FUNDAÇÃO ESCOLA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA DE SÃO PAULO
III SEMINÁRIO DE PESQUISA DA FESPSP
A INTERNET COMO FERRAMENTA DE UMA INTEGRAÇÃO GLOBAL
Pesquisador: Fernando Moraes Leme de Moura / E-mail: [email protected]
Orientadora: Rosemary Segurado / E-mail: [email protected]
Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo – FESPSP
Palavras-chave: pós-materialismo, ciberpolítica, participação, integração;
Resumo
O presente trabalho analisa a evolução, propiciada pelas redes distribuídas online, ocorrida
nas diferentes formas de comunicação social e política utilizadas por toda a sociedade
global, fortalecidas pelo aumento da capacidade de diferentes idiomas se comunicarem,
pela maior facilidade em se viajar a encontro de diferentes culturas – o que incentiva uma
maior troca de informações sobre as diferentes ferramentas de participação política de cada
nação -, pelo aumento das iniciativas de fugas da sociedade do controle através da difusão
de distintas experiências pós-materialistas, além das inovações que o próprio Estado,
diferenciadamente
em
cada
nação
devido
às
pressões
populares
locais,
está
disponibilizando para fortalecer a democracia participativa em meio a uma grave crise da
democracia representativa e, desta forma, manter o seu controle social. O texto fortalece a
ideia de que a internet, apesar de todos os seus perigos que podem levar a um aumento da
desinformação com a propagação de diversas inverdades passadas e facilmente recebidas
como realidade, ainda deve ser vista como a principal ferramenta de evolução da
capacidade social de se auto-organizar e que já está sendo o principal ponto de partida de
participação política para muitos indivíduos que, em seguida, passam a fortalecer este
intuito de forma concreta em projetos estruturais e participações nos crescentes movimentos
sociais ou movimentos pós-materialistas.
Introdução
Este trabalho pretende explorar algumas tendências que apontam para o fortalecimento de
uma cidadania global cada vez mais coesa durante as próximas décadas, com uma maior
integração entre toda a população governada e de forma independente às fronteiras físicas,
embora os resultados políticos acabem sendo refletidos dentro de cada nação.
Ou seja, como um maior e mais rápido fluxo de informações e vivências em todo o mundo
podem alterar significativamente as ações de cada indivíduo em suas determinadas regiões,
cidades, estados, países e até continentes, além de ampliar pressões internacionais para
questões governamentais de qualquer parte do planeta, antes fortalecidas unicamente pelas
grandes agências de notícias.
Atualmente, com as redes distribuídas (GALLOWAY, 2010) a comunicação entre diversas
comunidades ficou nitidamente mais rápida e a troca de informações sobre métodos e
estratégias, que consolidam resultados ou não, para a ampliação da participação popular
dentro do processo político de cada região, segue uma projeção crescente, com um
aumento já evidente de atuação política da população, e potencial para atingir uma
realidade ainda mais elevada.
Os riscos negativos, porém, provenientes de uma taxa de despolitização elevada durante a
Sociedade Disciplinar, conceituada por Michel Foucault, não são descartados, embora o
viés aqui seja a crença na capacidade cognitiva de cada cidadão para, com o tempo, saber
discernir de forma mais ponderada sobre a veracidade e a sensatez do enorme fluxo de
mensagens que recebe. O ponto central é que esta cibercultura contemporânea pode ter um
caráter muito mais positivo do que a realidade anterior, em que a informação chegada aos
governados era quase integralmente transmitida pelos meios de comunicação em massa.
A necessidade atual de uma integração global entre os governados – a Multidão- ocorre
porque os governantes – o Império – (HARDT; NEGRI, 1999) já a fez há tempos, com
destaque para a liberalização econômica dos anos 80 em que a integração online do
mercado financeiro foi essencial. Desta forma, a ciberpolítica se apresenta como a principal
ferramenta de resistência dessa Multidão ao poder do Império dentro de diversos países, e é
fundamental para o fortalecimento da vontade global em criar movimentos multinacionais, o
que ainda é uma busca pouco consolidada.
Uma das principais bases para essa integração mundial são as crescentes imigrações,
sejam por busca de melhorias de vida ou por aperfeiçoamentos educacionais, que são um
grande problema para o capitalismo, principalmente para os países hegemônicos, que ainda
não sabem a melhor forma de personifica-la aos seus interesses.
“O capital imperial de fato ataca os movimentos da turba com incansável determinação;
patrulha os mares e as fronteiras; dentro de cada país ele divide e segrega; e no mundo do
trabalho reforça as divisões e fronteiras de raça, gênero, linguagem, cultura, e assim por
diante. Mesmo então, entretanto, precisa ter o cuidado de não restringir demais a
produtividade da multidão, porque o Império depende desse poder. Os movimentos das
massas precisam ter a permissão de se estender cada vez mais na cena mundial, e as
tentativas de sufoca-las são realmente paradoxais, manifestações invertidas dessa força.”
(HARDT; NEGRI 2001, p. 423).
1 – Linguagem e capacidade de se comunicar
Um conceito sempre perseguido por autores das ciências políticas e sociais em todo o
mundo é a criação de uma esfera pública mundial onde todos os cidadãos falem a mesma
língua, o que ainda é uma utopia. Porém, com o avanço da Internet, a capacidade de o
hábito de duas ou mais pessoas de diferentes nacionalidades se comunicarem ganhou
importante notoriedade. Perdeu-se a necessidade de conhecer o outro idioma para
estabelecer uma comunicação.
Com a internet, a tradução foi facilitada. Embora seja até hoje comprometida em relação à
sua qualidade, ainda com potencial de melhoras, as traduções online permitem a troca de
informações primordiais de forma instantânea, aumentando principalmente a facilidade entre
falantes de idiomas semelhantes, como o português e o espanhol. Recentemente, ademais,
o Google apresentou uma nova ferramenta: o Google Glass, que traduz instantaneamente
através dos óculos, entre novos avanços tecnológicos que surgem a todo o momento.
Além das traduções, especialmente a após a Segunda Guerra Mundial, com a vitória dos
EUA, o inglês se tornou hegemônico e se transformou na principal língua comunicativa com
o exterior em centenas de nações, hoje já sendo dominado por milhões de pessoas, o que
também contribui bastante para uma maior interação global. Não pode ser esquecido,
entretanto, o risco de segregação eminente para cidadãos com dialetos ancestrais e/ou
exclusivos, ainda não inseridos nessa lógica global.
2 – Viagens intercontinentais
A lógica da globalização criada pelo Império também aumentou o fluxo de capital cultural em
todo o planeta a partir do momento em que as viagens intercontinentais se tornaram mais
acessíveis à Multidão, principalmente às suas classes dominantes de diversos países. As
viagens à Europa, por exemplo, tomando como base o caso brasileiro, deixaram de ser um
glamour e se tornaram corriqueiras, aumentando a integração da juventude destas classes
que cresceram com um maior anseio por buscas existenciais da vida, devido a seus
privilégios de classes (STEINER, 1917), e sentem grande parte desta busca fundamentada
em viagens de intercâmbio cultural. Neste campo, inclui-se também o enorme fluxo da
classe trabalhadora, que parte em busca de uma melhor condição de trabalho e melhor
remuneração em outros países, onde podem, ainda, alcançar uma melhor qualidade de
vida.
Dentro dos países, a troca de capitais impessoais, constituídos pelo capital cultural e
econômico, é muito prejudicada pela segregação natural propiciada pelo Império que
mantém a transferência automática, de geração a geração, da herança dos “bons
costumes”, conhecimentos sobre determinados estilo de vida e, principalmente, da
propriedade, que representa o capital econômico (SOUZA, 2012). Os fluxos internacionais,
porém, rompem essa lógica, quando as pessoas estabelecem contato direto com outras
maneiras de pensar e trocam informações a um contexto mundial, aumentando a
capacidade de tocarem e sentirem situações que jamais teriam tido oportunidade dentro de
suas nações. São estas ocasiões que fortalecem as uniões de classes e incentivam o amor
entre os envolvidos, no conceito definido por Hardt e Negri (2005, p.439).
“As pessoas hoje em dia parecem incapazes de entender o amor como um conceito político,
mas é precisamente de um conceito de amor que precisamos para apreender o poder
constituinte da multidão. [...] Precisamos recuperar a concepção pública e política de amor
comum às tradições pré-modernas. Tanto o cristianismo como o judaísmo, por exemplo,
concebem o amor como um ato político que constrói a multidão. O amor significa
precisamente que nossos encontros expansivos e nossas contínuas colaborações nos
proporcionam alegria. [...] o amor serve de base para nossos projetos políticos em comum e
para a construção de uma nova sociedade. Sem esse amor, não nada.” (HARDT; NEGRI
2005, p. 439)
A partir disso, deve-se analisar que as trocas e aceitações culturais são essenciais para a
criação de uma “uniformidade” e uma convivência com a multiplicidade evidente entre e
dentro dos diferentes povos contemporâneos (LEMOS; LEVY, 2010). Com estas diversas
redes físicas de contatos internacionais, se multiplicam os alcances das redes distribuídas.
As relações interpessoais criadas por esta realidade ainda têm sua manutenção
potencializadas com a internet através de ferramentas disponíveis para um contato mais
próximo possível, como o Skype e o Whatsapp, por exemplo, além das próprias redes
sociais. Para exemplificar, no Brasil, um movimento social pode considerar, em suas
estratégias, diversas ações realizadas na Espanha, soma-las a alguns métodos do Occupy
WallStreet, nos EUA, adicionar inovações criativas vindas da Armênia, ponderá-las todas e
expandir esta somatória pelos diversos estados brasileiros. Com as redes distribuídas, isto
pode acontecer todos os dias, em qualquer local do mundo e considerando qualquer tipo de
movimento da Multidão.
3 - Iniciação política
A capacidade global de se manter uma comunicação ativa e interligada também fortalece a
criação de diversos movimentos internacionais não necessariamente políticos, mas às
margens do poder capitalista constituído pelo Império, o que pode ser visto como um
importante ponto de partida para aumentar o interesse político de uma nova geração
familiarizada com as redes distribuídas, dando cada vez menor importância ao
entretenimento banal. É através desta participação em um movimento diretamente
relacionado à sua causa pessoal que um indivíduo pode começar a se interessar por uma
participação mais ativa nas questões sociais de sua localidade, podendo expandi-la a todo o
planeta, dependendo do alcance de sua rede de contatos e de seus interesses.
Apesar de existirem diversos tipos de movimentos neste sentido, destaco aqui as pessoas
que não se sentem preenchidas pela lógica do consumo da sociedade capitalista e tentam
se desvencilhar desta situação, embora ainda queiram manter distância do que consideram
ser a “política tradicional”. Ou seja, odeiam partidos, odeiam informações políticas, não
participam de qualquer interação direta com o Estado, porém usam as redes para incentivar
o fluxo de atividades alternativas, em sentidos mais existenciais e ecológicos, para combater
a realidade do sistema em que vivem. O princípio é de modificar os hábitos das pessoas, já
que não veem poder para modificar diretamente as ações do Império.
“Parece ausente a esta mentalidade a sensação de que há uma conexão de causa e efeito
entre a ação do cidadão e o modo como as coisas referentes ao Estado se decidem. Este
sentimento se reforça pela impressão de que, com efeito, as indústrias da notícia, do lobby e
da consultoria política têm muito maior eficácia junto à sociedade política e ao Estado do
que a esfera civil. Haveria como que uma marginalização do papel dos cidadãos.” (GOMES
2011).
Um exemplo deste tipo de movimentação política pode ser a criação de uma rede de
integrantes de atividades sustentáveis. A troca de ideias sobre como cultivar e comer os
próprios alimentos, com informações para evitar, ou zerar, o consumo de carne, como
reutilizar água de chuva, aproveitar energia natural, construir casas com materiais locais e
naturais, entre outras que visam a total abdicação do sistema capitalista vigente. Somam-se
os incentivos ao compartilhamento, a troca de serviços laborais, a criação de novas moedas,
entre outras que representam ações políticas globais e de capacidade efetiva de
participação de qualquer indivíduo, sem intermediação do Estado, apenas criando
alternativas para fugir deste sistema atual, definido por Gilles Deleuze, e posteriormente
ratificado por outros autores, como ‘Sociedade de Controle’, onde cada indivíduo possui a
liberdade, porém é totalmente controlado e vigiado através, principalmente, do consumo.
De forma utópica, se estas alternativas de fuga da Sociedade de Controle fossem aderidas
por toda a população, certamente iriam causar graves consequências ao Império. Por este
motivo, o tratamento dado por grandes veículos de comunicação é de algo à margem da
normalidade e, desta forma, a internet se torna a maior ferramenta para expandir a realidade
e alta adesão de uma vida às margens do sistema de consumo capitalista. É certo que esta
realidade é impensável de ser aderida pela maioria da sociedade, porém não pode ser
desconsiderada sua relevância na questão da integração mundial em rede.
Outros impulsos contra o consumo, recentemente fortalecidos nas redes, quebram a antiga
lógica de financiamento feito por um empregador ou uma iniciativa privada, como são as
plataformas de crowdfunding (financiamento coletivo de projetos), que fazem o papel
cibernético para que pessoas despolitizadas e desinteressadas pela política tradicional
satisfaçam seus ímpetos em colaborar com a sociedade sem ter que sair de casa, apenas
doando bons projetos. Também entram nesta lógica as petições online, em que um
indivíduo transfere a representatividade a cidadãos mais atuantes e que julgam ser mais
confiáveis, para exercerem, em nome dele, a pressão junto ao Estado, enquanto pode se
ocupar com o trabalho, a família e o ócio. No início do século XX, o filósofo suíço Rudolf
Steiner já percebeu essa essência capitalista e apresentou um bom resumo de todo o
exposto, expandindo ainda à questão do “consumo” laboral praticado pelo Império (2011, p.
48).
“A moderna ordem econômica capitalista reconhece, no fundo, apenas a existência de
mercadorias de seu âmbito. Ela conhece a formação de valor dessas mercadorias dentro do
organismo econômico. [...] A pretensão não pode ser a de transformar o processo
econômico para que nesse a força humana encontre o seu lugar, e sim: como retirar a força
humana de trabalho do processo econômico, a fim de deixá-la ser determinada por forças
sociais que lhe retirem o caráter de mercadoria.” (HARDT; NEGRI 2011, p. 48)
4 – Evolução de uma imprensa plural e em rede
Alguns dos fatores positivos da internet para participação ativa da Multidão nos processos
políticos e sociais são: superação dos limites de tempo e espaço oferecidos para
participação; extensão e qualidade de informações estocadas; comodidade, conforto,
conveniência e custo; facilidade e extensão de acesso; inexistência de filtros e controles;
interatividade e interação; oportunidade para vozes minoritárias ou excluídas. Porém, há
também os fatores negativos: a qualidade da informação política propagada; a desigualdade
de acesso; a herança de uma cultura de despolitização; a manutenção da predominância
dos meios de massa dentro da própria internet; a ainda pequena – porém crescente –
abertura do Estado e partidos à participação política cidadã; e o controle invisível do Estado
nas redes, com aparência de total liberdade. (GOMES, 2005).
Diante dos aspectos positivos citados, diversos veículos de mídia, alheios aos tradicionais
meios de comunicação em massa, estão surgindo a ganhando notoriedade para condensar
de forma mínima o enorme fluxo de informações alternativas ao Império, expostas nas
redes. É importante ressaltar que gabaritados profissionais de comunicação estão se
arriscado no setor, para se desvencilhar dos meios de massa. Neste campo, porém, ainda
há uma grande dificuldade em conciliar a lógica capitalista em que todos estão inseridos
com o próprio discurso, para evitar contradições na busca por financiamentos sem grandes
patrocinadores e com pagamentos justos aos trabalhadores destas empresas. Além da
imprensa alternativa, outro fator fundamental para a grande informação em rede é a
capacidade de qualquer pessoa poder ser propagadora de um fato e transmiti-lo ao vivo.
Neste campo, o perigo do ‘não-profissionalismo’ é eminente – e bastante elevado – devido
ao impulso em reivindicar uma opinião sem checar a veracidade e, muitas vezes, com falta
de conhecimento aprofundado sobre o tema.
Este fluxo de informações alternativas, entretanto, já foi suficiente para que a Multidão
passasse a desconfiar da grande imprensa, antes vista como o papel central e único de
comunicação imparcial, embora ela nunca tenha largado o papel de ser parte do Império e
de toda a sua constituição: governo e mercado financeiro. Manuel Castells expõe este fator
e explica como vimos tantas pessoas nas ruas de todo o planeta nesta década, em uma
demonstração clara de cansaço global à Sociedade de Controle, tal qual ela está
constituída.
“Os mágicos das finanças passaram de objetos de inveja pública a alvos de desprezo
universal. Políticos viram-se expostos como corruptos e mentirosos. Governos foram
denunciados. A mídia se tornou suspeita. A confiança desvaneceu-se. E a confiança é o que
aglutina a sociedade, o mercado e as instituições. Sem confiança nada funciona.”
(CASTELLS, 2013, p.11)
Um tema de alto interesse social global que exemplifica a diferença de tratamentos entre a
imprensa tradicional conservadora e a alternativa é a Dívida Pública. A possibilidade de se
fazer uma auditoria em todos os contratos para anular juridicamente – como foi feito no
Equador em 2007 – tudo o que é ilegal e ilegítimo, nunca sequer foi tema da mídia
tradicional devido ao seu conservadorismo em relação ao Sistema Financeiro, porém é
bastante veiculado pela imprensa alternativa em rede, expandindo a seus veículos
impressos. De acordo com a Auditoria Cidadã da Dívida, 42% do orçamento do Governo
Federal brasileiro de 2014, ou seja, mais de R$ 1 trilhão será destinado ao pagamento de
juros e amortizações aos rentistas do Tesouro Nacional (banqueiros, fundos de pensão e de
seguros, investidoras financeiras, etc.). Esta situação afeta os recursos sociais em diversos
países do planeta por se tratar de um tema exclusivo do sistema capitalista vigente e de
essencial importância para a manutenção do Império.
5 – A transição brasileira
A tese de que as lições de articulação política da Multidão são impulsionadas pelo
integralismo global pode ser observada na forma como se constituíram as ‘Jornadas de
Junho’ em 2013 no Brasil, um momento considerado por muitos como a grande transição
para uma maior participação política brasileira, embora as redes já estivessem fazendo este
papel virtual àquele momento, com resultados mais específicos em períodos eleitorais,
como, por exemplo, no pleito à Prefeitura de São Paulo em 2012, quando Celso Russomano
e José Serra tiveram quedas exponenciais em pesquisas após sofrerem grandes
campanhas contrárias nas redes sociais.
Muito se escuta dizer que a principal razão para milhões de pessoas terem ocupado as ruas
de todo o país foi a repressão policial liderada pelo governador do Estado de São Paulo
durante a 4ª manifestação contra o aumento da passagem de ônibus na capital paulista e a
proporção que os vídeos denunciando o fato tomaram em toda a rede a distribuída pelo
país, o que foi capaz até de modificar o discurso dos meios de comunicação em massa em
menos de três dias. Esta alegação certamente é verdade, porém é necessário lembrar que a
repressão já havia ocorrido outras vezes e nem por isso havia sido apoiada pela população.
Por este motivo, o que não pode ser desconsiderado, neste caso, é justamente o
integralismo global como o estímulo essencial para o que se viu em seguida.
Poucos anos antes, em 2011, os movimentos Occupy fizeram atos integrados em 951
cidades de 82 países diferentes (CASTELLS, 2012), mas os que realmente receberam os
holofotes midiáticos do início da década, nas redes e na imprensa tradicional, foram os
espanhóis com o movimento ‘Los Indignados’, criado com uma massiva ocupação
permanente das ruas. Logo após, a uma curta distância física, deflagraram-se gigantes
protestos de massa no norte da África. Neste ritmo, outras “multidões” de diferentes nações
realizaram seus próprios movimentos, chegando ao maior impulsor para o caso brasileiro,
que foi a grande manifestação que acontecia na Turquia naquele mesmo mês e que
ganhara grande relevância nas redes sociais e imprensa brasileira. Tanto isso é verdade,
que diversas faixas foram vistas nos primeiros protestos com o slogan ‘A Turquia é aqui!’.
Essa teoria do contágio também é ratificada por Manuel Castells (2013, p.12).
“Da segurança do ciberespaço, pessoas de todas as idades e condições passaram a ocupar
o espaço público, num encontro às cegas entre si e com o destino que desejavam forjar ao
reivindicar seu direito de fazer história – sua história -, numa manifestação da
autoconsciência que sempre caracterizou os grandes movimentos sociais. Os movimentos
espalharam-se por contágio num mundo sem fio e caracterizado pela difusão rápida, viral,
de imagens e ideias.” (CASTELLS, 2013, p.12)
6 – A ciberpolítica brasileira
Recentemente o Brasil se tornou referência mundial com a aprovação do Marco Civil da
Internet que regulamentou diversas ações inseridas na rede e evidenciou a consciência do
Estado brasileiro quanto à necessidade de adaptação à nova realidade de sociedade
interconectada em rede. Além disso, outras evidências apontam para um interesse do
governo atual em interagir com a sociedade cibernética, como, por exemplo, a abertura que
o Senado Federal, o Planalto Central e outras esferas públicas já possuem em suas
plataformas online para a participação de qualquer cidadão. Isto ainda é pouco, porém pode
ser encarado como o início de um longo percurso, embora o governo aposte na
despolitização da sociedade e situação de dependência laboral para a falta de participação
em mecanismos de participação popular criados.
Cabe à população, porém, se apoderar destes mecanismos através da integração em rede,
para utilizá-los da melhor maneira possível e manter uma vigília efetiva sobre as decisões
governamentais que afetam a sua própria vida. O governo, ademais, está ciente da
vigilância invisível a que está submetido, onde qualquer informação imagem ou vídeo
comprometedor pode rodar o Brasil em poucos minutos. Esta vigilância é definida por
Jeremy Bentham como ‘panoptismo’, porém aqui de forma inversa ao que fora conceituado,
quando o Império vigiava a Multidão. Agora, os governados são os que vigiam os
governantes. Apesar disso, muitos representantes políticos seguem ignorando esta questão
e se mantêm intactos à Multidão devido a uma grande fortaleza constituída dentro do próprio
Império, o que passa uma sensação pessimista a muitos governados quanto a real eficácia
da ciberpolítica. Os otimistas, porém, apostam em um crescimento exponencial da ação
política através das redes distribuídas para romper esta realidade, analisando o quanto ela
já evoluiu em um pequeno período de tempo, o que tende também a elevar as participações
físicas em consultas populares graças ao aumento do interesse dos cidadãos, à maior
facilidade de informação sobre os eventos, etc.
Esta vigilância da Multidão sobre o Império, que ocorre em âmbito mundial, entretanto,
também expõe grandes riscos para a própria sociedade. Um deles é uma propagação global
contra o sistema político, onde todos os políticos são generalizados como “interesseiros,
corruptos e ladrões”, afastando os indivíduos das discussões sociais inseridas no sistema
institucionalizado com o medo de não ver seus nomes associados à “prática política”. Outro
problema é a ansiedade gerada pelas redes para que as medidas governamentais
produzam resultados instantâneos, a um mesmo ritmo do vivido nas redes, tornando as
pessoas menos capazes de separar o que é uma medida de longo prazo, o que merece um
longo debate, e o que é de fato uma promessa que não será cumprida pelo governante.
Resultante disso, a articulação política de movimentos da Multidão muitas vezes se perde
por não haver paciência e persistência para alcançar resultados em longo prazo. Um
exemplo de resultado progressivo, não de políticas públicas, mas de força da Multidão
organizada, pode ser considerado o próprio movimento ‘Los Indignados’ na Espanha, citado
anteriormente. A participação massiva iniciada em 2011 colheu seus primeiro frutos dentro
do sistema político apenas em 2014, ou seja, três anos após seu surgimento, quando o novo
partido ‘Podemos’, criado e articulado através das redes e dos participantes do movimento,
conseguiu cinco cadeiras no Parlamento Europeu após apenas quatro meses da sua
criação.
Conclusão
A base deste trabalho aposta na força da ciberpolítica global como um incremento da
participação popular nos processos de construção da sociedade e das decisões
governamentais. Porém, esta ampla participação política da Multidão, que pode parecer um
interesse unânime, nunca será bem vista pela parcela conservadora da população e,
principalmente, pelos que não confiam no grupo político que estiver no poder, caso este
incentive esta participação. Porém, a integração global da Multidão em rede, independente
dela ter posições políticas contrárias, já é uma realidade e um fator essencial para a quebra
deste paradigma, quando todos passam a perceber a sua condição atuante dentro da
sociedade e querer participar na construção do que acreditam ser o correto. Antonio Negri e
Michael Hardt fazem uma correlação resultante deste processo decisório da Multidão,
unindo pensamentos opostos, com a forma de atuação dos neurônios dentro do cérebro
humano (2005, p. 422).
“Não existe ninguém que tome uma decisão no cérebro, e sim um enxame, uma multidão
que age coordenadamente. Do ponto de vista dos neurobiologistas, o uno nunca decide. [...]
O cérebro não decide de acordo com os ditames de algum centro de comando. Sua decisão
é a disposição ou configuração comum de toda a rede neural em comunicação com o corpo
como um todo e com o seu meio ambiente. Uma única decisão é produzida por uma
multidão no cérebro e no corpo.” (HARDT; NEGRI 2005, p. 422)
É neste sentido que a integração global da Multidão é um fator fundamental para a
integração nacional em rede ocorrida dentro de cada país e que já se encontra em um fluxo
crescente, no qual só deveríamos fortalecer as possíveis evoluções sociais que podem
decorrer a partir dela. É evidente que existem diversas ponderações negativas, que podem
– e devem – ser consideradas na hora de formular uma opinião mais ampla sobre o poder
do integralismo global através das redes e o poder de dominação imperial existente dentro
dela. Porém, uma das questões fundamentais para a participação política de um indivíduo
para alcançar resultados concretos de mudança é justamente o otimismo, pois sem ele há
pouco estímulo, e sem estímulos dificilmente haverá participações, resistências e novas
adesões às lutas por uma sociedade mais justa, igualitária e participativa em sua
construção. O maior perigo latente em um indivíduo que se encontra em contradição se
participa ou não das questões sociais, e que deve ser afastado sempre que possível, é
muito bem observado por Wilson Gomes (2011).
“A busca de causas de fenômenos sociais complexos pode resultar, como se sabe, numa
agonia reflexiva e perpétua, pois o jogo conceitual de encaixes, engates e conexões,
mediante o qual se estabelecem as relações de causalidade, pode facilmente se tornar
descontrolado.” (GOMES, 2011)
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Download

a internet como ferramenta de uma integração cidadã global