Boaventura de Sousa Santos
11 Nov2014
A onda Podemos
Os países do Sul da Europa são social e politicamente muito diferentes, mas
estão a sofrer o impacto da mesma política equivocada imposta pela Europa Central
e do Norte, via União Europeia (EU), com resultados desiguais mas convergentes.
Trata-se, em geral, de congelar a posição periférica destes países no continente,
sujeitando-os a um endividamento injusto na sua desproporção, provocando
activamente a incapacitação do Estado e dos serviços públicos, causando o
empobrecimento abrupto das classes médias, privando-os dos jovens e do
investimento na educação e na investigação, sem os quais não é possível sair do
estatuto periférico. Espanha, Grécia e Portugal são tragédias paradigmáticas.
Apesar de todas as sondagens revelarem um alto nível de insatisfação e até
revolta perante este estado de coisas (muitas vezes expressadas nas ruas e nas
praças), a resposta política tem sido difícil de formular. Os partidos de esquerda
tradicionais não oferecem soluções: os partidos comunistas propõem a saída da UE,
mas os riscos que tal saída envolve afasta as maiorias; os partidos socialistas
desacreditaram-se, em maior ou menor grau, por terem sido executores da política
austeritária. Criou-se um vazio que só lentamente se vai preenchendo. Na Grécia,
Syriza, nascido como frente em 2004, reinventou-se como partido em 2012 para
responder à crise, e preencheu o vazio. Pode ganhar as próximas eleições. Em
Portugal, o Bloco de Esquerda (BE), nascido quatro anos antes do Syriza, não se
soube reinventar para responder à crise, e o vazio permanece. Na Espanha, o novo
partido Podemos constitui a maior inovação política na Europa desde o fim da
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Guerra Fria e, ao contrário do Syriza e do BE, não são visíveis nele traços da Guerra
Fria.
Para entender Podemos, é preciso recuar ao Foro Social Mundial, aos
governos progressistas que emergiram na América Latina na década de 2000, aos
movimentos sociais e aos processos constituintes que levaram esses governos ao
poder, às experiências de democracia participativa, sobretudo a nível local, em
muitas cidades latino-americanas a partir da experiência pioneira de Porto Alegre e,
finalmente, à Primavera Árabe. Em suma, Podemos é o resultado de uma
aprendizagem a partir do Sul que permitiu canalizar criativamente a indignação nas
ruas de Espanha. É um partido de tipo novo, um partido-movimento, ou melhor, um
moviomento-partido assente nas seguintes ideias: as pessoas não estão fartas da
política, mas sim desta política; a esmagadora maioria dos cidadãos não se mobiliza
politicamente nem sai à rua para se manifestar, mas está cheia de raiva em casa e
simpatiza com quem se manifesta; o ativismo político é importante, mas a política
tem de ser feita com a participação dos cidadãos; ser membro da classe política é
algo sempre transitório e tal qualidade não permite que se ganhe mais que o salário
médio do país; a internet permite formas de interação que não existiam antes; os
membros eleitos para os parlamentos não inventam temas ou posições, veiculam os
que provêm das discussões nas estruturas de base; a política partidária tem de ter
rostos, mas não é feita de rostos; a transparência e a prestação de contas têm de ser
totais; o partido é um serviço dos cidadãos para os cidadãos e por isso deve ser
financiado por estes e não por empresas interessadas em capturar o Estado e esvaziar
a democracia; ser de esquerda é um ponto de chegada e não um ponto de partida e,
portanto, prova-se nos factos. Exemplo: quem na Europa é a favor da Parceria
Transatlântica para o Investimento e Comércio não é de esquerda, mesmo que
militante de um partido de esquerda. Este tratado visa os mesmos objetivos que a
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Área de Livre Comércio das Américas, vulgo ALCA, proposta por Bill Clinton em
1994 e engavetada em 2005, em resultado do vigoroso movimento de protesto
popular que mobilizou as forças progressistas de todo o continente.
Em suma, o código genético do Podemos reside em aplicar à vida interna dos
partidos a mesma ideia de complementaridade entre democracia participativa e
democracia representativa que deve orientar a gestão do sistema político em geral.
Convém salientar que Podemos é uma versão particularmente feliz e potencialmente
mais eficaz de inovações políticas que têm surgido em diferentes partes do mundo,
tendo por pano de fundo o inconformismo perante o esvaziamento da democracia
representativa provocado pela corrupção e pela captura dos partidos de governo pelo
capital. Em Itália, surgiu em 2009 o Movimento Cinco Estrelas, liderado por Beppe
Grillo, com fortes críticas aos partidos políticos e defendendo práticas de democracia
participativa. Teve um êxito eleitoral fulgurante, mas as suas posições radicais
contra a política criam grande perplexidade quanto ao tipo de renovação política que
propõe. Em 2012, foi criado na Índia o Partido Aam Admi (partido do homem
comum, conhecido pela sigla em inglês AAP). Este partido, de inspiração gandhiana
e centrado na luta contra a corrupção e na democracia participativa, toma como
impulso originário o facto de o homem comum (e a mulher comum, como
acrescentaram as mulheres que se filiaram no partido) não ser ouvido nem tomado
em conta pelos políticos instalados. Um ano depois da sua fundação tornou-se no
segundo partido mais votado para a assembleia legislativa de Delhi.
É possível uma onda Podemos que alastre a outros países? As condições
variam muito de país para país. Por outro lado, Podemos não é uma receita, é uma
orientação política geral no sentido de aproximar a política dos cidadãos e de mostrar
que tal aproximação nunca será possível se a atividade política se circunscrever a
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votar de quatro em quatro anos em políticos que se apropriam dos mandatos e os
usam para fins próprios.
Curiosamente, na Inglaterra acaba de ser criado um partido, Left Unity,
diretamente inspirado pelas ideias que subjazem ao Syriza e ao Podemos. Em
Portugal, a onda Podemos é bem necessária, dado o vazio a que me referi acima.
Portugal não tem a mesma tradição de ativismo que a Espanha. Em Portugal,
Podemos será um partido diferente e, neste momento, terá pouca repercussão.
Portugal vive o momento Costa. Em face dos fracos resultados do Partido Socialista
(PS) nas últimas eleições para o Parlamento Europeu, António Costa, prefeito da
cidade de Lisboa, disputou com êxito a liderança ao secretário-geral do partido,
eleito no último congresso. A disputa tomou a forma de eleições primárias abertas a
militantes e simpatizantes do partido. As eleições foram muito participadas e
mostraram o que disse atrás: a distância dos cidadãos é só em relação à política do
costume, sem horizonte de mudança em face de uma situação socioeconómica
intolerável e injusta. O momento Costa faz com que a onda Podemos em Portugal se
destine sobretudo a preparar o futuro: para colaborar com o PS, caso este esteja
interessado numa política de esquerda; ou para ser uma alternativa, caso o PS se
descredibilize, o que fatalmente ocorrerá se ele se aliar à direita. Por agora, a segunda
alternativa é a mais provável.
Será possível que a onda Podemos chegue à América Latina, como que
devolvendo ao continente a inspiração que recebeu deste e da sua brilhante primeira
década do século XXI? Certamente seria importante que isso ocorresse nos dois
grandes países governados por forças conservadoras, México e Colômbia. Neste
países, os esforços para formular e dar credibilidade a uma nova política de esquerda
não conseguiram até agora furar o bloqueio da política oligárquica tradicional. No
caso do México, há que referir tentativas tão diversas quanto La Otra Campaña, por
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iniciativa do Exército Zapatista de Libertação Nacional, ou movimento político
aglutinado em redor de López Obrador, e, no caso da Colômbia, o Polo Democrático
e todas as vicissitudes por que passou até hoje (polo democrático independente, polo
democrático alternativo).
Nos países onde as forças progressistas conseguiram grandes vitórias na
primeira década do século XXI e onde os partidos de governo foram, eles próprios,
emanação de lutas populares recentes, poderá pensar-se que a onda Podemos teve
aqui a sua fonte e por isso nada de novo pode fazer acontecer. Refiro-me ao Partidos
dos Trabalhadores (PT) no Brasil, ao Movimiento al Socialismo (MAS) na Bolívia,
à Alianza Pais no Equador e ao Partido Socialista Unido (PSUV) na Venezuela.
Trata-se de realidades políticas muito distintas mas parecem ter duas características
em comum: procuraram dar voz política às classes populares em grande medida
oprimidas pelas classes dominantes, ainda que concebam as classes populares, não
como coletivos, mas antes como grupos de individuos pobres; tiveram êxito político
e o exercício do poder de governo pode estar a descaracterizar a marca de origem
(seja por via do caudilhismo, da corrupção, ou da rendição aos imperativos do
desenvolvimento neoliberal, etc). O desgaste político é maior nuns do que noutros,
apesar das vitórias recentes, algumas delas retumbantes (caso do MAS nas eleições
de 2014). Nestes países, tal como, de resto, nos dois outros países com governos de
centro-esquerda assentes em partidos mais antigos, a Argentina e o Chile, a onda
Podemos, se vier a ter alguma relevância, tenderá a assumir duas formas: reformas
profundas no interior destes partidos (mais urgentemente reclamadas no PT do que
nos outros partidos); criação de novos partidos-movimento animados pela mesma
dinâmica interna de democracia participativa na formulação das políticas e na
escolha dos líderes.
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Como o caso do indiano AAP mostra, o impulso político que subjaz ao
Podemos não é um fenómeno da Europa do Sul/América Latina. Pode aparecer sob
outras formas noutros continentes e contextos. Um pouco por toda a parte, 25 anos
depois da queda do Muro de Berlim, os cidadãos e as cidadãs que acreditaram na
promessa da democracia, anunciada ao mundo como o fim da história, estão a chegar
à conclusão de que a democracia representativa liberal atingiu o seu grau zero,
minada por dentro por forças anti-democráticas, velhas e novas oligarquias com
poder económico para capturar o sistema político e o Estado e os pôr ao serviço dos
seus interesses. Nunca como hoje se tornou tão evidente que vivemos em sociedades
politicamente democráticas mas socialmente fascistas. A onda Podemos é uma
metáfora para todas as iniciativas que tentam uma solução política progressista para
o pântano em que nos encontramos, uma solução que não passe por rupturas políticas
abruptas e potencialmente violentas.
Os EUA são neste momento um dos países do mundo onde o grau-zero da
democracia é mais evidente. E certamente o país do mundo onde a retórica do
governação democrática é mais grosseiramente desmentida pela realidade política
plutocrática e cleptocrática. Depois que o Tribunal Supremo permitiu que as
empresas financiassem os partidos e as campanhas como qualquer cidadão, e,
portanto, anonimamente, a democracia recebeu o seu golpe final. As agendas das
grandes empresas passaram a controlar totalmente a agenda política: da
mercantilização total da vida ao fim dos poucos serviços públicos de qualidade; da
eliminação da proteção do meio ambiente e dos consumidores à neutralização da
oposição sindical; da transformação da universidade num espaço de aluguer para
serviços empresariais à conversão dos professores em trabalhadores precários e dos
estudantes em consumidores endividados para toda a vida; da submissão, nunca
como hoje tão estrita, da política externa aos interesses do capital financeiro global
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à incessante promoção da guerra para alimentar o complexo industrial-securitáriomilitar. Em face disso, não surpreende que muitos dos norteamericanos
inconformados com o status quo tenham começado a ler ou a reler Marx e Lenine.
Encontram nestes autores a explicação convincente do estado de coisas a que chegou
a sociedade norte-americana. Não os seguem na busca de alternativas, de ideias para
refundar a política democrática do país, pois conhecem os catastróficos resultados
políticos
da
prática
leninista
(e
trotskista,
convém
não
esquecer).
Surpreendentemente, combinam essas leituras com a da Democracia na América de
Alexis de Tocqueville e a sua apologia da democracia participativa e comunitária
nos EUA das primeiras décadas do século XIX. É aí que vão buscar a inspiração
para a refundação da democracia nos EUA, a partir da complementaridade intrínseca
entre democracia representativa e democracia participativa. Sem o saberem, são
portadores da energia política vital que a onda Podemos transporta.
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onda Podemos - Livraria Almedina