HORIZONTES
João mexeu um dedo
texto Teresa Carvalho foto FM
Helena estava ali sentada, quieta, tensa,
com o olhar posto na parede branca da
Enfermaria 3. Parecia não sentir, nem
existir. Dora aproximou-se e pousou
a mão sobre o ombro de Helena.
– Como está o teu pai, Lena?
Como resposta, apenas silêncio.
O senhor João permanecia imóvel, em
coma. Era o quarto dia neste estado,
depois da trombose. Era também o
quarto dia que Helena fazia daquela
cadeira o seu posto de vigia. Com
20 anos, continuava a ser para o seu
padrasto uma importante preocupação,
devido ao atraso de desenvolvimento
detectado em criança.
Dora permaneceu junto deles,
também em silêncio. Não sabia que
dizer e não queria perturbar aqueles
momentos. Afagou a mão calejada
de João em gesto carinhoso de sincera
admiração. Este homem simples,
analfabeto, emigrante e que gostava
de dançar, pela sua forma de viver
e de perdoar, tinha dado lições
sábias de tolerância e de aceitação
das fragilidades dos que ele amava.
Quando se encontravam, Dora
sentia-se forçada a questionar as suas
próprias intolerâncias e contradições.
Costumava olhar para as cicatrizes
que as alergias ao cimento deixaram
nos braços de João e ver nelas sinais
do seu esforço para alimentar, cuidar
e educar uma família que assumiu
como sendo a sua. E tornou-se a sua,
porque a amou como tal.
A visita de Dora fora breve. Despediu-se de João e depois de Helena. Ia
a sair quando ouviu um som quase
inaudível, em tom de lamento,
balbuciado pela Helena:
– E eu que estava chateada com ele
quando lhe deu esta trombose. Agora
já não vou poder dizer quanto o amo.
Há tantos anos que não lhe dou um
abraço! Só quando era pequenina.
– Oh, Lena! Se quiseres, podes fazê-lo agora! Sabes que as pessoas que
estão em coma, muitas vezes ouvem
e sentem o que se passa à sua volta?
Podes dizer-lhe tudo quanto desejas.
Ele ficará muito feliz com isso! Se
estiveres atenta, até pode acontecer
que vejas ou sintas um sinal disso.
Helena inclinou a cabeça, quase
incrédula, e retomou o seu silêncio
habitual.
Três dias depois, Dora foi ao funeral
do senhor João. Helena aproximou-
FÁTIMA MISSIONÁRIA
0 FEVEREIRO 2010
-se dela e com uma expressão que
emanava muita paz, confidenciou:
– Dora, eu disse-lhe. Disse-lhe tudo:
como gostava dele, e pedi-lhe desculpa
por estar zangada. Abracei-o tanto
e dei-lhe tantos beijinhos! E sabes?
Acho que ele mexeu um dedo, como a
dizer que tinha ouvido e que desculpava
tudo. Deve ter sido, não achas?
– Acredito que foi mesmo isso, Helena.
Ele deve ter ficado muito feliz!
– Obrigada, Dora. Aproveitámos
bem os últimos momentos em que
estivemos juntos!
E o rosto de Helena parecia iluminado
pela paz reconquistada na certeza da
ligação amorosa e que se tornou mais
forte do que a perda.
Download

João mexeu um dedo