O FENÔMENO DA ROMARIA DE JUAZEIRO DO NORTE:
IMPLICAÇÕES SOCIAS E RELIGIOSAS
ILMÁRIO DE SOUZA PINHEIRO
Lins – SP
2009
2
O FENÔMENO DA ROMARIA DE JUAZEIRO DO NORTE:
IMPLICAÇÕES SOCIAS E RELIGIOSAS
RESUMO
O presente texto pretende expor uma análise, apoiada em visões de alguns
estudiosos, do fenômeno da romaria de Juazeiro do Norte, sobretudo em seus
aspectos sociais e religiosos. Esta cidade, uma dos maiores pontos de turismo
religioso do Brasil, recebe uma média de dois milhões de peregrinos por ano. Deste
modo, este trabalho, para melhor comprender a origem e permanência das
peregrinações, recorrerá ao contexto histórico-social-religioso em que nasceu a
romaria de Juazeiro. Num primeiro momento enfatizaremos as razões principais que
deram inicio as peregrinações, a ocorrência de um fato sobrenatural: “o milagre da
hóstia”. Na segunda parte, discutiremos as motivações que levaram os romeiros a
distinguir Juazeiro como um lugar sagrado. Quanto ao Pe. Cícero, analisaremos sua
postura e influência nas romarias e no desenvolvimento da cidade . Por fim,
apresentaremos o sentido presente neste evento, como memória do passado e autoafirmação do presente.
Palavras-Chave: Romaria – Milagre – Pe. Cícero –Juazeiro
3
INTRODUÇÃO
O estudo de fenômenos religiosos causa sempre impressão pela riqueza de
elementos das mais diversas instâncias. Sem um olhar crítico e um estudo
aprofundado, nunca nos daríamos conta da presença de fatores sociais, ideológicos,
filosóficos, entre outros. Ao fazer o nosso estudo sobre o fenômeno da Romaria de
Juazeiro, pudemos perceber quantas razões contribuíram e contribuem para a
peregrinação dos romeiros.
Juazeiro do Norte, cidade localizada no Ceará, considerado um dos maiores
centros religiosos da América Latina, recebe, em média, dois milhões de romeiros
todos os anos. Neste município muitos lugares e monumentos recordam a figura do
Pe. Cícero. O fluxo para tal se dá, predominantemente, por pessoas de baixa renda.
Estas são, na maioria, provindas da zona rural, cidades ou das periferias das
capitais.
O nosso trabalho está divido em três partes. Para a melhor compreensão
fomos num primeiro momento às origens do fenômeno, enfocando a presença do
Pe. Cícero no então vilarejo. Ao olharmos para a situação do lugar e o contexto
histórico da época entendemos o trabalho pastoral desenvolvido pelo jovem
sacerdote. O milagre será visto por mais de um olhar, buscaremos entender o
significado da sua aceitação e o sentido que se deu, mediante o contexto vivido.
Num segundo plano tentaremos entender o processo que transformou um
simples lugarejo pobre, em um centro de expressão da fé, um espaço sagrado para
os romeiros. Aí se verificará como qual a relação dos com o Pe. Cícero e o que isto
representou para a cidade, da qual se tornou símbolo. Nem a sua morte conseguiu
acabar com o ponto de convergência de muitos peregrinos do Nordeste.
Na terceira parte apresentaremos alguns rituais presentes na romaria do
Juazeiro. A viagem para esta cidade é permeada de diversas devoções, próprias do
romeiro. Também aí pretendemos expor, em poucas linhas, os fatores motivacionais
da romaria, nas suas origens e hoje.
1. ORIGENS DA ROMARIA
1.1 BREVE CONTEXTO HISTÓRICO
4
Nos anos de 1988 e 1989 o sertão Cearense vivia uma forte seca, só
comparada a de 1977, causadora de muitas mortes. Diante de tal quadro era comum
as pessoas recorrerem a religião como sinal de esperança para a reversão da
situação. Os padres, por sua vez, faziam à pregação, própria do tempo, de
conversão súbita, para se alcançar a misericórdia divina. O contexto histórico foi
determinante para a crença no milagre.
Mas o problema não estava somente relacionado as questões naturais., dois
grandes acontecimentos provocaram a migração de pessoas. O sul estava
ascendendo a produção cafeeira, enquanto, a partir de 1988, estavam sendo
abertas florestas e seringais em pequenos povoados do Amazonas e do Pará. As
duas regiões precisavam de mão-de-obra barata. O sul supriu as suas necessidades
com os imigrantes europeus. Os nordestinos, por estarem mais próximos, eram
recrutados para a Região Amazônica.
Havia incentivos políticos para tal êxodo. O governo do Ceará receberia
imposto “por cabeça”, o que correspondia uma quantia por cada cearense saudável
que embarcasse. Essa escassez de mão-de-obra fez com que a economia do
Nordeste, predominantemente algodão e gado, definhasse, não conseguindo resistir
aos anos sem “seca”. Tardiamente o governo se deu conta do retrocesso para tentar
conter a emigração dos cearenses. (CAVVA, 1985, p. 143-146)
1.2 PE. CÍCERO NOS PRIMÓRDIOS DE JUAZEIRO
Pe. Cícero, nascido em 24 de março de 1844, foi ordenado sacerdote em 30
de novembro de 1870. Os seus primeiros dezesseis meses de sacerdócio foram
vividos na cidade do Crato. Certa vez, em 24 de dezembro de 1871, noite de natal, a
convite do professor Semeão Côrrea, foi celebrar a missa do galo no povoado de
Juazeiro, então distrito do Crato. Após outros contatos, em 11 de abril de 1972, fixou
morada em Juazeiro.
O jovem sacerdote conquistou a atenção e apreço do povo, a partir da sua
vida simples e de oração. Como homem religioso do seu tempo, Pe. Cícero pedia o
arrependimento dos pecados do povo. Visitava os doentes, que se multiplicavam,
em conseqüência da seca, ministrando-lhes o sacramento da unção dos enfermos.
Era procurado, inclusive por outros sacerdotes, como conselheiro espiritual e
confessor.
5
Percorria sem descanso todos os arredores de Juazeiro do Norte para
pregar a devoção ao rosário da Virgem Maria, a caridade, e para exercer, a
pedido, a função de juiz nas discórdias. Gostava de ficar entre os caboclos
em longas conversas, durante as quais falava da Santa escritura e da vida
dos santos de sua devoção, cujo principal era São Francisco de Assis.
Com este trabalho missionário paciente e constante, lançou as raízes de
sua aceitação total e incondicional. (OLIVEIRA, 1985, P. 96)
De maneira que se encontrava em Juazeiro um padre rico de virtudes, mas
nem de longe se pensava em uma repercussão maior causada pela sua figura.
Manteve-se 17 anos em Juazeiro neste “anonimato”, até o acontecimento do
milagre. Esta postura assumida pelo Pe. Cícero será fundamental na aceitação do
milagre, bem como no mito que se tornará para o povo do Nordeste.
1.3 O MILAGRE DA HÓSTIA
Em uma manhã de sexta-feira, 1 de março de 1889, após uma vigília de
oração, Pe. Cícero decide distribuir a comunhão para as beatas(uma sociedade de
piedosas mulheres, fundada pelo Pe. Ibiapina, que se dispuseram a praticar
conselhos evángélicos de castidade, pobreza e obediência. As “Beatas” do Pe.
Cícero continuavam a tradição de Ibiapina), a fim de despedi-las em seguida. No
entanto, o jovem sacerdote foi surpreendido pela Beata Maria de Araújo, que
apresentava sangramento na boca, segundo ela, no qual havia se convertido à
hóstia consagrada. Ela teve cuidado de preservar o sangue, enxugando-o com uma
toalha. Logo após os cuidados primeiros, Pe. Cícero, por precaução, decidiu manter
silêncio em relação ao caso.
Imaginemos a recepção do povo do lugarejo e das diferentes localidades do
Nordeste, recebendo a noticia do milagre. O fato, que por si só já se apresentava
sobrenatural, foi ganhando acréscimos na medida em que foi sendo narrado. Para
ilustrar transcreveremos a versão do milagre narrada pelo Pe. Cícero, e uma outra
narrada por uma devota, que não esteve presente no momento. Comecemos pela
narração do sacerdote.
Quando dei a Beata Maria de Araújo a sagrada forma, logo que a depositei
na boca, imediatamente transformou-se em sangue, que uma parte
engoliu, servindo-lhe de comunhão, outra correu pela toalha, caindo no
chão; eu não esperava e, vexado para continuar com as confissões
interrompidas, que eram ainda muitas, não prestei atenção e por isso não
apreendi o fato na ocasião em que se deu; porém depois que depositei a
âmbula no sacrário, e vou descendo, ela vem entender-se comigo, cheia de
aflição e vexame de morte, trazendo a toalha dobrada, para que não
6
vissem e levantava a mão esquerda, aonde nas costas havia caído um
pouco e corria um fio pelo braço, e ela com temor de tocar com a outra
mão naquele sangue, como certa que era a mesma hóstia, conservava um
certo equilíbrio para não gotejar sangue no chão.(PERINI, 2007, p. 15)
Passemos ao relato da devota do Pe. Cícero
A Santa Beata Maria de Araújo se santificou nas mãos de meu padrinho
Cícero. Todos os dias a Beata Maria de Araújo comungava com meu
Padrinho Cícero. Certo dia ela aproximou-se da mesa da comunhão, e ao
comungar a hóstia tornou-se sangue em sua boca. Quando meu Padrinho
Cícero viu o sangue ficou agoniado, e todos os presentes ficaram
admirados. Ele pegou as toalhas e com elas ia enxugando o sangue.
Dizem que aquele sangue cheirava a Jasmim. (DIAS, DVD)
Percebemos a distância objetiva dos relatos, embora tratem do mesmo
evento. O relato do padre Cícero é bastante preciso, rico de detalhes. No entanto ele
decidiu manter-se em silêncio. O que nos faz pensar que o milagre espalhou-se com
muitos aumentos. Os acréscimos sofridos na segunda descrição certamente foram
fundamentais para a estupefação das pessoas.
As condições sociais em que se encontrava a região fizeram interpretar o
milagre como resposta de Deus as constantes súplicas de misericórdia que lhes
eram feitas. Com a ocorrência do milagre renascia em muitos a esperança de que
Deus mandara um sinal de sua glória em meio a um sofrimento “interminável”,
causado pela seca.
1.4 REPERCUSSÃO DO MILAGRE
No dia 7 de Julho de 1989, festa de Corpus Christi, Monsenhor Monteiro,
reitor do seminário do Crato, faz a primeira romaria a Juazeiro, com cerca de 3 mil
pessoas. Na sua homilia enfatizou a veracidade do milagre, ou seja, para ele o
sangue presente naquele pano era realmente o sangue de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Esta foi a primeira, de tantas romarias, que ainda hoje se dirigem aquela
cidade.
Como dissemos Pe. Cícero não comunicou a Dom Joaquim, então bispo de
Fortaleza, qualquer ocorrência de milagre em sua capela. O mesmo teve
conhecimento através da repercussão, para ser mais preciso, em matéria publicada
no Jornal da Capital. O bispo pediu explicações do Pe. Cícero, o qual afirmou crer
no milagre, baseado também em visões, nas quais o Cristo lhe explicava o milagre e
a sua intenção: dar uma nova chance para a remissão dos pecados.
7
Para a averiguação foi instaurada uma comissão, composta por dois padres
de distinta reputação intelectual e moral, Pe. Antero e Pe. Clycério. Ambos
ratificaram, em relatório feito, o milagre, na medida em que não apresentavam
explicações naturais para o ocorrido. Tal constatação frustrou as expectativas de
Dom Joaquim, pois este temia a idéia “contra doutrinária” de uma “segunda
redenção”, do sangue novamente derramado pela remissão dos pecados.
Segundo Della Cava(1985), algumas leituras podiam ser feitas sobre a
recepção do milagre a partir do contexto histórico-filosófico, por parte da primeira
comissão de investigação. A primeira referia-se a instauração da República, que
tomou para si assuntos até então específicos ao âmbito eclesial, como o matrimônio.
Unia-se a isto a falência do Partido Católico, que tentou reunir os fiéis numa força
política capaz de defender os desejos da Igreja. Neste caso, para a comissão de
inquérito, Deus estaria reagindo e respondendo a estes tempos conturbados, no
qual a sua Igreja perdia espaço.
O segundo é o florescimento das doutrinas: o positivismo e o materialismo.
Com o positivismo exaltava-se o conhecimento comprovado a partir da experiência,
em detrimento de especulações metafísicas ou teológicas. O materialismo identifica
na matéria, a realidade primordial do mundo, em detrimento da dimensão espiritual.
Ambas as correntes representavam uma ameaça para Igreja. O milagre seria, neste
caso, uma resposta de Deus contrária a pensamentos modernos e anti-clericais. Eis
um trecho da carta que Pe. Clycerio enviou a Roma, defendendo a veracidade do
milagre.
Ah! Se V. Excia. Tivesse conhecimento do estado de nosso infeliz Brasil
em quanto a religião; como trabalham os sequazes de Satanás para
arrancar dos corações daquele abandonado povo toda idéia de religião;
como fazem progresso agora o positivismo e o materialismo procurando
destruir os dogmas, mistérios e tudo o que há de mais santo em nossa
religião, exclamaria como eu e muitos outros maravilhados pelas vitórias
que vai tendo nossa religião nesses lugares sobre inimigos tão perigosos
quanto audases, originadas por este milagre da transformação das hóstias
consagradas em carne e sangue no povoado de Joaseiro: Ó providência
admirável do nosso bom Deus... para nos salvar em tempos tão
calamitosos. (CAVVA, 1985, p. 68)
Um outro problema estava na relação entre o clero brasileiro e os
missionários europeus, que podemos chamar de dificuldade de inculturação. Para os
padres brasileiros, a não aceitação do milagre era fruto da injúria dos padres
8
lazaristas. Segundo Pe. Chevallier, por não admitirem a possibilidade de um milagre
no Brasil similar aos já acontecidos na Europa.
2. JUAZEIRO: "LUGAR SANTO"
O Juazeiro é tido por muitos como a “Nova Jerusalém”. Esta cidade além de
um espaço físico assume um “estado de espírito” aos que crêem na sua sacralidade.
Para os romeiros Juazeiro é o “centro” do mundo, para onde convergem as demais
localidades. O “centro” contém valores e uma presença transcendental.. O
acontecimento de um milagre, que se cria verossímel, distinguia aquele lugar, até
então “esquecido” e dava-lhe novo significado.
Importa também ressaltar que, quando um espaço é tido como
sagrado, via de regra, constitui ponto de convergência e
manifestação de forças sobrenaturais que repercutem na vida dos
seres humanos, na vida na natureza, das relações que entre eles se
estabelecem. [...] Os espaços sagrados são pontos de referências
capazes de transfigurar o que antes era indeterminado, amorfo,
caótico em um cosmo ordenado e significativo. (VILHENA, 2005, p.
79-80)
Ir a este lugar convergente é sair de si, do próprio espaço, em busca de algo
mais, a fim de encontrar a si mesmo. O lugar da memória expressa uma condição
comum, aponta a um pertencimento coletivo, a uma identidade: o apadrinhamento
do Pe. Cícero. Neste espaço cada um podia transcender a própria individualidade,
para assumir a condição de pertencimento de um grupo.
2.1 Juazeiro e o Milagre
A aceitação do milagre em Juazeiro foi o passo fundamental para eleger este
lugar como sagrado. Embora futuramente fosse assumida principalmente pelas
classes mais pobres, no principio havia um consenso em relação ao dado
sobrenatural do fato ocorrido. Como nos atesta Della Cava.
Ninguém em Joaseiro duvidava da ocorrência de um milagre, cuja
finalidade tinha sido, pretensamente, revelada a Maria de Araújo, em
agosto de 1889: Deus escolhera Joaseiro para ser o centro de onde se
converteria os pecadores e se salvaria a humanidade. A prova da missão
divina do arraial estava nas levas infindáveis de romeiros que chegavam a
Joaseiro. (CAVVA, 1985, p. 58)
9
A primeira intenção das romarias era a visitação da “urna sagrada”, portadora
dos panos manchados de sangue. Daí provinha as duas classes sociais: a elitizada
e a popular. Acontece que Dom Joaquim, em 1894, proíbe a veneração da urna,
ordenando ao Pe. Cícero a entrega ao Mons. Alexandre, no Crato.
O grupo social mais elevado restringia a devoção aos panos manchados de
sangue, enquanto os mais pobres iam além, já acreditavam ser Juazeiro um lugar
santo. Portanto, enquanto a romaria findou para as os membros mais elitizados, os
pobres continuavam suas peregrinações ao Juazeiro Santo. Neste momento a
ausência dos panos contribui para um atenção maior a pessoa do Padre Cícero.
2.2 O Horto Sagrado
O Horto consiste em uma colina nas imediações de Juazeiro, originalmente
chamada “Serra do Catolé”, a qual foi adquirida por Padre Cícero. Podemos lembrar
a importância bíblica do monte. Encontramos diversas vezes nas Sagradas
Escrituras a montanha, como um lugar especial de manifestação da glória de Deus
ao seu povo. Neste espaço acontecem grandes etapas da história do Povo de Deus,
como o encontro com Deus na montanha do Sinai (Ex 19,3).
Como meio de por fim a seca castigante de 1988/1989, Pe. Cícero reúne-se
com mais dois Padres e fazem uma promessa ao Sagrado Coração de Jesus,
implorando chuvas. Em agradecimento, seria construída uma Igreja sobre o Horto.
As chuvas vieram e a Igreja começou a ser construída. No entanto foi embargada
por Dom Joaquim, e nunca concluída. Para Della Cava, o Horto contribui
significativamente na denominação de Juazeiro como cidade Santa.
Durante a construção da “catedral”, o povo transformou Joaseiro em Terra
Santa. A serra do Catolé foi rebatizada como Serra do Horto e era
identificada com o Jardim das Oliveiras onde Cícero, assim como tinha sido
com Cristo, suportava o seu martírio. Paralelamente o caminho íngrene
talhado de pedra, ligando a aldeia ao Horto, tornou-se conhecido como
caminho do Calvário, ao longo do qual capelas em miniaturas sob a
supervisão de Elias Gilli, um evadido italiano que virou beato, abrigavam as
estações da Via Crucis.(CAVVA, 1985, p. 138)
Sobre o Horto Pe. Cícero construiu uma casa que era usada para o seu
descanso. Ai também os romeiros iam ao seu encontro. O fato é que se criou uma
relação entre o Horto e a “Terra Santa”, para ser mais preciso, o Horto passava a
“ser” a Terra Santa do romeiro. Para Antonio Braga, aquele monte permite o romeiro
fazer a memória bíblica para sentir-se inserido nela.
10
É um lugar de memória sagrada, de um lado, que remete às suas próprias
origens, à sua própria história e aquilo que o constitui enquanto grupo
religioso. [...] De outro lado, é um lugar de experiência sagrada que
ultrapassa as especificidades do grupo e o insere na grande na grande
tradição a que está vinculado: a tradição religiosa cristã, de modo mais
específico, a tradição católica. (BRAGA, 2008, p. 299)
O que podemos perceber de interessante é que neste espaço estão
relacionados os momentos mais sofridos da vida de Jesus: “via crucis”, “jardim das
oliveiras”, “santo sepulcro”. Tal leitura torna-se compreensível ao lembrar-mos as
condições sociais deveras precárias em que se encontravam os que acorriam ao
Horto. A leitura destes fatos aproximava a própria vida sofrida dos peregrinos a
história bíblica.
2.3 Juazeiro: "refúgio dos náufragos da vida"
A atração de Juazeiro não se limitava à questão religiosa, mas ia além. Diante
de tantos problemas sociais que circundavam a região, aquela terra seria a única
esperança, e nisto o Pe. Cícero teve um papel impar. Enquanto em outras cidades
estas pessoas pobres encontravam desprezo, no Juazeiro sentiam-se acolhidas pelo
Pe. Cícero, que aos pouco foi sendo reconhecido como “padrinho”, ou, “meu padim”.
A peregrinação ao Juazeiro além de motivações espirituais, tinha, sem
sombra de dúvida, interesses econômicos. Para muitos romeiros, enquanto terra
santa, o Juazeiro traria também as soluções dos problemas financeiros. Esta idéia
era principalmente motivada pelo próprio Padre Cícero, como nos lembra a
antropóloga Ir. Annetti.
Os romeiros nos lembram frequentemente as palavras atribuídas ao
sacerdote: “Vocês podem percorrer o mundo inteiro, como uma mãe de
família com o seu filho, sem encontrar uma colher de farinha para alimentalo: venham ao Juazeiro e aqui encontrarão. Vocês podem percorrer o
mundo inteiro, as águas do mundo tendo secado, procurando e não
encontrando um copo de água para beber: venham ao Juazeiro e aqui
encontrarão.”(DUMOULLIN, 1990, p. 46)
Estas palavras que nos podem soar como “mensagem hiperbólica”,
apresentam a cidade como a “esperança que não decepciona”. Isto é fundamental
para se conceber a cidade como refúgio. Além de, por si só, serem esperança para
os que não encontram mais meios de sobrevivência, nos “secos” povoados
nordestinos, estas palavras são atribuídas ao herói do povo; para os “náufragos”,
indubitavelmente, dignas de confiança.
11
Quanto as razões pelas quais os romeiros se dirigiam a Joaseiro, entre
1894 e 1934, nada mais simplista do que procurar exclusivamente na
dimensão motivação religiosa. Muitos dos romeiros chamados pelas elites
de fanáticos eram analfabetos, pobres e politicamente inertes. Sob a capa
do impulso religioso, não ortodoxo ou heterodoxo, escondia-se, muitas
vezes, o desejo infrutífero de controlar o meio adverso e sobrepujar as
injustiças sociais que faziam de suas vidas uma desgraça. (CAVVA, 1985,
p. 139)
Desde já vemos a condição específica dos romeiros. Em um tempo onde a
escassez de recursos naturais era constante, para o povo pobre, a oferta de uma
oportunidade de não padecer, era quase irrecusável. O desejo de fazer submergir a
própria condição fazia unir a devoção popular à solução de seus problemas sociais.
2.4 Pe. Cícero e os Romeiros
A relação do Padre Cícero com os romeiros era de bastante proximidade,
uma destas expressões está nas cartas que ele trocava com tais destinatários. Elas
sempre diziam respeito a conselhos ou ajudas materiais. O mais interessante é que
a forma de tratamento era sempre a de “padrinho”, e não entrava no assunto sem
antes pedir uma benção. Ele é tido não apenas como referência religiosa, mas como
conselheiro capaz de orientar negócios e devolver a saúde. Como segue no trecho
de uma das cartas destinadas ao sacerdote.
Meu Padrinho Cícero adeus,
Primeiro de tudo rogo-lhe que lance sobre mim a sua benção. Primeiro que
tudo eu estimarei que estas mal redigidas linhas tenham a felicidade de o
encontrá-lo. Desfrutando de uma perfeita saúde. Meu Padrinho venho por
meio deste pedir-lhe que por todos os merecimentos que vós tendes para
Deus, mande-me, por amor do mesmo, um remédio para mim para me
curar de um terrível mal que a dois anos e oito meses sofro dele na cabeça
e só vós abaixo dos poderes de deus podem dar-me um jeito. (BRAGA,
2008, p. 211)
Nota-se que a figura de Pe. Cícero é emblemática para os seus romeiros.
Este rito comum de pedir a “benção” ao “Padim Ciço”, pode simbolizar a mediação
que, para os romeiros, ele fazia com Deus. Os conselhos pedidos extrapolam os
assuntos espirituais. As recomendações feitas pelo Pe. Cícero eram de remédios
caseiros e modos básicos de higiene. Quando as orações ofereciam resultados, o
fato era comemorado como milagre. Isto contribuiu para reforçar ainda mais a fama
do sacerdote.
12
A chegada de novas pessoas, atraídas pela figura de Pe. Cícero, trouxe
também vantagens econômicas para a cidade. A região do Cariri possuía terreno
fértil e fontes perenes. Com a chegada de mão-de-obra, que era escassa, por
motivos já apresentados, o sacerdote pode orientar os trabalhos de plantio,
transformando o município no “celeiro do Ceará”. Para os demais foram
desenvolvidas indústrias artesanais dentro da cidade.
A figura do Pe. Cícero sempre presente em Juazeiro foi de fundamental
importância para a continuação das romarias. O sacerdote e a cidade se confundem;
visitar o Juazeiro é visitar o Pe. Cícero. Com isso os romeiros mantêm a tradição
herdada pelos antepassados, que iam ao Juazeiro encontrar o Pe. Cícero.
3. Sentido da Romaria
O fenômeno das peregrinações é presente já entre os nômades. A Igreja
católica tem diversos locais que atraem peregrinações. A romaria marca para o
romeiro o “divisor de águas no seu ano”. Para ela ele prepara-se, poupando
recursos. A romaria é um momento educativo, onde os mais veteranos transmitem
aos novatos, a partir da vivência dos rituais, o sentido a ser dado aos diferentes
espaços.
... a ação ritual implica corpos em movimento, corpos que ocupam lugar e
movem-se em espaços definidos. Para a compreensão dos rituais, mesmo
daqueles nos quais, como nas práticas contemplativas e meditativas, o
movimento é quase imperceptível, é imprescindível considerar que
acontecem pela ação de corpos e mentes em uma espacialidade dada,
circunscrita, articulada e ordenada. O espaço é a condição de possibilidade
para se realizar o rito. (VILHENA, 2005, p. 77-78)
Há diversos ritos que envolvem a romaria, para nós importa percebe-los
dentro do espaço sagrado: Juazeiro do Norte. Nesta perspectiva compreendemos a
importância de se eleger um espaço, para a ocorrência do rito.
3.1 Ritualidade própria do romeiro
No principio das romarias em Juazeiro do Norte eram, na maior parte,
organizadas padres que depositavam fé no milagre. Também outros padres dirigiamse a Juazeiro, a fim de atender a demanda de peregrinos. Em 1894, com a proibição
de D. Joaquim de culto aos panos e de que qualquer padre realizasse algum
sacramento em Juazeiro, a não ser nas casas, mas nunca na Igreja, a configuração
13
da romaria mudou. Os rituais próprios já existiam, mas ganharam mais força depois
deste “afastamento” dos padres e da suspensão de ordem do Pe. Cícero. Entraram
em cena os beatos e beatas como mediadores espirituais do povo
Sem o auxílio dos sacramentos, os romeiros buscavam novos rituais, que
substituíssem as práticas de fé anteriores. Um exemplo destes é a confissão. O
Juazeiro era visto com a terra da redenção, onde se deixavam os pecados para
receber a graça. Na impossibilidade de receber a absolvição, o peregrino fazia
penitências físicas, para purificar-se dos seus pecados.
Com a Igreja Matriz fechada, também por ordem do bispo, a rua do Pe.
Cícero passa ser o “templo”. Ali os romeiros aglomeram-se a sua espera. No
principio ele os atendia, um a um, ao passo do aumento das romarias, este contato
particular ficou impossibilitado. O ritual comum era a récita do rosário, um sermão do
Padre, a sua benção, algumas oferendas lhes eram feitas e, por fim, distribuía
alguns conselhos particulares.
3.4 Sobre a romaria de Juazeiro
Existem posições variadas que podem nos ajudar a entender o fenômeno de
Juazeiro. Segundo Pe. Hemrique Groenen, as principais motivações que levam os
devotos ao Juazeiro são duas: gratidão e necessidade. O agradecimento é
geralmente por uma situação de alivio, após algum sufoco, não precisa ser
necessariamente por uma graça sobrenatural. (GROENEN, 1984). Assim como no
passado, o Juazeiro continua sendo lugar de esperança, onde as preces podem ser
ouvidas mais facilmente. Isto vem transmitido desde o inicio, quando os “náufragos
da vida” iam esperançosos, em busca de melhoras para vida.
Apoiados no pensamento de Hermínio, apontamos cinco motivos para
romaria: uma renovação espiritual, deixar os pecados para abraçar a graça; o
sentido da vida através da relação com o sobrenatural; uma ocasião de festa, voltar
ao Juazeiro e reencontrar tantos romeiros; manter a tradição dos antepassados, que
desde o inicio dos séculos iam a Juazeiro; uma ocasião de troca de favores
materiais e espirituais. (OLIVEIRA, 1985)
Quanto a figura de Pe. Cícero, que ao longo dos tempos foi sendo idealizada,
e causa atração, mesmo após a sua morte. Podemos afirmar que é comum em
14
grupos sociais tem o poder de distinguir um homem como ser sagrado, de mediação
com o divino.
De resto, tanto no presente como na história, vemos a sociedade
incessantemente criar de todas as maneiras coisas sagradas. Se ela vier a
se apaixonar por um homem, se acreditara descobrir nele as principais
aspirações que a agitam, assim como os meios de satisfazê-las, esse
homem será posto numa categoria a parte e como que divinizado.
(DURKHEIM, p. 218)
Convém-nos fazer um olhar a partir do modelo de análise de Tuner em
relação a peregrinação.
Não porque o mesmo esgote o assunto, mas pela
relevância. O deslocamento estaria ligado ao abandono das estruturas social vivida
pelo romeiro, para encontrar um igualitarismo. Ao deixar a estrutura corrente, o
indivíduo abraça o essencial, o que o mesmo pensador chama de “comunitas”.
(STEIL, 2000, p. 75)
Os ritos que exigem o toque, a passagem, por entre objetos materiais,
expressam a sacralidade depositada nestes. Ao visitar o túmulo do pe. Cícero, a
cama onde morreu o Horto onde viveu parte da vida, ele faz memória de tradições
míticas e históricas, que são para eles atualizadas na execução dos rituais que lhes
são próximos. Mesmo cientes da ausência do Pe. Cícero, os romeiros ofertam-lhe
bens, que são depositados junto a estes espaços.
4. CONCLUSÃO
O nosso trabalho pretendeu mostrar que a romaria é, entre outros, fruto de
complexos espirituais, sociais, econômicos. Além das questões religiosas, as
condições históricas do povo nordestino foram fundamentais para a aceitação do
milagre. O fato de reunir-se com outras pessoas, numa assembléia, faz o homem
emergir forças de si, que sozinho jamais conseguiria.
Na questão do juízo de Juazeiro como espaço sagrado, podemos entender
que é fruto de uma relação entre sujeito e objeto. É o sujeito que classifica o espaço.
Portanto, é a experiência subjetiva que dá sentido aos espaços em Juazeiro. Tal
município continua ser lugar atrativo por atualizar a memória dos que já se foram,
bem como por representar para os devotos um lugar mais próximo do “céu”. Estar
em romaria é suspender o cotidiano para entrar em outra dimensão, neste caso
transcendental.
15
A esperança é para o ser humano uma experiência fundamental para a
continuação da vida. Quando se perdem os “horizontes”, perdem-se também as
razões fundamentais de viver. Para o romeiro Juazeiro do Norte é o lugar da
esperança, lá é possível transformar as tristezas em alegrias. Por isso, o romeiro
interrompe os seus “afazeres” para reabastecer-se das graças contidas ali.
Os ritos criados pelos romeiros manifestam a liberdade de se manter relação
com o sagrado. O respeito aos ritos representam o poder de mediação com o divino
que estes possuem, bem como o respeito pelas pessoas queridas que os
transmitiram. A figura do Pe. Cícero atravessou as gerações do seu tempo através
do significado social e religioso adquirido no imaginário popular, passada para
gerações sucessivas.
O nosso olhar externo não consegue captar com profundidade o que de fato a
experiência ritual causa no romeiro. Não há explicação que esgote o sentido da
romaria, pois nela é forte a dimensão subjetiva. Podemos afirmar, num olhar
objetivo, que este sair da própria terra para ir a Juazeiro serve para reforçar a
identidade da pessoa como pertencente a um grupo, fazendo sentirem-se
verdadeiros devotos e afilhados do Pe. Cicero.
16
THE PHENOMENON OF PILGRIMAGE OF NORTH JUAZEIRO:
IMPLICATIONS OF SOCIAL AND RELIGIOUS
ABSTRACT
The article presents an analysis, based on views of some studious, the phenomenon
of pilgrimage of Juazeiro do Norte, particularly in its social and religious. This city,
one of the biggest points of religious tourism in Brazil, receives an average of two
million pilgrims a year. Thus, this work, to better understand the origin and
permanence of the pilgrimage, will resort the historical and social-religious pilgrimage
that was born in Juazeiro. At first we will emphasize the main reasons which began
the pilgrimages, the occurrence of a supernatural phenomenon, "the miracle of the
host”. In the second part will discuss the motivations that led the pilgrims to
distinguish Juazeiro as a sacred place. The Father Cicero, review his position and
influence in the processions and the development of the city. Finally, we present the
sense that it gives this event, as memory of the past and self-affirmation of this.
Key-words: Pilgrimage - Miracle - Father Cicero-Juazeiro
17
REFERÊNCIAS
BRAGA, Antonio Mendes da Costa. Padre Cícero: sociologia de um padre,
antropologia de um santo. Bauru: Edusc, 2008.
CAVVA, Ralph Della. Milagre em Joaseiro. Trad. De Maria Yeda Linhares. 2 ed. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1985.
DUMOULLIN, Annette. A Romaria em Juazeiro do Norte. In: Romeiros de ontem e
de hoje: peregrinação e romaria na Bíblia. Petropolis: Vozes, 1990. (Estudos Bíblicos
28).
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico
na Autrália. Tradução de Paulo Neves. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FÉ. Direção e edição: Ricardo Dias. Produção executiva: Programas de integração
cinema e TV E TV Cultura. São Paulo, Super Filmes. 1 DVD 2h12min.
GROENEN, Henrique Estevão. Catolicismo Popular: os romeiros do Pe. Cícero e
a sua devoção. In: Revista eclesiastica brasileira. Volume XLIV. Petrópolis: Vozes,
1984.
OLIVEIRA, Frei Hermínio Bezerra de. Formação histórica da religiosodade
popular no Nordeste: o caso de Juazeiro do Norte. São Paulo: Paulinas, 1985.
PERINI. João Carlos. Maria de Araújo, a beata da hóstia. Juazeiro do Norte-CE,
2007.
ROMARIA E FÉ. Juazeiro do Norte-CE, Bulhoes Produções, 2008. 1 DVD 1h39min.
STEIL, Carlos Alberto. Peregrinação, romaria e turismo religioso: raízes
etimológicas e interpretações antropológicas. In: ABUMANSSUR, Edin Sued (org.).
Turismo religioso: ensaios antropológicos sobre religião e turismo. Campinas:
Papirus, 2005. (Coleção Turismo Religioso)
VILHENA, Maria Ângela. Ritos, expressões e propriedades. São Paulo: Paulinas,
2005. (Coleção temas do ensino religioso).
18
Autor:
Ilmário de Souza Pinheiro – Licenciado em filosofia pelo Instituto Salesiano de
Filosofia/ Recife-PE. Pós-graduado em pedagogia salesiana pela Faculdade
Salesiaa do Nordeste. Graduando em Teologia pelo Centro Universitário Salesiano
de São Paulo.
[email protected]
Fone: (11) 3649-0200
Cel: (11) 8044-5186
Download

O FENÔMENO DA ROMARIA DE JUAZEIRO DO