De um discurso que seria do cartel
Francisco José Bezerra Santos
Começo pela questão do próprio título: ao invés deste poderia ser: “Cartel do
seminário 18: interrupção ou dissolução?” A razão da alternativa talvez fique evidente ao
final deste texto que começou a ser escrito alguns dias antes da data marcada para encerrar
os trabalhos do cartel e dissolvê-lo (09.04.05).
O cartel inscrito na Escola para trabalhar o seminário 18 iniciou suas atividades em
01.08.03. Na primeira reunião escolhemos o Mais-Um, marcamos datas, periodicidade,
falamos do projeto pessoal de cada um em relação ao cartel e redigimos poucas linhas
encaminhadas à Coordenação de Cartéis sobre o percurso pretendido.
Meu interesse principal, nesta leitura do seminário 18, tratava de uma articulação
entre o desejo, discurso e ato analíticos, bem como as possibilidades de ruptura do
semblante na ocorrência do ato analítico e produção de uma escritura (letra) na análise ou
na passagem ao ato. Na jornada Intercartéis da Escola, em 2004, apresentei um trabalho
tratando destas articulações: “Desejo, discurso e ato”.
Não avancei muito além do ponto onde aquele texto finalizou. Pergunto agora, se
um texto escrito durante o percurso do cartel não poderia propiciar, precocemente – no
tempo previsto da existência do cartel – a diminuição da transferência com aqueles
significantes. Decerto não há uma única resposta e para um sujeito x, em diferentes
momentos do percurso e em diferentes cartéis, isto poderá se confirmar ou não.
O fato é que para este sujeito, mais do que o tema já apontado, algo passou a
despertar maior atenção: o próprio funcionamento do cartel. A função do Mais-Um
operando, a “preguiça” de determinado dia, a irritação com certos ditos lacanianos, as
manifestações de entusiasmo quando certo ponto de dificuldade parecia ultrapassado...
Percebo que tal interesse de algum modo estava já presente desde o início: no caderno de
notas dedicado ao cartel, a partir do primeiro dia escrevi pequenos comentários sobre o
desenrolar da reunião. Em algumas ocasiões, li para os colegas algumas páginas do que
seria o “diário do cartel”.
A partir deste ponto, talvez fique mais clara a razão de certa dúvida quanto ao
título. Lembrando Lacan em D’Écolage (11.03.80) que dizia que “ Não se espera outro
progresso senão o de uma periódica exposição dos resultados, assim como das crises de
trabalho”1 passo a apresentar a minha leitura de algo que se produziu no cartel.
O “seria”, tempo condicional no título do seminário 18, aponta para o fato que “tudo
que é discurso só pode se dar por semblante”2, admitindo-se que o discurso que se
centrasse de “ seu efeito como impossível (...) teria alguma chance de ser um discurso que
não seria do semblante “3. Esta possibilidade estaria mais próxima ao discurso analítico.
No dispositivo analítico, operando o discurso em questão, possibilitado pela função desejo
do analista, o ato analítico pode ocorrer. Se este ocorre, temos aí o que Lacan denominou
rechaço do discurso: “o próprio analista tem que representar aqui, de algum modo, o efeito
de rechaço do discurso, ou seja, o objeto a (...) rechaço, posto que é exatamente o lugar ao
qual o analista está destinado no ato psicanalítico4.
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Na reunião de 06.11.04, este ponto foi mais uma vez retomado. Há algo do real
presentificado aí, algo experenciado na análise de cada um e que escapa à possibilidade do
registro simbólico. Efeitos são percebidos pelos analisantes, mas uma explicação razoável
sobre tal ou qual intervenção do analista não se obtém. Algo se precipita, um breve, fugaz
desvelar do Real. Algum saber, contudo se tenta produzir depois.
Este “desvelar” – para não tomar aqui o significante “ato” – poderia ocorrer numa
situação de cartel? Se o cartel escapa, ou pelo menos pretende escapar do registro
universitário de produção do saber, o que teríamos vigorando no cartel na potencia máxima
do dispositivo em funcionamento? Algo próximo ao discurso da histérica? Ao discurso
analítico? Aproximando o discurso da histérica ao que seria o discurso do analisante, a
prática do cartel certamente é outra que a da livre associação, embora esta possa ocorrer
quando um sujeito fala. Já em relação ao discurso analítico, uma certa aproximação entre a
função do Mais um e a função do analista poderia ser pensada, mas onde situar a
transferência no cartel? Ela se dá ao saber analítico, não havendo aqui o real do analista a
oferecer-se como semblante de a.
Mas foi nesta discussão, na qual os participantes rabiscavam os lugares e os termos
do que seria um discurso do cartel, que em dado instante algo parece ser produzido.
Escreve-se o que seria o discurso do cartel. E, fato inédito neste cartel que sempre trabalhou
com limites de tempo pré-determinado, alguém diz que por hoje está bom. “É como a
sessão de análise. Paramos aqui”. Como já estamos na última aula do seminário, o fim do
texto parece apontar o término dos trabalhos e resolvemos marcar a próxima data que
deverá ser a da última reunião.
O que seria o quadrípode do discurso do cartel, algo possível, pois Lacan fala de
quatro “discursos típicos”5 não excluindo a existência de outros seria assim:
S1
a
$
S2
Onde se perceberia os significantes mestre da própria psicanálise (um texto, um
tema) operando como agente, impulsionando o sujeito ($) cartelizante a trabalhar, a
produzir um certo saber (S2) que vai ocupar o lugar da verdade a partir de um resto, um
escrito, resíduo do real (a).
Aqui não são poucos os problemas. Imediatamente, pelo menos um pode ser
observado: tal discurso não se escreve a partir do quarto de giro de nenhum dos outros
quatro discursos. Uma variante produzida, escrevia Sq no lugar de S1, apara apontar o
significante qualquer da transferência com a psicanálise para cada cartelizante. Isto ficou de
lado com o propósito de manter as letras utilizadas na escrita dos discursos e marcar a
especificidade do trabalho da transferência (a análise em intensão) em relação à
transferência de trabalho no cartel, embora o próprio Lacan tenha pensado o cartel como
dobradiça entre intensão e extensão.
Mas se aqui se tem um produto – a ser pensado ainda se tem alguma importância - o
trabalho que o produziu ou melhor, o que se deu após sua produção colocou um impasse no
cartel. Numa referência lacaniana, na fundação da Letra Freudiana se escreveu: “os
participantes do cartel se comprometem a informar do produzido e dos impasses para
quem deseje sabe-lo 6. Nesta perspectiva coloco a questão: interrupção ou dissolução?
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O encerramento daquela reunião do cartel deixou os participantes perplexos. Como
disse, se pensou na ocorrência de algo equivalente ao corte de uma sessão analítica. Certo
tempo após este encontro, li um artigo de Brigitte Lémerer “ O passe, entre herança e
invenção. Transmissão da psicanálise e formação de analistas” publicado na mais recente
revista da Escola “A psicanálise e os discursos”. Neste, ela comenta sobre certas
“manifestações clínicas que se produzem nos cartéis” onde “um modo particular de
transmissão” pode se dar quando, nas reuniões “alguma coisa circula sem que eles o
percebam, toma forma, dando lugar ao primeiro enunciado, emitido e recebido
inicialmente em total desconhecimento. Num segundo tempo, um participante reconhece,
não sem ser movido pelo desejo, o fragmento do saber que esse enunciado encerrava
(...)”7. A posteriori, parece que aquele encontro foi encerrado pela própria manifestação do
saber produzido e da estranheza inicial que provocou nos participantes.
Contudo, depois deste, se passaram 4 meses sem que fosse possível uma nova
reunião. Dificuldades de toda ordem, agravadas pela mudança de dois participantes para
outra cidade e as raras oportunidades de viagem. Após algumas tentativas frustradas,
definiu-se por fim uma data para encerrar.Acontecerá?
Assim, fica a dúvida: é possível pensar na conclusão do cartel, se “ uma forma
lógica de se conceber o fim do cartel é quando o desejo cai, a dispersão se impõe” como
escreve Maria Lessa de Barros Barreto 8. Por outro lado na medida em que “dissolução
não é o mesmo que interrupção de funcionamento(...)” conforme lembra Dalmara Alba
assinalando que a “ interrupção indica que, por algum motivo, o cartel não se manteve
segundo as premissas propostas por Lacan – produção de trabalho e dissolução do cartel
após um tempo determinado”9 , teríamos de fato uma interrupção no percurso.
Deixo a questão em aberto.
Nota final: A reunião anunciada para concluir os trabalhos e dissolver o cartel enfim
ocorreu. Não, sem antes, o comparecimento equivocado de um mesmo participante em duas
datas distintas e a ausência de um outro, por “esquecimento” na data final (após haver se
“programado com muita antecedência” para a reunião).
NOTAS E REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1.
2.
3.
4.
5.
6.
LACAN, J. “D’Écolage” in Revista Letra Freudiana n° 0, Rio de Janeiro, s/d,
p.51.
_______ “De um discurso que não seria do semblante”, Recife, Centro de
Estudos Freudianos, s/d, p.11.
Idem. p.17.
_______ “O avesso da psicanálise”, Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1992,
p.41/42.
_______ “De um discurso que não seria do semblante”, Recife, Centro de
Estudos Freudianos, s/d, p.158.
“Fundação da Letra Freudiana” in Revista da Letra Freudiana, n° 0, Rio de
Janeiro, s/d, p.9.
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7.
8.
9.
LEMÉRER,B. “O passe, entre herança e invenção: transmissão da psicanálise
e formação dos analistas” in Revista da Letra Freudiana n°34/35, Rio de Janeiro,
2004,p.204.
BARRETO,MLB. “Cartel _ cardo, gonzo e dobradiça” in Revista da Letra
Freudiana, n° 0’’, Rio de janeiro, 2001, p.87.
ABLA, D. “Cartel na Escola” in Revista da Letra Freudiana n°0’’, Rio de
janeiro, 2001, p.93-94.
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