Três problemas para a filosofia moral?1
Juan Adolfo Bonaccini
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
I
Por que se deve, antes de mais nada, falar de “Filosofia e Moral”2? Por que não Filosofia
Moral, ou Ética? Porque a moral não se confunde com a filosofia e porque a filosofia não é
a única forma de reflexão moral ou sobre a moral3. Em princípio, filosofia é uma coisa, e
moral, outra. Por moral, ou melhor, por moralidade entendo uma esfera ou dimensão da
vida humana que está dada; historicamente, inclusive, antes de toda filosofia. Juízos de
caráter moral, de censura ou elogio, sempre foram emitidos, mesmo antes da existência
histórica de uma tradição filosófica como a ocidental; e sempre podem ser feitos
independentemente do conhecimento desta ou daquela teoria filosófica. O que não quer
dizer que a filosofia não descubra princípios filosóficos na base de cada moral particular ou
de cada juízo moral.
Assim, para entender a relação entre filosofia e moral é preciso considerar que a moralidade
não se confunde com a filosofia moral ou ética filosófica. Esta última é antes uma
consideração reflexiva da primeira. Dado que a filosofia, num sentido vago e geral, pode
ser definida como uma atividade que consiste em refletir sobre fundamentos, e como a
moralidade refere-se às tábuas de valores e às exigências com base nos quais os homens
sempre, em determinadas circunstâncias de sua vida, avaliam as pessoas, suas ações ou
motivações, censurando-as ou elogiando-as como corretas e incorretas, tudo que a filosofia
pode fazer com respeito ao problema moral (i.é. à moralidade) é refletir sobre seus
princípios. Assim, na tentativa de reconstruir esses princípios, surgem as diferentes teorias
morais que a tradição e a contemporaneidade conhecem no âmbito da filosofia moral – e
que muitos preferem, não obstante, chamar de Ética.
Do mesmo modo que historicamente variam os conteúdos das concepções morais, enquanto
que não muda o fato de que todos os indivíduos julgam moralmente e toda sociedade,
cultura ou civilização não dispensa exigências morais, os filósofos têm produzido uma série
de reconstruções diversas do “fenômeno moral”: na esperança de chegar a uma
compreensão daquilo que permanece como a essência de toda norma ética e de toda
exigência moral independentemente de circunstâncias históricas.
II
A filosofia moral, na tentativa de encontrar uma teoria moral capaz de satisfazer as
exigências e características próprias ao fenômeno moral, sempre encontra empecilhos que
não são de pouco monta e alimentam um debate muitas vezes milenar. Eu não pretendo
reconstruí-lo aqui, nem falar da filosofia moral de Platão, Aristóteles, Kant ou de qualquer
outro. O que sim pretendo é destacar três problemas que me parece que toda boa teoria
moral deveria resolver:
i) O problema de que toda teoria moral é uma reflexão teórica que do ponto de vista
prático pode ser considerada moralmente correta ou não;
ii) O problema de definir em que consiste a pessoa moral e/ou o ato moralmente
correto, bem como os critérios para seu reconhecimento e para a imputabilidade
enquanto tal;
iii) O problema de determinar a tarefa precisa da filosofia moral: se ela é descritiva
ou normativa (o que nos remete para (I); se ela deve definir ou elucidar o que é
bom, ou se ela deve prescrever os requisitos para que a boa ação seja realizada.
A seguir, gostaria de explicar sucintamente em que consiste cada problema.
i) Quando eu teorizo sobre algo, eu me distancio desse algo para poder considerá-lo o mais
“objetivamente” possível. Assim, a teoria é diferente do objeto e não se confunde com ele.
Mas na filosofia moral isto é um problema, porque quem teoriza é uma pessoa, e teorizar é
uma ação. Assim, a pessoa, por sua ação, motivação ou decisão, e a própria ação, recaem
sob a norma ética e podem por isso ser censuradas ou elogiadas. Agora bem, se quem
teoriza considera sua teoria como teoria, então parece que ela não pode ser senão
moralmente neutra – e que seu uso é que poderia não sê-lo. Nesse caso, teoria e moral
seriam coisas distintas, e então parece que a teoria não pode ser moralmente correta ou
incorreta. Pois se uma teoria moral não for neutra não possuirá distanciamento e será de
certo modo uma moral particular, o que acarretaria confundir moral com filosofia moral.
Porém, do ponto de vista moral é sempre questionável que uma teoria seja moralmente
neutra. Se ela for considerada neutra, parece que deveremos admitir uma atividade que está
como que por cima da moral, “além do Bem e do Mal”; uma atividade tal que não poderia
ser censurada e seria inimputável; e quem admitiria isto, quando é público e notório que
toda neutralidade é uma posição baseada em decisões, e decisões são moralmente
imputáveis? O problema, então, consiste em que a filosofia moral deve ser teoria e não
deve sê-lo ao mesmo tempo; deve ser moral, e não deve sê-lo.
ii) Se disséssemos que uma pessoa moral é uma pessoa de caráter, como se diz, e
admitíssemos que uma pessoa de caráter é alguém que age em sua vida de modo
moralmente correto, parece que teríamos chegado a um bom critério do que é ser uma
pessoa moralmente boa. Mas o problema é mais difícil do que parece: o que é agir de modo
moralmente correto (ter caráter)? Como discriminar ações morais de ações que não são
morais? Dizer que agir moralmente é efetuar ações morais parece algo claro. Mas todo o
problema recai em encontrar um critério para distinguir ações moralmente corretas de ações
que não o são. A tradição tem vários critérios, públicos e privados. Do ponto de vista da
observação, e até do exercício de agentes e pacientes de ações, parece que há ações que são
à primeira vista imorais, e ações que são morais. Ajudar uma velhinha a atravessar a rua
pode ser uma boa ação para qualquer observador externo, assim como mentir ou roubar
pode parecer algo moralmente incorreto para qualquer um. Mas o problema é que este
critério é insuficiente: a motivação e a intenção podem ser sido qualquer coisa menos
morais se o sujeito acompanha a velhinha com o intuito de roubar-lhe a bolsa, ou para
parecer bonzinho frente aos outros, ou ainda para alimentar o seu próprio orgulho; enquanto
que, se alguém mente com a intenção de evitar um mal maior, como salvar uma vida ou
evitar sofrimentos a um paciente terminal, ou rouba com a intenção de ajudar a alguém que
precisa, ou para alimentar uma família, já não diríamos com tanta certeza que se trata de
ações imorais. Assim, um critério para discernir ações morais de ações imorais que levasse
em conta apenas a aparência externa dos atos não seria um bom critério, posto que poderia
desconsiderar o fato de que a motivação das mesmas poderia ser exatamente o contrário do
que aparenta. Quiçá por isso alguém já disse (Aristóteles, E.N. X) que a ação eticamente
ideal é aquela em que ato é conforme a virtude e a intenção também.
O grande problema que parece decorrer disso é que intenções e motivações são
imperscrutáveis. Ainda que a história e as circunstâncias da ação em que o agente age
pareçam em alguns casos revelar a motivação (nessa suposição se funda a imputabilidade
de dolo no direito ocidental), nunca podemos estar certos das intenções que movem à ação,
a não ser no caso em que nós próprios somos os sujeitos da ação. E mesmo assim às vezes é
confuso para nós, apesar da consciência de intenção, se nela não se mescla algum outro
interesse compatível. A conseqüência é a possibilidade de censurar injustamente. Como
juízos morais pressupõem um critério de moralidade e não possuímos um critério certo para
todos os casos, parece que devemos admitir que em muitos casos podemos estar julgando
aparências e cometendo injustiças, o que redunda em basearmo-nos moralmente em
preferências subjetivas para julgar algo como sendo moralmente certo ou errado.
iii) A tarefa de determinar se a filosofia moral é descritiva ou normativa também nos coloca
frente a alguns impasses. Se a filosofia moral apenas deve descrever o que é o bem moral
ou o que é bom, não se entende muito bem para quê: parece como se os descritivistas
fossem no fundo moralistas ingênuos tentando indicar descritivamente o que é bom, na
esperança de que as pessoas agissem de acordo com ele. Se a filosofia moral é normativa,
todavia, ela não nos confronta meramente em face de uma definição do bem moral, mas nos
diz quais são as condições que devemos preencher para realizá-lo. Nesse caso nos terá de
propor deveres; e deveremos fazer A ou B para agirmos moralmente, para sermos felizes,
etc. Mas nesse caso parece que a filosofia moral ocupará o lugar de uma concepção moral
particular, e nesse caso não sei se poderemos chamá-la de filosofia – já que será pura moral.
Como se vê este problema iii) esta estreitamente relacionado ao problema i).
Estes são os problemas que me parecem essenciais à filosofia moral4. Há decerto outros, e,
portanto não são os únicos. Em todo caso, parece que devemos discutir se as teorias morais
existentes resolvem estes problemas, e caso contrário, parece que devemos encontrar uma
resposta satisfatória para cada um deles.
Juan Adolfo Bonaccini
Notas
1
Versões deste texto foram apresentadas no Café Filosófico (Livraria Nobel, Natal
Shopping, 31 de outubro de 2002), na TV Universitária (2003) e na XI Semana de
Humanidades da UFRN (2003). Agradeço à audiência e aos colegas cujas críticas e
questões me ajudaram a clarificar meu próprio ponto de vista, principalmente aos editores
desta revista, que em muito ajudaram a melhorar a clareza do meu texto.
2
Tal era o título da primeira versão do trabalho.
3
Ainda que alguns autores diferenciem ética e moral, eu os tomo aqui por termos que
possuem a mesma referência no uso que deles fazemos. Porque embora alguns digam que
Ética é uma disciplina filosófica e Moral algo historicamente dado, quando alguém faz algo
que consideramos errado ou digno de censura dizemos que é antiético ou moralmente
incorreto de modo indistinto. Se de fato e historicamente Ética filosófica é a disciplina que
estuda a problemática da moralidade no agir humano, isto não faz com que a dimensão que
chamamos ética deixe de ser a mesma que temos em mente quando falamos de moral ou da
moralidade. Se não se quer aceitar isto, basta compreender que eu não me vejo obrigado a
distinguir ética de moral como o fariam Nietzsche, Hegel ou outros autores, e inclusive o
próprio Kant.
4
Muitos dirão que o grande problema consiste em determinar se a filosofia moral deve
justificar a exigência moral enquanto tal ou se apenas deve descrever o fenômeno moral e
elucidar o que é bom. Mas eu creio que esse problema fica resolvido quando se decide a
natureza, descritiva ou prescritiva, da filosofia moral. De todo modo, eis os problemas.
Cabe-nos, doravante, procurar-lhe soluções plausíveis.
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