ARTIGO PUBLICADO NO JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO 15/04/2002
PERDAS E DANOS DOS CARTÉIS
Claudio M. Considera∗
A sociedade brasileira se habituou, no período mais recente, a ler, ver e ouvir na mídia
notícias sobre descobertas de cartéis, principalmente de postos de gasolina. A notícia mais
recente referiu-se a inédita condenação pelo CADE do cartel de postos de combustíveis de
Florianópolis. Aprendeu-se, portanto, que um dos tipos de cartel mais comum é aquele
formado por dois ou mais vendedores de bens ou serviços, supostamente concorrentes entre si
que, secretamente, se comunicam com o objetivo de fixar preços idênticos e elevados para o
mesmo produto, evitando, conseqüentemente, a competição entre eles. Entretanto, poucos
sabem a razão desta conduta ser considerada uma infração à ordem econômica, imputável
administrativamente (Lei 8884/94) com multas para empresas e indivíduos. Em alguns países,
como o próprio Brasil, é, também, um crime, imputável juridicamente (Lei 8137/90) com
penas de prisão para os indivíduos envolvidos. Para as empresas pode haver ainda processos
cíveis por perdas e danos, movidos pelos consumidores.
Para entendermos isto teremos que recorrer a alguns conceitos em que se baseia uma
economia de mercado. É importante recordar que os brasileiros não estão muito acostumados
a este conceito. Afinal, desde sempre nos habituamos à intervenção do Estado em todos os
aspectos da vida econômica, quer produzindo bens e serviços através de suas empresas, quer
impondo regras restritivas ao livre comércio, quer, ainda, fixando e controlando preços e
salários do setor privado. Este ambiente começou a mudar a partir de 1989: a abertura
comercial com a redução das tarifas de importação, a privatização e a liberação dos preços
culminam com o novo ordenamento econômico do Plano Real. Com a introdução das
concepções de equilíbrio fiscal e monetário foi possível garantir a manutenção da estabilidade
econômica implantada a partir de 1994. Nessa mesma época, o Brasil trocou o controle de
preços pela lei da oferta e da demanda, ao adotar a Lei 8884, passando a contar com um
moderno aparato de defesa e promoção da concorrência. Por esta Lei, o livre jogo das forças
de mercado, em um ambiente concorrencial, deve ser suficiente para garantir preços estáveis e
justos.
Uma economia de livre mercado supõe que cada produtor procure maximizar seu
lucro, dada uma certa tecnologia, tanto quanto um indivíduo busca maximizar seu bem estar,
sujeito a sua limitação orçamentária. Se houver concorrência, este encontro de interesses
levará a uma alocação ótima dos recursos produtivos do país, produzindo quantidades e
qualidades de produtos de acordo com a capacidade do país, tanto quanto levará ao maior bem
estar do seu povo. Concorrência existe desde que nenhum agente econômico seja capaz de
impor preços nesse mercado, sendo o preço do produto resultado do encontro dos desejos dos
produtores concorrentes em ofertar quantidades e qualidades de produtos e dos desejos dos
consumidores em adquirir estes produtos. A concorrência será tanto maior quanto mais livre
for o comércio entre os países, e quanto menor for a interferência do Estado no processo
econômico.
A existência de cartéis, portanto, fere mortalmente o mercado: eles causam dano ao
consumidor e têm efeito pernicioso sobre a eficiência econômica. Um cartel bem sucedido
eleva seus preços acima do nível de concorrência e reduz a produção. Adicionalmente, o
cartel protege seus membros da exposição às forças de mercado reduzindo a pressão sobre
∗
Secretário de Acompanhamento Econômico do Ministério da Fazenda
eles para controlar custos e inovar. Todos estes efeitos afetam adversamente a eficiência da
economia de mercado e o bem estar.
A infração resultante do cartel existe mesmo que não tenha conseguido aumentar os
preços e, tal como uma tentativa de assassinato, os cartéis devem ser perseguidos e punidos,
mesmo que não consigam alcançar seu objetivo. Para os que participam de cartéis seus
inimigos são os consumidores; seus companheiros nessa ação, ao invés de concorrem entre si,
se tornam aliados em burlar a economia de mercado. Por essa razão, o Sistema Brasileiro de
Defesa da Concorrência (formado pelas Secretarias de Acompanhamento Econômico do
Ministério da Fazenda e a de Direito Econômico e Conselho Administrativo de Defesa
Econômica, ambos do Ministério da Justiça), pretende mudar a Lei 8884 e passar a tratar
qualquer cartel como uma conduta anticompetitiva “per se”, não sendo necessário mensurar
seus efeitos adversos.
De fato, na maior parte dos países, as autoridades não fazem estes cálculos para
condenar ou impor penas aos cartéis, quer por sua dificuldade, quer por ser legalmente
desnecessário. Não é simples quantificar os efeitos perversos dos cartéis. Isto requereria
comparar uma determinada situação em que haja um cartel com outra em que haja um
mercado competitivo hipotético. Nos países em que é necessário quantificar os custos sociais
de um cartel, as autoridades utilizam-se de uma aproximação que é o ganho ilegal obtido
pelos membros do cartel. Isto equivale à margem de lucro acima do nível concorrencial e a
quantidade de comércio de bens afetado pelos membros do cartel.
O Comitê de Concorrência da OECD realizou uma enquête entre seus membros, sobre
casos de cartéis investigados entre 1996 e 2000, numa tentativa de conhecer melhor o dano
deles decorrentes. Os países que responderam, reportaram 119 casos, muitos dos quais
impossíveis de se medirem os danos. Foi possível, entretanto, verificar que os 16 casos de
cartel mais importantes envolveram um montante de comércio de 55 bilhões de dólares em
todo o mundo. Concluiu-se, também, que a margem de lucro dos cartéis varia
significativamente e em alguns deles pode chegar a 50%, tornando claro que a magnitude do
dano dos cartéis é de muitos bilhões de dólares anuais.
Um dos países mais bem sucedidos em caçar cartéis são os Estados Unidos. Seus
casos mais importantes referem-se a lisinas, ácido cítrico, vitaminas e eletrodos de grafite,
cujo comércio afetado foi superior 45 bilhões de dólares e o dano foi estimado em cerca de
1,3 bilhões. As sanções aplicadas foram multas de quase dois bilhões de dólares e prisão para
13 executivos das companhias envolvidas. Diversos outros países têm se esmerado em se
organizar para combater cartéis. e reportaram ao Comitê de Concorrência a apuração e
apenação de vários casos de cartel.
No Brasil não temos ainda sido muito efetivos na identificação e punição de cartéis;
condenamos até hoje dois cartéis: o do aço e o de postos de combustíveis de Florianópolis. O
caso do cartel de aço ilustra como o controle de preços no Brasil foi pernicioso e como
continua ainda produzindo seus efeitos deletérios. As três empresas envolvidas pediram uma
audiência ao Secretário da Seae e comunicaram que na semana seguinte elevariam os preços
de seus produtos igualmente, como estavam habituadas a fazer antes da liberação de preços.
Foram, na ocasião, advertidas da infração que estariam cometendo caso assim procedessem e,
a despeito disso, fizeram o anunciado. Um outro caso na mesma linha ocorreu em 6 de
fevereiro de 1999, quando os principais jornais do Rio de Janeiro anunciaram na sua primeira
página que o seu Sindicato havia deliberado por um aumento de 20% no preço dos jornais a
partir daquela data. Estes são dois exemplos de como a antiga sistemática de controle de
preços adotada pelo governo brasileiro, de sentar-se à mesa com produtores, para determinar
preços em conjunto, provavelmente continua prevalecendo, mesmo anos depois do fim do
controle de preços no Brasil. Estes dois casos, todavia, são de cartéis tolos: anunciaram à
autoridade ou publicamente que estavam cometendo a infração.
O mesmo não ocorre, entretanto, em outros casos de cartel investigados pelo SBDC,
como o caso de postos de combustíveis de Florianópolis, já julgado, ou de Salvador e de
Brasília a serem julgados, ou ainda o complô de gerentes de vendas, de algumas empresas
farmacêuticas, contra os remédios genéricos. Seus autores, reunidos em segredo, sabiam estar
cometendo uma infração à ordem econômica. Ameaças de morte contra não seguidores do
cartel são comuns ocorrerem. Não podemos nos esquecer do assassinato do procurador que
investigava em Belo Horizonte o cartel de falsificação de gasolina, que nada mais é do que
uma forma disfarçada de aumento de preços. Muitos casos semelhantes a esse devem ocorrer
em associações e sindicatos de produtores. Reúnem-se, começam a conversar de amenidades
e logo essa conversa deriva para os preços de seus produtos numa verdadeira conspiração
contra o povo.
O combate a essa infração administrativa e criminal à ordem econômica só será mais
efetivo se os órgãos de defesa da concorrência forem dotados de maior capacidade de
investigação. Nos países em que cartel é crime, o aparato policial e de procuradores trabalha
junto com os órgãos de defesa da concorrência ampliando as possibilidades de investigação.
No período recente tivemos algumas experiências que demonstram como esse trabalho em
conjunto pode frutificar; Foram, no entanto, colaborações eventuais que, para serem mais
eficazes em outros casos, têm que se tornar institucionalizadas.
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