POR UMA REDE DE FORMAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO DA CULTURA
Antonio Albino Canelas Rubim
Hoje vivemos no mundo. Não apenas um local do planeta, mas de algum modo
temos uma experiência planetária. Nossa vivência foi ampliada a tudo o que acontece na
Terra. Hoje, a distância entre as pessoas não é mais medida em quilômetros, mas em
número de conexões1: os fluxos financeiros, de informação, conhecimento viajam por
todo o planeta em segundos, ainda que em condições marcadas por profundas
desigualdades. Nos dias atuais, não é apenas concebível, mas possível, a multidão
instantânea (flash mob2). Em suma, como cantou Gilberto Gil: “Antes a mundo era
pequeno, porque a terra era grande. Hoje o mundo é grande, porque a terra é pequena”.
As revoluções dos transportes e das comunicações criaram redes que conectaram o
mundo e nossa vida, configurando uma sociedade-rede no dizer de Manuel Castells3.
A revolução pela qual passa a sociedade contemporânea afeta pessoas, empresas
e mesmo nações. Na base dessa profunda mutação, as redes tecnológicas possibilitam a
interconexão glocal e revitalizam o conceito de interdependência, relativizando o poder
de atores isolados. Em resposta, como assinala Ana Cristina Fachinelli4:
...uma dinâmica potente de construção de redes de atores: indivíduos,
empresas e organizações tecem laços flexíveis que os tornam
coletivamente mais inteligentes, ou seja, mais ágeis no processo de
adaptação antecipada ou na resposta às diferentes contingências
contextuais.
Desnecessário dizer que as redes ocupam todo o âmbito do espectro social:
temos redes de relacionamentos, nos organizamos em redes sociais, trabalhamos e nos
divertimos através de computadores ligados em rede(s). Enfim, elas transformam,
remodelam, re-significam nosso modo de vida. Ainda segundo Castells:
1
Cabe lembrar o experimento liderado por Duncan Watts, da Columbia University, conhecido como
“Seis Graus de Separação”, no qual 60.000 usuários de e-mail tentaram, através de suas redes pessoais,
conseguiram conectar-se a 18 pessoas em 13 países. Os “alvos” foram atingidos através de uma média de
cinco a sete conexões.
2
Flash Mob pode ser traduzido como 'Multidão Instantânea'. É um rápido encontro de um grupo de
pessoas que são convocadas por e-mail para realizar uma performance instantânea e depois dispersar. Há
quem se refira a este acontecimento como uma espécie de 'festa surpresa' ou 'multidões inexplicáveis'.
3
CASTELLS, Manoel. La sociedad red. Madrid, Alianza Editorial, 1999.
4
FACHINELLI, Ana Cristina. A prática da gestão de redes: uma necessidade estratégica da Sociedade da
Informação.
In:
Revista
Com
Ciência,
2000.
Disponível
em
http://www.comciencia.br/reportagens/socinfo/info14.htm. Acesso em 31/10/2004.
1
Como tendencia histórica, las funciones y los procesos dominantes en
la era de la información cada vez más se organizan en redes. Éstas
constituyen la nueva morfología social de nuestras sociedades y la
difusión de su lógica de enlace modifica de forma sustancial la
operación y los resultados de los procesos de producción, la
experiencia, el poder y la cultura5.
Ao destacar como a radicalidade transformadora das redes afeta a cultura,
Manoel Castells expõe uma relação intrincada. Se, por um lado, podemos afirmar que a
cultura é o ambiente das redes, na medida em que são elementos culturais comuns que
as tornam possíveis; podemos também dizer que, dada sua horizontalidade e nãolinearidade, as estruturas em rede são, por excelência, o locus de renovação, transmissão
e hibridização de culturas. É esta dinamicidade, este movimento de troca, construção e
desconstrução próprio das redes que mantém as culturas vivas, ou melhor, que as
revitaliza ininterruptamente. Afinal, no dizer de Panikkar: “las culturas son el resultado
de una continua fecundación mutua. La tarea de cooperación cultural consiste
precisamente en esta fecundación mutua”6.
O que são Redes?
Não existe ainda um conceito de rede amplamente aceito e compatível com a
diversidade de organizações e contextos em que o termo é utilizado. Embora este seja o
“tempo das redes”, muito pouco conhecimento foi organizado e difundido sobre a
morfologia, as possibilidades e os limites dessas novas formas de organização social.
Como resultado, muitas redes hoje existentes acabam recebendo outras denominações:
“fóruns”, “coletivos”, “movimentos”, “consórcios”, “comitês”, “articulações” são
alguns exemplos. O inverso também é verdadeiro: muitas das “redes” atuais não são
nada além de velhas organizações com nova roupagem ou mesmo simples conjuntos de
elementos. “Embora a forma seja um fator decisivo, o desenho da rede não é suficiente
para explicá-la ou caracterizá-la como um sistema de propriedades e um modo de
5
CASTELLS, Manoel. Ob. cit. p.505.
PANIKKAR, Raimon. Cultura y desarollo. In: Papeles Iberoamericanpos: Cooperación Cultural
Euroamericana - I Campus Euroamericano de Cooperación Cultural. Barcelona: Organización de los
Estados Iberoamericanos / Fundación Interarts, 2000. p. 48.
6
2
funcionamento específico (...) se identificarmos a existência de ligações, tudo seria
efetivamente rede”, como esclarece Martinho7. Já Ana Cristina Fachinelli anota:
Uma agenda de endereços, não mais que um anuário de diplomados,
não constitui uma rede, mas sim uma matéria-prima relacional. Para
que a rede ganhe corpo, é necessário que um projeto concreto,
coletivo, voluntário, proporcione uma dinâmica específica às relações
pré-existentes.
Ao supor um objetivo coletivo, “um projeto deliberado de organização humana”
(Martinho, 2003) é possível traçar uma distinção clara entre as redes sociais e as redes
pessoais, de relacionamentos e interesse privado. Esta diferença de natureza terá
reflexos nas formas de participação e no engajamento das pessoas em uma ou em outra
rede.
Antes de prosseguir, é necessário fazer ainda outra distinção importante: quando
falamos de rede social, não falamos de apenas uma, mas, geralmente, de duas redes.
Esta é uma simbiose própria dos novos tempos, pois a quase totalidade das redes sociais
está estruturada sobre redes de comunicação.
Um dos mais significativos desdobramentos das tecnologias da informação e da
comunicação (as chamadas TICs), as redes comunicacionais são constituídas de infraestrutura tecnológica e programas (hardwares e softwares) que permitem o trânsito dos
fluxos de informação, o compartilhamento de dados e o desenvolvimento de novas
formas de interação entre pessoas, grupos de pessoas, organizações etc. As redes
comunicacionais reorganizam as forças de produção, os serviços e a economia,
rearticulam a política e modelam a cultura8. A diversidade de funções e aplicações para
essas redes9 é de tal forma abrangente que este é um universo em aberto, no qual uma
nova frente emerge a cada dia, para o espanto de muitos e o delírio dos mercados de
ações10. Entretanto, um dos aspectos mais interessantes das redes comunicacionais é a
sua invisibilidade: estamos cada vez mais “enredados” nas redes comunicacionais e mal
7
MARTINHO, Cássio. Redes – uma introdução às dinâmicas da conectividade e auto-organização.
Brasília: WWF Brasil, 2003. Disponível em http://www.wwf.org.br/publicacoes/livro_redes_ea.htm.
Acesso em 31/10/2004.
8
TRIVINHO, Eugênio. Redes: obliterações no fim de século. São Paulo: Annablume, FAPESP: 1998,
p.13.
9
Um detalhamento possível (e, ainda, conservador) para algumas das aplicações das redes
comunicacionais encontra-se em Trivinho, E. (1998, p.22).
10
Caso emblemático, as ações da empresa Google Inc., responsável pelo mais utilizado mecanismo de
busca da Internet, que ultrapassaram por volta de 2005 o valor de US$ 47,9 bilhões. Para efeito de
comparação, este montante é quase o dobro do valor da General Motors.
3
nos damos conta disso. Para a geração que nasce, o “embalar” dessas redes será tão
essencial e invisível como uma segunda natureza.
A disseminação em larga escala das redes sociais, assim, só ocorreu devido à
existência das redes comunicacionais. Mais que isso: na medida em que disponibilizam,
constantemente, formas inovadoras de interação, as redes comunicacionais conformam
o funcionamento e os modos de atuação das redes sociais. Como ensina McLuhan11, os
meios também condicionam a ação. Assim, o termo “simbiose”, usado anteriormente
para descrever o encontro entre as redes comunicacionais e as redes sociais, é
provavelmente o mais correto.
Características das redes sociais
“O centro está em toda parte e a circunferência em parte alguma”12. Nicolau de
Cusa não seria capaz de imaginar que, ao se posicionar sobre geocentrismo e
heliocentrismo em plena Idade Média, estaria trazendo elementos para explicar um
fenômeno social oito séculos mais tarde. A assertiva do pensador renascentista nos
conduz a um dos maiores diferenciais das redes em relação às outras formas de
organização social: a sua horizontalidade potencial.
A horizontalidade contrapõe-se às estruturas hierarquizadas. A ausência de um
centro
ordenador,
que
por
determinação
prévia
concentre
as
decisões
e
responsabilidades da rede, pode estimular o pluralismo de idéias e ações; distribuir
eqüitativamente direitos e deveres; desburocratizar as atividades; permitir trocas diretas
entre os membros e reforçar o projeto coletivo instaurador da rede. As eventuais
centralidades, que seguem a lógica do envolvimento e do reconhecimento, emergem
durante processos e atividades, e serão substituídas por outras, na medida em que
diminua a sua capacidade de resposta. Assim, cada elemento da rede pode ser um
centro, dependendo do momento e do ponto de vista.
11
O canadense Marshall McLuhan (1911-1980), autor dos livros Os Meios de Comunicação como
Extensão do Homem, O Meio é a Mensagem e da noção de Aldeia Global, considerado por alguns o
“oráculo da Era Eletrônica”.
12
Nicolau de Cusa, Século XIII. Apud Martinho, 2003.
4
Ao prever relacionamentos baseados mais fortemente na qualidade das relações
que em qualidades intrínsecas dos membros das redes, horizontalidade confunde-se com
conectividade, outra característica essencial das redes. É o fenômeno de produção
contínua de conexões, a conectividade, que estabelece uma dinâmica de rede, como
observa Martinho:
Isso porque são as conexões que fazem a rede. Um conjunto de
elementos dispersos no espaço (...) não representa nada se não houver
alguma conexão entre eles. É o relacionamento entre os pontos que dá
qualidade de rede ao conjunto.
Esta questão é particularmente significativa na medida em que todas as conexões
são voluntárias. Em outras palavras: a participação numa rede é uma adesão ao projeto
que a rede representa. Cada conexão, portanto, simboliza e recupera o compromisso
original que mantém a rede viva. Além disso, a participação voluntária, enquanto précondição para a existência de qualquer rede, é um grande obstáculo a qualquer tentativa
de hierarquização dessa forma da organização social.
As conexões com novos membros também qualificam a rede: cada ponto novo
significa a adição de toda uma rede13, na medida em que o ponto conecta-se a outros
pontos que também têm conexões ou, pelo menos, de novos caminhos dentro da rede
preexistente. Assim, cada conexão é a possibilidade de novas conexões, o que
possibilita que as redes cresçam exponencialmente14.
É preciso observar que um mesmo nó pode ser um vértice para o qual
convergem várias redes. Essa multidimensionalidade, ou seja, a possibilidade de um
indivíduo ou organização participar simultaneamente de várias redes, cria campos de
diálogos e intercâmbio pouco prováveis em estruturas mais tradicionais, tornando cada
ponto um mediador dos fluxos das diversas redes em que participa.
A dinâmica de suas conexões, por sua vez, não segue ou estabelece padrões,
ocorre de forma não-linear, o que dá às redes uma configuração rizomática. A nãolinearidade incorpora o acaso e o não-previsto, aproximando as organizações em rede
das dinâmicas da vida. Assim, os caminhos entre um ponto e outro da rede normalmente
13
Este fato relaciona-se, novamente, com a já citada experiência dos seis graus de separação, na medida
em que, para chegar até alguém usamos as redes das redes daqueles que conhecemos.
14
Podem ilustrar esta questão os modelos de empresas como a Herbalife e a Amway, cujos vendedores
ganham sobre a quantidade produtos vendidos por outros profissionais a eles associados.
5
podem ser percorridos de muitas formas, variando, inclusive, de acordo com o tempo.
Como num caleidoscópio, cada nova perspectiva é novo arranjo de caminhos e
posições. “Una estructura social que se base en las redes es un sistema muy dinámico y
abierto, susceptible de innovarse sin amenazar su equilibrio”15. Uma rede, enfim, “é
uma arquitetura plástica, não-linear, aberta, descentralizada, plural, dinâmica, horizontal
e capaz de auto-regulação”, conforme Martinho (2003).
Breve trajetória do conceito de rede
As redes constituem um fenômeno atual que não pode ser ignorado. Em um
mundo cada vez mais glocalizado e perpassado por intensos fluxos migratórios,
monetários e financeiros, mercantis, informacionais e culturais, “(...) a rede tornou-se
uma forma privilegiada de representar a realidade contemporânea”16. Por conseguinte, o
conceito de rede hoje está presente em inúmeras disciplinas científicas e áreas
multidisciplinares de conhecimento: da Comunicação à Engenharia; da Administração à
Antropologia; da Física à Sociologia; da Biologia à Matemática; da Economia aos
Estudos de Saúde; da Ecologia aos Estudos de Cultura, etc. A noção de rede tornou-se
onipresente e, bem mais que isto, parece mesmo onipotente, pois aparece como uma
chave universal para tudo explicar e mover.
O uso amplo e indiscriminado da noção de rede tem como conseqüência sua
sobrecarga semântica, com a introdução e o acionamento de uma infinidade de
significações diferenciadas para o termo. Cabe, de imediato, desenvolver uma visitação
que busque construir um conceito, através da elucidação rigorosa de seus sentidos.
A idéia de rede é antiga. Na mitologia grega, o mito do Minotauro já indicava
um possível delineamento do conceito de rede, através da metáfora do fio de Ariadne
emblematizando as imagens que tecem por entre a malha intrincada de corredores que
constitui o labirinto. Na Antiguidade, a concepção de rede ganha paradigmática
associação com o corpo humano, quando Hipócrates concebe o corpo como uma
15
CASTELLS, M. ob. cit. p.507.
DIAS, Leila Christina. Os sentidos da rede: notas para discussão. In: DIAS, Leila Christina e
SILVEIRA, Rogério Leandro Lima da. Redes, sociedades e territórios. Santa Cruz do Sul, EDUNISC,
2005, p.12.
16
6
gigantesca via de comunicação entre veias e órgãos. Por séculos, a noção de rede
permaneceu identificada à morfologia do corpo humano.
Somente na virada do século XVIII para o século XIX, o conceito extrapola tais
limites ao “sair” das fronteiras do corpo e passar a ser utilizado como representação de
fenômenos sociais. Através do empreendimento teórico de Claude Henri de SaintSimon (1760-1825), o conceito de rede começa a ganhar sua versão moderna, qual seja
uma “estrutura artificial de gestão do espaço e do tempo” que extrapola o corpo e
“torna-se um artefato superposto a um território”, anamorfoseando-o17.
Lançando mão do pressuposto do organismo-rede, ou seja, da idéia de que o
corpo se mantém vivo pela circulação, o projeto filosófico do pensador francês baseavase na possível construção de uma comunhão religiosa, no sentido etimológico de religare, entre os homens, tendo na comunicação o caminho por excelência da
manutenção deste vínculo. Como observa Leila Dias, sustentado nos princípios do
socialismo utópico, o projeto político-filosófico de Saint-Simon tinha como objetivo a
construção de relações sociais mais equânimes. Tal meta seria alcançada por meio de
um engenhoso projeto de edificação de redes de comunicação sobre o território francês
de modo a assegurar uma ampla malha de circulação de todos os fluxos – econômicos,
sociais, políticos e culturais –, o que garantiria a melhoria na condição de vida da
população.
Se Saint-Simon utilizou o conceito de rede para pensar a mudança social,
tomando as redes de comunicação como mediadores técnicos de tal mudança, para
Pierre Musso, foram os epígonos simoneanos os responsáveis pela inversão
epistemológica e pela “corrupção” do conceito. Pensadores, como Michel Chevalier,
identificam o desenvolvimento das redes com uma “revolução política”. Assim, nas
palavras de Pierre Musso: “Diferentemente de Saint-Simon, Chevalier transforma a rede
em objeto-símbolo: a rede técnica produz, por ela mesma, mudança social”18. Nesse
momento, segundo Pierre Musso, o conceito está corrompido.
Ao “sair” do corpo, as redes, em sua versão moderna se materializam e se
sobrepõem aos territórios, criando infinitas teias de circulação de pessoas e coisas. O
17
MUSSO, Pierre. A filosofia da rede. In: PARENTE, André (org.). Tramas da rede: novas dimensões
filosóficas, estéticas e políticas de comunicação. Porto Alegre, Sulina, 2004, p.22.
18
MUSSO, Pierre. ob. cit. p.28.
7
desenvolvimento extraordinário das redes de transportes e de comunicações, a partir do
século XIX e sua potencialização no século seguinte, através das redes informáticas,
criam um ambiente propício para que o conceito corrompido de rede possa se vulgarizar
e, deste modo, superestimar o poder de mudança social das redes: consideradas como
aparatos tão somente técnicos.
Aprisionado neste panorama, diversas operações são realizadas para construir
um paradigma pretensamente científico, objetivando a “compreensão” das redes. Elas
são logo coisificadas. Isto é, transformadas em coisas que, apartadas do social, adquirem
vida própria, porque, na aparência, independem das relações sociais nas quais estão
obrigatoriamente inscritas. Aqui se está claramente no reino da reificação, como foi
analisado por Karl Marx, Georg Lukács, Lucien Goldmann e Karel Kosik. Depois esta
coisa chamada rede passa a definir, por si mesma, as mudanças societárias. Chega-se
assim facilmente ao reino do determinismo tecnológico. Coisificação e determinismo
tecnológico são operações que marcam muitos dos “estudos” acerca das redes no mundo
recente.
As ilusões sobre as redes não se esgotam aí. A atribuição de um conjunto de
qualidades imanentes às redes, como se elas estivessem fora da sociedade capitalista
onde nasceram e se desenvolveram, faz aportar mais outras ilusões aos discursos sobre o
tema. Como os exemplos são quase infindáveis, cabe eleger alguns representativos.
Raúl Motta escreve “...una red es por definición, no jerárquica. Es un tejido de conexión
entre iguales”19. Martinho, em um texto mais abrangente, afirma:
A rede é um padrão organizacional que prima pela flexibilidade e pelo
dinamismo de sua estrutura; pela democracia e descentralização na
tomada de decisão; pelo alto grau de autonomia de seus membros;
pela horizontalidade das relações entre seus elementos. (...) a rede
opera por meio de um processo de radical desconcentração.20
Ainda que se tenha concordância com todos estes (belos) dispositivos, fica
difícil imaginar que as redes possam se constituir em um espaço social, onde todos eles
estejam assegurados, de antemão. Inseridas em um contexto societário capitalista, que
não prima pela prevalência de nenhuma destas expectativas igualitárias, não é evidente
19
MOTTA, Raúl. Las redes sociales informales y la búsqueda de la ecuación interactiva entre la toma de
decisiones locales y la responsabilidad de la governabilidad global. In: DABAS, Elina e
NAJMANOVICH, Denise (orgs.) Redes. El lenguaje de los vínculos. Buenos Aires, Paidós, 2002, p.376.
20
MARTINHO, C. apud DIAS, Leila. ob. cit. p.18/19.
8
que tal ocorrência possa se dar. Para que isto acontecesse, as redes só poderiam ser
pensadas como externas a este contexto ou totalmente impermeáveis aos seus desígnios.
Ambas as alternativas não são plausíveis.
Para não desqualificar as expectativas de melhoria do convívio e vínculo sociais,
resta formular uma alternativa que incorpore tais dispositivos sem assumir as ilusões de
que eles estão já assegurados pelo padrão organizacional mesmo. Nesta perspectiva, um
itinerário perspicaz seria propor que tais dispositivos sejam entendidos como
potencialidades inscritas, mas não asseguradas, no modelo organizacional rede ou
assumir o caráter normativo de tais prescrições, como modelo ideal a ser buscado.
Assim, fica descartada a efetivação automática dos dispositivos inscritos nas
redes. Tais ideais passam a ter a sua realização sempre condicionada às dinâmicas
históricas provenientes das relações de poder presentes nas diferentes sociedades. Nesta
perspectiva, a instigante proposta de Manoel Castells21 de considerar que as “redes
constituem a nova morfologia social de nossas sociedades” talvez produzisse menos
polêmica
Redes: caracterização, componentes e sociabilidade
Pode-se tomar como referência as noções de rede definidas por Michel Serres22 “...uma pluralidade de pontos (picos) ligados entre si por uma pluralidade de
ramificações (caminhos), onde o pico é a interseção de vários caminhos e,
reciprocamente, um caminho põe em relação vários picos” – e por Pierre Musso23: “a
rede é uma estrutura de interconexão instável, composta de elementos em interação, e
cuja variabilidade obedece a alguma regra de funcionamento”. Elas são definições
abrangentes e assinalam os indicadores necessários para pensar as redes, em sua atual
tessitura social; hoje, sem dúvida, sobredeterminada pela explosão das redes, em
especial das informatizadas.
21
CASTELLS, Manoel. A sociedade em rede. São Paulo, Paz e Terra, 1999, p.497.
SERRES, Michel apud MUSSO, Pierre. ob. cit. p.30.
23
MUSSO, Pierre. ob. cit. p.31.
22
9
Decerto, as idéias de ramificações, interseções, interconexões, interações e
regras de funcionamento são vetores significativos que constituem o conceito de rede,
mas outros dados podem ainda ser acionados para dar uma mais rigorosa concretude à
noção de rede. Alejandro Piscitelli, enfrentando a questão das mutações das
propriedades das redes sob o impacto das novas tecnologias informáticas, afirmou que
as novas formas das redes sociais:
Comparten con las redes físicas tradicionales todos sus aspectos
básicos – comunidad de intereses, objetivos acotados, interacción
periódica, intensidad afectiva etcétera – pero inyectan a estas
propiedades otras específicas de la comunicación electrónica a
distancia, tales como las relaciones intensas de cuerpo ausente, la
trascendencia de barreras geográficas, la prescindencia del parecer en
el ser, etcétera.24
Podem ser acrescidas a esta lista de propriedades, por certo, a idéia de adesão
voluntária à rede e a existência de um projeto compartilhado, como sugere Fachinelli25,
ainda que tal solicitação possa já estar incorporada nas expressões: “comunidad de
intereses” ou “objetivos acotados”.
Ilse Scherer-Warren propõe que três dimensões de análise das redes devem ser
consideradas: a temporalidade, a espacialidade e a sociabilidade26. As redes, acionadas
as possibilidades tecnológicas atuais, podem funcionar em tempo real e também
aproximam entes submetidos a temporalidades culturais distintas.
No registro da espacialidade, as redes tornam frágeis as fronteiras, permitindo
interações entre o local e o global. Indo além, Alejandro Piscitelli27 fala que as redes
não só nos conectam com espaços globais e locais, mas que constituem mesmo um
outro espaço social: “Las redes ya no son meramente herramientas a través de las cuales
nos teleconectamos sino que son espacios donde nos teleencontramos: mundos-redes
(networlds)”. Em trabalhos anteriores de um dos autores do presente texto, encontra-se a
proposição de que vivemos hoje uma sociedade complexa, na qual a sociabilidade
torna-se necessariamente compósita, pois conjuga: espaços geográficos e midiáticos;
24
PISCITELLI, Alejandro. Enredados. Ciudadanos de la cibercultura. In: DABAS, Elina e
NAJMANOVICH, Denise (orgs.) ob. cit. p.80/81.
25
FACHINELLI, Ana. Cristina et alli. A prática da gestão de redes: uma necessidade estratégica da
Sociedade
da
Informação.
In:
Revista
Com
Ciência,
2000.
Disponível
em
http://www.comciencia.br/reportagens/socinfo/info14.htm. Acesso em 31/10/2005.
26
SCHERER-WARREN, Ilse. Redes sociais: trajetórias e fronteiras. In: DIAS, Leila Christina e
SILVEIRA, Rogério Leandro Lima da. ob. cit. p.37.
27
PISCITELLI, Alejandro. ob. cit. p.85.
10
convivências e televivências; fluxos locais e globais, expressos na precisa noção de
glocal; e, enfim, realidade contígua e telerrealidade, porque vivida à distância28.
Transita-se assim para a dimensão analítica de sociabilidade, imanente às redes.
Neste horizonte, outros dados podem ser agregados a esta nova sociabilidade. Fala-se
em um espaço ampliado e um tempo reduzido: em uma experiência planetária em tempo
real. Roberto Martinez Nogueira assinala que a pluralidade de redes permite que os
indivíduos, no contemporâneo, se integrem a múltiplas redes e pertenceram
simultaneamente a diversas comunidades29. Ilse Scherer-Warren propõe as formas de
sociabilidade das redes possam ser investigadas e nomeadas de acordo com as seguintes
categorias analíticas: reciprocidade, solidariedade, estratégia e cognição.
Antes de concluir este itinerário acerca da noção de rede, buscando dar sentido
ao conceito, cabe um retorno às questões da adesão e da participação nas redes, que se
considera vital para o ângulo de análise deste texto. Roberto Martinez Nogueira lista
diferentes modalidades de participação, sempre voluntária, nas redes: específica,
cognitivamente orientada, circunstanciada e estratégica Cada uma destas modalidades
de participação implica em envolvimentos diferenciados e modos distintos de assumir o
compartilhamento do poder, inerente à rede, como a qualquer organização social.
Sandra Fernández assinala que:
Un elemento constitutivo de la intervención en red es la existencia de
un dispositivo que posibilita la negociación. Todos os actores
intervinientes estaban efectivamente presentes, portadores de sus
respectivas cuotas de poder.30
Chega-se, portanto, a uma constatação essencial para pensar as redes em sua
complexidade. Elas sempre estão compostas por uma coletividade de entes que: aderem
de modo voluntário; fazem parte de uma comunidade de interesses; partilham objetivos
e projetos; compartilham algum envolvimento afetivo e emocional; encontram-se
interconectados e periodicamente interagem. Tudo isto pode acontecer de modo
presencial e dentro de fronteiras geográficas ou transcender os limites físicos do espaço
e do corpo, como é bem mais comum nos dias de hoje. Mais que isto: os entes são
28
Por exemplo: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Comunicação e política. São Paulo, Hacker, 2000.
NOGUEIRA, Roberto Martinez. Redes sociales. Más allá del individualismo y del comunitarismo. In:
DABAS, Elina e NAJMANOVICH, Denise (orgs.) ob. cit. p.343.
30
FERNÁNDEZ, Sandra. La red como alternativa de desarrollo comunitário. In: DABAS, Elina e
NAJMANOVICH, Denise (orgs.) ob. cit. p.399.
29
11
solicitados a negociar continuamente suas modalidades de atuação na rede, a partir das
cotas de poder que dispõem e que estão inseridas nas relações de poder que organizam a
rede. Como se viu, os resultados deste processo não estão definidos de antemão, mas as
condições de interdependência e de compartilhamento estão dadas pelo perfil e pelo
caráter desta modalidade de organização chamada rede.
Claro que evocar noções de democracia, flexibilidade, horizontalidade,
descentralização e outras como balizadoras para a definição da categoria rede, sem
considerar as dimensões de poder inerentes a toda e qualquer relação social, esteriliza o
conceito. Mas ele pode ser acionado como utopia, como metáfora para imaginar novas
modalidades de convivência, que permitam alternativas desejáveis de construção de
novos mundos, compartilhados.
Políticas públicas de cultura e redes
Anotadas as potencialidades e também os equívocos acerca das redes, cabe
avançar e empreender uma rápida análise que explicite as vantagens do recurso às redes
no desenvolvimento de políticas públicas e, mais especificamente, em políticas públicas
de cultura.
De imediato, é preciso explicitar o que se entende por políticas públicas. Elas
não podem ser, sem mais, identificadas com meras políticas estatais. Na perspectiva das
políticas públicas, a complexa governança da sociedade contemporânea, transcende o
estatal, impondo a negociação como procedimento usual para incorporar atores e
diversificar procedimentos envolvidos na definição e na implantação de políticas. Por
conseguinte: “somente políticas submetidas ao debate e crivo públicos podem ser
consideradas substantivamente políticas públicas de cultura”31.
Deste modo para que uma política seja definida como efetivamente pública ela
deve possibilitar momento(s) de debate público, que viabilize(m) a participação de
múltiplos atores sociais, e processo(s) público(s) de deliberação, que permita(m) a
31
Sobre o tema, ver: RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais: entre o possível e o
impossível. In: NUSSBAUMER, Gisele Marchiori (Org.) Teorias e políticas da cultura. Visões
multidisciplinares. Salvador: EDUFBA, 2007, p.139-158.
12
incorporação de propostas destes atores. Assim, a política pública resultante pode ser
reconhecida como elaboração compartilhada, mesmo que acionando graus distintos de
interferência. Tal negociação, é sempre bom lembrar, acontece entre atores que detêm
poderes desiguais e encontram-se instalados de modo diferenciado no campo de forças
que é a sociedade capitalista contemporânea32. As políticas públicas de cultura, portanto,
podem ser desenvolvidas por uma pluralidade de atores político-sociais - não somente o
Estado, ainda que ele seja um ator privilegiado neste campo - desde que tais políticas
sejam submetidas obrigatoriamente a alguma regulação e controle sociais, através de
crivos e procedimentos, tais como discussões e deliberações públicas.
Nesta perspectiva, as políticas públicas aparecem como essenciais para pensar
uma nova modalidade de Estado, que não seja estranho à sociedade, porque imposto
como Estado todo poderoso ou ausente como Estado mínimo. Mas um novo Estado,
radicalmente democratizado, que interaja continuamente com a sociedade (civil). Por
óbvio, que apenas o recurso às políticas públicas não basta para democratizar o Estado
na sociedade capitalista, marcada por profundas desigualdades econômicas, sociais,
culturais e de poder. Entretanto não resta dúvida que o compromisso com a realização
de efetivas políticas públicas pode ser um passo relevante no longo e complexo
processo de democratização do Estado.
A ativação de políticas públicas não só colabora na redefinição democrática do
Estado e de seu papel, mas viabiliza a incorporação plural de novos atores, provenientes
da sociedade civil, e a construção de parcerias entre o Estado e a sociedade civil. Por
sua vez, tais parcerias podem simultaneamente: socializar o poder do Estado; empoderar
a sociedade civil; inaugurar vínculos e dispositivos inusitados entre Estado e sociedade
e qualificar a formulação e execução das próprias políticas públicas.
Considerando
as
potencialidades
antes
anunciadas,
as
redes
na
contemporaneidade emergem como um dos organismos mais adequados para viabilizar
estas parcerias entre Estado e sociedade (civil). Elas podem, por exemplo, ser:
democráticas: flexíveis; ágeis; possuir capilaridade e agregar competências. Entretanto
para que tais potencialidades sejam preservadas e promovidas é imprescindível ter
cuidados extremos na constituição e no funcionamento das redes. Para garantir isto,
32
Sobre políticas públicas ver também: PARADA, Eugenio Lahera. Introducción a las políticas públicas.
Santiago, Fondo de Cultura Econômica, 2002.
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torna-se necessário um pacto de constituição e funcionamento acordado de modo
cristalino entre Estado e parceiros da sociedade civil.
Porque construir uma rede de formação em organização da cultura
A fundamentação desenvolvida permite apresentar a proposta de constituição da
rede nacional de formação em organização da cultura. Utiliza-se a noção de organização
da cultura, inspirada em Antonio Gramsci, porque ela permite identificar englobando
um conjunto de atividades imanentes à estruturação do campo e dos eventos culturais, a
exemplo de: formulação e desenvolvimento de políticas; gestão; produção; animação;
promoção; administração; programação; curadoria33.
A organização da cultura aparece como um dos momentos imanentes do fazer
cultural, pois um sistema cultural efetivamente complexo exige um conjunto de
momentos, todos eles imprescindíveis ao movimento cultural: 1. Criação, inovação e
invenção; 2. Difusão, divulgação e transmissão; 3. Circulação, cooperação,
intercâmbios, trocas; 4. Análise, crítica, estudo, investigação, reflexão, pesquisa; 5.
Fruição, consumo e públicos; 6. Conservação e preservação; 7. Organização, gestão,
legislação e produção da cultura34.
Análises da história das políticas culturais no Brasil têm enfatizado o descuido
delas com o tema da formação de pessoal para o campo cultural, em especial, para a
área que estamos designando como organização da cultura. Mesmo com a inauguração
das políticas culturais no Brasil da década de 30, através dos experimentos de Mário de
Andrade no Departamento de Cultura da Cidade de São Paulo e de Gustavo Capanema
no Ministério da Educação e Saúde, o Estado nacional, durante todos estes anos, nunca
demonstrou preocupação sistemática em formar pessoal qualificado para o campo e,
mais especificamente, para as instituições que foram sendo constituídas na área cultural
pública.
33
Sobre o tema, consultar: RUBIM, Albino; BARBALHO, Alexandre e COSTA, Leonardo. Formação
em organização da cultura: apontamentos iniciais. Texto inédito, 2009.
34
RUBIM, Antonio Albino Canelas e RUBIM, Lindinalva. Organizadores da cultura: delimitação e
formação. In: Comunicação & Educação. São Paulo, 14(2):15-22, maio/agosto de 2009.
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Com o lugar agigantado ocupado pelas leis de incentivo no país a partir dos anos
80, quase substituindo as políticas de cultura e de financiamento, tal preocupação foi
ainda mais esquecida, pois a prevalência das leis de incentivo estimulou apenas uma das
faces da organização da cultura: os chamados produtores culturais, quase integralmente
associados à lógica de marcado.
A retomada vigorosa das políticas culturais no país a partir de 2003 e a
redefinição, ainda em curso, do lugar ocupado pelas leis de incentivo na constelação das
políticas de cultura e de financiamento, recolocam a questão da formação em
organização da cultura com todo vigor. A construção de políticas culturais de Estado que transcendem os meros mandatos governamentais – expressa de modo substantivo
no Plano Nacional de Cultura e, principalmente, com no Sistema Nacional de Cultura
reforçam sobremaneira a exigência de que atenção especial seja dada a esta zona
prejudicada das políticas culturais.
Este novo cenário das políticas públicas e de Estado da cultura no país e
inúmeras demandas provenientes de conferências e encontros; associações e atores
culturais; instituições e gestores; universidades e acadêmicos sensibilizaram o
Ministério da Cultura a dar especial atenção a este tema. Deste modo, no âmbito da
construção do Sistema Nacional de Cultura, o Ministério efetua um mapeamento
nacional das instituições que atuam na área de formação em organização da cultura. Tal
mapeamento, para além de produzir um conhecimento rigoroso deste relevante universo
da cultura no Brasil, possibilita a constituição de uma rede nacional de instituições
formadoras em organização da cultura, que efetive a parceria entre o Ministério e tais
instituições, com objetivo de formular e desenvolver no país um programa nacional de
formação em cultura, para de uma vez por todas superar a deficiência crônica de
formação e atualização no campo cultural.
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POR UMA REDE DE FORMAÇÃO EM ORGANIZAÇÃO DA