Ianni, Charles Mady
São Paulo, SP
A forma indeterminada (FI) da doença de Chagas
sempre foi assunto para longas discussões e preocupações
conceituais nos vários grupos que por ela se interessaram.
As preocupações foram centralizadas fundamentalmente
em aspectos anatômicos, funcionais e evolutivos, de história natural e terapêuticos, sendo que algumas discordâncias
surgiram em função de resultados não homogêneos obtidos
em pesquisas realizadas em vários centros.
No Brasil, segundo estatísticas mais recentes, cinco a
seis milhões de pessoas estão infectadas pelo Trypanosoma
cruzi 1. Portanto, cada um de nós já se deparou com algum
paciente na FI, seja como clínico, cardiologista, médico do
trabalho ou perito da Previdência Social e nem sempre tomou a decisão acertada, seja no que se refere à doença em
si ou à capacidade laborativa do paciente.
O brasileiro com doença de Chagas (DCh) na FI freqüentemente se vê num limbo em relação ao mercado de
trabalho e à Previdência Social. Se, por um lado, é discriminado quando de sua admissão por exames sorológicos
positivos, por outro, onera a Previdência reivindicando
benefícios que a lei lhe garante, mas que o levam de volta à
base da pirâmide social da qual tentava sair com sua força
de trabalho.
Estudos epidemiológicos mostram que 25% a 35% da
população com DCh têm comprometimento cardíaco, sendo a maioria pouco sintomática; em apenas 10% dos casos
há desenvolvimento de cardiopatia importante 2. Como são
esses pacientes que, por força dos sintomas, procuram assistência médica, esse foi o primeiro aspecto que chamou a
atenção dos estudiosos. Porém, estudos de campo iniciados
por Carlos Chagas revelaram que aproximadamente 60%
dos pacientes chagásicos encontram-se na FI, isto é, têm
reações sorológicas positivas para a doença, porém são
assintomáticos e apresentam eletrocardiograma (ECG),
estudo radiológico de tórax e estudos contrastados de esôfago e colo normais 3,4.
Com base na minoria que desenvolve cardiopatia, todos os indivíduos infectados são tratados como se tivessem
a forma grave da doença, principalmente em relação ao
mercado de trabalho. É por isso que os chagásicos que se
encontram na FI, que são a maioria da população infectada,
Instituto do Coração do Hospital das Clínicas - FMUSP
Correspondência: Barbara Maria Ianni - Incor - Cardiopatias Gerais - Av. Dr. Enéas
C. Aguiar, 44 - 05403-000 - São Paulo, SP
Recebido para publicação em 14/8/96
Aceito em 25/1/96
enfrentam discriminação quando da admissão em atividades na zona urbana, justamente em sua fase de maior produtividade (entre 20 e 40 anos de idade). Este fato gera um
grave problema tanto social como médico-trabalhista. Impõe-se, portanto, um melhor aproveitamento e conhecimento das informações médicas pelas autoridades responsáveis
para se tentar diminuir o ônus social e individual conseqüente à essa doença.
Para essa finalidade vários estudos sobre aspectos
morfológicos e funcionais foram realizados , já que o conhecimento sobre a FI evoluiu com o próprio progresso dos
métodos de investigação em Cardiologia. Em protocolos de
estudo foram usados tanto métodos não invasivos como
invasivos, que revelaram anormalidades, na maioria das
vezes discretas, em um número considerável desses pacientes 5-10. Porém, esses estudos sempre foram realizados sem
a preocupação de se obter dados evolutivos.
Por outro lado, os trabalhos de seguimento tratam principalmente de aspectos clínicos, já que são feitos em geral
em zona endêmica, com poucos recursos de exames complementares. Mesmo assim foi a partir de trabalhos como
esses que se observou que, com o passar do tempo, alguns
pacientes na FI desenvolviam alterações eletrocardiográficas 11-13.
Porém, tanto as alterações eletrocardiográficas que
poderiam surgir na evolução, como aquelas observadas em
outros métodos de investigação não pareciam influir no
prognóstico desses pacientes. Vários autores em seguimentos longos de casuísticas expressivas de pacientes na FI não
verificaram nenhum óbito durante a observação 14-16. A
comparação entre a evolução de pacientes na FI com normais mostrou que ambos grupos tinham expectativa de
vida semelhante 17-19.
A relação entre as alterações observadas nos vários
métodos de investigação dos pacientes na FI e sua boa evolução ainda não tem explicação satisfatória. Talvez as alterações, por serem em geral discretas, não levassem a comprometimento importante da função ventricular.
Dados evolutivos usando parâmetros de função ventricular são escassos na literatura. O único trabalho de nosso
conhecimento é o de Cunha e col 20 em estudo ecocardiográfico de 37 pacientes na FI comparados com 37 normais.
Já na avaliação inicial a função diastólica mostrava alterações, o que não acontecia com a função sistólica. Três anos
após, havia comprometimento significativo da fração de
ejeção nos pacientes na FI em relação aos controles e piora
dos índices de função diastólica. Esses dados, ainda não
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publicados na íntegra, encontram-se disponíveis em forma
de resumo para apresentação em congresso e os valores de
função sistólica não são citados, apenas referidos como rebaixados de forma significativa na segunda avaliação.
Nossa experiência é diversa e se baseia no estudo que
deu origem à tese de doutoramento na qual analisamos
prospectivamente 160 pacientes na FI durante 14 anos,
submetidos a avaliações clínicas freqüentes, a ECG semestralmente e a ecocardiogramas anualmente 21. Observamos
que 21% desses pacientes desenvolveram alterações
eletrocardiográficas nesse período, mas em apenas 9% deles as alterações puderam, com certeza, ser atribuídas à
DCh, já que envolviam achados mais característicos da
doença, como bloqueios de ramo, dentre outros. Em 9%
observamos alterações transitórias, com porcentagens
superponíveis à população não chagásica, principalmente
no que se refere às arritmias supraventriculares e ventriculares. Em relação à fração de ejeção do ventrículo esquerdo ao ecocardiograma, observada anualmente e até mais
freqüentemente quando necessário, manteve-se sempre
dentro dos limites normais, não havendo diferença estatis-
ticamente significativa entre os dados evolutivos, tanto no
grupo sem alterações eletrocardiográficas como no grupo
com alterações eletrocardiográficas. Também a comparação dos valores entre os dois grupos não mostrou diferença estatisticamente significativa. Nossos dados são discordantes dos de Cunha e col 20, porém envolvem um grupo
maior de pacientes seguidos por período de tempo também
maior.
Portanto, acreditamos que esses pacientes não devem
ser impedidos de levar uma vida normal em todos os sentidos, inclusive no laborativo. O exame admissional que inclui reações sorológicas para DCh é discriminativo, sendo
que esta prática deve ser abolida. Enquanto isso não acontece, o fato das reações sorológicas serem positivas serve
apenas como um alerta, não podendo impedir o indivíduo
de exercer plenamente sua atividade, quando o ECG e o
estudo radiológico de tórax são normais. Esse paciente tem
que ser informado quanto à forma em que se encontra da
doença e, devidamente esclarecido, quanto à sua boa evolução, evitando exames desnecessários e os traumas emocionais que freqüentemente acompanham esta prática.
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