PALAVRAS
COMPARTILHADAS
EXPOSIÇÃO
MATERIAL EDUCATIVO
1ª Reimpressão
Serviço Social do Comércio
Rio de Janeiro, 2010
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
Presidência do Conselho Nacional
Exposição
Antonio Oliveira Santos
Projeto e Coordenação
Gerência de Cultura / Divisão de Programas Sociais
Direção-Geral
Marcia Leite
Maron Emile Abi-Abib
Divisão Administrativa e Financeira
João Carlos Gomes Roldão
Divisão de Planejamento e Desenvolvimento
Equipe de Artes Plásticas
Sandra de Azevedo Fernandes
Lúcia Helena Cardoso de Mattos
Álvaro de Melo Salmito
Publicação
Divisão de Programas Sociais
Curadoria educativa
Nivaldo da Costa Pereira
Luiz Guilherme Vergara
Consultoria da Direção-Geral
Pesquisa de conteúdo
Juvenal Ferreira Fortes Filho
Luís Fernando de Mello Costa
Roberta Condeixa
Edição
Assessoria de Divulgação e Promoção / Direção-Geral
Christiane Caetano
Assistência editorial
Rosane Carneiro
Projeto gráfico
Vinicius Marins
Fotos
Guarim de Lorena
Revisão de texto
Márcio Mará
Produção Gráfica
Celso Mendonça
SESC. Departamento Nacional. Divisão de Programas Sociais. Gerência de Cultura.
Exposição Palavras Compartilhadas: material educativo / SESC, Departamento Nacional, Divisão
de Programas Sociais, Gerência de Cultura ; curadoria educativa Luiz Guilherme Vergara ; pesquisa de
conteúdo Roberta Condeixa. — Rio de Janeiro : SESC, Departamento Nacional, 2008.
100 p. : il. ; 22 cm, em caixa de 23 x 22 x1 cm.
Exposição Palavras Compartilhadas: material educativo: anexos. 44 p. Bibliografia: p. 43-44.
ISBN 978-85-89336-32-1.
1. Ricalde, Rosana. 2. Exposição. 3. Artes plásticas. 4. Material didático. I. Vergara, Luiz Guilherme.
II. Condeixa, Roberta. III.
Título.
CDD 730
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
6
COMPARTILHANDO PALAVRAS
UM RETRATO 3X4 DA ARTISTA
13
ENTRE A LITERATURA E A IMAGEM
18
SÉRIE CONTRAPOEMAS
SÉRIE AUTO-RETRATOS
SÉRIE PROVÉRBIOS
18
27
42
ENTRE A PAISAGEM E A ESCRITA
49
SÉRIE O TEMPO MUDA TUDO
SÉRIE MARES
SÉRIE GLOBO
49
62
71
CONSTRUÇÕES EM PALAVRAS
79
SÉRIE MANIFESTOS
79
O SESC COMO DIFUSOR DA CULTURA NACIONAL
A cultura reflete a diversidade das identidades regionais do Brasil. Música, artes cênicas,
cinema, artes plásticas e literatura integram o cotidiano dos brasileiros. O SESC garante
a democratização do acesso a essas variadas modalidades, nacionalmente, através de
projetos como o ArteSESC, difusor das artes plásticas em exposições itinerantes que
percorrem o país.
Para a entidade, cultura não significa apenas entretenimento, mas uma nova compreensão da realidade. Em sua postura de articulador, o SESC investe tanto no estímulo
à produção artístico-cultural, viabilizando espaço e estrutura para o trabalho do artista,
como na qualificação do público, e em sua interação com os produtores culturais, por intermédio de um trabalho educativo que permeia todos os serviços e atividades ofertados
pela instituição.
Ao longo do tempo, os projetos do SESC tornaram-se referência, conquistaram credibilidade e foram além de seus objetivos iniciais, transformando-se muitas vezes em principal evento cultural e meio de contato do público com as artes. Esta a contribuição
permanente do empresariado, por intermédio do Serviço Social do Comércio, à cultura
da sociedade brasileira.
Antonio Oliveira Santos
Presidente do Conselho Nacional do SESC
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ARTESESC EM CONExãO COM O CONTEMPORâNEO
O SESC é hoje reconhecido como um dos principais agentes de difusão das Artes Plásticas no país. Desde 1981 o ArteSESC realiza mostras itinerantes em centros urbanos e
cidades do interior, tornando mais conhecidos os acervos de instituições culturais e a
produção de artistas provenientes de várias partes do país, ao exibi-los nas unidades do
SESC ou, eventualmente, em espaços da comunidade. Fazem parte do acervo de exposições do projeto reproduções de obras de artistas como Portinari e Margareth Mee.
Com tais atividades, o SESC procura estabelecer as condições do diálogo necessário
entre artistas plásticos e o público interessado nesse segmento. Atualmente, a programação busca dar visibilidade à produção artística moderna e contemporânea, marcando
uma nova fase do projeto.
Ser um artista plástico moderno ou contemporâneo significa estar em conexão com o que
acontece em sua época, mostrando em suas obras os avanços das discussões e propostas da arte que se manifestam em diferentes modos no mundo. Diante deste cenário, o
ArteSESC escolheu para itinerar a partir de 2008 artistas que proporcionam mudanças
nas tendências da arte brasileira e retomam uma postura mais crítica e política sobre a
realidade cotidiana do país.
No trabalho de Rosana Ricalde, exposto em Palavras Compartilhadas, podem ser descobertas novas formas de percepção da linguagem. A escrita, numa perspectiva contemporânea, assume potências inusitadas, trafegando do literário ao visual, através da apropriação
da artista sobre textos diversos, poéticos ou teóricos. Ao mesmo tempo em que remete a
processos criativos de vanguarda, a partir do século xx, seu processo artístico também
evoca tramas universais da escrita, ligadas, por exemplo, à geografia e à história.
Palavras Compartilhadas reflete a afinidade do ArteSESC com as novas tendências, favorecendo a produção artística em suas diferentes linguagens.
Maron Emile Abi-Abib
Diretor-Geral do SESC Nacional
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
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INTRODUÇÃO
PALAVRAS E LEITURAS COMPARTILHADAS DA ARTE PARA
AS AçõES INTERPRETATIVAS
Ritual de experiências compartilhadas para uma arqueologia da criação
O primeiro olhar
Percepções intuitivas
Percepções metafóricas
Arqueologia da criação
O trabalho da artista Rosana Ricalde é de tal forma complexo, embora aparentemente
singelo, que desafia todos a pensarem como explorá-lo da melhor maneira possível como
um legado de práticas artísticas experimentais, ou antimétodos inaugurais da arte, pois
não se prestam como receitas para a repetição. Como compartilhar com aqueles que irão
cuidar das ações interpretativas, do campo potencial de leituras múltiplas que este conjunto de obras oferece, sem perder sua densidade poética ou o seu valor sistêmico ou polissêmico (aquilo que inaugura vários sentidos ao mesmo tempo)? Em outras palavras, se
propõe explorar a criação da Rosana como um arqueólogo, descobrindo em cada obra
diferentes sistemas de sistemas que conjugam signos com imagens, ações e materiais,
conteúdos com objetos, porém todos indissociáveis do que se apresenta como unidade
da obra de arte. Assim, um primeiro passo a ser dado é estabelecer algumas premissas e
valores que possam mapear este difícil jogo entre arte e aquisição de linguagem, ou seu
exercício como expressão inauguradora de estados poéticos. Ao mesmo tempo, se quer
oferecer caminhos de leituras para as obras de Rosana que potencializem esta consciência poética, ou percepção metafórica, como atributo mais amplo que o legado da arte
deixa em cada época para a formação do pensar humano.
Em princípio, este material investe no estudo das obras de Rosana Ricalde como um
campo potencial de expansão de horizontes da arte para uma educação poética-artística.
Ao mesmo tempo, reconhece que a própria artista, em seu desenvolvimento experimental, também realiza esta ousadia ou aventura humana que faz uso da liberdade entre
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arte e criação (desconstrução) de linguagem. Na mesma medida, os territórios da percepção são expandidos pela intervenção artística em novos horizontes da consciência
poética no mundo contemporâneo. Este legado de descobertas de territórios comunicativos, ou ousadia da imaginação, que só se alcança pelo exercício da liberdade, ele
é em si mesmo o princípio fundamental do que se pretende explorar e oferecer como
foco de uma arqueologia da criação artística. Aqui se oferece um mapa para uma visita
ao imaginário da Rosana, para se navegar entre “palavras e leituras compartilhadas”,
entre arte e a materialização da consciência poética nas coisas do mundo. A aventura
artística de Rosana é extremamente contemporânea, ligada às vanguardas conceituais,
à poesia concreta, ao Dadaísmo, que reinventaram a compreensão da arte no século xx. Mas é também universal, pois se inspira em todas as geografias do imaginário
humano. Ao se propor, metaforicamente e literalmente, ‘roteiros de leituras e viagens’
para essa mostra itinerante, se quer inspirar, alimentar e fortalecer esta dimensão ambivalente entre a percepção imaginativa das obras e os instrumentos pelos quais se dá
a criação artística, da potência do estranhamento à curiosidade e à conquista de novos sentidos, admiração. Ao se explorar em cada obra a arqueologia deste impulso humano de imaginar novas escritas poéticas, e daí inventar novos meios de expressão,
buscou-se inventariar os diferentes jogos de metáforas que se intercruzam, ligando simultaneamente saberes universais aos fazeres populares, literatura à história da arte,
ao mesmo tempo em que se atualizam as práticas artísticas conceituais pertencentes
a uma sofisticada linhagem de artistas do século xx. Esta arqueologia é ampliada ao
se alimentar da própria fala da artista sobre a sua obra e vida. As palavras da artista
se cruzam com diferentes discursos críticos realizados por pesquisadores que acompanham a sua trajetória, tais como Guilherme Vergara Bueno, Luciano Vinhosa e Paulo Reis.
• Pensar sistêmico – percepção metafórica
Abordagens sistêmicas: do objeto aos fenômenos – sistemas
Edgard Morin
“(...) o sistema tomou o lugar do objeto simples e substancial e ele é rebelde à redução em
seus elementos; o encadeamento de sistemas rompe com a idéia de objeto fechado e autosuficiente. Sempre se trataram os sistemas como objetos; trata-se de agora em diante de
conceber os objetos como sistemas... O fenômeno sistema é hoje presente em tudo (...)”
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
7
Alguns conceitos sobre metáfora e as estruturas cognitivas estarão sendo mais enfatizados ao longo deste material, porque, enquanto atributos da percepção e recepção de
uma obra de arte, se inspiram na sua dimensão sistêmica e polifônica. O que se deseja é
potencializar a criação artística como campo de exercícios poéticos, daí a exploração de
cada obra, que se inaugura pelo primeiro olhar, se desdobra pela percepção e recepção
dos seus sistemas de metáforas, e que somente alcança pela intuição a própria arqueologia interna e invisível da criação. Por outro lado, sua recepção exige de cada leitor, espectador, o que equivale ao espelhamento da criação como percepção metafórica, sem
a qual não se inaugura a fruição ou revelação de sentidos.
Cada obra então é apresentada como um sistema de expressões ou sinfonia de impulsos
e estímulos, através dos quais a própria artista revisita os poetas de sua admiração. É preciso formar um pensar sensível e sistêmico para se amplificar ainda mais a potência múltipla de sentidos (polissêmica), ou o que se aponta como “polifonia” de toda experiência
artística aberta. Por outro lado, cada objeto artístico, para ser vivido, antes deve ser visto
como uma unidade orgânica, que necessita do leitor-espectador instrumentos interpretativos capazes de promover uma percepção também imaginativa ou intuitiva da obra, que
vai além das explicações analíticas ou informações e juízos históricos. Esta atitude que o
trabalho de Rosana exige se apresenta aqui como percepção metafórica, ou consciência
poética, que busca sempre inaugurar significados e não se fixar em explicações lógicas
de causa e efeito para o universo da criação artística.
O que se propõe é potencializar ainda mais os elos entre a imaginação poética, percepções metafóricas e a aquisição de conhecimento como bases deste jogo compartilhado
entre Rosana e a complexidade do mundo contemporâneo. Edgard Morin contribui indiretamente para essa nova ordem do conhecimento e imaginação que se manifesta na
experiência artística. Morin toma para sua crítica aos métodos científicos de estudo dos
objetos de produção do conhecimento o envolvimento mútuo entre o sujeito observador (do conhecimento) e o objeto observado. Morin invoca o legado das leis da ciência
quântica, onde “o mundo do observador é mutuamente afetado e afeta o contexto e
comportamento dos objetos sensíveis ao nosso redor, como parte de um único sistema
de sistemas”. Assim, Morin aponta para o pensar sistêmico como uma importante expansão das teorias cognitivas. Isto é, Morin invoca uma relação dialogal, onde observador e
mundo observado são parte de um mesmo sistema fenomênico, onde mutuamente estes
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se fazem na mesma medida em que se descobrem. Mais ainda, defende este mundo
em análise não como objeto, mas como um sistema de sistemas, onde suas partes e
seus componentes são indissociáveis um do outro. Separados, cada componente de
um sistema, assim como cada instrumento dentro de uma orquestra, perde a sua força
relacional. É com esta abordagem sistêmica que se buscará um percurso de instigações
e atitudes, palavras e leituras compartilhadas para as obras de Rosana, do primeiro olhar
às revelações sucessivas de camadas de sentidos de uma criação. Cada leitura deve ser
apresentada como uma sinfonia, ou polifonia, um acontecimento único de muitas faces,
composto por sistemas múltiplos de saberes. Cada obra não é uma soma aritmética das
partes, dos temas, materiais, ou conteúdos, mas um campo relacional de sinergias e
ressonâncias amplificadoras de valores.
O princípio da percepção metafórica que se ativa diante da obra de arte, tal como o ato
criativo do artista, rejeita os significados naturais ou empíricos de cada componente da
obra, sobrepondo a eles um valor subjetivo, projetivo ou ambíguo. Esta ambiguidade de
sentidos gera multiplicidade de leituras, que não se dão gratuitamente para um indivíduo
totalmente preso à razão científica ou prática, mas sim para as mentes que se abrem
para os exercícios da intuição, da percepção imaginativa ou metafórica. Não seria esta
intuição, esta unidade entre percepção e imaginação poética, o instrumento e a bússola
para a “navegação noturna” que melhor se aproximará dos sentidos internos à arte de
Rosana? Esta percepção intuitiva não tem medo de navegar pelas estrelas. Este é o
princípio da percepção metafórica. Com a visão intuitiva nasce o acontecimento artístico
para a vida. A arte é líquida como um universo em criação que inaugura sujeitos para
o “oceano”, não para a cruel limitação ou aceitação do mundo restrito à “terra firme”,
sem sonhos diurnos, dominados pelo primado daquilo que já é conhecido e cercado
pelo medo do inusitado, sem ter vontade de nadar. A experiência artística tem que ser
inauguradora, desta forma seu princípio é esperança, como tão bem definiu Ernst Bloch.
• Princípio esperança – função utópica da arte
Talvez não seja preciso lembrar aos artistas seu compromisso e direito ao exercício da
liberdade de criação, como manifestou Mario Pedrosa. Mas, ainda pouco investigado é o
universo paralelo que se faz da criação à recepção ou cognição artística. Qual é a força
que toma a inauguração de um discurso poético no seu ato de leitura e construção partici-
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
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pativa de sentidos? Não estaria nesse campo dialogal uma revelação, uma esperança por
outro devaneio, o de inspirar ou despertar novas vontades poéticas de se ressignificar as
palavras e as ordens das coisas dadas do mundo? Este não seria um princípio esperança
que Rosana também deixa passar em suas obras, como o náufrago que joga mensagens
em garrafas no oceano (ver obra O tempo muda tudo)? Poucos conheceram o legado e o
esforço filosófico e histórico deixado por Ernst Bloch para defender uma função utópica
para a arte, mesmo que enfrentando duas guerras mundiais no século xx. Sua visão para
a arte, assim como para todos os frutos da imaginação humana, as heranças visionárias
dos poetas, a sabedoria heroica das lendas e contos de fadas, em todos esses tesouros,
sustentava a presença de um princípio esperança, ou utopia concreta, que se faz valer
como dimensão antecipadora ou anunciadora de futuros pela arte. Esta força de passagem entre o conhecido e o inaugural (não conhecido) realiza a função utópica da arte
para Bloch – trazer ao concreto uma forma de visão que já não pertence apenas ao futuro,
mas que inaugura sua possibilidade de realização no aqui e agora.
Mas o acesso às obras de arte, compartilhar este universo de criação, também é uma
utopia. Acessar este campo de inauguração de valores pela produção artística ainda é
obscuro para muitos, principalmente nas diferentes regiões remotas da geografia continental e social brasileira. Ao se promover a itinerância dessas obras pelo Brasil, cabe bem
lembrar que toda obra de arte encapsula sua própria arqueologia futura – que é também
sinônimo de esperança, o último resíduo da caixa de Pandora. Mas que tipo de esperança e utopia se encerra e se multiplica em cada manifestação e experiência artística?
Principalmente ampliar sentidos de vida e inaugurar vontades e consciências criadoraspoéticas poderia ser respondido como formas de esperança.
Este princípio esperança de Ernst Bloch precisa ser entendido com mais clareza, talvez
com o mesmo pragmatismo da Pedagogia da Esperança de Paulo Freire. Cada manifestação artística se associa à aquisição e à manifestação de uma linguagem-leitura que
não reproduz o mundo, não o repete como uma imitação ou simulacro, mas o funda, o
inaugura segundo uma vivência relacional.
A trajetória da arte na qual Rosana se insere, principalmente a partir do século xx, parte
do fim da representação na pintura. Rosana está totalmente liberada desta herança da
pintura como imitação, sua arte atinge um estado de desenvolvimento cognitivo equi-
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valente ao daqueles que usam livremente os instrumentos geradores de linguagem-expressão. Os objetos comuns apropriados do cotidiano, tais como o globo, as garrafas de
desenhos com areia, as fitas de etiquetas, se tornam comunicativos de novos sentidos.
Os fazeres artísticos ou estratégias se tornam pura linguagem em seu mais elevado e
genuíno estágio, tal como comprova o desenvolvimento cognitivo que Piaget tão bem
elaborou. Neste estágio também explorado pelas vanguardas do século xx, a arte se
manifesta como um sistema formal-operacional regido por ordens lógicas dedutivas, principalmente proposicionais, mesmo que seja tão ousadamente inovador. A arte como uma
linguagem especial é dialogal, se exerce como uma entidade relacional entre indivíduos e
grupos. Embora independente em si das outras lógicas que regem o mundo prático, pela
conquista da sua autonomia não mais como imitação da realidade, vem a ser parte desta
comunicação antecipatória ou intuitiva entre realidades – imaginário e concreto.
Rosana Ricalde se insere nesta condição de um pensar metafórico antes de mais nada
proposicional. Seu trabalho atua como os “espelhos cegos dos auto-retratos”, onde exige
a multiplicação de estados inventivos para se ultrapassar as máscaras das aparências; é
proposicional tal como os Provérbios, que oferece lentes e filtros para leituras do invisível.
Em todo pensar artístico de Rosana existe uma proposição que pode ser equivalente ao
princípio esperança latente, seja de se compartilhar exercícios de liberdade com os quais
se destinguem os artistas e a passagem das épocas. Ernst Bloch também chamava a
criação artística como uma dimensão do sonhar acordado, como um estado de labor visionário que busca completar o presente, suas imperfeições ou dobraduras da realidade
empírica que apenas pela arte se tornam visíveis ou intuídas. Como percorrer uma mostra
de arte sem estes instrumentos da percepção metafórica da consciência poética?
• A criação artística como inaugural da história
Toda obra de arte, todo ato criativo, é inaugural de muitos saberes, que se passam de
geração para geração, de século para séculos à frente, formando a história e a ciência.
Assim Giambattista Vico reviu a trajetória do poeta grego Homero, inaugurando a linguagem, que se faz como fundações ou instrumento para se erguer a história e a filosofia
da grande civilização grega. Toda experiência artística reproduz essa navegação “cega”
pelos mares da criação que inspiraram Vico na proposição da Ciência Nova, já no século
xVIII.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
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Vico, assim como Bloch, reconhecia que a visão do artista sobre o mundo não é objetiva,
não é passiva. Sua percepção é metafórica, projetiva, tal como Homero, o cego poeta,
enxergando além do mundo visível, conta histórias e poesias que inventam mundos. O
poeta cego é, antes de mais nada, um propositor da percepção visionária, o construtor de
metáforas, que, contrariando o uso natural e lógico do senso comum empírico, sacrifica
a acomodação do que já é sabido e nominado para a ordem das coisas funcionais no
mundo e reinventa ordens para novos mundos. Percebe-se claramente este exercício do
pensar, sentir e inventar metafórico em cada obra de Rosana. Como o poeta Manoel de
Barros, Rosana é visionária nas pequenas coisas do cotidiano, e as usa para invadi-las
com saberes do imaginário universal. Une mundos distantes entre si, pelo exercício ilimitado desta percepção e apropriação metafórica, reinvenção e ressignificação dos fazeres
da linguagem. Todas essas práticas reunidas comporiam os atributos do que os gregos e
Vico defendiam como princípios de uma nova ciência humanista, a poiesis. O olhar engenhoso (ingenius) do humanista Vico inaugura uma educação para uma formação humana
libertadora – que ainda hoje precisa ser elaborada.
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COMPARTILHANDO PALAVRAS COM ROSANA
UM RETRATO 3x4 DA ARTISTA
Rosana Ricalde (Niterói – RJ, 1971)
Rosana, desde a infância, tinha interesse pela escrita. Passar o caderno a limpo era um
grande prazer, gostava muito da aula de uma professora que distribuía um papelzinho com
mensagens e dava um nó. A poética de Rosana desencadeia-se com a escrita e a imagem,
nas geografias particulares e universais em processos não lineares, entre as palavras e o
desdobrar-se na linguagem visual, nas paisagens de areia que falam de tempos e tudo
mudam, e nos retratos-imagens inexistentes.
Utiliza-se para escrever de materiais considerados obsoletos, como a fita rotuladora, e cria
com estes meios uma visualidade, onde o processo de fazer é primordial à obra, assim
como a escolha minuciosa dos objetos com que vai trabalhar.
Gradua-se em Gravura na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de
Janeiro. É Mestre em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense.
Guilherme Vergara – Rosana, o que queremos fazer
é uma arqueologia da formação do processo criativo, uma experimentação, de o artista se reconhecer e reconhecer a sua obra como uma gramática,
da relação com a construção de uma linguagem.
Vamos começar com essas conversas?
Rosana Ricalde – O que eu posso fazer é ir
pensando sobre cada trabalho, na verdade
um trabalho vai levando ao outro, às vezes
você faz um, e dois anos depois aquilo gera
outro... Demora, não existe uma sequência na
minha produção: como eu estou fazendo vários
Linguagem
É qualquer e todo sistema de signos que
serve de meio de comunicação de ideias ou
sentimentos através de signos convencionais,
sonoros, gráficos, gestuais etc., podendo ser
percebida pelos diversos órgãos dos sentidos,
o que leva a distinguirem-se várias espécies
de linguagem: visual, auditiva, tátil etc., ou,
ainda, outras mais complexas, constituídas,
ao mesmo tempo, de elementos diversos.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
13
trabalhos ao mesmo tempo, aquilo parece meio
desencontrado, mas depois você olha e percebe
que uma coisa levou a outra e que tem uma
sequência lógica. 
Sandra Fernandes – Mas como foi o começo de
toda essa história?
Rosana Ricalde – Eu era muito pequena, desde
criança você tem suas afinidades, mas saber qual
a profissão que se irá seguir é tão difícil, ainda
mais hoje em dia, que são milhares de profissões.
Surgem profissões que você não tem ideia. Mas
eu sempre tive interesse por escrita; quando
eu era criança fazia uns livrinhos e obrigava as
pessoas a comprarem aquilo. Também passava
caderno a limpo, era uma mania: eu comprava o
caderno, tinha dois, chegava em casa e passava
tudo aquilo, era um prazer de ver a escrita, a
forma, mas quando isso foi pro trabalho...  
O primeiro trabalho que eu considero importante
foi um que eu apresentei em Niterói, na sala
Paschoal Carlos Magno – um dicionário de
verbos. Datilografei todos os verbos da língua
portuguesa e coloquei em uns painéis com
uma etiqueta. Achei muito bonito, era com
máquina de escrever. O mais curioso é que levei
um dicionário só de verbos, com 14 ou 17 mil
verbos... Até queria refazer esse trabalho, mas
ainda não tive coragem. Foi muito engraçado,
pois há verbos que a gente nem sabe que
existem, que só pesquisando descobri. As
pessoas pegavam o dicionário, achavam aqueles
Arabescos 
Um arabesco é um adorno com formas de folhas, frutos etc., que aparece muito nas construções árabes. Mas podemos dizer também
que o arabesco é muito mais antigo até que os
árabes; aparece em monumentos egípcios e
assírios, também em alguns etruscos, gregos
e romanos; foi muito utilizado na Idade Média e
no Renascimento; exerceu profunda influência
nos povos da Península Ibérica e dali, e também com os portugueses, veio para o Brasil.
Alcorão
Livro sagrado do Islã. Descreve as origens do
universo, do homem e das relações entre si e
o Criador. Define leis para a sociedade, para
a moral, economia e muitos outros assuntos.
Foi escrito com o intuito de ser recitado e memorizado. Os muçulmanos acreditam que o
Alcorão é a palavra literal de Deus (Alá) revelada ao profeta Muhammad (Maomé) ao longo
de um período de 22 anos. A palavra alcorão
deriva do verbo árabe que significa ler ou recitar; Alcorão é, portanto, uma "recitação" ou
algo que deve ser recitado.
Gênesis
Primeiro livro da Bíblia. Faz parte do Pentateuco, os cinco primeiros livros bíblicos, cuja
autoria é tradicionalmente atribuída a Moisés.
Gênesis significa “origem” ou “nascimento”.
Narra acontecimentos, desde a criação do
mundo, na perspectiva judaica, passando
pelos patriarcas hebreus, até a fixação deste
povo no Egito.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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verbos e riam. E muita gente falava em voz alta, então o trabalho ganhava uma outra
potência, além do que estava visível: ele tinha uma vida, que era o som das pessoas
lendo e procurando o sentido das palavras. Esse trabalho eu considero um marco, onde
a coisa ficou mais consciente, dessa confluência de informações, da minha formação,
da história da arte, é onde tudo se mistura. Tive consciência de que aquilo ali é um
trabalho, de onde aquilo veio.
Guilherme Vergara – Seu trabalho remete a um saber universal, da Bíblia... Também às escritas islâmicas e, no esconder dos arabescos, onde há uma proibição da imagem, se escreve,
e na verdade acho que tem a criação com a palavra. Lembro da imagem daquela leitura que
meninos fazem do Alcorão, eles ficam repetindo, na verdade entram em um transe com a
palavra. Creio que aquilo ali contém uma ideia de a palavra atingir uma outra dimensão.
Roberta Condeixa – Não só no Alcorão, se a gente pensar hoje nas Igrejas Pentecostais, que
cresceram muito...
Sandra Fernandes – Nos índios...
Rosana Ricalde – A Bíblia – primeiro momento que se coloca a palavra gerando – eu
sempre estou pesquisando. É como se existisse um passo além para descobrir o
potencial da palavra, há várias teorias sobre esse potencial. É muito bonita a ideia da
palavra como uma semente que gera coisas, do poder da palavra, tanto do discurso
como do discurso que você tem para si mesmo e desse primeiro momento do universo,
“E fez-se a luz” [uma menção ao Gênesis].
Guilherme Vergara – Aí a gente volta a um outro trabalho seu, que é o Persisto [trabalho em
que a artista vai escrevendo a palavra “persisto” até terminar o lápis]. Ele possui o conceito de
mantra, o som, a palavra e a escrita se juntam, talvez o desgaste da linguagem com a nossa
história moderna... Talvez você esteja nessa arqueologia universal, recuperando algo que tem
que ser muito delicado. Há uma responsabilidade com a palavra que temos que recuperar, a
palavra é criadora e destruidora, não pode se dar poderes para quem não tem responsabilidade. Em seu trabalho você tateia algo como um resgate, uma recuperação para a humanidade de um princípio que foi desgastado. Pois hoje se fala qualquer coisa, não se tem mais
um compromisso ético com o que se pronuncia, e isso está por trás do que você faz.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
15
Rosana Ricalde – Você falou do Persisto. Ele aborda o castigo também, escrever como
um castigo, como antigamente, o ato de escrever milhares de vezes como uma punição
por um erro para que nunca mais se repita. Esse trabalho é inspirado na ideia da escrita
como um castigo, só que reverto isso para uma outra coisa, porque para mim a escrita
não é um castigo. Tenho prazer em escrever.
Roberta Condeixa – É interessante isso, porque, olhando o trabalho, quando você olha verdadeiramente para ele, fica clara, através da ordem, a forma como você organiza aquilo, que
não é penoso, é um “desgaste prazeroso”.
Sandra Fernandes – É esse prazer que vejo nos Oceanos [trabalho onde a artista vai fazendo desenhos com nomes de oceanos]. A escrita é solta, o movimento é prazer mesmo, eu
percebo. Você tem domínio disso, como é que você faz essa série?
Rosana Ricalde – Eu faço um esboço mínimo... E
depois vou escrevendo.
Guilherme Vergara – Você estava falando da ocupação de ser artista... Com sua lembrança do castigo
fala da correção pelo processo da repetição na escola, mas, ao mesmo tempo, revela um grande prazer na escrita, na caligrafia. E, nesse jogo, ninguém
vê naquilo castigo. O que se vê na escrita – aí você
se revela, na escrita – é um afeto, um preciosismo,
não de um obcecado virtuose formal, mas, neste
ato, você também seleciona uma poesia e a desconstrói. Através das desconstruções proporciona
atos criativos, e você não repete trabalhos, mas cria
um esquema, que é um conceito de Piaget, seus
trabalhos têm várias camadas...
Rosana Ricalde – Sim, mas meus trabalhos
têm uma unidade também, e eu até priorizei
para essa itinerância trabalhos de séries. Por
Esquema
“(...) o que, numa ação, é transponível, generalizável ou diferenciável de uma situação
seguinte, ou seja, o que há de comum nas
diversas repetições ou aplicações da mesma
ação (...)”.
Segundo Piaget, J, em Biologia e conhecimento, Petropolis: Editora Vozes, 1996, pág. 16.
Piaget
1896–1980. Estudou a evolução do pensamento até a adolescência, procurando entender os mecanismos mentais que o indivíduo utiliza para captar o mundo. Investigou
o processo de cognição, de construção do
conhecimento. Nos últimos anos de sua vida
centrou seus estudos no pensamento lógicomatemático.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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exemplo, você ver um auto-retrato não é a mesma coisa de você ver um só, tem uma
sequência também...
Guilherme Vergara – Uma referência que eu gostaria que você abordasse é sua
professora...
Rosana Ricalde – Na época eu tive – e até hoje acho que ainda é assim – uma
professora para tudo, da terceira à quarta série. Ela dava caligrafia também, era uma
coisa que muitos não gostavam e eu sempre gostei. E ela fazia os bilhetinhos, o
que ficou na minha memória, das mensagens, da importância que ela dava – fazia
umas tirinhas e dava um nó. Era um texto escrito, a professora dobrava, era tipo um
biscoitinho da sorte, com um nozinho no papel. Aí você tinha de abrir aquele papel para
saber qual texto tinha saído, e era bonito, um papel amarelinho. Toda sexta-feira ela
fazia aquilo, e eu colecionava aqueles papéis.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
17
Entre a literatura e a imagem
SÉRIE CONTRAPOEMAS
CONTRAPOEMA (2004)
Poema “Versos escritos n’água”, de Manuel Bandeira, recortado em vinil adesivo preto, e poema construído com palavras antônimas, recortado em vinil branco adesivado sobre vidro-moldura de madeira,
100 cm x 100 cm.
PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA
Demorei a chegar nessa forma dos contrapoemas. Eu acho que esse meu trabalho é um
pouco um exercício de fazer poesia. Todos eles têm uma história, ou um pensamento, ou
um provérbio – é minha maneira de construir o trabalho. Eu me fascino quando eu leio um
bom texto, com a capacidade que uma pessoa tem de escrever, porque a escrita é uma
coisa de arquiteto, só que mais completo: o escritor constrói a paisagem, as pessoas, ele
é um pouco um deus, constrói todo um universo que sai da cabeça dele. Qualquer um
tem essa capacidade, mas a capacidade de colocar isso e bem – de despertar no outro a
capacidade de criar em cima daquilo que ele escreveu – é incrível.
Meu trabalho veio um pouco da vontade de também escrever, e eu descobri a possibilidade
de fazer o poema usando um outro poema que eu gostasse muito e que também ficasse
um poema bonito, usando só palavras antônimas, criando um outro sentido, que se somava ao poema que eu escolhi. Eu queria mostrar uma ideia a partir de um outro autor, mas
não me considero escritora – a visualidade é o meu campo, de onde estou criando.
Quando construo outro texto, na verdade, não é uma criação; ele só existe completado
pelo outro, pelo poema original, na verdade, o sentido fica o mesmo do outro poema, mas
é uma pesquisa de dicionário. Eu acho que é um exercício muito gostoso, porque eu sou
apaixonada pelo dicionário... A Clarice Lispector dizia que se ela fosse para uma ilha deserta levaria o dicionário, porque nele estão contidos todos os livros. Para mim não estão
contidos somente todos os livros, mas todos os mundos: é incrível como tudo o que pode
ser pensado, falado e traduzido está escrito naquele livro, todos os seus pensamentos, a
forma com que você configura as coisas.
Hans-Georg Gadamer fala que o belo na arte está ligado ao jogo, à festa e ao símbolo, que
o fazer artístico é um jogo em toda a história dos fazeres artísticos. Por exemplo, o poema
também é um jogo, e todos os outros que o poeta criou anteriormente, que dialogam com
sua própria vida. O artista está no jogo – ninguém faz obras de arte sem conhecer obra de
arte – e desse jogo de estabelecer relações Rosana fez um poema. Há uma construção em
todo o trabalho da artista em que ela exerce aquilo que admira, em que fala do escritor arquiteto, fazendo arquitetura total entre desconstrução e construção, entre imagem, suporte... É uma arquitetura do discurso, uma rica fala entre palavra e construção de mundos.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
20
PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS
Paulo Reis
“(...) Nos Contrapoemas a artista articula antagonismos existentes na linguagem a partir da alternância dos fundos negros e brancos; no plano do significado, altera o sentido da poesia ao substituir as palavras do poeta por um
poema feito por seus antônimos. Ao substituir não somente as palavras, mas
também o sentido da ação, a artista altera radicalmente o significado da obra.
Este mecanismo de alteração de significantes e significados é uma constante
em sua obra(...)”
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
21
CONTRAPOEMA 1 (2004)
Poema “Desesperança”, de Manuel Bandeira, recortado em vinil adesivo preto, e poema construído com
palavras antônimas, recortado em vinil branco adesivado sobre vidro-moldura de madeira, 100 cm x 100
cm.
Tópicos para conversas
e explorações sobre a obra 
1. O primeiro olhar
• Observar que o poema de Manuel Bandeira é impresso com letras pretas sobre um
vidro transparente, que possibilita a leitura sobre a parede branca. Ao lado, Rosana justapõe o contrapoema, composto minuciosamente pelos antônimos das palavras usadas
por Bandeira. Mas a artista vai além, imprimindo esse contrapoema em letras brancas sobre esse mesmo vidro. O resultado é uma evidente dificuldade de leitura. Letras brancas
sobre o fundo da parede branco não são tão contrastantes para a leitura, dificultando-a.
2. Percepções intuitivas
• O contrapoema é um díptico – lado a lado, duas leituras fazem parte de uma única
obra: o poema em seu antônimo, que se torna curiosamente uma mensagem positiva, e
também o contraste de cores. A dificuldade ou necessidade para a leitura da escrita exige
o contraste de cores (preto sobre branco), entre letra e fundo. Nessa obra o branco sobre
branco só permite a visão da leitura quando a luz sobre o quadro projeta as sombras
sobre a parede de um poema, que então se revela do invisível.
3. Percepções metafóricas
• Observar o universo de metáforas para essa situação antagônica. De um lado, o poema na íntegra de Manuel Bandeira, naturalmente impresso em letras pretas, cujos conteúdos são tão negativos. Do outro, letras invisíveis que surgem com a revelação de sombras
na parede. A ação da luz resulta na possibilidade de leitura, subversão ou inauguração
de novos sentidos.
• Esse trabalho da Rosana nos remete a uma inspirada citação de Marcio Doctors,
curador da Fundação Eva Klabin Rapaport, para o livro A cultura do papel. “O papel é,
na realidade, o outro do homem. A materialização do vazio necessário onde o homem
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
23
deposita seus sonhos, suas ideias, suas experiências e suas descobertas. Atrelado à
escrita alfabética e à técnica (com invenção de tipos móveis), o papel, na forma livro,
adquiriu uma dimensão que fez com que o homem se desprendesse mais intensamente
da imediatez do mundo, lançando-o em um universo mediatizado pela cristalização do
saber. Esse universo é todo povoado por palavras, a ponto de nos esquecermos de que
é o branco – o vazio do papel – que nos permite a leitura. Isso nos faz lembrar a história
cabalística dos dois fogos que criaram as escrituras divinas. O fogo negro, que desenhou
as letras, que pensamos ler, e o fogo branco, que desenhou o espaço entre as letras, que
nos permite ler.”
O outro do homem, segundo essa abordagem de Doctors, é o vazio entre as letras, o
que realmente nos permite ler. E continua Doctors, com a profecia sobre as leituras entre
o fogo branco e o fogo preto: “A parábola da palavra conclui que a humanidade, por enquanto, só sabe ler o fogo negro. Haverá um dia em que seremos capazes de ler o fogo
branco. Esse paradoxo é o nosso desejo, e o papel é a possibilidade metafórica desse
paradoxo”.1
• O antônimo da desesperança é esperança: a inversão de sentidos curiosamente ocorre também no fundo onde se inscreve o poema original e o fundo invisível (transparente)
que se projeta sobre o branco da parede, remetendo ao fogo branco. Esta é a estratégia
(também poética) que Rosana usa, desconstruindo um poema extremamente negativo
de Manuel Bandeira e inaugurando o seu contrapoema com uma visão afirmativa e opostamente positiva.
• A obra ou concepção de Rosana está justamente na transformação ou deslocamento
de um poema para uma “poesia plástica”, polissêmica (de muitos sentidos). Os recursos
utilizados pela artista ao desconstruir uma poesia se tornam parte de uma outra obra
pela criação de metáforas. A artista pode construir uma nova dimensão artística para
um discurso já existente – isto é, Rosana desconstrói obras de outros autores para uma
nova força expressiva. Porém, sua escolha sempre parte daquilo que lhe dá prazer, dos
poemas que mais admira.
1 Doctors, Marcio (Org.). A cultura do papel. Rio de Janeiro: Fundação Eva Klabin Rapaport e
Casa da Palavra, 1999.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
24
• A matéria-prima da escolha de Rosana é a conjugação entre palavra-poesia, ou, mais
ainda, palavra-significado-forma. Rosana acredita que a palavra tem um grande poder.
Mas, para exercer esse poder, a artista subverte a palavra enquanto forma escrita, que se
torna invisível até que uma luz ou atenção especial a ilumine ou a revele. O significante da
palavra escrita e a sua aparição como sombra se tornam parte de uma unidade poética
– que precisa de um leitor criador de sentidos. “As palavras têm poder!”: assim Rosana
trabalha pela arte e o resgate desse poder.
4. Arqueologia da criação
O que é o trabalho e a experiência artística então? Qual a sua inteligência poética, de síntese entre forma e conteúdo? A forma é o conteúdo! Que forma você daria ao seu poema
predileto? Onde você escreveria? Como você reinauguraria uma nova leitura, mesmo que
fosse totalmente oposta à mensagem original do poeta?
Como enfrentamos a palavra nos dias de hoje? Elas têm a força que continham há tempos atrás? O que as palavras podem transformar? Amigos? Novos amigos? Perda de
amigos? Perda da confiança? Os políticos?
Quais profissões fazem o seu exercício a partir do poder das palavras?
Qual o papel ou as responsabilidades desses profissionais com relação ao poder das
palavras? E do artista?
Referências históricas particulares e universais
Poesia concreta
Na poesia concreta o poema transforma-se em objeto visual, valendo-se do espaço
gráfico como agente estrutural: uso dos espaços brancos, de recursos tipográficos
etc.; em função disso, o poema é lido e visto ao mesmo tempo!
Em dezembro de 1956, era lançada no Brasil a poesia concreta, durante a Exposição
Nacional de Arte Concreta, realizada no Museu de Arte Moderna de São Paulo. O
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
25
público via pela primeira vez uma nova forma de poesia, exposta em cartazes e chamando atenção pelo aspecto visual, pela forma como as palavras eram organizadas
no espaço branco. Os idealizadores do movimento Concreto foram os poetas do
chamado Grupo Noigandres, os paulistas Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos – responsáveis pela elaboração teórica e prática da nova poesia. 
Exemplo de poesia concreta: 
Terra, de Décio Pignatari 
ra terra ter
rat erra ter
rate rra ter
rater ra ter
raterr a ter
raterra terr
araterra ter
raraterra te
rraraterra t
erraraterra
terraraterra 
Yin Yang
Yin Yang é, na filosofia chinesa, uma representação do princípio da dualidade de Yin e Yang, o
conceito tem sua origem no Tao (ou Dao), base
da filosofia e metafísica da cultura daquele país.
Em chinês, esse conhecido símbolo que representa a integração de Yin e Yang é denominado
como "Diagrama do Tai Chi" (Taiji Tu).
• Yin: o princípio passivo, feminino, noturno,
escuro, frio
• Yang: o princípio ativo, masculino, diurno, luminoso, quente
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26
Entre a literatura e a imagem
AUTO-RETRATO DE MÁRIO QUINTANA, 2004
Poema de Mário Quintana intitulado “Auto-retrato”, escrito em fita rotuladora verde,
50 cm x 46 cm
PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA
A fita rotuladora me foi dada há muito tempo,
não recordo se o Felipe [referência ao artista Felipe Barbosa, companheiro de vida e trabalho]
achou no lixo estas fitas... Foi um fato assim,
aquilo ficou no ateliê, fiz trabalhos com o material, e alguns até deram certo. Até que gerou um
trabalho bem mais antigo que os retratos, que é
o Baú de palavras [obra em que em um baú a
artista insere várias palavras feitas com fita rotuladora]. Depois de um tempo, achei uma poesia
intitulada “Auto-retrato” – realmente não é só o
artista visual que pode fazer seu auto-retrato não,
também alguns poetas. Mas não é tão fácil de encontrar, eu sempre procuro poesias com o título
de auto-retrato, que não sejam só a descrição do
autor: elas devem ter o título auto-retrato, eu determinei assim. Eu considerei a fita [rotuladora]
perfeita para isso, pois a fita era de fato usada
para você detectar propriedade, que aquilo era
seu, e julguei o material interessante para utilizar
nesses auto-retratos.
fita rotuladora
Também tentei achar um formato que remetesse aos retratos: em geral eles não eram pintados muito grandes, era um formato meio padrão. A fita parece uma coisa bem rápida, mas
quando a gente vê como a coisa é feita se percebe toda uma relação com o corpo, com a
escrita também. Você muda e torce letra a letra. Na verdade fico procurando materiais que
encaixem na ideia; não é aleatório, tudo isso faz parte do conceito do trabalho.
Na série de auto-retratos, o que eu acho legal particularmente é pensar que como os
pintores pintam seus auto-retratos, alguns poetas também decidem se descrever, só que
usando a palavra. E o resultado pode ser tão ou até mais rico em alguns aspectos do
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
29
que as imagens desenhadas e pintadas que os artistas fazem de si: acho incrível como o
Manuel Bandeira é capaz de se descrever.
Já a cor é mais ou menos aleatória, é um pouco intuitiva também. Mas, por exemplo,
com o Mário Quintana não tem como eu usar preto, pois a cor nos remete a alguma
coisa. O Manuel Bandeira é preto, a Cecília Meireles, azul, o Graciliano Ramos, roxo.
Nos retratos surge um sujeito que pela escrita de
Rosana se torna imagem, que é colocado na moldura. A força do trabalho da artista está justamente nos deslocamentos de materiais, mais uma vez
poemas e textos, que passam a ser significantes
e significados que revelam o retrato-imagem interior do criador diante de um espelho. Uma convergência especial que se faz pela fita rotuladora
– é curioso o nome fita rotuladora, a combinação
do material do processo de escrever letra por letra
como uma tipografia –, muito usada nos anos 70 e
80 para identificar pertences.
Tipografia
Arte e processo de criação na composição
de um texto, física ou digitalmente. Assim
como no design gráfico em geral, o objetivo
principal da tipografia é dar ordem estrutural e
forma à comunicação impressa.
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30
AUTO-RETRATO DE CECíLIA MEIRELES (2004)
Poema de Cecília Meireles intitulado “Auto-retrato”, escrito em fita rotuladora azul,
50 cm x 46 cm.
PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS
Paulo Reis
“(...) um texto autodescritivo de um poeta serve de pretexto à construção de
uma superfície geométrica, aparentemente monocromática, que nos remete
às pinturas abstratas. Aos nos aproximarmos da obra, percebemos que as
imagens são compostas de letras de fitas rotuladoras. Chamadas de Auto-retratos, essas “pinturas mecânicas”, nas cores amarelo, azul, vermelho, verde
e negro, são como composições modernistas, retas e angulares, um modelo
pictórico reducionista de um autor, como nas pinturas de Malevich. Nesses
“Auto-retratos” – poemas de Manuel Bandeira, Cecília Meireles, Manoel de
Barros, Graciliano Ramos e Augusto Massi –, a artista busca a (auto) descrição destes gigantes incontestes da poesia e da prosa. Esses trabalhos
despertam nosso interesse em saber como estes se vêem e como os vemos
e, para além do seu significado, são espelhos cegos de suas vozes (...)”
Luciano Vinhosa
(...) Se poesia é a ocupação da palavra pela imagem2, como afirma Manoel
de Barros, a exemplo dos artistas plásticos, os poetas se descreveram na
tentativa de fixarem em imagens seus seres tão impermanentes. Na série
Auto-retratos, Rosana recolhe poemas que assim se intitulam e os devolve à
superfície tradicionalmente ocupada pela pintura. Dando a cada um uma cor,
ela os reproduz em fita rotuladora autocolante. Parece-me sintomático o fato
de que, no lugar de exprimir-se a artista (seu “eu”), neles exprimam-se os poetas. Sintomático também é que as dimensões-padrão que a artista encontrou
para esses objetos (50 x 46 x 2 cm) sejam as mesmas de um pequeno espe2 Verso extraído do poema “Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada”, de
Manoel de Barros. www.revista.agulha.nom.br/manu.html.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
32
lho para se mirar o rosto. Não é, pois, olho no olho que poderíamos capturar
algo que, por descuido, escapou do sujeito? Esse sujeito estranho – o artista
– que agora, psicologizado, habita mais o espelho que o mundo na tentativa
de se autocompreender? A inevitável cisão entre mundo interior e exterior a
que o processo civilizatório nos submeteu marcou definitivamente a trajetória
do homem ocidental, que vive agora a nostalgia da unidade. Não seria nesta
brecha entre mundos que a arte teria lançado os frágeis alicerces para viver
seu drama e extrair daí a força, o pretexto mesmo, para continuar sua obra
moderna? Nos auto-retratos apresentados pela artista este problema está, ao
menos para mim, mais do que claramente colocado, antes, exponenciado.
Neles, a unidade aparece mais comprometida que promissora, tão logo a
essência de cada poeta se revele movediça, como as imagens dos poemas
que o olho do receptor tateia de maneira enviesada na superfície da “pintura”.
Afinal, e segundo o mesmo Manoel de Barros, imagens são palavras que nos
faltaram3 (...)”
3
Verso extraído do mesmo poema citado.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
33
AUTO-RETRATO DE MANUEL BANDEIRA (2004)
Poema de Manuel Bandeira intitulado “Auto-retrato”, escrito em fita rotuladora preta, 50 cm x 46 cm.
Tópicos para conversas
e explorações sobre a obra 
1. O primeiro olhar
• Pode a artista realizar auto-retratos de outros artistas ou poetas? Uma aparente impossibilidade, para iniciar estas conversas e compartilhar percepções.
• Cada retrato visto a distância é apenas uma superfície monocromática. As letras são
da mesma cor que o fundo, tornando a leitura apenas possível quando nos aproximamos
do “espelho” a uma mesma distância que o faríamos para ver o nosso rosto!
• É parte dessa obra o jogo de mudanças de percepção com a distância, assim como
em outras obras da Rosana (os Contrapoemas e os Mares). Na primeira percepção a
distância, essas obras se parecem com uma série de pinturas monocromáticas ou retângulos de cores na parede, mas, ao se aproximar, esta primeira impressão é sobreposta
pelas leituras dos textos quase invisíveis. É a partir de então que as questões temáticas
no que concerne à história dos auto-retratos na arte podem ser introduzidas.
2. Percepções intuitivas
• O processo utilizado por Rosana é mais uma vez a fusão entre palavra e imagem.
O que nos remete apenas a uma pintura ao longe, pela cor, é também o auto-retrato de
um(a) poeta(isa), em que a escrita, através da fita rotuladora, é feita até o término do
espaço do quadro.
• Essa instigante obra revela os interesses da própria artista em unir literatura e artes
visuais, ou imagem e escrita, ou ainda, subvertê-las pelo seu entrelaçamento. Rosana
reafirma sua paixão pela poesia nesses paradoxais auto-retratos, tanto pela escolha dos
grandes poetas como pelo conceito da obra. A imagem que vai para o espelho é o que
se torna imortal em cada artista, sua obra, sua poesia.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
35
• Fazer dos textos imagens é uma subversão, mas é também uma afirmação da crença
na arte sobre a existência humana. Poucos de nós tivemos a oportunidade de ver os
retratos desses poetas como eles eram realmente. Rosana oferece este entrelaçamento
entre criador e criação. O artista se vai, e sua obra fica sempre jovem de gerações para
gerações.
3. Percepções metafóricas
• Mais uma vez, Rosana realiza em cada auto-retrato um sistema de metáforas visuais, a
começar pela impossibilidade de a artista realizar um auto-retrato de outra pessoa. A série
Auto-retrato é toda uma proposição conceitual plena de metáforas.
• Imagine um espelho mágico onde cada indivíduo fosse representado por seu interior,
o que pensa e o que cria. O espelho só corresponde ao auto-retrato na medida em que
somos apenas nós diante deste inexorável revelador de nossas verdades.
• A arte nessa obra é celebrada como a dimensão imortal diante desses espelhos auto-retratos.
O auto-retrato se torna um retrato a ser falado! Colorido com perfumes, como o de cada
poeta que se revela ou se espelha pela sua criação verbal, imaginária!
• A palavra, segundo citação de Rosana recuperando a Bíblia, é geradora de mundos,
mas nessas obras a poesia é a imagem que fica para sempre na história deixada pelos
poetas.
• Rosana cria nos auto-retratos um jogo de trocas e deslocamentos simbólicos entre
pintura (história da arte), imagem e palavra, de forma metafórica como procedimentos
ligados às estruturas de representação da passagem da vida humana. A série de autoretratos torna-se um jogo entre criador e criação, refletido em um espelho cego diante do
espectador. O conceito de auto-retrato (da História da Arte) e a crença da eternidade pela
arte se tornam uma armadilha para esse visitante e leitor diante desses espelhos.
Como?
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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Auto-retrato de Augusto Massi (2006)
Poema de Augusto Massi intitulado “Auto-retrato falado”, escrito em fita rotuladora vermelha,
50 cm x 46 cm.
Auto-retrato de Graciliano Ramos (2006)
Poema de Graciliano Ramos intitulado “Auto-retrato”, escrito em fita rotuladora roxa, 50 cm x 46 cm.
4. Arqueologia da criação
• Não se pode desconhecer a relação entre essa série de auto-retratos, que se apresenta ao primeiro olhar a distância como pequenos retângulos
monocromáticos alinhados em série na parede,
com as pinturas minimalistas, ou como uma série
de outros artistas conceituais do século xx.
• A arte, a literatura, a poesia tornam os textos ou imagens de cada época registros de nós mesmos que nos perpetuam diante da impermanência
humana. Por quê?
• O que predomina nesse processo: a palavra ou a imagem-cor? O que você acredita ser possível de te representar?
• Observa-se ou pode-se indagar: qual foi o critério de escolha das cores para cada poeta? Intuição
livre. Mas será que, por detrás dessa intuição, ao se
lerem as obras desses poetas, uma cor predominante é sugerida? Será que a artista realizou exercícios entre ler cada poesia e projetar um tom e,
talvez mais ainda, outros elementos, tais como música, paisagem, perfume, textura, lugar e objetos?
• Qual a importância de um auto-retrato para a vida de alguém? Como gostaríamos de ser representados ao mundo? Pelas nossas posses, roupas, gestos, atitudes...? Quando as palavras se
esvaziaram de seus significados, quando passamos a valer mais pelas imagens exteriores do que
pelo nosso valor interno, do que somos capazes
Minimalistas
Entre 1963 e 1965, vários artistas estabelecidos em Nova Iorque começaram a expor
de forma independente trabalhos tridimensionais que continham alguma semelhança.
Eram geométricos, monocromáticos e alguns
utilizavam materiais industriais e em larga
repetição. Esse conjunto de obras foi logo
considerado um movimento e denominado
de Minimalismo.
Arte Conceitual
Para a Arte Conceitual, vanguarda surgida inicialmente na Europa e nos Estados Unidos no
final da década de 1960 e meados dos anos
1970, o conceito ou a atitude mental tem prioridade em relação à aparência da obra. O
termo arte conceitual é usado pela primeira
vez num texto de Henry Flynt, em 1961, dentre
as atividades do Grupo Fluxus. Nesse texto,
o artista defende que os conceitos são a
matéria da arte e por isso ela estaria vinculada
à linguagem. Segundo Joseph Kosuth (1945),
em seu texto Investigações, publicado em
1969, a análise linguística marcaria o fim da
filosofia tradicional, e a obra de arte conceitual, dispensando a feitura de objetos, seria
uma proposição analítica.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
39
de criar? Como os espelhos de auto-retrato de Rosana podem ser reveladores críticos
dos vazios da vida contemporânea, de indivíduos sem arte e sem poesia? Por que necessitamos então de arte para estar representados em palavras ou imagens para o mundo
além das aparências ou além das imagens e máscaras?
Referências históricas particulares e universais
Algumas referências sobre a história do auto-retrato na arte
Como Rosana subverte essa história na sua série de auto-retratos?
• O auto-retrato é um tema muito caro para a História da Arte, motivo de muitas pinturas realizadas pelos artistas retratando a si mesmos, como é o caso de Rembrandt e
suas variações de chapéus, que pintou quase 100 auto-retratos ao longo de sua vida.
Outros artistas com auto-retratos: Francis Bacon, Dührer, Munch, Frida Kahlo.
• A produção de auto-retratos é presente desde a Antiguidade clássica. Cita-se
constantemente o escultor Fídias, do século V a.C., o qual teria deixado no Partenon,
em Atenas, sua imagem esculpida; antes, no Antigo Império egípcio, um certo Ni-ankhPhtah teria deixado sua fisionomia gravada em um monumento; ou, ainda, considerase eventualmente que em culturas pré-literárias já havia quem os produzisse. Mas
reconhece-se, em geral, que foi a partir da Renascença italiana que a produção
consciente dos auto-retratos pelos artistas passou a ser cada vez mais presente.
Rosana retira do retrato o caráter de retrato-imagem e o devolve às sensações. Discute
o visível através da “não pintura” de um retrato, mas em forma de retrato, e o denomina
auto-retrato. Assim a artista reconfigura também todo um processo do legado da História da Arte. A arte estaria aqui pelas mãos de Rosana, criando metáforas e também
demonstrando um mundo tão carente de profundidade na aparência e questionando
mesmo o papel da própria categoria auto-retrato na arte? Será que essa tradição artística ainda é capaz de ser imbuída de sentidos na contemporaneidade?
Na literatura
O retrato de Dorian Gray – romance publicado por Oscar Wilde, considerado um dos
grandes escritores ingleses do século XIX. O livro conta a história fictícia de um jovem
homem chamado Dorian Gray, na Inglaterra aristocrática do século XIX, que se torna
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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modelo para uma pintura do artista Basilio Hallward. Dorian tornou-se não apenas
modelo de Basilio pela sua beleza física, mas também fonte de inspiração para outras obras e, implicitamente no texto, uma paixão platônica por parte do pintor. Mas
o retrato de Dorian, que Basilio não quer expor por ter colocado muito de si mesmo,
foi sua grande obra-prima.
Alice através do espelho – Foi publicado em 1871, e é a continuação do célebre
livro Alice no país das maravilhas, de 1865. O autor é Charles Lutwidge Dodgson,
conhecido como Lewis Carroll (1832-1898). Alice passa por um espelho de sua casa
e tem de ultrapassar vários obstáculos – estruturados como etapas de um jogo de
xadrez – para se tornar rainha. À medida que ela avança no tabuleiro, surgem outros
tantos personagens instigantes e enigmáticos que a impedem de voltar para casa.
Retrato do artista quando coisa – Livro de poemas de Manoel de Barros. Sua poesia tem como temática o Pantanal, representado através de sua natureza e do cotidiano. Em Retrato do artista quando coisa, Manoel de Barros revela um mundo no
qual está totalmente integrado à paisagem do Pantanal. Seja como pedra, bicho,
musgo ou pequenos seres que habitam a região, o poeta se veste e reveste de natureza, construindo poesias que tornam o seu meio cada vez mais uno.
Trecho do poema “Retrato do artista quando coisa”
 
(...) Se a gente encostava em ser ave ganhava o 
poder de alçar 
Se a gente falasse a partir de um córrego 
a gente pegava murmúrios 
 
Não havia comportamento de estar 
Urubus conversavam sobre auroras 
Pessoas viravam árvore. 
Pedras viravam rouxinóis 
 
Depois veio a ordem das coisas e as pedras 
têm que rolar seu destino de pedra para o resto 
dos tempos. 
 
Só as palavras não foram castigadas com 
a ordem natural das coisas 
As palavras continuam com seus deslimites (...)
Manoel de Barros
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
41
Entre a literatura e a imagem
PROVÉRBIOS (2004)
Pinturas com frases coloridas para serem vistas com óculos coloridos.
PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA
São quatro provérbios que estão ali mesclados. São ditos populares. Na verdade eu acho
curiosos os ditos, eles são muito moralistas, verdades absolutas... Só que quando eu faço
o trabalho a verdade absoluta se relativiza, um texto se sobrepõe ao outro e, ao mesmo,
tempo vira uma forma bonita, um painel de texto que, quando você olha, não dá para
visualizar os textos, se vê mais do que se lê. Os Provérbios, mais do que todos, têm essa
coisa muita divertida, e eu tento um pouco também tornar a leitura mais divertida – quero
que a pessoa leia de uma maneira que nem perceba que está lendo.
Os Provérbios são selecionados de livros. Tenho
um dicionário de provérbios latinos e um livro com
provérbios do mundo todo sobre vários assuntos.
As escolhas são assim: esse daí eu coloquei duas
frases em espanhol, no fundo, e, por não ser o nosso idioma, eu preferi dar destaque ao português,
mas, na verdade, você pode ler.
Esse trabalho, para fazer, é uma loucura. Algumas
cores eu tive que usar textos maiores, porque,
para preencher o espaço entre os textos, alguns
provérbios que são maiores para poder pular letra
a letra, ela tem que estar mais ressaltada e não
pode estar totalmente junta. É um exercício de bagunçar as coisas na cabeça fazer esse trabalho.
Esse e os Manifestos também.
Nos Provérbios, uma questão que pode ser discutida é a polifonia, um retorno a uma situação
de diversas vozes, de múltiplas interpretações.
É quando se coloca o mesmo texto, em que, de
acordo com o filtro, se tem leituras diferentes. O
corpo do texto integral é um único, porém, se é
Polifonia
Em linguística, polifonia é, para Mikhail
Bakhtin, a presença de outros textos dentro
de um texto, causada pela inserção do autor
num contexto que já inclui previamente textos anteriores que o inspiram ou influenciam.
A polifonia é um fenômeno também identificado como heterogeneidade enunciativa.
Esse conceito de polifonia, segundo Bakhtin,
ainda é confundido com o conceito de intertextualidade, em que um texto não é mais único e sim um entrecruzamento de vários outros
textos. A este fenômeno discursivo J. Genet
chama, na sua obra Palimpsestos, interdiscurso. Bakhtin usa o conceito de polifonia para
definir a forma de um tipo de romance que se
contrapõe ao romance monológico. Romance
polifônico é aquele em que cada personagem
funciona como um ser autônomo, com visão
de mundo, voz e posição próprias.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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usado um filtro azul, apenas um ponto de vista é
lido... O “mundo polifônico” está se tornando alvo
de questões hoje – não se tentar a hegemonia de
uma única voz, mas sim a polifonia, como o multiculturalismo, diversas culturas habitando o mesmo
texto. São os provérbios como Rosana usa.
Os trabalhos de Rosana materializam o palimpsesto, pensado hoje em dia por vários intelectuais.
O palimpsesto são entretextos, textos desaparecidos pelo tempo que vêm à tona simultaneamente,
ao mesmo tempo que a incomunicabilidade: uma
pessoa só lê o azul e a outra só lê o rosa, exercícios críticos da época atual que são colocados nos
Provérbios – a incomunicabilidade, a polifonia.
Palimpsesto
Página manuscrita, pergaminho ou livro cujo
conteúdo foi apagado (mediante lavagem ou
raspagem) e escrito novamente, normalmente
nas linhas intermediárias ao primeiro texto ou
em sentido transversal.
Gestalt
Termo intraduzível do alemão, utilizado para
abarcar a teoria da percepção visual baseada
na psicologia da forma. A Teoria da Gestalt
afirma que não se pode ter conhecimento do
todo através das partes, e sim das partes através do todo; que os conjuntos possuem leis
próprias e estas regem seus elementos (e não
o contrário, como se pensava antes); e que só
através da percepção da totalidade é que o
cérebro pode de fato perceber, decodificar e
assimilar uma imagem ou um conceito.
PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS
Paulo Reis
“(...) O jogo visual na série de trabalhos dos Provérbios – obras feitas em
pinturas com frases coloridas para serem lidas com óculos coloridos (em
vermelho ou azul) – é uma verdadeira gestalt. A artista cria interferência nos
significados à medida que, ao trocarmos de uma cor para outra, “apagamos”
visualmente letras e palavras que podem ser vistas a olho nu. As trocas visuais e as interferências nos significados são para a artista uma forma de abrir o
canal de percepção do espectador (...)”
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
45
Tópicos para conversas
e explorações sobre a obra 
1. O primeiro olhar
• Essa composição visual, que ao olhar nu apenas dispõe um conjunto de letras
coloridas aparentemente aleatórias, sem formarem um significado, passa a ser um jogo
de armadilhas da visão. A artista coloca o espectador diante de um sistema de códigos
simultâneos, porém que podem ser interpretados apenas com o auxílio de um filtro-seletor
por cor!
2. Percepções intuitivas
• Para interpretar a obra é necessário o filtro. Os sentidos das palavras e dos provérbios somente são revelados para o espectador aparelhado com esse filtro selecionador
de cores. Então, o que é a obra? Ela só se revela na junção conteúdo–filtro: a obra é um
sistema de relações, e o espectador precisa de instrumentos óticos para entrar em ação
o jogo de leituras!
O que esse jogo de leituras provoca? O que está além desse jogo de filtros selecionadores de cores e provérbios?
3. Percepções metafóricas
• Essa obra provoca cada um a pensar além do jogo proposto pela artista – esconder e
revelar textos, morais, lições e ensinamentos, ao mesmo tempo.
• O que é um provérbio? Como experimentar essa obra? A obra pode ser lida como
uma crítica à diversidade de vozes, uma polifonia, que não se comunicam entre si. Cada
filtro lê apenas um provérbio diferente. A seleção é também exclusão de mensagens
através de um “filtro”. O que revela uma determinada leitura, ao mesmo tempo cega em
relação aos outros provérbios ou sabedorias. Esse exercício para leitura da obra se torna
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tanto a ação poética como estratégia metafórica. Aí se conjugam poder de leitura e, simultaneamente, impossibilidade de ler outras mensagens.
• Essa obra mostra a situação de impossibilidade de se compartilhar leituras quando
não se tem os mesmos ‘filtros’. Porém, pode ser vista como a materialização de uma possibilidade de entendimento necessário para o mundo contemporâneo, da necessidade
de se compartilhar filtros interpretativos.
4. Arqueologia da criação
• A amplitude metafórica dessa obra pode levar a muitas indagações sobre o mundo
contemporâneo: o que representam esses filtros hoje? Diferenças de gênero, de ideologias, de línguas, de partidos políticos, de crenças religiosas etc.
Dentro desse sistema de metáforas, o que representa ter acesso a mais de um filtro? O
que significa viver com a possibilidade única de apenas ter acesso a um filtro, uma leitura
parcial de um provérbio e estar cego às outras verdades ou provérbios?
• Os “filtros” das pessoas são diferentes: cada um tem seu temperamento, sua formação, seu modo peculiar de encarar a vida.
• As limitações humanas, as contingências, as dificuldades, a dor, as contrariedades e,
também, os consolos e a ação da divina providência estão presentes nos provérbios de
todas as culturas. Como eles influem em nossos “filtros” individuais?
• Como essa obra se torna emblemática da impossibilidade de se compartilhar as leituras de mundo, quando não se tem os mesmos filtros?
• O que são esses filtros dentro do mundo contemporâneo, dentro do mundo globalizado?
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
47
REFERêNCIAS HISTóRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS
Provérbio ou ditado popular
É uma sentença de caráter prático e popular, que expressa em forma sucinta, e geralmente figurativa, uma ideia ou pensamento.
Livro dos provérbios (Bíblia)
O Livro dos provérbios pertence ao Antigo Testamento da Bíblia. Conforme declara a
sua introdução, tem como propósito ensinar a alcançar sabedoria, disciplina e uma
vida prudente, a fazer o que é correto, justo e digno. Em suma, ensina a aplicar e
fornecer instrução moral.
Torre de Babel
Babel, capital do império babilônico, era
uma cidade-estado extremamente rica e
poderosa. Era um centro político, militar,
cultural e econômico do mundo antigo, que
gerava inveja e despeito nos hebreus. Segundo a narrativa bíblica no Gênesis, a Torre de Babel era uma "torre construída por
uma humanidade unida para chegar ao céu.
Visto que o homem queria ser como Deus,
Deus parou este projeto ao confundir a sua
linguagem, para que cada um falasse uma
língua diferente". Como resultado, eles já
não conseguiam se comunicar entre si, e o
trabalho foi parado. Os construtores foram
depois dispersados pelas diferentes partes
do mundo. Essa história é usada para explicar a existência de muitas línguas e raças
diferentes.
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48
Entre a paisagem e a escrita
SÉRIE O TEMPO MUDA TUDO
O TEMPO MUDA TUDO (2002)
3 vidros com palavras escritas em areia colorida.
Série de 5 fotografias com diferentes ordens de palavras, 40 cm x 60 cm cada
fotografia / 3 cm x 5 cm cada vidro de areia.
PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA
Peguei emprestado um livro que tinha um poema,
O navegante, com o qual fiquei fascinada, que
me chamou muito a atenção. A partir dele brotou
alguma coisa, e fui pensando aquilo em forma de
trabalho. São vários textos que vou lendo, nem
leio os livros todos, até porque o tempo não permite. Gosto muito de ler poesia porque não exige
sequência, posso ler pedacinhos e ler outros poemas ao mesmo tempo.
O navegante
A primeira ideia foi realmente a areia. Vi o trabalho na areia, acho muito poético esse tipo de
artesanato. E fiquei fascinada porque tem uma
relação com a ampulheta, que é o tempo sendo
contado pela areia – o artesão vai deixando cair
a areia, que vai rodeando o vidro e construindo
a paisagem... A gente pode filosofar através da
construção deste tipo de imagem; tem algo de
duna, da paisagem se deslocar com o vento; também com as mudanças climáticas vários lugares
se perdem, o mar toma conta, e a areia invade.
Tudo se juntou no meu pensamento, a forma de
unir texto à imagem.
“(..) Poema de perda e de desterro, mas também uma aula de amor fati ( a necessidade de
cada ser humano aceitar seu destino)(...) “
Rodrigo Garcia Lopes
O trabalho da garrafa na verdade vem de toda essa
aflição do mar presente no poema. Mas a ideia do
poema escrito com a própria areia... Você não tem
nada: como na própria passagem bíblica, antes
de qualquer coisa as palavras escritas na areia o
mar mesmo se encarrega de apagar. Aí a duração
é de uma onda.
The Seafarer (O navegante) pertence ao
domínio oral anglo-saxão. O texto foi fixado
por um monge no século X e é um dos documentos mais antigos da literatura inglesa. Ezra
Pound verteu um grande trecho da obra para
o inglês, e há outros escritores, como Jorge
Luis Borges e Armando Rola Vial, que também
o traduziram. Rodrigo Garcia Lopes traduziu a
obra original para o português.
Trecho de O navegante
“(...) Névoa da noite enegrecia,
vinha neve do norte
gelo engolia a gleba,
granizo algemava a terra,
tão gélidos grãos.
Pois meu peito se agita,
provoca meu pensamento,
quer que eu me lance
nessas ondas imensas
no túmulo das cristas-de-sal
meu desejo sopra sempre
o espírito para frente
me quer desterrado,
longe daqui
errando atrás
de terras estranhas (...)’’
O navegante (The Seafarer) / Anônimo. Trad.
e posfácio Rodrigo Garcia Lopes – Rio de Janeiro: Lamparina Editora, 2004.
Não posso deixar de lembrar que o que me inspirou para fazer esse trabalho foi O livro de areia
do Borges, que contém essa ideia do livro escrito
na areia, quer dizer, aquilo ali é um buraco negro,
você se perde nesse livro.
É interessante perceber que surge da descrição
dos trabalhos de Rosana justamente a colagem
entre texto e imagem, que é muito significativa,
como o trabalho da areia da ampulheta. Quando
o artesão faz a garrafa usa uma ferramenta fininha
para fazer a caligrafia, desenhando na areia, construindo dentro do objeto, e é no processo que se
escondem muitos dos significados. Essa imagem
pode remeter também ao Padre Anchieta escrevendo na areia, aos náufragos, às garrafas enviadas com mensagens.
Trabalho na areia
Como surgiram as famosas garrafas de areia?
Conta o professor Vingt-un Rosado que Manuel
de Jesus do Nascimento e sua esposa Maria
da Conceição construíram moradia em cima
do Morro do Tibau, no Ceará, em 1918, onde
passaram a morar com os filhos. Belisa, uma
das filhas do casal, gostava de brincar pelos
morros com outras crianças. Despertou-lhe
a curiosidade a grande variedade de areias
e argilas ali existente e resolveu, juntamente
com sua irmã Joana de Jesus, encher uma
garrafa com areia das várias cores existentes.
Assim, as primeiras garrafas eram de faixas,
isto é, cada tipo de areia ou de argila ocupava
na garrafa faixas paralelas. Começaram a
colocar as areias com as mãos, que funcionavam como um funil. Tudo isso se passou no
ano de 1921.
Numa comunidade pequena como era a Tibau daquela época, as garrafas de areia das
meninas passaram a ser conhecidas e imitadas. Logo surgiram as palhetas de talo de coqueiro e de arame, que permitiram criar outros
desenhos, aperfeiçoados nas mãos hábeis
dos artesãos até chegar ao que é hoje.
Padre Anchieta
Chega ao Brasil em 1553, percorre a pé e
descalço boa parte da colônia para catequizar os índios. O jovem Anchieta atravessava
as noites em claro, copiando várias vezes a
mesma lição para suprir a inexistência de livros. Dedica-se com afinco ao estudo do tupi,
a ponto de compor uma gramática do idioma
e canções, poemas e peças teatrais de cunho
sacro, para atrair os índios ao catolicismo.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
52
José de Anchieta e Manoel da Nóbrega, em
1563, foram à aldeia de Iperoig (litoral paulista) para negociar a paz com os tamoios,
que atacavam os portugueses que tentavam dominar seu território. Iniciaram-se os
entendimentos, mas os índios, cautelosos e
desconfiados, exigiam provas concretas de
sinceridade dos padres, e, para que isso se
confirmasse, Nóbrega regressou a São Vicente, levando Cunhambebe (líder Tamoio),
enquanto Anchieta permaneceu como refém.
Foi nessa época que Anchieta, invocando a
proteção da Virgem, escreveu grande parte
do famoso “Poema à Virgem” nas areias de
Iperoig. O poema tem quase 6.000 versos e
termina tristemente:
"As inspirações do céu
Eu muitas vezes desejei penar
cruelmente expirar em duros ferros.
Mas sofreram merecida repulsa
os meus desejos;
Só a heróis
compete tanta glória."
O livro de areia do Borges
Publicado originalmente em 1975, O livro
de areia, de Jorge Luis Borges, privilegia a
memória da palavra escrita. A obra fala de um
livro sem começo e sem fim, em que o leitor
nunca voltaria à mesma página.
Trecho:
“(...) A linha consta de um número infinito de
pontos, o plano, de um número infinito de
linhas; o volume, de um número infinito de
planos, o hipervolume, de um número infinito
de volumes... Não, decididamente não é este,
modo geométrico, o melhor modo de iniciar
meu relato. (...)”
Borges, Jorge Luis. O livro de areia. Rio de
Janeiro Editora Globo, 2001.
PALAVRAS CRUzADAS - LEITURAS CRíTICAS
Luciano Vinhosa
“(...) Se tudo o tempo muda, talvez possamos arriscar que a instabilidade na
qual o trabalho a duras penas se edifica possa ser tomada como a metáfora
de tudo que é mutável, impermanente, frágil, em contraste com a vontade
latente de permanecer que todo homem experimenta, conquanto esteja consciente de sua finitude (...)”
“(...) Tudo muda o tempo. Crescem as árvores, brotam os homens, morrem os
dias... A arte é pura energia a animar a vida. No mais, para além daquilo que
a palavra não poderá mais dizer, impor-se-á o mar absoluto do silêncio (...)”
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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Tópicos para conversas
e explorações sobre a obra
1. O primeiro olhar
O que observar ao primeiro olhar que serve como material inaugural para as sensações
compartilhadas?
• Ao primeiro olhar se reconhecem as famosas garrafas com desenhos de paisagens
de praias nordestinas – um artesanato popular brasileiro bastante conhecido. Mas, enquanto arte, ele se difere por um pequeno detalhe que faz uma grande diferença. Rosana
acrescenta ao artesanato três palavras: tempo, muda e tudo. Em cada garrafa essas palavras estão sobrepostas à paisagem de areia. Ainda, a artista fotografa as três garrafas
em cinco composições ou ordens que geram diferentes frases jogando com o sentido
– tempo, muda e tudo.
Com essas intervenções (palavras) a artista abre caminho para outros sentidos: constrói
camadas de leituras para as três garrafas que transformam o artesanato em um novo
sistema de significações.
2. Percepções intuitivas
 
• Ao oferecer essa obra para as experiências compartilhadas entre observações que
se mesclam com sensações, atinge-se um jogo de percepções intuitivas. Daí seguem
alguns tópicos de possibilidades de leituras.
• Observar as garrafas: elas, além de compactarem a paisagem de areia em forma de
miniaturas, tornam-na intocáveis e protegidas do vento. A garrafa assume um lugar de
proteção contra o vento – tempo. Será que alguma coisa pode conter o tempo?
• Percepções e intuições sugerem indagações sobre essa obra como um sistema
contínuo de paradoxos e ambiguidades. Será que a passagem do tempo pode ser as-
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
55
sociada ao movimento do vento? Existem linhas curvas nos desenhos dos elementos
da paisagem que representam o sopro e fluxo do vento de forma estática, como um
tempo parado.
• Muitas perguntas se abrem, são estas curiosidades que revelam a riqueza dessa
obra para uma percepção intuitiva que se aprofunda em cada detalhe. Levantar perguntas é parte da experiência artística e poética, lembrando principalmente que não é papel
da arte respondê-las!!! Compartilhar sensações é multiplicar percepções que alcançam
sua dimensão intuitiva, ou melhor, ir além do visível, onde estão os significados poéticos
da obra!
• Atenção especial para a riqueza poética dessas paisagens compactadas, imóveis,
dentro das garrafas, quando servem como mensageiras de perguntas. Pergunta-se de
novo: Será que alguma coisa pode conter o tempo? A arte? Ou a imaginação? Ou o
tempo é que contém todas as coisas? A garrafa nessa obra significa o aprisionamento do
tempo ou proteção contra a sua passagem?
• Perguntas ricas para se compartilhar como questões universais enunciadas em
pequenas garrafas sem respostas. O tempo muda tudo! Ou o tempo muda tudo? Tudo
muda o tempo! Muda tudo o tempo?
• Diferentes expressões para a passagem do tempo se justapõem nessa obra, não
apenas no jogo de variações das três palavras – tempo, muda e tudo –, mas também na
feitura das miniaturas das paisagens, como nos materiais todos produtos e produzidos
a partir da areia. Observar como curiosamente as transformações do ciclo das areias
também se relacionam com o tempo: as areias da praia são as mesmas que dentro da
garrafa desenham paisagens de praia, e, ainda, são as mesmas que produzem o vidro
das garrafas que contêm as areias.
• Somente pela arte e a imaginação poética se subverte a ideia de tempo para além
das leis que regem o mundo natural, pela afirmação real de territórios da poesia, da
ficção e metáforas. Há um outro tempo de uma obra de arte: do espectador para a sua
fruição, do leitor de um livro, da projeção de um filme, de uma ópera ou teatro. Várias
noções de tempo estão por trás dessa obra da Rosana: o tempo de criação da artista,
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
56
da concepção da feitura da obra, o tempo escrito, o tempo das areias e das dunas,
o tempo da fotografia, o tempo da arte.... Quantos tempos têm uma obra de arte?
3. Percepções metafóricas
• Como explorar essa obra como sínteses entre percepções intuitivas e expressões por metáforas visuais? Explorar ou reconhecer as diferentes expressões de tempo, mesmo
que contraditórias ou paradoxais, é já um ponto de aprofundamento interessante a ser
compartilhado.
• A arte em geral pode ser vista como um lugar onde os opostos se encontram e não se eliminam. Neste caso das garrafas da Rosana, pode-se perceber a ocorrência de expressão de sentidos opostos para a passagem do tempo. Por um lado, sabe-se que ele
não para de escorrer, de passar. Por outro, as garrafas, ao guardarem a paisagem de
areia como lembranças do Nordeste, se contrapõem ao vento e à passagem do tempo.
Mas as palavras escritas nas garrafas afirmam o contrário – o tempo muda tudo.
• Outro processo que também pode gerar uma atenção especial ao domínio do tempo é a paciência por parte desses artífices anônimos: as três garrafas nos instigam a desfrutar o tempo específico ou suspenso de feitura dessa artesania popular de desenhar
minúsculos mundos nas areias coloridas.
• A fotografia registra a imagem e congela no tempo, assim também participa do jogo de metáforas estabelecido por Rosana: quantas garrafas
mais necessitariam ser feitas para se compor todas essas frases, caso ela não se utilizasse deste
meio?
• A presença das três garrafas diante das fotografias joga também com a relação entre as
coisas em si e suas imagens, tão explorada na
crise da representação na história da pintura do
século xx.
Relação entre as coisas em si e suas
imagens
René Magritt foi um artista que já no início do
século XX trazia como questionamento em
suas pinturas a relação entre as coisas em si
e as suas imagens. Pinta um cachimbo e escreve “Isto não é um cachimbo”: fica evidente
no trabalho um questionamento sobre a crise
da representação, ou como o próprio nome já
anuncia,“A traição da imagem”.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
57
• Mais uma vez, Rosana sobrepõe um complexo tema da história da arte erudita se utilizando
de um tão reconhecido artefato popular. Mais uma
vez, estamos diante de um sistema de sistemas
de metáforas, que vão desde a sabedoria popular
sobre a passagem do tempo, onde nada é fixo e
permanente, até a história da arte do século xx,
que também, por sua vez, foi totalmente mutante.
Como é realizada a passagem da arte popular
para a arte contemporânea?
• Rosana reinventa estratégias da arte conceitual e da Pop Art, porém lançando mão de objetos
do artesanato popular nordestino.
• Esse trabalho demanda tempo, de reflexões e descobertas, daí sua riqueza poética, existencial e
conceitual. Pode-se pensar então como essa obra
inaugura novas temporalidades (metáforas da inexorável passagem de tempo)!
Pop Art
Movimento principalmente americano e
britânico, sua denominação foi empregada
pela primeira vez em 1954, pelo crítico inglês
Lawrence Alloway. Com o objetivo da crítica
irônica do bombardeamento da sociedade
pelos objetos de consumo, dos produtos da
cultura popular da civilização ocidental, sobretudo os que eram provenientes dos Estados Unidos, a pop art operava principalmente
com signos da iconografia da televisão, da
fotografia, dos quadrinhos, do cinema e da
publicidade. Como muitos outros artistas da
Pop Art, Andy Warhol, figura central desse
movimento, criou obras em cima de mitos
como Marilyn Monroe. Da mesma forma, utilizou a técnica da serigrafia para representar
a impessoalidade do objeto produzido em
massa para o consumo, como as garrafas de
Coca-Cola e as latas de sopa Campbell.
4. Uma arqueologia da criação
• Um arqueólogo escava por camadas da superfície até atingir a descoberta de resíduos que podem revelar a existência de grandes civilizações. Explorar as diferentes
camadas de sentidos de uma obra é semelhante a uma arqueologia da criação. Cada
obra é resultado de inúmeras ideias, referências e inspirações que levam um artista a
produzir uma peça, escultura ou pintura. Neste caso, das garrafas às fotografias que
compõem – “ o tempo muda tudo”, as inúmeras camadas de sentidos giram em torno
de uma questão fundamental – o paradoxo entre a arte e a passagem do tempo. Mas,
além de tudo já explorado nessa arqueologia, surge um imaginário especial que também
se liga às garrafas com mensagens. Assim como tesouros enterrados, o arqueólogo
descobre pelo exercício da percepção intuitiva significados adormecidos em pequenos
cacos e inscrições. Os artistas, por sua vez, realizam processos poéticos de expressar
por metáforas, pistas e enigmas visões de mundo, sem dizê-las explicitamente.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
58
• São universalmente conhecidas as garrafas lançadas ao mar com mensagens e
mapas. Essa obra atinge a todos, por se utilizar desses símbolos imaginários, tão explorados em fábulas. Seu princípio poético é também de esperança, de mensagens, o
que leva a propor ações e registros de desejos e sonhos. Quais desenhos de paisagens
gostaríamos de desenhar como forma de esperanças? Quais mensagens enviaríamos ao
mar? Como fazer com arte essa realização do princípio esperança?
 
• Pode-se perceber o deslocamento da arte popular para a arte contemporânea como
parte da riqueza da obra, que é imersa em um sistema de valores complexos e eruditos da história da arte do século XX (inaugurada pelas colagens cubistas de Picasso e
Braque), e seus desdobramentos por Duchamp e as assemblages.
• Como a apropriação e os deslocamentos da arte popular para a produção artística
contemporânea são intensamente utilizados por vários artistas, principalmente brasileiros? Ao mesmo tempo, é uma oportunidade de se reconhecer a riqueza da cultura po���
pular brasileira explorada por outros artistas contemporâneos, tais como Marepe, Paulo
Nenflidio, Jarbas Lopes e muitos outros novos artistas.
• No Brasil podemos identificar a relação entre a cultura popular brasileira e a arte erudita desde a Semana de Arte Moderna de 1922. O país era então redescoberto por Oswald
de Andrade, Mario de Andrade e Tarsila do Amaral, entre outros artistas, ao mesmo tempo
em que Villa-Lobos realizava na música os mesmos deslocamentos. 
• Essa fusão é crescente nas últimas décadas na arte contemporânea. À medida
que as categorias da arte se findaram no século XX, pintura, escultura e as outras
práticas artísticas tradicionais, principalmente vinculadas às escolas europeias (Belas
Artes), surge um emergente e crescente interesse nas artes populares. Ao mesmo
tempo, o artista contemporâneo, tal como Rosana, se apropria desses objetos, deslocando-os para dentro de um outro sistema de metáforas. O valor artístico também se
deslocou ao longo deste último século, do saber e virtuose do fazer artesanal para o
sujeito construtor de linguagens e metáforas. Isso se equivale à passagem de homo
faber para homo luden.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
59
• Não se trata de buscar aprender a fazer as garrafas com desenhos na areia (homo
faber), mas deslocar a importância da arte na capacidade de construir novas linguagens,
novos meios de expressão, novos jogos de metáforas e percepção. A natureza do homo
luden está justamente neste atributo, de jogar com as palavras e os significados
das coisas.
REFERÊNCIAS HISTÓRICAS PARTICULARES E UNIVERSAIS
O filme Casa de areia, 2005
Direção de Andrucha Waddington
O filme se passa nos Lençóis Maranhenses e conta a vida de um casal que, em
busca de terra fértil, acaba rodeado por areia das dunas trazida pelo vento. O filme
mostra duas gerações de uma mesma família vivendo no total isolamento, em uma
pequena casinha, quase sempre tomada pela areia, em um “mundo deserto”, onde
a passagem do tempo é subvertida, e a relação entre os personagens é intensificada
por esse ambiente.  
A ampulheta
Conhecida por relógio de areia, a ampulheta teve sua invenção atribuída a um monge
de nome Luitprand, que viveu no século VIII. No entanto, as primeiras referências
desse tipo de objeto aparecem apenas no século XIV, onde a vida nas navegações
era regulada pelo instrumento. Existiam ampulhetas para tempos de uma, duas ou
mais horas, mas as mais usadas eram as de meia hora, também conhecidas como
relógio. Ao virar a ampulheta, o marinheiro tocava o sino: uma badalada às meias
horas e pares de badalada correspondentes a cada quatro horas. Um par à primeira,
dois à segunda etc. 
Referências artísticas
Em 1999, Katie Schapemberg desceu do Museu de Arte Contemporânea de Niterói para a praia da Boa Viagem, por ocasião de sua exposição Feuerbach e Eu
na Paisagem, com curadoria de Paulo Herkenhoff. Essa experiência na praia foi
catalisadora de inúmeras questões que atravessaram a história da pintura, prin-
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
60
cipalmente sua travessia transcultural da Europa para o Brasil. O próprio Museu,
como instituição de preservação de objetos, foi desafiado pela condição de “impermanência” de uma pintura, que, segundo as palavras de Katie, desenha o tempo.
Com uma moldura padrão, de cor vermelha, a artista deposita pigmento, também
vermelho, sobre as areias brancas junto à arrebentação. A artista oferece ritualisticamente o pigmento e a moldura retangular para o mar e o vento desenharem e pintarem, pela dissolução da forma. Katie afirmava: “Somos passageiros da paisagem”.   
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
61
Entre a paisagem e a escrita
MAR EGEU (2006)
Desenho sobre papel artesanal azul, feito com o nome Mar Egeu,
91 cm x 62 cm x 5 cm
PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA
Faço um esboço mínimo e depois vou escrevendo. Pego a folha e faço mais ou menos
um risco, mas a escrita conduz também um pouco. Eu não tenho toda a consciência do
final, esse papel não se pode apagar, por isso não pode ser feito um esboço tão forte,
senão ele fica todo marcado. Se você procurar vai ver o esboço no trabalho.
O papel inteiro não pode ser muito grande. Trabalho sentada, a escrita em pé é muito
mais dura, para a escrita ter uma fluidez ela tem que ter uma horizontalidade – e no papel
grande eu perco totalmente a mobilidade. Então faço nesse papel ou em módulos, em
folhas. Vou fazendo um pedacinho, junto com outro, com outro...
Possuo livros sobre gravuras japonesas. Acho que essas são imagens que estão muito
impregnadas no nosso dicionário visual.
Esse trabalho de Rosana remete a gravuras japonesas, outra informação da história
da arte.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
64
MAR VERMELHO (2006)
Desenho sobre papel artesanal azul, feito com o nome Mar Vermelho,
91 cm x 62 cm x 5 cm.
PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS
Paulo Reis
“(...) Afinal, mapas de estradas, plantas urbanas, cartografias marítimas
e o globo terrestre são sinais e formas de localização do homem. A artista utiliza-os de forma conceitual, sem esquecer a plasticidade inerente
às suas formas. Assim, uma série de desenhos de mares ganha tons de
azuis, e dos rios, verdes. Na série Mares, à primeira vista saltam as referências à gravura japonesa de Hokusai. As vagas do gravador japonês
encrespam-se numa alusão ao sublime; as vagas dos mares de Rosana
Ricalde são feitas dos próprios nomes dos mares, Mar Egeu, Vermelho,
Mediterrâneo etc., escritos em filigrana. Também as correntezas dos rios
brasileiros são feitas dos seus nomes. Os mares e rios de Rosana Ricalde
têm a leveza de Hokusai na forma; a essência do espírito de continuidade
de Nietzsche; e a poética linguística da repetição de Guimarães Rosa (...)”
Luciano Vinhosa
“(...) Móveis também são os mares que se auto-regurgitam. Batem, chacoalham, agitam, tudo transformam em sal e assim muda o tempo tudo. Os de
Rosana Ricalde, à deriva do fluxo que escorre da caligrafia, tomam também
formas dinâmicas. Eles fazem, em alguma medida, o contraponto necessário
com os trabalhos anteriores. A tensão costumeira entre o signo verbal e visual,
embora persista nos Mares, encontra-se, no entanto, minimizada. Os substantivos que os compõem – os nomes dos mares – quase se dissolvem
a ponto de se tornarem substâncias gráficas. Verifica-se que, submetido a
um padrão modular constante, o pensamento se descobre no devir de cada
instante em que a mão da artista se deixa levar pela frequência ritmada das
ondas. Originalidade parece-me o termo adequado para caracterizar a postura que deles releva, mas aqui o seu sentido deve ser tomado de forma
diferente daquele que, de hábito, lhe atribuímos. No lugar de se referir à singularidade do sujeito, o caráter próprio e particular que lhe atomiza, refere-
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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se a seu apagamento pela adoção do gesto molecular. A repetição, creio,
é o exercício artístico rigoroso ao qual Rosana se submete para esquecer o
eu, reencontrar a espontaneidade do gesto e retornar à origem. Entretanto,
o que se exprime não é de forma alguma o nó em mim dos expressionistas, mas antes um nós em mim, como nos rituais mantras e sufistas. Neste
sentido, a repetição também pode ser entendida como uma espécie de exercício moral. Não me pareceria fortuita e desnecessária a comparação de
seus Mares com as gravuras orientais, em especial as de Hokusai, esse
excepcional artista japonês em quem Rosana parece se inspirar. Como se
sabe, a arte oriental tradicional tem-se valido de uma relação com a imitação bastante diferente da do Ocidente. Não é questão o fato de alguns dos
Mares de Rosana lembrarem eventualmente os de Hokusai, mas de buscar
no mestre a inspiração para o traço e o ritmo perfeitos que evidenciam a
vitalidade de sua arte. Isso que conta são as similaridades internas. Assim,
a prática artística é antes uma atitude ética capaz de orientar a vida (...)”
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
67
Tópicos para conversas
e explorações sobre a obra 
1. O primeiro olhar
• Mais uma vez se propõe compartilhar sensações e impressões que mudam com a distância em relação à obra. Observar a grande ondulação dos mares e apreciar, de perto,
os detalhes da preciosa caligrafia. Perceber a cor do papel, o formato etc.
2. Percepções intuitivas  
• Propõe-se observar e visualizar como parte dessa completa confluência entre forma
e conteúdo – entre imagem e escrita – e o ato de leitura. O jogo artístico se inicia quando
essa conjugação é discutida como alma e corpo da obra. Mas, ao se reconhecer como
corpo, também parte desse jogo, as sensações se unem às estratégias artísticas espaciais e temporais de se incluir o leitor participante no ato de fazer sentido a obra.
• Ao primeiro olhar, no jogo de distâncias entre leitor e obra se inauguram mudanças
de entendimento. É pela intuição que esse jogo pode ser percebido como armadilhas
intencionais e surpresas. A partir desse momento novas percepções intuitivas são abertas. Estas são parte da própria poética em ação – este é um ponto de passagem entre o
primeiro olhar e o que se torna parte das percepções intuitivas.
• A escrita nessa série de trabalhos da Rosana pertence ao microcosmo: só vê quem
se aproxima. O minúsculo gesto que vai compor as grandes ondas é em si a causa que
estrutura e cria a força e a forma do todo, a imagem! Pequenos gestos (da caligrafia)
são descobertos somente pela atenção de um observador junto ao trabalho. Rosana se
dedica à escrita com tal virtuose como um escriba chinês, que transmite o sentido das
coisas além do processo falado.
 
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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3. Percepções metafóricas
• Como avançar para as percepções metafóricas? Forma é conteúdo. Assim, as ondas
anônimas e passageiras do mar são expressas por sua identidade fixa – os nomes dos
oceanos. Mais uma tensão entre contrários – o nome dos mares é fixo, mas as ondas,
como os ventos, são passageiras. Nessa obra a escrita se torna uma língua gráfica, isto
é, ela é a grafia de uma ideia, o que remete à origem do sistema chinês de escrita, em
que as grafias são elas próprias a forma de uma ideia, transportadoras de sentidos. Ultrapassa a escrita que se vincula à língua falada, ultrapassa o registro gráfico dos fonemas.  
• A caligrafia se torna arte e sabedoria desde os primórdios da civilização chinesa.  Na
cultura islâmica, a caligrafia se torna sagrada, como materialização do indizível nome de
Deus. Desde a sua origem, a forma da escrita se desenvolve sempre no sentido de ser o
próprio conteúdo de uma ideia. 
• Na relação entre desenho da onda no mar e a escrita “mar”, se define um exercício de
metalinguagem. Os dois meios criam a metáfora da obra, o duplo. 
 
4. Arqueologia da criação 
• De volta ao todo, a onda que a artista escolhe para representar o mar também está
carregada de metáforas e simbolismos universais. O mar poderia ter sido representado
pela linha calma dos horizontes, mas, pelo contrário, a onda, mais uma vez, desde os
chineses, era a montanha móvel nos oceanos. A calma da caligrafia se contrapõe à força
móvel das ondas. A pequena escrita acumulada de repetição, “mar egeu” ou “mar vermelho”, se soma como força e potência de oceano. O que exemplifica a relação sistêmica
entre parte e todo, a onda está para o mar assim como todo o mar se envolve na onda. 
• Esse jogo dialogal entre leitor e obra, distância e aproximação, o todo e a parte, como
relações indissociáveis, é o que vai dar sentido e complexidade a essa obra.  
• Que texto ou palavra você escreveria no mar? Ele seria calmo, na linha do horizonte,
ou agitado como um Tsunami? E a palavra, ela poderia representar esse agitar do mar
ou a calmaria? Qual seria ela?
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
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 Referências
históricas particulares e universais
Caligrafia chinesa
A escrita chinesa é ideográfica, ou seja, ela une a ideia com a grafia. Uma palavra é muitas vezes apenas um ideograma. Os ideogramas chineses têm uma longa
história de desenvolvimento, eles são reconhecidos por formarem uma das línguas
escritas mais antigas do mundo. Em diferentes estilos, a caligrafia desses ideogramas chineses não é apenas um instrumento prático que pertence ao cotidiano, mas
está integrada juntamente com a pintura, uma das mais significativas expressões
artísticas da história nacional. Tanto a construção de frases quanto o próprio ato de
aplicar a tinta no papel podem ser consideradas formas de expressão artística dentro
da cultura chinesa.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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Entre a literatura e a imagem
GLOBO (2005)
Globo pintado e recoberto pelos nomes dos mares escritos,
40 cm x 40 cm x 40 cm
PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA
Quando é feito um trabalho você não tem todas as respostas, intuitivamente percebe-se o
que se quer de fato depois. Mas ouvi de uma pessoa uma complementação à minha ideia que
achei tão bonita, sobre a questão da utopia, onde acabam as fronteiras, quando você transforma tudo em mar. Ontem, por exemplo, vi na televisão uma briga que está acontecendo entre
a Espanha e os Estados Unidos: eles acharam um tesouro numa faixa do Oceano Atlântico,
na parte que é território marítimo espanhol. É muito esquisito pensar que o mar tem dono...
O globo é uma coisa bastante estranha, é um pouco a ideia do dicionário, por ser uma
maneira de concretizar a ideia tão abstrata de viver em cima de uma bola. Ele é uma miniatura da terra, e até os territórios, tudo é abstrato, toda a demarcação é abstrata.
Antes do globo havia a crença de que a terra era um plano – você chegava a um ponto e
caía no buraco. O globo traz a ideia de que você pode circular. Há nele a ideia de recobrir:
eu pinto e o apago todo com tinta PVC, e escrevo com caneta de projetor em cima.
O advento do globo foi uma revolução, que nasceu junto às grandes navegações. Primeiro
vieram os mapas e as cartas, planos, ligados à razão: à medida que se navegava se refaziam as cartas. Até o início das grandes viagens, onde começam a surgir informações
novas, quando se transformou o planeta em uma esfera, em torno de 1500 e 1600. O globo
foi emblemático por também representar a dominação, como instrumento de poder. No
trabalho de Rosana pode ser também percebido o tema da diáspora: a humanidade é uma
mistura de raízes, de línguas e culturas, e o planeta todo se une no globo, como um fluxo
total. Uma discussão válida quando a globalização é bastante abordada.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
73
PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS
Paulo Reis
“(...) A linguística e a cartografia são complementares na obra de Rosana
Ricalde. Mapas de cidades, globos terrestres, labirintos etc. são espaços de
reconhecimento topográfico; mas são enunciados linguisticos para responder
à grande questão ontológica. Gaston Bachelard na sua A poética do espaço4
procedeu a uma reflexão singular sobre o espaço, criando uma topo-análise
ao falar de uma poética do espaço, dando à palavra a missão de elevar o objeto de sua análise, isto é, lugares e espaços, ao nível poético. Os principais
espaços preferidos pelo homem, como a casa, o sótão, o porão, a gaveta, o
cofre, o armário, o ninho, a concha etc., são espaços da imensidão íntima. A
poesia bachelardiana aprofunda o sentido de relação metafísica e psicológica
do espaço sobre o homem. Sua poesia pode e deve ser participada pelos
seres humanos atentos, sensíveis, imaginativos e abertos ao devaneio. Para
Bachelard as coisas do quotidiano devem ser redimidas pela atenção, pela
nova significação a que devemos dar-lhes, devendo ser vistas em sua profundidade, pois fazem parte da nossa percepção mais íntima (...)”
4
Bachelard, Gaston. A poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1999.
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Tópicos para conversas
e explorações sobre a obra 
1. O primeiro olhar
• O que se vê de longe? O que se descobre de perto? Mais uma vez, Rosana joga com
as distâncias.
• Um globo, uma esfera branca, que mais próximo revela toda uma escrita com caneta
azul. Fluxo de linhas onduladas verticalmente desenhadas. 
2. Percepções intuitivas
• O globo é usado pela artista como suporte para escrita. Talvez nesse ato se intua um
desejo de inaugurar um novo mundo feito só de poesia, reinventado pela arte e não pelos
desejos e ambições políticas?  
• Vale ainda lembrar, forma é conteúdo: o que significa um globo sem geografia, uma
outra grafia se sobrepõe? Um mundo sem terra, só texto. Uma escrita transborda o planeta
com linhas de fluxos ondulados. O que significa esse ato “poético ou crítico” sobre o globo?
Criar um mundo sem a geografia das divisões e as diferenças políticas e religiosas, inventar
um planeta Terra sem terra, pela invasão ou transbordamento da criação artística!  
• Como nos auto-retratos, Rosana apaga uma imagem ou retrato do real, para inscrever a
poesia no espelho cego. O globo, agora, é como este espelho cego – que recebe uma cartografia de navegações imaginárias por escritas de palavras, versos ou nomes dos mares. 
3. Percepções metafóricas
• O que se oferece ao olhar é o reconhecimento do globo como percepção de metáforas do mundo contemporâneo, nossa casa flutuante no espaço. Mas, também, se sobrepõe uma negação à geografia e à história, por um outro mundo onde a “língua-gráfica”
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
75
une o Polo Norte ao Polo Sul por textos em movimento. A língua escrita (arte) se torna as
vias de transporte neste mundo. O mundo se torna pura poesia. 
• Como essas impressões intuitivas se desdobram em reconhecimento de metáforas?
A percepção metafórica se baseia sempre em uma negação do significado e ordem estabelecidos das coisas do mundo.  
• O exercício criativo nessa obra se realiza como um salto transfigurador das coisas
comuns pela arte. Lembra a história da arte do início do século XX e a prática inaugurada
pelas colagens cubistas,  ou, ainda mais tarde, nos anos 1960, com a Pop Art. Rosana não
está repetindo essa história. Existe um impulso visionário nesse trabalho que talvez não
caberia junto à ironia ou ao ceticismo dos anos 1960. Essa obra tem mais a ver com um resgate de amor à arte e, através desta, ao mundo. Sem dúvida a própria escolha do globo já é
um forte apelo a uma metáfora de reinvenção do mundo e das culturas unidas pela arte. 
4. Arqueologia da criação 
• Assim como a história dos auto-retratos está presente desde os tempos greco-romanos na arte, o globo também é parte de um salto na história da humanidade. Desde
a sua emergência na era das grandes navegações, nos séculos XV/XVI, sua presença
é reconhecida em obras de Vermeer, Dürer e outros grandes artistas. Sua potência de
abstração, como também de inauguração de um entendimento de unidade planetária,
resulta em rápido reconhecimento como símbolo de dominação – mares, descobertas
e riquezas de mundos e culturas distantes –, tornando-se parte do mobiliário tanto dos
aristocratas como dos grandes comerciantes emergentes do mundo moderno.  
• No mundo contemporâneo a globalização repõe sobre o globo uma crítica a essa
polêmica história dos impérios colonizadores, fundada sobre uma ótica eurocêntrica. Nelson Leirner cobre também o globo com os símbolos do imperialismo americano, sob uma
ótica irônica da Pop Art. 
• A globalização pode ser redimensionada como uma unidade de deslocamentos de
cultura, economia e política, juntamente com as novas geografias da internet, onde o
tempo de comunicação é instantâneo, sem fronteiras. A realidade virtual é principalmente
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de troca e fluxos de textos e imagens entre lugares, sem distância, sem terra. A geografia
da era digital é também a da desterritorialização, ou desmaterialização do mundo e suas
relações físicas. As navegações globais são por circuitos de redes digitais em espaços
privados, como esse trabalho pode também sugerir. 
• O mundo e a linguagem se unem. Só existe no real aquilo que a linguagem nomeia.
Quando caminhamos dentro de casa ou na rua, tudo ao nosso redor é texto, é palavra. Só
vemos aquilo que temos uma palavra para nominar. Os índios não viram as caravelas ao
longe porque não tinham uma palavra para elas, acreditam alguns. Outros dizem que, para
algumas tribos, já existia uma profecia dessa chegada dos deuses e suas grandes naves. 
Referências históricas particulares e universais
Luiz de Camões – Os Lusíadas  
Nascido no século XVI, na época da Renascença, é considerado o maior escritor
da língua portuguesa de todos os tempos. Soldado e poeta, viveu uma vida plena
de aventuras a serviço do reino português, batendo-se contra mouros, beduínos e
outros inimigos da Coroa. Viajante emérito, seguiu para o Marrocos, onde perdeu o
olho direito numa batalha contra os mouros. Na costa da Conchinchina, seu navio
naufragou, e Camões perdeu a companheira Dinamene, mas conseguiu salvar os
originais de seu futuro épico Os Lusíadas. O livro é composto por 10 cantos:
Trecho do Canto I:
 
“As armas e os barões assinalados
Que da ocidental praia lusitana
Por mares nunca dantes navegados
Passaram ainda além da Trapobana,
Em perigos e guerras esforçados
Mais do que prometia a força humana
Entre gente remota edificaram
Novo reino, que tanto sublimaram 
E também as memórias gloriosas
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
77
Daqueles reis que foram dilatando
A fé, o império, as terras viciosas
De África e Ásia andaram devastando,
E aqueles que por obras valerosas
Se vão da lei da morte libertando:
Cantando espalharei por toda parte,
Se a tanto me ajudar o engenho e arte (...)” 
Trecho do Canto X:
 
"(...)Vês aqui a grande máquina do Mundo,
Etérea elemental, que fabricada
Assim foi do Saber, alto e profundo,
Quem és em princípio e mente limitada.
Quem cerca em derredor este rotundo 
Globo e superfície tão limada,
É Deus: mas o que é Deus, ninguém o entende,
Que a tanto o engenho humano não se estende (...) "
. O filme O grande ditador, 1940
Charles Chaplin
Especialmente a cena de Hitler (Chaplin) jogando o globo, como símbolo de sua
ambição pelo domínio ao planeta.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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Construções em palavras
LEITURA DINâMICA (2003)
Estatística das letras empregadas na escrita do Manifesto neoconcreto – impressão sobre papel,
60 cm x 42 cm
PALAVRAS COMPARTILHADAS COM ROSANA
O primeiro manifesto que fiz foi o Manifesto dadá (trabalho em que a artista produziu
um jornal com esse manifesto e todos os significados das palavras contidas). Eu tenho
interesse, é claro, pelo Manifesto antropofágico, e tentei uma maneira de trazer isso à
tona nos dias de hoje, como trabalhar isso dentro do meu contexto, que é buscar a
imagem. Pesquisei manifestos, tenho um livro só de manifestos, e não só brasileiros,
mas também da América Latina. Há muitos, só que realmente o Antropofágico tornouse muito conhecido. Continuei pesquisando. O primeiro trabalho foi uma instalação em
que escrevo o Manifesto antropofágico ao contrário: ele fica num corredor de espelhos
e a pessoa, para ler o manifesto, tem que olhar para sua imagem e se incluir. Só que a
imagem é espelho com espelho, fica a imagem infinita e aquele texto infinito, e a pessoa
se vê no meio do texto...
Por que seleciono esses manifestos? É um pouco pensar como hoje se enquadraria alguém fazer um manifesto na arte, e não só na arte, mas na política também, em tudo,
no que acreditamos. O que esperamos de transformações? Estamos em um momento
– todo mundo, não só o Brasil – de descrença, niilismo, eu não sei qual a palavra certa. O
manifesto talvez hoje seja descabido, se você pensar em alguém levantar uma bandeira
como uma verdade, porque o manifesto de uma certa maneira é uma crença. Peguei
nessa série o Manifesto objeto, o Manifesto neoconcreto, o Ruptura, e o Manifesto antropofágico, e no trabalho que eu fiz do jornalzinho tem o Manifesto dadá: cinco momentos
que se colocam como verdades capazes de transformar o seu tempo; claro que não
transformar tudo, mas transformar algo. E como o artista hoje será capaz de transformar
algo? Tentei resgatar ideias e transformei isso em uma leitura que é mais visual do que
ideológica.
Acho impossível acreditar em verdades absolutas, mas se não acreditarmos que aquilo
que fazemos possa mudar alguma coisa, eu não faria nada. Acredito que o que eu faço é
capaz de mudar algo – não tudo, e não que seja uma verdade absoluta, mas que é capaz
de transformar. Realmente creio que hoje não cabem mais verdades absolutas, o Manifesto antropofágico é muito atual... Olhando os outros manifestos eles são muito focados
nas artes plásticas. O Manifesto antropofágico é muito mais amplo, ele fala sobre tudo.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
81
MANIFESTO DE VERBOS (2003)
Manifesto antropofágico sem espaços entre as palavras e com os verbos que surgem após essa
junção das palavras colocados em negrito – impressão sobre papel, 60 cm x 42 cm
Waldemar Cordeiro (1925-1973)
Uma coisa que penso também desse manifesto é que ele é muito bem-humorado. Serve
para entender que, hoje, com a globalização,
não há nada melhor do que você primeiro
prestar atenção em si, para deixar as outras
coisas penetrarem. Até o trabalho no espelho
que fiz. Fala de você prestar atenção na sua
identidade.
Em cada manifesto eu escolhi uma forma. No
Manifesto objeto peguei um trabalho do Waldemar Cordeiro da época chamado A mulher
que não é B.B. (imagem). Ele pegou uma manchete de jornal que era uma mulher com uma
criança e usou um programa que transformava
imagem em texto, fazendo uma obra com essa
foto. Peguei o texto dele, O objeto, e transformei nessa imagem que então ele usou.
O Manifesto antropofágico é o meu preferido.
Tem essa coisa de colocar nos dias de hoje:
peguei um exercício de poesia usado por um
grupo francês de poesia, Grupo Oulipo. Eles
tinham várias técnicas de fazer poesia, e eu utilizei uma para o texto do manifesto, que era um
pouco a deglutição desse texto. Primeiro eu
deixei só as palavras com a vogal a, depois só
com a vogal e, i, o e u, até o texto ir... Por exemplo, com a vogal u não tem nada, ficou quase
um texto de ponto, vírgula, dois-pontos – se
você o ler é como se ele estivesse sendo mastigado. Funciona até com outra pessoa lendo,
fica engraçado os sons que vão fazendo.
Inicia sua formação artística na Escola de
Belas Artes de Roma. Em 1946, vem para o
Brasil e fixa residência em São Paulo, onde
exerce funções como pintor, escultor, paisagista, urbanista e crítico de arte. Em 1951,
funda o Grupo Ruptura, juntamente com Geraldo de Barros, Luís Sacilotto e outros artistas. No ano de 1956 esse mesmo grupo dá
origem ao Movimento Concreto Paulista. No
início da década de 1960, influenciado pela
Pop Art, Cordeiro cria seus popcretos. Em fins
de 1968, introduz a computer grafic art no
país e torna-se professor da Unicamp, onde
passa a dirigir o Centro de Processamento de
Imagens do Instituto de Artes.
Grupo Oulipo
O grupo Ouvroir de Littérature Potentielle,
fundado em Paris em 1960 (por François Le
Lionnais, Noël Arnaud, Jacques Bens, Latis,
Claude Berge, Jean Lescure, Albert-Marie
Schmidt e Raymond Queneau), reuniu vários
escritores e matemáticos interessados na intersecção entre literatura e matemática, fosse
na investigação de princípios combinatórios
na estrutura dos textos, fosse na produção
de novos textos de poesia e ficção segundo
algoritmos e procedimentos formalizados. De
certo modo, os membros do Oulipo criaram
uma literatura computacional antes dos instrumentos informáticos que permitiriam explorar de forma automática algumas das suas
ideias.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
83
Ao perpassar todo aquele texto, toda a fluidez e a rapidez se perdem. Mas o nosso pensamento, se formos prestar atenção, não é linear. Há trabalhos de artistas que seguem
uma linha, o que eu acho muito complicado. No tempo próprio do nosso pensamento
uma coisa puxa a outra, coisas que às vezes nada
têm a ver – fico fascinada como a gente é uma
máquina.
Gestalt
Enquanto eu fazia os manifestos, pesquisava
muito sobre hipertexto. No computador abrem-se
janelas, mas a nossa mente é muito mais rápida
do que tudo isso – uma coisa leva a outra, que não
tem nada a ver diretamente, mas você chega àquela coisa, e aquilo ali faz uma pequena conexão,
que vai levando a outra coisa. Nossa memória é
muito maior do que qualquer computador!
Pode-se ver no trabalho de Rosana uma recuperação do manifesto. O manifesto é uma ruptura
de ordem: pode-se falar de um dos mais famosos
manifestos, de Karl Marx, comunista, um manifesto
de uma luta de classe. Após a virada do século XX
nascem os manifestos Futurista e Dadaísta, todos
eles de certa forma politizados.
Em todas as épocas que surgiram os manifestos
o contexto era semelhante ao atual, de uma
gestalt. O manifesto vem da Gestalt, onde há um
panorama sem direção, com avatares, intelectuais,
mais emblemáticos em uma dimensão modernista.
No entanto, a dimensão hoje é de descrença a
essa liderança; há mais proposição. O Manifesto
antropofágico é uma síntese, mas não apenas de
transformação; ele é antimanifesto, fala de uma
Gestalt é um termo intraduzível do alemão
utilizado para abarcar a teoria da percepção
visual baseada na psicologia da forma. A Teoria da Gestalt afirma que não se pode ter conhecimento do todo através das partes, e sim
das partes através do todo; que os conjuntos
possuem leis próprias e estas regem seus
elementos (e não o contrário, como se pensava antes); e que só através da percepção
da totalidade é que o cérebro pode de fato
perceber, decodificar e assimilar uma imagem ou um conceito.
Hélio Oiticica (1937-1980)
É considerado um dos artistas mais revolucionários de seu tempo, e sua obra experimental e inovadora é reconhecida internacionalmente. Um dos fundadores do Movimento
Tropicalista e um dos maiores criadores do
Neoconcretismo, movimento tipicamente
brasileiro em que os artistas primavam pela
experiência em vez de um racionalismo exacerbado, priorizado pelo movimento anterior,
Concreto.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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DEGLUTIÇÃO DO MANIFESTO II (2003)
Manifesto antropofágico com as sílabas separadas – impressão sobre papel, 60 cm x 42 cm
condição brasileira que serve para hoje. Quando Hélio Oiticica aborda uma vontade
construtiva ele fala do Manifesto, do princípio construtivo que está na essência do brasileiro,
porque talvez haja uma maturidade em não acreditar mais em ideologias, credos, mas sim
em ações antimanifestos, que são as ações coletivas...
Rosana transforma: o trabalho antropofágico é antropofágico na própria forma, porque vai
se autodeglutindo, originando uma fluidez que foge às vezes à lógica do manifesto...
Há nesse trabalho uma proposição de fruição da obra de arte. Na Idade Média, quando
surge o texto escrito, nos monastérios, o advento da palavra impressa fez com que as
pessoas precisassem ler em voz alta para recuperar o sentido, já que a palavra escrita
não fazia sentido. Os manifestos da artista são uma volta à degustação do manifesto,
onde é feita quase uma desconstrução, uma metalinguagem de ser antropofágico: vamos ser literalmente antropofágicos!
Hipertexto
A leitura dos manifestos é em forma de hipertexto,
cada palavra tem o seu significado. O hipertexto
cria discursos simultâneos, textos dentro de textos.
Mas nas obras de Rosana isso não acontece; a simultaneidade é impossível.
As características de hipertexto, das interligações,
da complexidade sistêmica são justamente as
criações por justaposição de campos e saberes
aparentemente desconexos onde a produção
artística do século XX avança. Existe um fio condutor, a colagem entre a linguagem e a imagem, entre
o meio, seja a fita rotuladora, e a metáfora. É criada
a ambiguidade.
Texto suporte que acopla outros textos em
sua superfície, cujo acesso se dá através dos
links que têm a função de conectar a construção de sentido, estendendo ou complementando o texto principal. Em computação,
hipertexto é um sistema para a visualização
de informação cujos documentos contêm
referências internas para outros documentos
(chamadas de hiperlinks, ou, simplesmente,
links), e para a fácil publicação, atualização e
pesquisa de informação.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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DEGLUTIÇÃO DO MANIFESTO (2003)
Manifesto antropofágico escrito apenas com palavras com vogais – impressão sobre papel,
60 cm x 42 cm
MANIFESTO OBJETO (2004)
O objeto (escrito por Waldemar Cordeiro) sobreposto à imagem A mulher que não é B.B. (obra de
Waldemar Cordeiro) – impressão sobre papel, 60 cm x 42 cm
PALAVRAS CRUzADAS – LEITURAS CRíTICAS
Paulo Reis
“(...) O modernismo, ou melhor, as vozes modernistas aparecem também em
outra série, a dos Manifestos. Nestes, Rosana Ricalde apropria-se dos motes
que mudaram os rumos da arte brasileira, desde o Manifesto antropofágico de
Oswald de Andrade, o Manifesto ruptura, também o Neoconcreto e, por fim,
o Objeto, este último pertencente ao artista Waldermar Cordeiro. O primeiro
Manifesto dadá também interessa à artista e é associado aos manifestos brasileiros pela sua importância histórica e conceitual, pois acabou por abrir território para todos os outros manifestos. Em todos esses trabalhos, o que se
torna evidente é a intervenção da artista, apagando ou sublinhando o significado das palavras, criando uma dislexia semântica no espectador (...)”
Guilherme Bueno
“(...) Ao escolher os manifestos como tema de uma série de trabalhos, a artista
reconhece neles o testemunho enfático da descontinuidade apontada acima. O
que eram os manifestos? Não importa se artísticos ou políticos, eles se propunham a uma dupla tarefa: excitar seu leitor/ouvinte e cooptá-lo para uma determinada causa, ao mesmo tempo em que se lhe ensinava a olhar as coisas de
outra maneira. Ele compreende sentindo e vice-versa, mas os dois instantes são
vividos separadamente. Os manifestos forneciam uma ótica do mundo. A partir
dela, seu destinatário estava capaz de agir – isso valeria tanto para o Manifesto
comunista quanto para os escritos em defesa da arte abstrata. Em alguns casos,
especialmente no século XX, havia mesmo um elo entre o texto e sua paginação,
como se esta última corroborasse uma etapa preparatória do encontro com determinadas obras. E, neste último caso, o texto se colocava à beira de transformar-se na própria imagem a ser visualizada, transpondo o abismo que até então
o separara desde sempre das obras que tentava explicar.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
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Se, por um lado, as obras de Rosana criam essa proximidade crítica com uma
tradição visual moderna, elas não se eximem, porém, de colocá-la contra a
parede. Em outras palavras, apesar de seus esforços, os manifestos não raro
conviviam com uma sintomática falta de sincronia – mesmo que mínima, ainda assim intensa – em relação aos trabalhos que sustentavam: ora antecipavam obras que estavam por existir, ora nasciam quando estas já eram objetos
prontos (ou seja, há uma contradição notável de ideias que prenunciavam
obras já prontas). Além do mais, a necessidade de propagar uma verdade
geral independia da singularidade das obras a serem julgadas. Isto é, eles criavam modelos de percepção que estranhamente negavam a verdade específica de cada obra, inclusive aquelas resguardadas sobre seu manto. Nesse
sentido, os manifestos falavam de arte apesar das obras de arte (...)
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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Tópicos para conversas
e explorações sobre a obra 
1. O primeiro olhar
• Como falar de primeiro olhar diante dessa série de manifestos? Tudo que essas obras
invocam é mais uma vez uma armadilha, uma parede contra qualquer juízo interpretativo
pelo primeiro olhar. Compartilhar sensações de estranhamento, desafeto, diante dessa
obra que exige muito mais que apenas uma apreciação visual.
• O que se vê são apenas textos. Dessa vez, Rosana toma os textos como material de
criação, não como retratos, não como auto-retratos, não como escritas que substituem ima����
gens, mas composições e estruturas que desconstroem os sentidos originais dos textos. 
• Esses textos, dos quais Rosana se utiliza para essa série de trabalhos, eram organizados ou compostos por grupos e movimentos de artistas. Sua forma tornou-se arte que,
ao condenar a corrupção de valores, ou desvios e acomodações dominantes no mundo,
principalmente no mundo da arte, manifesta e declara novas direções, e se reinventa.
Os “manifestos” fazem parte da história da arte como textos de denúncias e, ao mesmo
tempo, de um anunciar de novos valores... Mais um enigma, ou uma série de enigmas:
como decifrar essas obras, pois a artista desconstrói os sentidos revolucionários para
transformá-los em poesia pura?
2. Percepções intuitivas 
• Já tendo visto várias outras obras de Rosana, algumas intuições podem surgir a partir
da lembrança das estratégias utilizadas anteriormente. Os Auto-retratos foram metáforas
de espelhos cegos onde se refletiam textos adesivados em fitas rotuladoras, em vez dos
retratos dos poetas. Substituiu-se a imagem do autor pela sua criação poética, que, ao se
ler, gera outras imagens. Na série Mares, ondas de escritas, mares de mar; mais uma vez
a língua gráfica se materializa como uma confluência entre palavras (significantes): muitas
palavras juntas dão origem à forma, um oceano de palavras, que leva ao mar – imagem.
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• As garrafas de areia se tornam metáforas da passagem do tempo pela arte. Em todas essas experiências, Rosana nega a objetividade do valor e significado das coisas em si e
superpõe pelo sistema de ressignificações poéticas. Da mesma forma que os globos da
Rosana foram apagados para se tornarem apenas uma esfera de fluxos de linhas de uma
escrita automática – uma língua gráfica de arte cobrindo o mundo...
• E nos Manifestos? O mesmo apagamento de mundos e transbordamentos de arte ocorre nos Manifestos (como um sistema de metáforas). Rosana reconfigura os textos
originais em novas formas de leituras e significados. Ao mesmo tempo, os Manifestos de
Rosana podem denunciar o que ainda é pouco conscientemente anunciado – estamos
no século xxI: devem-se mudar as estratégias de lutas pela arte, ou o papel da arte para
produzir novas visões de mundo. Talvez mais delicadas, mais singulares, sem querer
transformar o mundo pelas revoluções?
• O que foi a era dos manifestos na Europa e nos EUA, senão uma época de crença também no poder da arte de mudar o mundo? A arte de Rosana, por sua vez, pertence
mais ao século xxI, pois se faz agora como antiarte e anti-revolução. Que mudanças de
época e estratégias ela sugere? Pela arte de se dar o direito de ser livre dos compromissos revolucionários, até pelo contrário, desconstruir as estruturas fixas de sentidos
ideológicos em poemas “líquidos”, e com isso desmontar castelos de águas passadas,
e homenageá-los como solo revirado para uma nova semeadura e colheita. Sem pretensões, apenas reescrevê-los, reinventá-los como poeta que saboreia os sons das vogais,
as cores e ritmos das palavras sem querer mais fazer mensagens, apenas cavalgar nas
nuvens passageiras das palavras.
• Pode ser sugerida a leitura em voz alta por várias pessoas ao mesmo tempo, diferentes polifonias e teatralizações dos versos em sons visuais, gestos coletivos que
expressem apenas o jogo do que se vê desenhado por palavras – tão distantes das
vontades revolucionárias dos manifestos. Toda leitura desses manifestos seria transformada em um acontecimento dadaísta e também antropofágico. Para exercitar e digerir
essas ações antropofágicas de Rosana, vale a pena viver a metáfora de se retornar ao
momento da escrita automática (dadaísta) e à polifonia das leituras coletivas em várias
vozes simultâneas, sem ter medo de não fazer sentido, e apenas fazer sentir.
SERVIÇO SOCIAL DO COMÉRCIO
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3. Percepções metafóricas
Dadaísmo 
“Somente a antropofagia nos une. Socialmente.
Economicamente. Filosoficamente.” Oswald de
Andrade 
• Pelo Manifesto antropofágico, Oswald de Andrade degustou os velhos mundos, declarou e
denunciou nossa natureza híbrida, dependente e
independente da riqueza de se fazer pelo �������
canibalismo cultural. A criação do ser brasileiro ao longo
dos 500 anos é pura degustação antropofágica dos
atributos e qualidades dos nossos colonizadores –
somos parte de uma humanidade que aprende e
respeita��������������������������������������
a diversidade. Somos os europeus ����
amanhã, pois nossa carne, pele e língua nasceram no
novo mundo. “Só a antropofagia nos une socialmente, economicamente e filosoficamente.”  
• Assim Rosana realiza literalmente o ato antropofágico – deglute o manifesto – e faz dele várias
colchas de retalho; sopa de letras (nome de uma
outra obra, onde uma sopa de macarrão com
letrinhas era servida com todas as palavras que
formam o Manifesto antropofágico). Mas, essa
vontade antropofágica precisa ser continuada
pelos leitores dessa obra. Somente exercemos a
fruição dessa obra pela antropofagia – somente
a antropofagia pode nos unir. Rosana chega à
arqueologia da criação dos manifestos – cada
manifesto ela transforma em poesia, um jogo
entre amor e obsessão pelos sentidos do fazer
artístico, que são exercidos pelos instrumentos da
desconstrução e do bricolage – como alguém que
O Movimento Dada ou Dadaísmo foi fundado
em Zurique, em 1916, por um grupo de escritores e artistas plásticos. Embora a palavra
dada em francês signifique cavalo de brinquedo, sua utilização marca o nonsense ou
falta de sentido que pode ter a linguagem.
Para reforçar essa idéia foi criado o mito de
que o nome foi escolhido aleatoriamente,
abrindo-se uma página de um dicionário e
inserindo-se um estilete sobre a mesma.
Enfatizou-se o ilógico e o absurdo. Entretanto,
apesar da aparente falta de sentido, o movimento protestava contra a loucura da guerra e
sua principal estratégia era mesmo denunciar
e escandalizar. 
Escrita automática
A escrita automática consiste em não raciona��������
lizar sobre o que se está escrevendo, apenas
com um papel e um lápis deixar a escrita fluir,
com as palavras que venham à mente.
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
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MANIFESTO VISíVEL (2004)
Manifesto ruptura sobreposto à obra Ideia visível (de Waldemar Cordeiro) – impressão sobre papel,
60 cm x 42 cm
desmonta brinquedos para tentar reinventá-los.
O jogo da criação artística se combina com curiosidade, arqueologia, bricolage e antropofagia.
É pura poiesis – como os gregos entendiam –, o
exercício de inaugurar sentidos para a realidade, e
daí inaugurar a realidade como extensão do nosso
ser poético.
• A responsabilidade da arte está no fazer artístico que emerge como atos de amor pela arte.
Roland Barthes descreve, de maneira inspirada na
obra de Cy Twombly, essa relação entre o fazer da
escrita da arte e da arte como uma escrita “zero”,
ou o zero da escrita, quando ela é totalmente a
comunhão entre uma língua especial encarnada
na forma escrita.
Bricolage
Mais de um objeto colocados juntos de tal
forma a ressignificá-los, ou mesmo uma nova
montagem das partes de um mesmo objeto.
Cy Twombly
Artista americano (1928). Para Cy Twombly
a pintura é entendida como uma caligrafia,
ou melhor, Twombly reabre a questão do
desenho enquanto expressão gráfica primordial, anterior mesmo aos ritmos que geram a
caligrafia; uma espécie de escrita, um código
gráfico/pictórico. "Cada linha é então a verdadeira experiência com a sua história única.
Não ilustra; é a percepção da sua própria realização", disse.
• O século XXI chega cansado de rupturas com tradições; é preciso começar do nada – da poesia. Rosana refaz ou retrata a escrita dos manifestos como uma escrita zero, que é para ser lida
começando do nada – quando então é possível
surgir uma outra poesia.
4. Arqueologia da criação
Começamos o século xxI como Ernst Bloch
aborda em Pequenos sonhos diurnos8 e neles o
“princípio esperança”:
“Começamos sem nada:
Movimento-me. Desde cedo na busca. Completamente ávido, gritando. Não se tem o que se
EXPOSIÇÃO PALAVRAS COMPARTILHADAS
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quer...
Diariamente sem saber o amanhã.”
• Manifestos: o que são hoje e o que foram na história da arte? Os manifestos ���
modernos foram em suas respectivas eras textos históricos anti-sagrados; documentos de
indignação das vanguardas enquanto jovens diante de suas épocas, que da mesma
forma rapidamente envelheceram; ou proposições de novas atitudes e valores – sociais,
políticos e artísticos – que sempre pertencerão ao futuro ainda não realizado, sempre
antecipatórios de valores ainda por ser conhecidos? São também representantes de uma
estratégia de luta coletiva, de tempos de movimentos vanguardistas, principalmente do
início do século XX. Mas o “tempo tudo muda” e os manifestos também, ou as maneiras
de se manifestar? Os manifestos marcaram uma época de lideranças carismáticas que
erguiam suas vozes em forma de arte – e agora, onde e como ser herói? 
• As formas dos discursos ou dos manifestos datam uma imagem que então buscou
gritar aos sentidos, aos olhos e ouvidos de uma geração a convocação à luta ou à ironia,
ou à renovação inexorável do “tempo que tudo muda”. O Brasil inicia sua modernidade
com um manifesto extremamente original – que nos faz conhecer e reconhecer quem nós
somos a partir dos outros. Mais ainda, ele propõe uma máxima de sabedoria: “A alegria
é a prova dos nove!” Oswald de Andrade concluiu sabiamente pela esperança na alegria
como uma sabedoria muito especial que está na singularidade da condição utópica e
antropofágica brasileira. A antropofagia contínua é reinaugurada no século XXI por essa
obra de Rosana.
• A antropofagia e o Manifesto antropofágico de Oswald de Andrade são literalmente
poetizados pela desconstrução das palavras, distanciando-as de seus sentidos originais.
Desfaz a relação entre palavra e significado, para sobrepor esses vínculos por uma imagem
ou um código fonético, através de um ato de destruição e criação poética. Rosana realiza
assim, pela licença poética, um ato antropofágico, a deglutição dos fonemas e vogais, se
aproxima da escrita zero pela poesia fazendo a metáfora viva da antropofagia.  
• Com isso Rosana canibaliza as vozes do modernismo – dos heróis e profetas da ���
modernidade (Marx) – para invocar revoluções silenciosas e anônimas da arte pós-moderna.
Uma mudança de paradigmas pode ser identificada através da aproximação entre os di���
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ferentes atos poéticos da Rosana – de apagar globos e geografias políticas, assim como
desfazer manifestos em escrita zero – poesia pura.
• O que é negado e o que é afirmado pela desconstrução dos manifestos em novas
construções poéticas – poesias antropofágicas ou poesias concretas?
Se, por um lado, os manifestos marcaram época como ruptura e vozes de esperança –
esperança ética ou na exigência de renovação –, por outro, reivindicaram para a arte o
direito de jogar entre a anunciação de sua morte e a sua constante reinauguração. Nos
textos dos manifestos foram registrados os desejos de revolução que marcaram o início e
fim da era moderna; mudanças e utopias que fizeram com que artistas se unissem, políticos lutassem ou lutam até hoje na crença em uma revolução social pregada no Manifesto
comunista; a luta dos trabalhadores e sindicalistas seguidamente levando multidões às
ruas, inspirados pelas ideias marxistas. 
• Mas podemos observar também que quase não se criam mais os manifestos como
estratégias de envolvimento entre grupos de artistas (vanguardas) e as lutas da nossa
época. Será que não existem mais necessidades de lutas ou movimentos artísticos que
se considerem vanguardas – anunciadores de futuras formas de ver e ser no mundo? 
• Rosana desmancha a gravidade das estruturas de textos presente nos manifestos, da
mesma forma que o fez no apagamento dos continentes na série Globo, cobertos de tinta
branca, agora refeitos como percursos e imagens poéticas.  
• Poderia ser reconhecida a emergência de um outro tipo de manifesto nas obras de
Rosana ou um outro princípio de esperança, que propõe o fim dos manifestos, mas ao
mesmo tempo, pelo poder da utopia antropofágica da arte – de começar do nada, de
inaugurar leituras, como sugere Ernst Bloch com a imagem de uma grande roda que
recolhe água das camadas profundas do rio para relançá-las na corrente desse mesmo
rio. Como um paradoxo entre profundezas e arquétipos que alimentam o movimento
de renovação antropofágica da arte, Rosana joga com arquétipos contemporâneos –
reinventa os manifestos, da mesma forma que as garrafas mágicas do tempo guardado, os globos e os auto-retratos. Em tudo a arte pode habitar por transbordamentos
dos pequenos sonhos diurnos propostos por Bloch. Um globo de poesias líquidas em
fluxos representa o trabalho do sonhar diurno do artista, de tocar as coisas comuns e as
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mais simbólicas e sagradas, aproximando abismos, transformando em arte! Em todas
as negações realizadas pelas operações ou intervenções artísticas de Rosana, às ideologias nos manifestos, às geografias no globo, à passagem do tempo nas garrafas com
paisagens de areias coloridas, ainda é possível se identificar um princípio de esperança
que inspira ou intui suas metáforas. 
Referências históricas particulares e universais
Pesquisar no Caderno de Referências os textos : O objeto, Manifesto neoconcreto, Manifesto antropofágico.  
Pesquisar Manifestos: Manifesto futurista – F. T Marinetti, 1909 / Construtivismo –
Naum Gabo, 1937 / De Stijl – Piet Mondrian, 1919 / Manifesto realista – Naum Gabo,
Pevsner, 1920 / Manifesto pau-brasil – Oswald de Andrade, 1924 etc.
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Bibliografia
 
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VICO, Giambatista. The First New Science. Cambridge, UK: Cambridge University
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